quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018
os tempos
Quando somos crianças , as coisas que
fazemos não duram apenas o tempo em que aconteceram, nunca de fato o que se fez
termina. Pois à medida em que avança o tempo, retorna à nossa vida o acontecido
como parte de uma memória que vai cada
vez crescendo, parecendo muitas vezes mais real e viva do que a realidade na
qual fomos criança.
Quando o homem tem 60 ou 70 anos, por
exemplo, o que ele fez ao 8 ainda está a fazer-se dentro dele. Porém, o que ele
faz nos mesmos 60 ou 70 pode não mais voltar a reviver pela memória: talvez não haja mais um
outro ele mesmo, num futuro próximo, para rever a si mesmo na continuidade de um processo aberto,
sempre a refazer-se. Além disso, quando evocamos essa infância revivida, nunca é só a memória que a traz de volta, pois também desse reviver a imaginação participa.
Assim, o que se faz aos 7 ou 8 anos o fazemos com nossa idade toda, que nunca sabemos ao certo qual será ela toda, de tal modo que aquilo que fazemos no começo traz essa força do que sempre retorna como na primeira vez que em que fora feito e vivido.
Assim, o que se faz aos 7 ou 8 anos o fazemos com nossa idade toda, que nunca sabemos ao certo qual será ela toda, de tal modo que aquilo que fazemos no começo traz essa força do que sempre retorna como na primeira vez que em que fora feito e vivido.
Na adolescência e juventude também
tudo o que fazemos traz nossa vida toda ainda por viver, porém
em rascunho mais fraco do que na
infância. Isso se deve ao fato de que já não somos mais todo brincadeira, nossa
mente já não é mais criadora do lúdico: o futuro se torna um plano cronometrado,
mensurado, como se o tempo por vir apenas existisse para realizar nossos objetivos
planos.
Quando se chega aos 50 anos, contudo,
parece que aquilo que fazemos não traz mais a virtualidade de nossa vida
inteira por vir. O futuro se torna horizonte
reduzido ao ato, ao aqui e agora. Isso pode levar lentamente ao desespero ,
como perda do futuro, tempo do desejo. O
maior desespero pode advir da não aceitação do tempo, trazendo uma fixação
obsessiva em manter-se como na
juventude, mas apenas por fora, na aparência.
Mas o começo dessa idade pode também
inaugurar uma atitude nova, pois é nela, e não aos 30 ou 40, que pode começar a
ganhar força essa percepção da
virtualidade do todo da vida, todo este que nunca se esgota nos 50, ou 60, ou
70...
É por volta dos 50 que pode nascer essa percepção não totalmente racional ou pragmática , uma percepção filosófica-poética , desse todo da vida na infância começado, e cujo fim deve ser vivido como se o viveu em seu começou: na inocência .
Quem envelhece com essa compreensão, talvez a “velhez” não o pegue: “Quando crescer vou virar criança” ( Manoel de Barros).
É por volta dos 50 que pode nascer essa percepção não totalmente racional ou pragmática , uma percepção filosófica-poética , desse todo da vida na infância começado, e cujo fim deve ser vivido como se o viveu em seu começou: na inocência .
Quem envelhece com essa compreensão, talvez a “velhez” não o pegue: “Quando crescer vou virar criança” ( Manoel de Barros).
quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018
acervo cláudio ulpiano
“Acervo”
não é um lugar onde se guardam coisas. “Acervo” vem de “cérvix”: coluna
vertebral. A coluna vertebral não é apenas o que sustenta a cabeça, ela também
é o que nos põe de pé e serve de elo entre o cérebro e nossos pés e pernas: é
atravessando a coluna que as ideias e desejos nascidos no pensamento
alcançam nossas mãos e pernas, tornando-se ação sobre o mundo. Não por acaso,
Fernando Pessoa percebeu o fato: a coluna vertebral tem a forma de um ponto de
interrogação. Pois é isto que põe o homem de pé: sua capacidade de pôr
questões. Se os senhores do poder nos
querem de joelhos, resistamos e fiquemos de pé, com Cláudio Ulpiano.
quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018
mito, poesia e filosofia
Em sua Filosofia
da mitologia, Shelling considera que a arte grega revela, de forma segunda
ou derivada, o que o mito expressa de forma primeira, originária. Por isso, a
arte grega buscava na mitologia seus temas. Exatamente por ser arte, invenção,
a arte não pode ser primeira, sem perder sua natureza de arte. A invenção
artística é assim considerada por existir algo não inventado
que se lhe contrapõe, tal como o refletido em relação ao reflexo . Se tudo
fosse inventado, não se teria consciência da invenção. Se assistíssemos a uma
peça de teatro que nunca terminasse , e se nós mesmos fôssemos parte dela, essa
peça já não seria teatro, seria a vida mesma, mesmo que fôssemos apenas
espectadores dela.
Segundo argumenta
Shelling, a mitologia não é arte, ela é uma forma singular de produzir
conhecimento, conhecimento do que vem primeiro, exatamente por ser divino ( não
no sentido religioso). Por isso, por dar a conhecer o que é primeiro, a
mitologia não é segunda, ela é primeira. Ela é a invenção sem a
consciência de invenção. A mitologia vive a experiência de não separação entre
o conhecimento e aquilo que é conhecido. Logo, ela é realidade, uma realidade
absoluta, isenta da separação entre subjetividade e objetividade, corpo e
espírito. Nesse sentido, é impossível para nós vivermos o mito tal como o
viveram os gregos que o inventaram , talvez apenas o poeta e a potência
imaginante da criança disso sejam capazes. Ao inventarem os mitos, os gregos
inventavam a si mesmos, sem que houvesse antes dessa invenção um grego como
“verdade objetiva” do que é ser grego. Talvez seja esta a grande lição que
temos de aprender com os gregos: sermos os artistas de nós mesmos.
O grego assim
inventado não é histórico, mas simbólico. “Sym-bólico” : união ou agenciamento
das partes. “Dia-bólico”: separação das partes. Todo símbolo é uma parte que se
oferece à outra parte dela que somos. O símbolo agencia diferenças no encontro
que o expressa. O “diabólico”, ao contrário, é o que nos reduz a um ego, a um
cogito. Talvez nada mais diabólico do que disse Descartes, atormentado pelo seu
“Gênio Maligno”: “o homem está só no mundo, e fala apenas consigo mesmo”.
Mas os sabiás com trevas, como Manoel, Deleuze e Espinosa, acreditam nessa
simbólica poético-filosófica: “o homem está só no mundo, se fala apenas consigo
mesmo”.
Por isso, esse grego
simbólico inventor de mitos também podemos o encontrar em nós , desde que ainda
nos afetemos pelo Canto das Musas, e aprendamos não exatamente a nos
comportarmos , mas a “inventarmos comportamento”.[1]
Como diz Deleuze, “a
literatura é o esforço para interpretar engenhosamente os mitos que não mais se
compreende, por não sabermos mais sonhá-los ou produzi-los”[2].
O mito começa com o caos. Perdemos, talvez, o sentido desse começo, no qual
arte e vida ainda não se haviam separado. Em Aristóteles, a arte imita a
vida. Naquela época em que se produziam os mitos, porém, a poesia era a vida
mesma que se repetia outra, como sentido produzido para si mesma, como Caos e
como Gaia, Terra.
terça-feira, 20 de fevereiro de 2018
o mito, o conceito, o número e o poema
Poesia não é apenas
versificação,
ela também é fabulação*,
narração de mundos.
Paulo Leminski
Segundo
o poeta Leminski, três são as produções mais originais da mente: o Mito, o Conceito
e o Número. A arte tende ao Mito, a filosofia se apoia no Conceito, a ciência
só confia nos Números. O Mito é fabulação, o Conceito é conhecimento, o Número
é descrição. Durante muito tempo, havia apenas o Mito. Depois, o Conceito veio
tomar-lhe o posto . Hoje, o Número pretende dar conta de tudo.
Em
sua origem, o Mito não era arte, pois a arte somente existe enquanto se refere
a outra coisa diferente dela. A arte nasceu quando o homem tomou consciência da
distinção entre algo que é real , “em si” (não sendo, por isso mesmo, inventado), e sua imagem produzida , enquanto
realidade segunda, sensível. Para a arte, a realidade pode ser coisa ou afeto. A pintura, por
exemplo, imita a coisa, ao passo que a música imita o afeto . A poesia reúne
pintura e música, por isso imita coisa e afeto, fazendo do afeto uma coisa real.
Quando
predominava o Mito não havia, portanto, distinção entre realidade e invenção. E
talvez seja este o caráter imorredouro do Mito: a percepção de que toda
realidade é invenção, mesmo a realidade que os Números pensam descrever “neutra
e objetivamente”.
Somente
quando surge o Conceito filosófico é que se teve, ou se inventou, a consciência
da distinção entre realidade e invenção. Por isso, o Conceito inventou a si
mesmo ao mesmo tempo em que inventou a arte. Esta nasce quando o Mito perde sua
força geradora de mundos. O Conceito emerge desqualificando o Mito :este apenas
balbuciaria a realidade sobre a qual o Conceito, e somente ele, sabe dissertar com raciocínios lógicos. O Conceito substitui, ou crê substituir, o Mito
como autoridade única para oferecer resposta à indagação fundamental: para quê
e por que existimos? O Conceito pretende explicar a Origem e o Fim de toda
existência, e não apenas da existência humana. O Conceito assim procede quando
faz Racional Metafísica. Porém, embora
refute o Mito, o Conceito o absorve para fins pedagógicos: o mito se torna a parte retórica e alegórica da filosofia. Por outro lado, o que era apenas um método
ou andaime para o Conceito subir, o Número,
torna-se , com o tempo, o único critério objetivo para a mente se
libertar da imaginação Mitológica e do pensamento metafísico, pois ambos
impediriam a mente de conhecer cientificamente, "clara e distintamente", a realidade. Com o triunfo da
ciência, reina o Número.
Contudo,
o infinitamente pequeno e o infinitamente grande parecem resistir a tal
quantitativismo descricionista, de tal modo que a cosmologia e a microfísica
contemporâneas parecem retornar ao Mito, ao mesmo tempo que reatam amizade com
a metafísica.
Queremos
introduzir um quarto elemento nessa trindade Mito-Conceito-Número. Talvez esse
quarto elemento seja um todo do qual cada um dos três seja um diferencial. Esse
quarto elemento é o Poema. O poema é invenção de mundos, instauração de “por
quês?” e “porquês”, sendo também uma forma de conhecimento não instrumental do mundo. O Poema
pode auxiliar a mente a parar de brigar com a mente, quando se divide em impérios
estanques litigantes; pois a mente é apenas uma, conquanto se expresse vária.
Não seria
isto, talvez, o que Espinosa nomeia “Ciência Intuitiva”?
___
* o poeta que é apenas versificador se preocupa mais com o aspecto formal do poema, ao passo que o poeta-fabulador narra mundos, constrói perceptos, instaura sentidos. O poeta versificador é poeta, sem dúvida.Porém, o poeta-fabulador por vezes parece mais do que poeta, assemelhando-se a um filósofo, ou melhor, a um pensador. É no poeta-fabulador que está o Poema , que é mais do que rima e versos.
sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018
manoel: o passarinho à toa
Eu pertenço de andar atoamente.
Sei falar a linguagem dos
pássaros: é só cantar.
Manoel de Barros
Quanto mais ações o corpo é capaz, mais rico
se torna o pensamento.
Espinosa
Nossos cicerones são aves cantando.
Cartola
Aqueles que amaram a música e permaneceram puros quanto ao resto,
tornam-se pássaros canoros após morrer o corpo.
Plotino
Aqueles que amaram a música e permaneceram puros quanto ao resto,
tornam-se pássaros canoros após morrer o corpo.
Plotino
Os passarinhos que nasceram e
vivem em gaiolas ocupam-se mais a cantar do que os passarinhos que nasceram
livres e vivem a “voar atoamente”.
Os passarinhos que nasceram
livres exercem sua liberdade em múltiplas ações, e não apenas no cantar.
Eles também voam, ciscam a terra, bicam
os frutos, enamoram-se, constroem ninhos, criam seus entes e lhes ensinam a
voar.
Os passarinhos que nasceram no
cativeiro são livres apenas no cantar.
Por isso cantando tentam se libertar, mas seu canto de prisioneiro só lhes faz
lembrar a liberdade que nunca viveram. É por isso que eles necessitam tagarelar seu canto o tempo
inteiro, para tentar fugir do desespero.
Passarinhos de cativeiro , se
cantam bem envaidecendo seu dono, até ganham
concursos e títulos; por isso,
mesmo tristes, inflam o peito, e olham com desdém os passarinhos sem dono. Mas
o passarinho-andarilho descobiça
academias e prêmios: "voar fora da asa", atoamente , é o único
poder que desejam.
quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018
centenário de jacob , o orfeu do bandolim
O mito é um passado que é um futuro
disposto a se realizar no presente.
Octavio Paz
Descanse tranquilo onde cantam.
Os maus não cantam.
Schiller
Schiller
Em grego, o nome “Orfeu” significa:”aquele que toca a lira”, “aquele que possui a arte de tocar a lira”. A lira é um instrumento singularíssimo, que requer muita sutileza e nuances para a sua execução. Na mitologia, ela é associada primeiramente a Apolo, o deus da forma, do limite (em muitas representações de Apolo ele aparece portando uma lira). Mas Orfeu vem de outra linhagem: ele é discípulo de Dioniso, o deus do ilimitado, das metamorfoses. Orfeu dará à lira uma dimensão que vai muito além de Apolo.Orfeu fará da lira a expressão tangível de suas próprias cordas vocais, cordas estas que o intangível toca por intermédio das mãos da alma, para assim fazer viver, no som que se expande, o Afeto que a todos toca.
Em Apolo, a lira era instrumento para executar a música celeste, apenas audível aos deuses olímpicos. Orfeu era um homem, não um deus.Porém, ele alcançava uma dimensão divina com a música que extraía de sua lira, música esta que divinizava o terrestre: “celestava as coisas do chão”, como diz Manoel de Barros.
A música é , dentre todas artes, a primeira a nascer.Na verdade, não foi o homem quem criou a música, esta sempre existiu. Segundo Pitágoras, a música surgiu junto com o universo.Para ouvi-la, era preciso ouvir também o universo, ou ao menos parte dele. O primeiro homem que assim se deixou afetar, ouvindo o universo,tornou-se músico.No mito, a primeira música que um homem ouviu nasceu quando este homem pôs as tripas de um carneiro para secar penduradas nos galhos de uma árvore.Quando o vento passava entre as tripas, podia-se ouvir um som que parecia dizer algo. Foi a capacidade de ouvir a natureza enquanto realidade expressiva que fez surgir , no homem, o músico, o artista. Finas cordas extraídas das tripas de um carneiro amarradas nos chifres de um bode, esta foi a primeira lira inventada, este foi o primeiro instrumento que nasceu para reproduzir, reinventando-a, a música que a natureza já fazia, música esta que a própria natureza era e é. Assim surgiu a música Apolínea, música que nasce da vibração das cordas.
A música dionísica tem outro nascimento.Certa vez, Pã enamorou-se de uma Ninfa e a quis como par. Mas esta fugiu e , querendo esconder-se,metamorfoseou-se em caniços de bambu .Exausto de procurá-la, já querendo desistir, mas desejando expressar o afeto que estava encerrado dentro dele, Pã tem a ideia de pegar um feixe de caniços que vê perto de si. Sem que saiba, esses caniços eram a metamorfose de sua amada, o objeto de seu desejo.Ele os amarra e começa a soprá-los, ora sopra um, ora outro, ora todos. Assim nasceu a flauta.
Pã fizera o que Freud , Jung e Sartre chamarão de "sublimação". Sublimar não é reprimir um afeto, mas transfigurá-lo e expressá-lo sob a forma de um bem cultural no qual o afeto vai sobreviver desprovido de sua carga meramente individual e passional. "Pã" , que era um dos discípulos de Dioniso, significa: "todo". Pela música, o afeto sai da subjetividade e ganha o "todo", o mundo, o universo, através de um soprar que sai de dentro, ao contrário da música de cordas, que nasce de um tocar de fora, com os dedos ou outra coisa, as cordas. É por isso que a música apolínea pode ser matematizada, pois ela se mantém a certa distância do mundo interior, ao passo que a música dionisíaca é o próprio Pneuma, o sopro vital, que se tornou cósmico: através da música , o Pneuma se torna igual ao vento cósmico que produz música, posto que é música. Daí o caráter paradoxal de Orfeu: ele toca a lira, instrumento de Apolo, porém a toca com a alma, já que ele também canta. Com Orfeu, nasce a canção. Cantando, o Pneuma fazia vibrar também cordas, porém cordas "interiores", ao mesmo tempo físicas e espirituais : as cordas vocais. Orfeu não cantava as guerras, tampouco louvava inalcançáveis céus. Ele cantava a vida em sua simplicidade, e a transfigurava com seu canto, tal como, entre nós, Cartola, Paulinho ou Noel. Orfeu celestava o simples, tornando-o sublime .
A música de Orfeu produzia encantamento. “En-cantar”: encher-se de canto.Cantar é mais do que falar ou dizer palavra, cantar é transformar em palavra o sopro vital.Quem canta faz cantar.Orfeu enchia de canto até mesmo os brutos, de tal maneira que o canto silenciava a brutalidade. Ninguém permanecia o mesmo ao ouvi-lo.
A música é , dentre todas artes, a primeira a nascer.Na verdade, não foi o homem quem criou a música, esta sempre existiu. Segundo Pitágoras, a música surgiu junto com o universo.Para ouvi-la, era preciso ouvir também o universo, ou ao menos parte dele. O primeiro homem que assim se deixou afetar, ouvindo o universo,tornou-se músico.No mito, a primeira música que um homem ouviu nasceu quando este homem pôs as tripas de um carneiro para secar penduradas nos galhos de uma árvore.Quando o vento passava entre as tripas, podia-se ouvir um som que parecia dizer algo. Foi a capacidade de ouvir a natureza enquanto realidade expressiva que fez surgir , no homem, o músico, o artista. Finas cordas extraídas das tripas de um carneiro amarradas nos chifres de um bode, esta foi a primeira lira inventada, este foi o primeiro instrumento que nasceu para reproduzir, reinventando-a, a música que a natureza já fazia, música esta que a própria natureza era e é. Assim surgiu a música Apolínea, música que nasce da vibração das cordas.
A música dionísica tem outro nascimento.Certa vez, Pã enamorou-se de uma Ninfa e a quis como par. Mas esta fugiu e , querendo esconder-se,metamorfoseou-se em caniços de bambu .Exausto de procurá-la, já querendo desistir, mas desejando expressar o afeto que estava encerrado dentro dele, Pã tem a ideia de pegar um feixe de caniços que vê perto de si. Sem que saiba, esses caniços eram a metamorfose de sua amada, o objeto de seu desejo.Ele os amarra e começa a soprá-los, ora sopra um, ora outro, ora todos. Assim nasceu a flauta.
Pã fizera o que Freud , Jung e Sartre chamarão de "sublimação". Sublimar não é reprimir um afeto, mas transfigurá-lo e expressá-lo sob a forma de um bem cultural no qual o afeto vai sobreviver desprovido de sua carga meramente individual e passional. "Pã" , que era um dos discípulos de Dioniso, significa: "todo". Pela música, o afeto sai da subjetividade e ganha o "todo", o mundo, o universo, através de um soprar que sai de dentro, ao contrário da música de cordas, que nasce de um tocar de fora, com os dedos ou outra coisa, as cordas. É por isso que a música apolínea pode ser matematizada, pois ela se mantém a certa distância do mundo interior, ao passo que a música dionisíaca é o próprio Pneuma, o sopro vital, que se tornou cósmico: através da música , o Pneuma se torna igual ao vento cósmico que produz música, posto que é música. Daí o caráter paradoxal de Orfeu: ele toca a lira, instrumento de Apolo, porém a toca com a alma, já que ele também canta. Com Orfeu, nasce a canção. Cantando, o Pneuma fazia vibrar também cordas, porém cordas "interiores", ao mesmo tempo físicas e espirituais : as cordas vocais. Orfeu não cantava as guerras, tampouco louvava inalcançáveis céus. Ele cantava a vida em sua simplicidade, e a transfigurava com seu canto, tal como, entre nós, Cartola, Paulinho ou Noel. Orfeu celestava o simples, tornando-o sublime .
A música de Orfeu produzia encantamento. “En-cantar”: encher-se de canto.Cantar é mais do que falar ou dizer palavra, cantar é transformar em palavra o sopro vital.Quem canta faz cantar.Orfeu enchia de canto até mesmo os brutos, de tal maneira que o canto silenciava a brutalidade. Ninguém permanecia o mesmo ao ouvi-lo.
Muitos comparam a alma à lira: assim como esta, a alma é composta de cordas diferentes, heterogêneas. A razão, o desejo,a imaginação, a memória...são as cordas da nossa lira.Saber pensar, saber falar, saber sentir, saber ouvir...são músicas que tocamos com nossa alma, com todas as suas heterogêneas partes.Pensar e sentir são vibrações. As cordas vibram porque elas são tensionadas. “In-tensidade”: qualidade do que existe tensionado (como a corda do arco que impulsiona a flecha, como as cordas do bandolim das quais nasce um chorinho: o bandolim é o tatataraneto da lira, e mesmo no "chorar" do chorinho há um cantar... ). Intensa era a música de Orfeu,pois viva era sua voz, seu canto;incontáveis eram seus acordes. E mesmo na divergência há acordes: acordes discordantes. A música que tocamos,a música que somos nasce de sabermos compor com essas cordas heterogêneas, plurais. A alma do artista nunca é monocórdica, uma vez que sua música nasce do agenciamento das cordas diferentes. Para essa música não há partitura, apenas o improvisar que já é o rascunho como obra , como “forma em rascunho”.
A esposa de Orfeu se chamava Eurídice. Na Grécia antiga, na tradição órfica dos Mistérios, “Eurídice” também era um dos nomes da alma (assim como Psiquê e Pneuma também o são: Pneuma, "sopro", foi traduzido para o latim como "Espiritus"...). Assim, era agenciado com sua alma,com seu "sopro", fazendo-o intenso, que Orfeu produzia o mistério poético do encantamento. Ele o fazia não apenas com uma parte da alma, mas com ela inteira. E a alma quando se torna inteira nunca cabe totalmente dentro de si própria: ela salta para fora, encontra para si um corpo em qualquer coisa, mesmo nos objetos aparentemente inertes. E tudo a alma pode então fazer ter alma.
Um afeto a guia nessa tarefa : a confiança. "Con-fiar": fiar junto. Fiar é produzir um fio , uma tecitura, uma narrativa.Fiar é produzir um sentido, que é o caminho sobre o qual se anda, avança, sem que o objetivo seja chegar a um ponto que se torne a morte do fio. Pois o sentido de tecer e fiar é estender o fio ao máximo que ele pode chegar. Mas ninguém sabe qual é esse máximo, dado que o fio deve nascer de um novelo que concentre em si o mundo inteiro a se desdobrar, ampliar: "nov-elo", "novo elo". A razão de ser do fio é criar novos elos, e é sempre de um novo elo que ele também nasce.Somente os que produzem sentido narram, posto que confiam no sentido. Confiam não exatamente em si apenas, confiam em si enquanto instrumento de produzir um sentido que os ligue ao outro, ao cosmos, ao infinito,permanecendo no entanto ligado ao novelo de onde o fio nasce e nunca para de nascer.
Um afeto a guia nessa tarefa : a confiança. "Con-fiar": fiar junto. Fiar é produzir um fio , uma tecitura, uma narrativa.Fiar é produzir um sentido, que é o caminho sobre o qual se anda, avança, sem que o objetivo seja chegar a um ponto que se torne a morte do fio. Pois o sentido de tecer e fiar é estender o fio ao máximo que ele pode chegar. Mas ninguém sabe qual é esse máximo, dado que o fio deve nascer de um novelo que concentre em si o mundo inteiro a se desdobrar, ampliar: "nov-elo", "novo elo". A razão de ser do fio é criar novos elos, e é sempre de um novo elo que ele também nasce.Somente os que produzem sentido narram, posto que confiam no sentido. Confiam não exatamente em si apenas, confiam em si enquanto instrumento de produzir um sentido que os ligue ao outro, ao cosmos, ao infinito,permanecendo no entanto ligado ao novelo de onde o fio nasce e nunca para de nascer.
Orfeu e Eurídice tiveram um filho, cujo nome é Museu, poeta como o pai. Orfeu,porém, teve um fim trágico. Após morrer, Eurídice foi parar no Hades. Este era o lugar do Esquecimento. Ao morrerem , as almas esqueciam que viveram, tornando-se assim sombras.Elas esqueciam a vida. Simbolicamente , a morte de Eurídice significava que o poeta esqueceu-se da vida, perdeu-a. E o Mistério de onde a poesia nascia,o Mistério que a alma era, tornou-se escuridão. A Escuridão é o que fica quando se tira o Mistério da vida. "Mistério" e "místico" provêm de uma mesma palavra: "mys", que significa "fechar a boca". Porém, esse "fechar a boca" não significa, como erroneamente se interpreta, ficar em silêncio. "Fechar a boca" , nesse caso , refere-se à boca que apenas diz palavra , e nada mais. Heidegger dizia que a diferença mais nítida entre a vida autêntica e a vida inautêntica reside no fato de que esta última é "tagarela". A tagarelice é um desperdício da palavra. "Mys" significa fechar essa boca que tagarela e nada diz. Os tagarelas tudo querem dizer, embora nada digam. O mistério da fala poética é exatamente esse: um "afloramento de falas" que expressa o que a fala prosaica não consegue dizer.Misterioso não é o que se oculta ou se põe na sombra, ou diz coisas incompreensíveis; misterioso é o que se esforça para calar a tagarelice da doxa, a começar a que pode estar nele, para ousar dizer o que nunca foi dito.Não porque estivesse oculto, mas sim em razão de ainda não ter sido inventado.
Por algum motivo, a alma de Orfeu esqueceu-se do mistério e se viu na escuridão. Perdeu o sentido e perdeu-se do sentido.Ela se tornou o passado. Pois é isto a morte para a alma: ficar presa no passado.Não o passado que , do presente, a gente lembra sob a forma de recordação.Se a alma fica presa do passado, o presente já não existe para ela, tampouco o futuro.No passado não há mistério, mas também não há vida: há apenas um "viveu" que ainda se pensa vida.Para Orfeu libertar sua alma, para libertar a si mesmo, era preciso resgatar sua alma do passado. E assim ele fez, indo ao Hades procurar por Eurídice. Quando ele chega ao Hades, vê apenas sombras. Como achar novamente, no meio de sombras , a própria alma? Orfeu começa a cantar suas poesias e canções. Somente estas podem trazê-lo de volta a si mesmo.Ninguém pode resgatá-lo, a não ser ele mesmo.Ele não acha primeiro sua alma para depois reencontrar sua poesia. Ele cria sua poesia para assim achar-se como alma.
Todo retorno é difícil.Ainda mais quando se vai ao ponto onde se perdeu.O Deus Hades, senhor daquele mundo escuro, disse ao poeta: "vá e leve sua Eurídice, mas não se volte para olhá-la antes de ultrapassar totalmente a fronteira desse meu mundo".Mas onde termina essa fronteira? Onde cessa o passado e se inicia uma vida nova? Onde paro de me esquecer e me lembro? Talvez essas dúvidas tenham abalado a confiança do poeta, levando-o a pôr-se em dúvida acerca de si mesmo. Pensando que sua alma já estivesse livre do passado que a fizera prisioneira, Orfeu volta-se para olhá-la, e este olhar a põe de novo lá, fora do alcance .E foi assim que o poeta perdeu-se de si mesmo, ficando totalmente mudo, ausente de si .
As Fúrias, que eram as deusas da vingança, achavam agora que o poeta lhes cederia , e colocaria sua arte a serviço delas.Mas o poeta recusou casar-se com elas e fazer da poesia um canto da morte . Não exatamente a morte física, mas a morte em seu sentido mais amplo, como morte ou banalização do sopro vital. Essa banalização/despotencialização do sopro vital pode ser ouvida , inclusive, em certas formas de música que , hoje, entopem televisões e rádios, de tal modo que parece que o Hades estendeu seus domínios não apenas aos mortos, mas também aos vivos. Enciumadas pelo amor que o poeta devotava à alma, as Fúrias, que eram divindades que desconheciam o que é amar( elas sabiam apenas o que é o odiar), elas então fizeram Orfeu em pedaços. Quando Museu vê seu pai em pedaços, em fragmentos, nasce nele o desejo de reunir esses pedaços para fazer deles novamente partes de um todo, pois o todo, a essência de Orfeu, permanecia na alma de Museu, como parte também dele.Recriando Orfeu , Museu recriaria a si mesmo; e novamente, através dessas partes, Orfeu renasceria e poderia ser conhecido por todos. Foi assim que nasceu a primeira exposição do mundo, tendo um poeta como tema, para dessa forma ensinar aos homens o que é a poesia, que é sempre o resgate lúdico da vida que está em nós mesmos, para assim potenciá-la. Museu percebeu que o poeta ainda permanecia vivo: Orfeu estava vivo em cada coisa que ele produziu e criou. Ele estava vivo como vibração, como sentido.
Por algum motivo, a alma de Orfeu esqueceu-se do mistério e se viu na escuridão. Perdeu o sentido e perdeu-se do sentido.Ela se tornou o passado. Pois é isto a morte para a alma: ficar presa no passado.Não o passado que , do presente, a gente lembra sob a forma de recordação.Se a alma fica presa do passado, o presente já não existe para ela, tampouco o futuro.No passado não há mistério, mas também não há vida: há apenas um "viveu" que ainda se pensa vida.Para Orfeu libertar sua alma, para libertar a si mesmo, era preciso resgatar sua alma do passado. E assim ele fez, indo ao Hades procurar por Eurídice. Quando ele chega ao Hades, vê apenas sombras. Como achar novamente, no meio de sombras , a própria alma? Orfeu começa a cantar suas poesias e canções. Somente estas podem trazê-lo de volta a si mesmo.Ninguém pode resgatá-lo, a não ser ele mesmo.Ele não acha primeiro sua alma para depois reencontrar sua poesia. Ele cria sua poesia para assim achar-se como alma.
Todo retorno é difícil.Ainda mais quando se vai ao ponto onde se perdeu.O Deus Hades, senhor daquele mundo escuro, disse ao poeta: "vá e leve sua Eurídice, mas não se volte para olhá-la antes de ultrapassar totalmente a fronteira desse meu mundo".Mas onde termina essa fronteira? Onde cessa o passado e se inicia uma vida nova? Onde paro de me esquecer e me lembro? Talvez essas dúvidas tenham abalado a confiança do poeta, levando-o a pôr-se em dúvida acerca de si mesmo. Pensando que sua alma já estivesse livre do passado que a fizera prisioneira, Orfeu volta-se para olhá-la, e este olhar a põe de novo lá, fora do alcance .E foi assim que o poeta perdeu-se de si mesmo, ficando totalmente mudo, ausente de si .
As Fúrias, que eram as deusas da vingança, achavam agora que o poeta lhes cederia , e colocaria sua arte a serviço delas.Mas o poeta recusou casar-se com elas e fazer da poesia um canto da morte . Não exatamente a morte física, mas a morte em seu sentido mais amplo, como morte ou banalização do sopro vital. Essa banalização/despotencialização do sopro vital pode ser ouvida , inclusive, em certas formas de música que , hoje, entopem televisões e rádios, de tal modo que parece que o Hades estendeu seus domínios não apenas aos mortos, mas também aos vivos. Enciumadas pelo amor que o poeta devotava à alma, as Fúrias, que eram divindades que desconheciam o que é amar( elas sabiam apenas o que é o odiar), elas então fizeram Orfeu em pedaços. Quando Museu vê seu pai em pedaços, em fragmentos, nasce nele o desejo de reunir esses pedaços para fazer deles novamente partes de um todo, pois o todo, a essência de Orfeu, permanecia na alma de Museu, como parte também dele.Recriando Orfeu , Museu recriaria a si mesmo; e novamente, através dessas partes, Orfeu renasceria e poderia ser conhecido por todos. Foi assim que nasceu a primeira exposição do mundo, tendo um poeta como tema, para dessa forma ensinar aos homens o que é a poesia, que é sempre o resgate lúdico da vida que está em nós mesmos, para assim potenciá-la. Museu percebeu que o poeta ainda permanecia vivo: Orfeu estava vivo em cada coisa que ele produziu e criou. Ele estava vivo como vibração, como sentido.
domingo, 11 de fevereiro de 2018
platão , espinosa e o amor
Tanto o sábio quanto o homem vulgar possuem em suas almas partes boas e más.
O que os distingue é que o sábio sempre se esforça para agir com sua parte boa.
Plotino
Platão acreditava que o amor é
desejo. Desejo daquilo que falta. O desejo seria a marca de uma incompletude
radical. Só desejamos porque nos falta aquilo que nos faria voltar à unidade
originária, no tempo perdida. Obtida a outra metade que nos falta, restituída
assim a unidade perdida, finda o desejo , como se extingue o fogo quando não há
mais madeira para queimar. O objetivo do desejo é encontrar aquilo que ele
deseja :uma outra metade também perdida, para assim findarem ambos em uma
unidade que apaga a diferença de cada um dos desejos em suas diferenças. O
destino do desejo é ser apagado, morto. Tornar-se completo, segundo Platão,
seria fundir-se em uma unidade que revelaria que a diferença é ilusão.
Espinosa pensa de outro modo. Para
ele, desejar é buscar um outro desejo
que se componha com o nosso. Desejar é , junto com outro desejo do nosso
diferente, criar um terceiro indivíduo, do qual meu desejo e o outro desejo
sejam partes vivas. A amizade, por exemplo, é um terceiro indivíduo nascido de Pedro e Paulo enquanto amigos. Pedro e Paulo são partes da amizade que os une, a amizade está tanto no todo quanto está nas partes. Mas a amizade não é um conjunto, uma vez que podem existir conjuntos vazios, porém não pode existir amizade sem amigos. A amizade é uma relação que acrescenta às partes que se relacionam um novo sentido. A amizade não está somente na relação, tampouco apenas nos amigos. Ela está tanto na relação quanto nos amigos, embora não esteja do mesmo modo nas partes e na relação-todo: nos amigos ela está como afeto, na relação-todo ela é ideia.
Enquanto em Platão a unidade
originária pré-existe ao desejo que a busca, em Espinosa a unidade não
pré-existe aos dois desejos que a inventam, ao se conjugarem. Mediante o
terceiro indivíduo que nasce dos dois desejos conjugados, cada desejo não é
negado ou suprimido, mas potencializado : um vive no outro por meio da Vida que
ambos inventaram em comum.Vida que se alimenta das diferenças que se
auto-enriquecem, que se auto-inventam. Quando dois desejos se unem e criam um
terceiro indivíduo superior, nasce desse terceiro indivíduo um desejo também
superior, concernente à alma e também ao corpo, desejo que não é mais de um ou
do outro, porém dos dois desejos
transformados e potencializados em um único desejo que se quer a si mesmo. Assim compreendido, o desejo não é falta, dado que ele se possui a si mesmo
ao se dar para o outro, que também o oferta. Pois é isto o amor: oferta de amor, e não cobrança.
Assim conjugados, ambos desejam a mesma coisa: manter vivo o terceiro indivíduo que só existe por ação deles . Por meio do terceiro indivíduo , ambos podem cada vez mais desejar não o que falta, mas o que potencializa o que já se é, singularmente.
Assim conjugados, ambos desejam a mesma coisa: manter vivo o terceiro indivíduo que só existe por ação deles . Por meio do terceiro indivíduo , ambos podem cada vez mais desejar não o que falta, mas o que potencializa o que já se é, singularmente.
sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018
o carnaval
O sentido
original do carnaval remonta a Dioniso. Segundo o mito, foi Dioniso que ensinou
a festa aos homens. Quando era ainda criança, Dioniso foi despedaçado pelos
seus irmãos maiores, movidos por ciúme e inveja. Sabia-se que Dioniso tinha uma
metade humana e outra metade divina, uma metade mortal e outra que nunca
morria. Mas qual era a parte divina dele? Ninguém sabia...Exceto Zeus. Então,
quando Zeus viu Dioniso-criança despedaçado, buscou entre as partes a que era
divina, nesta estaria Dioniso ainda vivo . Era o coração a parte divina. Zeus
pegou o coração de Dioniso-criança e dele fez nascer novamente Dioniso. Isso
explica seu nome: “Di-oniso”, “duas vezes nascido”.Quando nasceu a primeira
vez, Dioniso veio ao mundo chorando, como todos os bebês; ao renascer , porém, ele
saiu do coração sorrindo, em festa. Dioniso festejava para lembrar aos homens
que nascer de novo é a mais necessária das artes, a despeito dos
despedaçamentos aparentemente invencíveis.Foi isto que ensinou Dioniso aos
homens: tornar a vida de novo nascente,nesta vida e não noutra.
E mesmo antes de
descobrir o vinho, ainda criança, Dioniso já se embriagava com seu puro leite :
“É preciso embriagar-se...Mas, com quê? Com vinho, poesia ou virtude , a
escolher. Mas embriaguem-se!” (Baudelaire)
terça-feira, 6 de fevereiro de 2018
ordinário, extraordinário
Manoel define sua poesia como uma “Estética
da Ordinariedade”. “Ordinário” significa a mesma coisa que “comum” ou “regular”.
À ideia de “ordinário” costumamos opor a noção de “extraordinário”. Vale a pena
lembrar a origem matemática desses termos. Na matemática, os “pontos
ordinários” de um triângulo são os inumeráveis e indistintos pontos que ocupam
cada um dos lados da figura, ao passo que seus três “pontos extraordinários”,
ou “singulares”, localizam-se em cada ângulo do triângulo. Em uma reta, por sua
vez, os pontos extraordinários são dois: os que ocupam os extremos da linha.
Todavia, a diferença entre ordinário
e extraordinário mostra toda a sua riqueza quando examinamos o círculo. Tal
figura geométrica parece destituída de pontos extraordinários ou singulares.
Mais do que uma linha reta, geralmente costuma-se afirmar que nossa vida é um
círculo: o círculo de nossa vida. Então, estaria o círculo de nossa existência
destituído de momentos singulares? Estaria nossa vida refém do ordinário?
Mas o círculo guarda um segredo,
tanto na matemática como na vida: qualquer ponto ordinário seu pode
metamorfosear-se em ponto extraordinário, se por ele passar uma “tangente”. No
encontro da tangente com o círculo, ambos dividirão o mesmo ponto, abrindo
assim o círculo a uma força que vem de fora de seus limites e contornos. Quando
o ordinário se converte em extraordinário, “desabre” um novo sentido.
Assim, entre o ordinário e o
extraordinário não existe uma diferença intransponível: é no seio do ordinário
que o extraordinário acontece. “Cada coisa ordinária é um elemento de estima” :“é
no ínfimo que eu vejo a exuberância”, afirma o poeta. É preciso reinventar
tangentes...
segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018
a vida é inocente...
Um
filósofo conta a seguinte história: Imagine
um homem rancoroso querendo
julgar a Vida por intermédio de
sua própria vida. Seu objetivo : achar a “raiz do mal”. Ele teria o poder de
examinar sua vida como se fosse um filme visto de frente para trás, do presente
para o passado. E mais: ele poderia “apagar” os acontecimentos julgados imerecidos de terem existido. Então , ele começa por examinar seus 20 anos , e vê que fizera coisas que condena, como se embriagar
muito, por exemplo. Assim, ele “apaga” de sua existência esse acontecido.
Porém, ele julga que a causa do “mal” está mais atrás . Ele vai aos 10
anos. Encontra também nessa idade coisas a apagar, como o ter matado aula para
ir jogar bola . Porém, a “raiz do mal” ainda não foi achada. Ele vai aos 8 anos, e
mesmo aí encontra o que culpar. Talvez, ter assaltado a geladeira para comer o doce que a mãe proibiu, ou ter brincado
escondido de médico com a vizinha. No entanto , o “mal” parece estar mais atrás
. Ele vai então aos 12 meses de idade :mesmo aí ele acha o que condenar, talvez
o fato de sujar as fraldas. O homem prossegue recuando, vai aos três meses: envergonha-se em ver-se sugando o seio da mãe. O ato é
apagado . Porém , ele imagina mais recuada a
“raiz do mal” . O homem se vê com 1 dia de vida, e mesmo aí ele encontra
o que condenar e apagar, sabe-se lá o quê, talvez a nudez do corpo. Ele vai
mais atrás ainda: se vê com 10 segundos, 9, 8, 7...3,
2,1...ele vai nascer...Ele pode julgar seu nascer como um
mal e apagá-lo? Se ele julgar o nascer um mal e quiser
apagá-lo, não seria esse homem um
doente, um louco que odeia a vida? A vida é inocente... É preciso protegê-la de
tais homens, sobretudo quando querem ter o poder de educar as crianças ou dominar o governo de
nossas cidades e Estados. Se os homens andam mal, a culpa não é da vida.
sábado, 3 de fevereiro de 2018
devires manoelinos
Não sou criança ou índio ; também não sou bicho ou
planta. Não sou nada disso na medida em
que se considere essas coisas como conjuntos fechados, com identidades fixas,
"cercadas". O que sou? Sou o que vive “entre”, incognoscível: ser de
“nadifúndios”. Sou esses seres menos a
cerca que lhes circunscreve uma identidade, um limite. Assim , “desabro-me
muitos”, empoemando-me outros em meu íntimo. De maneira nomádica, não
identitária, descubro o que em cada ser
há de não nomeável, o que há de
vivo, incercavelmente vivo. E se alguém
apontar para mim um espelho, verá "nada":um devir-imperceptível.
quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018
o coração, o desejo e a razão (2)
Aquiles vai à frente e puxa os demais. Heitor também fica à
frente, para proteger quem está atrás. Um é amigo da guerra, o outro o é
da paz. Quando ambos se enfrentam, até os deuses param: querem ver qual dos dois pode
mais. Eles lutam não apenas no campo de batalha, eles se enfrentam também no
dos ideais.
Aquiles ama saltar ; Heitor , pés firmes no chão. Aquiles quer sempre
conquistar ; Heitor, defender o irmão.
Se em Aquiles a poesia aos deuses exalta, em Heitor ela é
obra da humana condição.
Entre ambos havia uma muralha: um obstáculo para Aquiles; para Heitor, uma
proteção.
De longe os espreitava Ulisses, o homem da ardilosa
razão. Ulisses não tinha a coragem de Aquiles, tampouco de Heitor o coração. Sua
arma era o cálculo pragmático, a frieza da abstração.
Enquanto os autênticos abertamente se enfrentavam, Ulisses dissimulava sua mesquinha ambição: enquanto lutam os ideais opostos até à morte, ardilosamente Ulisses foge com o ouro na mão.
Enquanto os autênticos abertamente se enfrentavam, Ulisses dissimulava sua mesquinha ambição: enquanto lutam os ideais opostos até à morte, ardilosamente Ulisses foge com o ouro na mão.
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