segunda-feira, 30 de março de 2020

procustos...


Na mitologia, Procusto era um personagem de índole questionável que oferecia uma “cama” fabricada por ele às pessoas que passavam cansadas por uma estrada. Quando as pessoas se deitavam na tal cama, porém, acontecia algo estranho: ninguém cabia direito nela. Quando a pessoa era maior do que a cama , Procusto pegava um machado e decepava a cabeça e os pés excedidos. Quando, ao contrário, a pessoa era menor , Procusto amarrava as pernas e os braços dela com correntes , esticando brutalmente até desmembrá-los... Ninguém sobrevivia àquela cama transformada em túmulo: querendo que cada um se amoldasse à força, Procusto acabava matando todo mundo. Quando as pessoas reclamavam, Procusto pegava uma régua e media com rigidez militar a cama, e dizia: “A cama é perfeita, normal, exata: cada lado é idêntico ao outro . A régua não mente! O defeito está em vocês : diferentes e heterogêneos. Amoldem-se , mesmo que se violentando, e caberão na minha Verdade!” A cama de Procusto pode receber vários outros nomes: “Minha Opinião”, “Meu Dogma”, “Meu Credo” ...O que não couber em tais “fôrmas”, Procusto vingativamente corta, nega, mata – física ou simbolicamente . Procusto odeia tudo que “não se pode passar régua”, diria Manoel de Barros. O mais triste nestes nossos dias é que muitos, não se sabe se por medo, resignação ou mero espírito de rebanho mesmo , voluntariamente se deitam nessa cama que os violenta e apequena . E assim perdem a cabeça, tornam-se acéfalos: nada mais veem ou pensam; ou então perdem as pernas , já não podendo ficar de pé, apenas prostrados , de joelhos.Mas qual o tamanho exato da cama?  Quem cabe nela? Somente cabem nela aqueles cujo tamanho é o da vil pequeneza.

"Quando a forma predomina, desaparece o sentimento."(Balzac)

domingo, 29 de março de 2020

acordai...


  ACORDAI
( de Fernando Lopes Graça)

Acordai
homens que dormis
a embalar a dor
dos silêncios vis
vinde no clamor
das almas viris
arrancar a flor
que dorme na raiz

Acordai
acordai
raios e tufões
que dormis no ar
e nas multidões
vinde incendiar
de astros e canções
as pedras do mar
o mundo e os corações

Acordai
acendei
de almas e de sóis
este mar sem cais
nem luz de faróis
e acordai depois
das lutas finais
os nossos heróis
que dormem nos covais

Acordai...



campanha da CUFA ( Central Única das Favelas) para arrecadar auxílio














sábado, 28 de março de 2020

um pouco de possível para não sufocar...

“Um pouco de possível, senão sufoco.” Li recentemente um texto muito belo do filósofo Jean-Clet Martin retomando essa ideia de Kierkegaard que chegou até nós pela interpretação que dela faz Foucault. O “possível” que nos dá ar não é exatamente a expectativa de fazer alguma coisa amanhã. Esse possível que nos salva do sufoco não é uma projeção. Não podemos esperar para respirar amanhã, pois só há amanhã se respirarmos hoje, agora. Pois respirar é uma relação viva com o agora. Não por acaso, todas as técnicas de meditação e conhecimento de si começam por este ato: o respirar enquanto acontecimento que nos liga ao agora, para assim nos conectarmos com o meio, com o outro, com o mundo , com o cosmos, enfim, com a vida, para assim nos (re)conectarmos a nós mesmos. Desse modo, esse ato físico que fazemos com o corpo pode ser o símbolo do que as ideias e afetos devem ser para a alma. Há ideias e afetos que são ar puro que nos ajudam a não sucumbir diante daqueles cujas palavras  exalam veneno e morte. Em grego, “Pneuma” ( “sopro”) é um dos nomes da Vida enquanto força cósmica que vivifica o corpo. Em latim, “Pneuma” será traduzido por “spiritus”, “espírito”. “Pneuma” é o ar que a gente inspira e puxa para dentro. O que traz o recém-nascido à vida é quando ele, após sair do útero, puxa o ar e enche-se de vida. E assim inaugura-se. É dessa ideia que nasce o sentido de “inspiração” : “ação de encher-se de vida”, para assim “reinaugurarmo-nos”. “Possível” vem da palavra latina “poti”, que significa “ser capaz de” ( e é também de “poti” que nasce a ideia de “potência”). Esse possível-potência que tira do sufoco devemos respirá-lo dos livros, das artes e do encontro com aqueles com os quais nos agenciamos, inclusive virtualmente. E para aqueles que estão no sufoco, devemos nos esforçar para trazer um pouco de ar por intermédio daquilo que falamos e escrevemos. Isso pode parecer pouco...Porém o ato de respirar sempre parece pouco, quase imperceptível, enquanto o ignoramos ou não prestamos atenção nele.“Meditar”, inclusive, vem da mesma raiz que a palavra “medicar” : “potencializar a saúde”.

sexta-feira, 27 de março de 2020

o direito de resistência em espinosa


Espinosa é um dos primeiros pensadores a evocar e defender um “direito de resistência”, que também é a base do que depois se chamou de “desobediência civil”. O sentido original de “resistir” é : “pôr-se novamente de pé”, após ter caído. Ninguém resiste de verdade ficando sentado, é preciso ficar de pé. “Pôr-se de pé” não apenas no sentido físico, já que o “permanecer de pé” é a ação que define o que é ser humano em sua dimensão política, civilizacional, existencial e ética. Os vermes rastejam, os bovinos andam de quatro. Mas se o homem rastejar ou se conformar a ser quadrúpede, não é mais humano, torna-se outra coisa sem nome, inqualificável...Esse direito de resistência não é um direito que dependa exclusivamente de juízes ou ministros do Supremo para ser evocado e defendido. Quem o pode evocar e defender é quem se vê em perigo, sobretudo quando o que está em perigo é a própria sobrevivência da sociedade como um todo. Esse direito de resistência é mais do que um direito: é um dever quando estamos sob a ameaça de um tirano. Para Espinosa , não se esquivar a esse dever é o que caracteriza o autêntico pensar em sua dimensão prática, ética, política. O contrário da resistência é a obediência: esta produz ignorantes , aquela produz cidadãos. A obediência a tiranos é sempre incivilizada ( como essas carreatas contra a quarentena ou a greve que alguns caminhoneiros bozopatas querem fazer para desabastecer os supermercados!), já o direito de resistência ou de desobediência é ação para defender a civilização, em nós e nas instituições. Existe a solidão individual, mas há também a solidão em grupo, mesmo que neste haja muitos. A solidão individual é aquela de um indivíduo sem relações externas, já a solidão em grupo é a de um rebanho sem relações outras que não seja a de obediência a um tirano. Somente a multiplicidade se ligando a si mesma, reinventando-se povo, pode pôr-se de pé e resistir aos tiranos. O direito de resistência significa exatamente isto: o pôr-se de pé de um indivíduo na imanência de um pôr-se de pé coletivo que não se deixa derrubar pelo arbítrio de tiranos que põem a vida sob risco.

quinta-feira, 26 de março de 2020

sobre o direito de ter e emitir opinião


Algumas mídias comerciais que apoiam o bozo ( compradas com dinheiro público) vêm fazendo e divulgando pesquisas de opinião com perguntas tendenciosas visando levar  as pessoas a relativizarem  a quarentena , conforme a opinião criminosa do bozo. Seria completamente louca uma pesquisa de opinião que perguntasse: “É melhor extrair um dente com  anestesia ou sem anestesia?” Fica evidente a absurdez de uma pergunta assim porque ela mostra o limite da opinião. Nem tudo pode ser objeto de opinião. Assim, ficar em quarentena ou não ficar em quarentena não é uma questão de opinião, é um fato determinável  pela ciência. Dizer que a quarentena não é necessária é tão absurdo quanto afirmar que a anestesia atrapalha a extração de um dente....Além disso, o direito a ter uma opinião é válido apenas quanto à forma, não quanto ao conteúdo. Por exemplo, se alguém emite uma opinião que põe em risco a vida dos outros, isso não é mais opinião, é um crime.  Se alguém afirma que a terra é plana, isso não é opinião, é ignorância e obscurantismo. Se alguém emite opinião dizendo que o Congresso e o Supremo precisam ser fechados, isso não é opinião, isso é crime de responsabilidade previsto na Constituição. O direito universal a ter e emitir opinião é a base da democracia formal. Porém a democracia não é apenas uma forma, ela é sobretudo um conteúdo . E é sempre o  conteúdo  expresso nas condutas , incluindo as condutas verbais, que revela se a conduta em questão potencializa a sociedade ou a põe sob risco. 

terça-feira, 24 de março de 2020

o narrador da janela


Cinco doentes graves estavam numa enfermaria. A única comunicação  da enfermaria com o mundo  exterior era uma pequena janela. Perto dessa janela cabia apenas uma maca, na qual  ficava um dos pacientes  a narrar o mundo lá de fora, mundo este que os outros pacientes não podiam ver. “Daqui vejo o mar , até sinto  sua brisa. Vocês também conseguem sentir?”, perguntava  aos outros doentes.  Apenas um  dizia  não conseguir sentir. Os que sentiam, recriavam  um mar na alma e “horizontavam-se” . No dia seguinte  prosseguia o paciente-narrador: “Daqui  posso ver e ouvir crianças brincando numa pracinha . Vocês também conseguem ouvi-las?” . O mesmo paciente que não conseguia sentir a brisa também não conseguia ouvir as crianças . Os outros conseguiam, e algo    dentro deles brincava também e regenerava. Enfim, o paciente da janela  passava o dia a transpor em palavras a vida , de tal modo  que suas palavras viravam  remédio para quem as  ouvia: elas eram cura também.
Certo dia, porém , o paciente da janela emudeceu. Chamaram a enfermeira. Ela constatou, sem surpresa, que ele havia morrido. Só então os outros souberam que  o homem da janela era o mais doente entre eles.   Agora, cada um queria que a própria maca fosse colocada perto da janela, aquele lugar “privilegiado” , mas concordaram que para lá fosse o doente de  sensibilidade embotada. Só lhe fizeram uma exigência: continuar  as narrativas.  “ Farei melhor que o poeta que aqui estava !”, gabou-se.
Quando ele  olhou pela janela, porém, ficou mudo...Perguntaram : “o que houve!?” Então, ele disse: “em frente à janela não há mar, paisagem ou praça. Há apenas um  muro cinza... Um espesso   muro cinza”, repetiu. Ele só conseguia dizer a palavra mais sem vida  que existe : aquela que apenas repete o que está dado. Pois era verdade: sempre houve aquele muro.
O muro cinza simboliza  tudo aquilo que nos rouba a visão de horizontes, horizontes que nos estão fora e dentro, mesmo que ainda em esboço, virtualmente. Poesia é  criar palavras, sentidos e dizeres  que abram linhas de fuga  para a vida  com força libertária  mais potente do  que as  marretas.

“É preciso transver o mundo” (Manoel de Barros).


domingo, 22 de março de 2020

midas e dioniso


Midas era um homem que alimentava por dentro uma ambição desmedida por posses , dinheiro e  poder. Certa vez, porém, como tinha ambições políticas e  querendo aparentar ser o que não era, Midas  ajudou um homem em dificuldades  sob a  vista de todos. Parecia que ele se preocupava com o outro, mas na verdade ele estava usando o outro para seus fins de galgar  poder. Dioniso viu o fato, pensou que Midas agia por  genuína bondade  e quis recompensar Midas dando-lhe o poder de realizar seu mais forte desejo. É no que mais se deseja que cada um revela como é por dentro  .  Midas então revelou em seu pedido o quanto era pobre interiormente: seu desejo era que virasse ouro tudo o que tocasse. Assim, sob o toque ganancioso de Midas viravam ouro  a colher, a mesa, a cadeira, o copo...Mas viravam ouro também , uma estátua de ouro, alguém  que ele abraçava, o cão que ele afagava, o passarinho que vinha pousar na sua  mão... Para seu desespero, igualmente  virou estátua seu filho  recém-nascido que ele pegou no colo . Depois, viravam ouro  a água, o arroz, a carne, a maçã, o pão...antes que Midas pudesse matar a sede e a fome. Midas suplicou  conselhos a um sábio, ajoelhando-se de cabeça baixa e  segurando sua mão. Frente ao silêncio,   levantou a cabeça e viu apenas   uma estátua boquiaberta. Midas  então chorou, e de longe eram ouvidas  as lágrimas quicando no chão como moedas. Midas descobria agora que a loucura por acúmulo é a pior  das misérias...Então, ele busca  Dioniso e pede uma  cura para aquela  pobreza de apenas no ouro ver riqueza. Dioniso o lava no fluxo de um rio, que assim ficou repleto de pepitas de ouro garimpadas pelo povo. Midas pega uma estrada e some. Passa o tempo, pensam que Midas já   estivesse   morto. Até que um dia ele retorna. Vestia-se parecendo um andarilho, tinha a companhia de um  cãozinho  vira-lata e estava pousado em seu ombro um passarinho como se ali fosse um ninho. Midas se mostrava  simples por fora mas por dentro parecia enfim rico. Tal  riqueza vinha da cura que lhe fez Dioniso, que escondeu uma das pepitas no peito de Midas  e de ouro se tornou seu coração renascido solidário.


sexta-feira, 20 de março de 2020

panelaço 21/03





sobre os vírus destruidores do social...


A mídia comercial em geral está sempre criando noções equivocadas para descrever as situações difíceis e os meios de superarmos essas mesmas situações difíceis. Por exemplo, a mídia veicula a ideia de que “o isolamento social é o meio para vencermos a doença”.  Na verdade , ficar em casa não significa exatamente estar isolado socialmente , assim como estar na rua não significa estar inserido na sociedade. Quem vê o beijo do Judas pode imaginar que é um ato de amor, quem vê  o soco do pugilista pode imaginar que é um ato de ódio. Mas o Judas age por ódio: ódio ao Amor; já o pugilista se move por amor: amor ao boxe. Assim, ficar em casa não é por si só um isolamento social. Ao contrário, pode ser a oportunidade do despertar de uma consciência social que parecia morta, tal como vimos nos panelaços recentes. Na verdade, “isolamento social” mesmo é o que prega a doutrina ultraliberal desses que comandam o mercado e que andam junto com o entreguista Guedes. Este senhor, o Guedes, é um isolado socialmente, pois ele crê que  o Brasil será salvo pelo  empreendedorismo individual, e para isso ele quer destruir os instrumentos sociais de convivência e amparo, como o SUS e a Previdência Social, por exemplo. O liberalismo é doutrina pregadora da mentalidade de que o indivíduo em seu isolamento ontológico somente se salva se cercando de coisas, posses , propriedades, sem pensar no outro e muito menos no “nós”. Então, estar em casa por si só não é  estar isolado socialmente, pode ser a ocasião de compreendermos que fazemos parte de um “nós”. Ou seja, pode ser o momento oportuno para  fortalecermos a consciência para lutarmos contra aqueles que são inimigos  da saúde pública  e do patrimônio público, estes sim propagadores do vírus do individualismo a-social. E no Brasil a situação se torna ainda mais dramática socialmente, na medida em que milhares nos centros urbanos nem casa têm, milhões não têm água em suas residências para lavarem as mãos... Assim, que este ficar em casa não seja  o momento para  pensarmos exclusivamente em nossa família que mora sob nosso teto ( ouvi ontem o bozo dizer que o governo vai agir para “salvar a família...”, retomando aquele discurso sectário da campanha dele) , devemos compreender que a situação social  daqueles que nem têm casa também nos concerne.

terça-feira, 17 de março de 2020

o clarão do poeta


Há um poema de Manoel de Barros no qual ele descreve o anúncio e a chegada da chuva no Pantanal ermo. O dia foi quente, seco, árido, sufocado. Já finda a tarde, vem a noite, escurece rápido.  O cheiro de terra molhada anuncia a chegada da chuva .  As plantas , os grãos, os bichos... tudo o que é vivo esperava por ela, dela precisava. Então, a chuva  vem e envolve tudo. A noite fica muito escura, não se vê nada. De quando em quando, porém, risca o céu um relâmpago parecendo o flash de uma máquina fotográfica. Nesse ínfimo instante, o clarão a tudo ilumina e faz parecer dia, semelhante à intuição de Espinosa clareando  a natureza infinita.  Depois que o relâmpago passa, retorna a escuridão que cega e não deixa ver nada. Mas logo vem outro clarão e orienta o poeta a avançar na direção certa.  O relâmpago é lanterna celeste  que mostra a trilha no chão. E quando o clarão de novo acende, o poeta retém na memória o caminho que o clarão iluminou. Assim o clarão emana agora dos  olhos do poeta: mesmo no escuro, o poeta ao caminho enxerga , para que nele possam seguir adiante as pernas. Apesar da noite tremenda que o cerca, o clarão do relâmpago é    farol mais potente do que milhões de lâmpadas elétricas , orientando  o poeta  no retorno à casa. E assim    o poeta  avança   com  sua palavra poética :  clarão  que guia apesar  das  trevas.





- livro: "O clarão de Espinosa"


domingo, 15 de março de 2020

metáforas...

Só a boa metáfora pode dar ao estilo uma espécie de eternidade
( Cláudio Ulpiano)
                                       
As metáforas fazem o caminho das origens
(Manoel de Barros)
                                    
Nietzsche fazia uma distinção entre a metáfora linguística, enquanto figura de linguagem, e uma metáfora mais original, ao mesmo tempo poética e filosófica, enquanto metáfora da própria realidade.Neste último caso, não é apenas a concepção de linguagem que muda, muda igualmente, e sobretudo, o que entendemos como realidade. Diz ele: “o homem, em última análise, somente encontra nas coisas aquilo que ele mesmo nelas pôs: o ato de encontrar se denomina ciência; o ato de pôr se chama arte”.


(cena do filme  O CARTEIRO E O POETA. O poeta Pablo Neruda ensina ao carteiro o que é uma "metáfora")

- os criadores


Ter e afirmar uma perspectiva não é a mesma coisa que emitir mera opinião. O que caracteriza a opinião é que ela é exclusivista, particularista e excludente do que lhe é diferente. Ter uma perspectiva , ao contrário, é afirmar-se a partir de algo que permite outras perspectivas diferentes. A perspectiva mais potente não é a que simplesmente derrota a outra, mas aquela que leva mais longe a ideia comum que lhe dá existência e potência . No vídeo que ilustra esta postagem, vemos duas perspectivas diferentes sobre o que é ser músico, sobre o que é criar e afirmar sua singularidade. Eles não opinam sobre o que é a música, cada um achando que música é apenas o que ele faz. Ao contrário, eles expressam perspectivas diferentes sobre o que pode a música, fazendo a música viver ainda mais, afetando os que ouvem , dançam e tocam juntos, heterogeneamente. Cada um potencializa sua singularidade ao afirmar a música como ideia comum que os une, porém com espaço para divergências que criam perspectivas novas como "linhas de fuga" . É na imanência de uma ideia comum, de um afeto comum, que se pode discordar sem brigar ou meramente querer destruir o outro. É tocando que cada músico constrói o seu estilo acerca do que é tocar. Eles não afirmam seu ego, eles afirmam a arte que lhes permite ir além do que pode o ego de cada um tomado isoladamente. Apesar de aparentemente disputarem, na verdade eles se agenciam e celebram, em coletivo, a alegria de inventar algo junto. Não os move o ódio egoico recíproco ou a inveja de um pelo outro, mas o afeto potente, em contraponto, pela arte que os faz ser o que eles são: autênticos criadores .














sábado, 14 de março de 2020

os vírus...


Nessa semana, os dirigentes da bolsa de valores ( todos biliardários) , o entreguista da economia Paulo Guedes e toda a mídia golpista centraram fogo contra o Congresso. O motivo da ira foi o fato de o Congresso ter derrubado o veto do bozo ao BPC. O Jornal Nacional, inclusive, dedicou um tempo fora do comum para dar a palavra a operadores-especuladores da bolsa e ao tal Guedes para eles atacarem impiedosamente o  BPC. Um dirigente da bolsa chegou a dizer que a aprovação do BPC seria a ruína do Brasil, uma “irresponsabilidade do Congresso” , tentando colocar lenha na fogueira das manifestações golpistas e protofascistas contra o Congresso . O Guedes foi na mesma linha, afirmando cinicamente que o tal BPC  punha em risco todo o futuro do Brasil. O Jornal Nacional deu poder a essas figuras sem entrevistar uma voz sequer  que pensasse diferente, para estabelecer assim o mínimo do contraditório. Na verdade, a mídia golpista, os rentistas especuladores e o governo se uniram para linchar o Congresso e o BPC. Mas o que é o “BPC”? Essa sigla significa : Benefício de Prestação Continuada. É um benefício da assistência social no Brasil, prestado pelo INSS , que consiste em uma renda de um salário-mínimo para idosos e deficientes que não possam se manter e nem serem mantidos por suas famílias. Ou seja, é um benefício  mínimo para manter a sobrevivência daqueles mais fragilizados socialmente. Esses cínicos que atacam esse benefício  gastam esse valor em um jantar! Isso me lembra as palavras recentes de um milionário estadunidense , ferrenho apoiador e financiador  de Trump, que afirma ironicamente que “Marx tem razão: de fato, a luta de classes é o motor da história.” Só que agora, afirma o capitalista cínico  , “somos nós, os ricos, que fomentamos a luta e avançamos  contra  nossos inimigos:  os pobres.”




quinta-feira, 12 de março de 2020

manoel de barros: "ignorãças..."


O maior sábio da Grécia não foi Sócrates, Platão ou Aristóteles. O maior sábio foi Tirésias. Ele não se tornou sábio obtendo  erudição dos livros ou ouvindo os  doutos. Tirésias se tornou sábio   a partir de algo que ele viu e viveu . Assim  aconteceu : atrás da casa de Tirésias passava um rio. Do rio vinha a água que ele bebia e o alimento que pescava. Até que um dia Tirésias se fez uma pergunta: “De onde vem esse rio? Onde fica seu minadouro?”. Tirésias resolveu então  ir contra a corrente no esforço para achar a nascente. Somente  indo contra a corrente  se pode achar  nascentes, de rio ou de ideias . A fonte nunca vive no “acostumado” , no “mesmal”. Não demorou para alcançar  partes onde o rio, embora o mesmo, já não lhe era conhecido : viu em suas margens flores que nunca tinha visto, ouviu passarinhos dos quais não sabia o nome.  Enquanto prosseguia, não via trilhas ou pegadas. Sentindo-se correndo riscos, Tirésias   hesitou, quase abortando sua “linha de fuga”. Até que ele olhou à frente e viu alguém a se banhar na fonte da qual o rio nascia. Era Atena, a deusa da sabedoria. Ela estava nua... A  sabedoria precisa às vezes se banhar  para reinventar-se nova. Nas academias e bibliotecas  , a sabedoria se veste de livros e teorias. Ela nunca se mostra nua   nesses lugares. Quem a conhece apenas  vestida pode  até se tornar  um teórico ou cientista, mas nunca será  um pensador ou poeta. Tirésias então percebeu que ao se despir das teorias é como poesia que a sabedoria então  se mostra a quem  teve que se perder  para encontrá-la.
O poeta Manoel de Barros  chama a sabedoria nua de “ignorãça” .  A   autêntica sabedoria  é fonte que renova a si mesma  para que em nós  não seque a vida.
                                                                                                                                                
“A palavra abriu o roupão para mim:
ela quer que eu a seja.” (Manoel de Barros)



terça-feira, 10 de março de 2020

diferença entre doença e "doentio"


Sempre associamos os vírus às doenças. Na Idade Média se achava que as doenças  eram odiosos demônios. Por extensão, os ignorantes daquela época acabavam por odiar não apenas as doenças, eles odiavam também  o próprio doente, lançando-o à fogueira... Com o desenvolvimento do conhecimento descobrimos que o vírus age como age não por ódio a nós, tampouco ele é o enviado de demônios. O vírus  age como age porque ele busca a sua saúde própria. Para o vírus, sua saúde é reproduzir-se e multiplicar-se  enquanto ente vivo. E ele faz isso nos usando como meio. A saúde do vírus é a nossa doença. O que chamamos de doença é a saúde do vírus vista sob nossa perspectiva. Não foi odiando ou demonizando os vírus que conseguimos vencê-los, mas sim adquirindo amor ao conhecimento. Pois o conhecimento é o instrumento da nossa saúde enquanto humanidade civilizada. O conhecimento nos levou a compreender não somente como o vírus pode nos matar, mas também  como ele vive. Pelo conhecimento, passamos a conhecer sua maneira de ser e agir. Vencemos  os vírus não os matando totalmente, mas os usando a nosso favor, pois as vacinas são feitas com vírus , porém com menor poder. Quando olhamos a vida de uma perspectiva mais ampla, compreendemos que não existe doença em si, existe apenas saúde. “Saúde” significa “potência”. O conhecimento é a nossa saúde maior, dizia o médico-filósofo Espinosa.
Mas acontece algo diferente com aquilo que é “doentio”. O doentio é uma mentalidade que existe  em certo tipo de gente,  o doentio não vem de nenhum vírus. O doentio, sim, é doença: uma doença que põe em risco o próprio conhecimento que nos faz vencer os vírus. Muitos desses que têm mente doentia até louvam os vírus que trazem as doenças, pois isso lhes permite pregar suas ideias doentias de que estamos no fim do mundo e que a doença é um castigo enviado por um Deus vingativo que nos odeia.
Precisamos fortalecer nossa saúde, agenciar nas ruas a nossa potência .  As mentes doentias odeiam as vacinas, por isso odeiam  a  ciência, o conhecimento, a cultura  e a educação, pois essas coisas também são vacinas que nos protegem das mentes doentias.

“Mesmo muito doente, jamais fui doentio. ” (Nietzsche)


















-  e 14 de março é dia das manifestações por justiça nos assassinatos de Marielle e Anderson:


sábado, 7 de março de 2020

ao Dia Internacional de Luta das Mulheres


A palavra “filosofia” nasceu da reunião de “philo” e “sophia”. “Philo” significa tanto “amor” como “amizade” , enquanto afetos potencializadores   da vida. Assim, a filosofia não é só teoria ou conceito, ela também é Afeto. “Sophia” , por sua vez, significa “sabedoria”. “Sophia” não é só   razão,  ela também é  Vida, Arte , Sensibilidade . “Sophia” não é apenas texto ou livro , pois a sabedoria  se mostra sobretudo no agir , na eloquência da ação.   “Sophia” também pode ser um nome próprio feminino:  "Sophia", ou "Sofia", é o belo nome que muitos casais escolhem para assim nomearem a vida nova que nasceu do encontro amoroso deles. Pois é isto a sabedoria: um trazer à vida para afirmar a vida, resistindo àqueles que cultuam a ignorância e a morte, nos vários sentidos que a morte tem. Não importa se o nome de batismo do filósofo  é Deleuze, Foucault ou Espinosa: quando  pensa e filosofa,  todo  filósofo libertário se rebatiza “Sofia”.   Por outro lado, quer poder , e não sabedoria, quem se acha a própria encarnação da "Razão" ou da "Verdade", para assim tiranizar quem pensa  e vive diferente .   “Razão”,  inclusive,  não é nome:  quase sempre “Razão” é um  conceito  falocrático, um Padrão, a serviço do poder do Homem.
“Sofia” não é Padrão, “Sofia” é nome  que expressa diferenças, singularidades, devires. Mas assim como um nome vem sempre acompanhado por sobrenomes, o nome completo da filosofia, a sua assinatura,   é Sofia  acompanhada de Luta  e  Coragem.










                                                             ( Música: Grupo Mawaca)

quinta-feira, 5 de março de 2020

manoel, orfeu & eurídice


Certa vez Orfeu, ainda deitado na cama pela manhã, vê Eurídice sentada diante da penteadeira penteando-se e cantarolando baixinho uma canção , um ritornelo. Ela apenas se olha, não se julga ou mede, tampouco se compara a alguém ausente. Ela está plenamente ali, nos gestos do seu corpo, não sendo apenas um corpo, porém. Orfeu fica paralisado olhando...Eurídice se percebe olhada, vira-se e, assustada, pergunta: “O que foi!?”, parando de fazer o que fazia. Orfeu então lhe pede: “Repete o que você estava fazendo!...” , “Mas o que eu estava fazendo?”, “Você se olhava sem ser narcisicamente, estava em si plenamente, mas transbordando, cantarolando...”. “Era assim que eu estava fazendo?”, tenta Eurídice repetir o que fizera. “Não, não é assim que era...”, diz Orfeu. Por mais que Eurídice tentasse, ela não conseguia repetir , de forma programada, o que vivera de forma espontânea, sem distância com a vida.
Orfeu percebeu então que vira o que se chama de “graça” (não no sentido religioso), cujo o contrário é a des-graça. A graça é uma espontaneidade que não se explica por outra coisa senão por si mesma: o mercado não a vende, o dinheiro não a compra. As crianças a vivem o tempo todo, os adultos se esqueceram dela...A graça acontece não quando a gente quer. Não é pelo querer que se alcança esse processo. Ao contrário, o viver posado e “acostumado” nos afasta dele : quando tentamos dominar ,de fora, esse acontecimento, estranhamente percebemos que ele se parece com nada... Na mitologia , “Eurídice”, o par de Orfeu, também é um dos nomes da alma , como também o são “Psiquê” e “Pneuma” (“Sopro”) . A alma do poeta sempre desperta primeiro que ele, e é ela que o acorda e faz ver , para que em nós a vida também desperte e lute contra as desgraças. Desse modo, é poeta não só quem faz versos, mas quem sobretudo canta com a alma em graça, desperta e acordada, existindo sem separação com o existir, sem precisar de mais nada para ser o que é , pois para quem assim é,  calar é morrer . Desse canto espontâneo, quase nada, o poeta extrai sua força para criar, resistir e avançar.


“(...) uma soberana liberdade, uma necessidade pura em que se desfruta de um momento de graça entre a vida e a morte, e em que todas as peças da máquina se combinam para enviar ao porvir um dardo que atravesse as eras...” (Deleuze & Guattari, “O que é a filosofia?” )

(na mitologia, as Graças eram três irmãs que sempre faziam companhia umas às outras. Elas também costumavam acompanhar as Musas, as divindades das artes. As Graças também  eram tecedoras.Mas ao contrário das Moiras, que teciam o férreo destino que impedia a liberdade, as Graças teciam tudo aquilo que só existe se for criado em liberdade, como  toda obra de arte.Elas também costumavam acompanhar Eros e Dioniso em suas deambulações pela natureza. Das Graças também vem a ideia de gratidão)



                                   ( capa: Martha Barros)


                (Haydn, "L'anima del filosofo - ou Orfeu e Eurídice)




terça-feira, 3 de março de 2020

a justa indignação


Creio que essa situação que nos tem paralisado é o sintoma de uma ameaça inédita que estamos sofrendo: a ameaça da “morte do futuro”. Nunca na história da humanidade o futuro esteve tão ameaçado. Ele já esteve ameaçado de ser destruído fisicamente por bombas atômicas na “guerra fria” . Hoje a ameaça é ao futuro enquanto dimensão de criação de uma outra sociedade : mais justa, menos desumana. Às vezes se diz que é preciso “matar o passado” para continuarmos vivendo, quando nele aconteceu algo que não superamos e nos provocou um “trauma”. Esse passado traumático deve ser morto  em nome de uma transformação que abra o presente ao futuro. Hoje o trauma não é em relação a algo acontecido , mas ao que acontece agora  e nos enluta por um futuro  ainda nem nascido. Politicamente, o futuro sempre foi o território  para o qual se direciona o pensamento progressista. A direita, ao contrário, é a vontade de conservar o passado. Pensamento progressista  e direita não têm a mesma visão do presente: os progressistas  pensam o presente como um momento para a construção  do futuro, ao passo que a direita considera  o presente um risco aos valores  do passado. Mas o que vivemos hoje é uma direita que parece ter mudado de foco. Ao invés de apenas se contrapor aos progressistas na defesa do passado, a neodireita agora resolveu destruir  aquilo que constitui a  razão de ser de todo pensamento e prática em favor do social : o futuro. Parece que para a neodireita o amor ao passado é só uma máscara atrás da qual se esconde seu verdadeiro rosto: o ódio ao  futuro (por motivos que talvez só a  psicanálise explique...). A antiga direita se pautava  por um respeito ao passado , daí sua estima pela tradição e aos idosos; hoje, a neodireita se caracteriza mais pelo ódio ao futuro, e por isso quer encurtá-lo   para  os idosos, sobretudo os idosos pobres,  ameaçando extinguir suas aposentarias , e com isso diminuindo o que tem de futuro suas vidas. Quando olhamos para traz vemos a escravidão em nosso passado vergonhoso. A neodireita parece querer uma nova versão dessa vergonha, dessa vez  colocando a servidão em nosso futuro próximo.  A resistência a isso é  a justa indignação: ela é a voz do futuro pedindo que a gente o defenda.

“A indignação é o afeto comum que une os justos  em defesa da comunidade que   o tirano   ameaça de morte ” ( Espinosa)