Poesia é voar fora da asa.
Manoel de Barros
Vejo
uma mesa retangular de madeira. A mesa poderia ser de plástico ou ferro, mas é
de madeira.A mesa possui uma borda, um limite.O que é essa borda ou limite? Segundo
os antigos estoicos, a borda ou limite é onde a madeira deixa de ser. Suponhamos
que fôssemos seres bem pequenos, como aqueles seres humanos pequeninos de um
desenho antigo, imaginemos que estamos caminhando sobre tal mesa de madeira e
vamos em direção ao ponto onde ela termina. Veríamos que para além da madeira onde
pisamos há um vazio, um precipício. À medida em que avançamos do centro da
mesa à sua extremidade, o precipício fica mais perto. Suponhamos que a mesa tem
1 metro quadrado. Chegamos ao último centímetro dela, depois ao derradeiro
milímetro...Contudo, esse derradeiro milímetro ainda não é o precipício, é
madeira ainda. É para além do derradeiro milímetro como última parte da madeira, é para além dessa parte mensurável, embora diminuta, é para além dela que está o limite da mesa. O limite não é a madeira, mas onde a madeira da mesa termina.
A
mesa é feita de madeira. Mas a borda/limite é feita de quê? A borda não pode
ser feita de madeira, pois de madeira é feita a mesa. A madeira é um corpo. Mas
o limite não pode ser um corpo: a borda começa onde o corpo termina.
A
fôrma de empada recebe a massa crua. Após assar, retira-se a fôrma de metal, e
o que fica?A empada é a massa mais a ausência da fôrma. Contudo, a forma ou
contorno da agora empada não é a ausência da fôrma, ela é o ponto onde a massa
deixa de ser.É isto a empada: uma forma nascida da ação de um corpo ( a fôrma de
metal) sobre a massa.
A
borda ou limite não é um corpo, mas sim um incorporal, dizem os estoicos. O incorporal não é um nada, tampouco é um corpo, claro. Os estoicos dizem que somente os corpos são. O incorporal é um "extra-ser". "Extra" significa: "o que existe fora, além". O incorporal existe também mas como realidade além do corpo, mas que a ele permanece ligado, como o contorno permanece ligado à madeira de que é feita a mesa.
Ser um corpo é possuir a capacidade de agir ou de ação. Mas um incorporal não age. Incorporal, a borda não age, pois só os corpos podem agir. Se o limite não age, o limite não pode ter o poder de limitar, já que limitar é uma ação. Lembremos essa lição primeira dos estoicos: somente os corpos podem agir uns sobre os outros. Somente um corpo pode limitar outro corpo, apenas um corpo pode agir sobre outro corpo, tal como o corpo do serrote que serrou um pedaço de madeira e fez dele uma mesa, ou assim como o corpo da fôrma que agiu sobre a massa. O resultado dessa ação não é a massa: o resultado é a massa existindo com um contorno. Esse contorno não é a fôrma ou a massa, mas algo que somente existe na superfície dos corpos. É o incorporal que faz os corpos terem uma superfície.Por motivos utilitários dizemos que a superfície da mesa é onde colocamos os copos e pratos. Contudo, também é superfície dela a parte debaixo da mesa, bem como as suas laterais, por mais delgadas que sejam.
Ser um corpo é possuir a capacidade de agir ou de ação. Mas um incorporal não age. Incorporal, a borda não age, pois só os corpos podem agir. Se o limite não age, o limite não pode ter o poder de limitar, já que limitar é uma ação. Lembremos essa lição primeira dos estoicos: somente os corpos podem agir uns sobre os outros. Somente um corpo pode limitar outro corpo, apenas um corpo pode agir sobre outro corpo, tal como o corpo do serrote que serrou um pedaço de madeira e fez dele uma mesa, ou assim como o corpo da fôrma que agiu sobre a massa. O resultado dessa ação não é a massa: o resultado é a massa existindo com um contorno. Esse contorno não é a fôrma ou a massa, mas algo que somente existe na superfície dos corpos. É o incorporal que faz os corpos terem uma superfície.Por motivos utilitários dizemos que a superfície da mesa é onde colocamos os copos e pratos. Contudo, também é superfície dela a parte debaixo da mesa, bem como as suas laterais, por mais delgadas que sejam.
Platão
achava que é a forma ou limite o que verdadeiramente existe: eles seriam
modelos imutáveis para as coisas corpóreas em constante mudança. Sob a
perspectiva dos estoicos, porém, o limite é um efeito ou resultado da ação de
um corpo sobre o outro. O corpo que age é ativo, o corpo que sofre a ação é
passivo.Mas o limite , por não ser um corpo, não é ativo ou passivo: ele é impassível. O
limite da mesa não é a ação presente do
serrote enquanto essa ação ocorre na fabricação da mesa, o limite é o resultado
de ter havido a ação do serrote. Todavia , o limite mesmo não é uma ação ou
paixão. Ele não é um ser ou padecer, ele é um extra-ser. O mais estanho é que
os extra-seres podem entrar em relação uns com os outros, embora eles não
possam ser causa ou efeitos uns dos outros, pois somente os corpos podem ser
causa : ao agir sobre a madeira, o serrote faz com que ela deixe de ser madeira e se torna mesa. A madeira não é destruída, ela passa a ter novo sentido, um sentido incorporal : "mesa".
O
exemplo mais frequente dessa relação entre os incorporais acontece exatamente na linguagem em sua
vinculação com as chamadas coisas. Digo a palavra “mesa”, emito um corpo
sonoro que não é um grito nem um puro grunhido, mas um corpo sonoro com limites
fonemáticos. E quando digo “mesa” não estou a dizer madeira, embora a mesa seja
feita de madeira.O sentido não é som, o corpo sonoro ou significante: o sentido
é um incorporal.
Um
vaso de cerâmica possui um limite ,uma forma. O limite é onde a cerâmica deixa
de ser cerâmica, realidade meramente física, e se torna vaso. O vaso não
acrescenta nenhuma propriedade nova ao ser físico da cerâmica, mas lhe faz
sobrevir um novo sentido: vaso. Contrariamente ao que pensava Platão, os estoicos não acreditam
que exista o vaso em si como forma pura, pois todo vaso é o limite que acompanha
um corpo. O vaso de cerâmica só é vaso se houver o corpo do qual ele é um
limite, um intangível. Quando dizemos a palavra “vaso”, é o sentido incorporal
expresso pelos sons que indica o incorporal que faz de uma cerâmica um vaso. Se não
houvesse esse extra-ser acompanhando os seres, jamais do ser do som nasceria o
incorporal do sentido. O intangível não é o etéreo ou místico, o intangível é a
borda ou limite das coisas, sejam essas coisas corpos do mundo ou o corpo sonoro da linguagem. Quando nossa mão toca o vaso de cerâmica, ela pode
tocar apenas a cerâmica, não o limite intangível que faz daquela cerâmica um
vaso. Não podemos pegar nunca em um vaso, a não ser com algo que em nós também é
intangível. O intangível acompanha o tangível assim como a sombra que acompanha
o corpo, ou como a água que acompanha a onda que é feita de água, mas que
acrescenta à água uma forma: a forma-onda.
Nos
seres fabricados o limite é um contorno que não é exatamente estático, mas
impassível. Somente os corpos podem ser estáticos ( parados) , isto porque eles
também podem se mover. Porém o incorporal não se move, embora ele possa fazer
mudar de natureza o corpo do qual ele é o sentido.Um corpo pode aumentar ou diminuir
de tamanho, pode se mover ou ficar estático. Contudo, algo nele muda, não
fisicamente, quando o sentido que lhe atribuímos se altera em razão de uma nova
relação que o corpo faz com outros corpos. Uma coisa é o vaso de cerâmica
usado pela tribo, outra é o mesmo vaso exposto em uma exposição museal. Do
ponto de vista corpóreo, não há alteração, embora do ponto de vista incorpóreo
não se trata do mesmo vaso: foi-lhe acrescentada uma diferença, pois a
diferença mais potente sempre é da ordem do intangível. O impassível, portanto,
não é o estático, tampouco o morto. O impassível nos faz entrar no mundo do
extra-ser: nas coisas ele é acontecimento, na linguagem ele é o sentido.Quando
o serrote serrou a madeira, esta foi uma ação feita pelo serrote e sofrida pela
madeira. Contudo, virar mesa não é fazer desaparecer a madeira, e sim fazer vir
o acontecimento que é o testemunho presente de uma ação feita.Ou melhor, o
presente é onde está o corpo da madeira, já o tempo é um incorporal jamais
presente.No relógio, essa ilusão feita para corporificar o tempo, quem se move
são os ponteiros, que nunca saem do presente, como todo corpo ou ser, mas não
se move o tempo.São os ponteiros do relógio que se movem, não o tempo. O tempo é também um incorporal.
Nos
corpos vivos não há limites, mas limares, membranas. Quanto mais um ser
corpóreo persevera enquanto corpo a partir de uma membrana, mais esse corpo
está em uma relação íntima com o intangível tempo.É o corpo que envelhece, não
o tempo.São os ponteiros que correm, não o tempo.Somos nós que passamos, não o
tempo.
E
o que é nossa alma?
Para
os estoicos, até mesmo a alma é um corpo, um corpo muito sutil. Por
exemplo, quando vemos a mesa, notamos facilmente o corpo do qual ela é feita , o corpo
da madeira, pois a madeira não é um corpo sutil, é um corpo extenso, contínuo.
Porém, nossa alma é um corpo tão sutil, que ela
possui uma extensão quase que imperceptível, e é por isso que a imaginamos
incorpórea, embora ela não o seja. Por ser de extensão tão diminuta, suas
bordas estão aquém até mesmo do que nossos olhos corporais podem ver.Talvez
os estoicos intuitivamente já estivessem pensando naquilo que hoje chamamos de
neurônios, pois quem os vê? Embora o resultado de suas múltiplas conexões seja
exatamente o ver (bem como o mais extraordinário dos incorporais: o pensamento), ninguém vê os neurônios. Nem tudo o que é corpóreo pode ser visto.
Assim, dizem os estoicos, não é na alma que o pensamento está; o pensamento está para além do ser dela, como sua membrana ou extra-ser. Pensar não é contemplar ou temer o precipício, tampouco se jogar nele. Pensar é um transpassar e vencer o precipício, voando.
Aqui, apresentamos quatro incorporais ou extra-seres ensinados pelos estoicos: o contorno, enquanto extra-ser dos corpos; o sentido, como extra-ser ou incorporal da linguagem; o tempo, extra-ser e incorporal que não pode ser confundido com o corpo dos relógios e o passar dos anos; e o pensamento, extra-ser da vida e do próprio mundo.
Assim, dizem os estoicos, não é na alma que o pensamento está; o pensamento está para além do ser dela, como sua membrana ou extra-ser. Pensar não é contemplar ou temer o precipício, tampouco se jogar nele. Pensar é um transpassar e vencer o precipício, voando.
Aqui, apresentamos quatro incorporais ou extra-seres ensinados pelos estoicos: o contorno, enquanto extra-ser dos corpos; o sentido, como extra-ser ou incorporal da linguagem; o tempo, extra-ser e incorporal que não pode ser confundido com o corpo dos relógios e o passar dos anos; e o pensamento, extra-ser da vida e do próprio mundo.
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