quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

novo livro sobre manoel






os tempos


Quando somos crianças , as coisas que fazemos não duram apenas o tempo em que aconteceram, nunca de fato o que se fez termina. Pois à medida em que avança o tempo, retorna à nossa vida o acontecido como parte de uma memória  que vai cada vez crescendo, parecendo muitas vezes mais real e viva do que a realidade na qual fomos  criança.
Quando o homem tem 60 ou 70 anos, por exemplo, o que ele fez ao 8 ainda está a fazer-se dentro dele. Porém, o que ele faz nos mesmos 60 ou 70 pode não mais voltar a reviver pela memória: talvez não haja mais um outro ele mesmo, num futuro próximo,  para rever a si mesmo na continuidade de um processo aberto, sempre a refazer-se. Além disso, quando evocamos essa infância revivida, nunca é só a memória que a traz de volta, pois também desse reviver a imaginação participa.
Assim, o que se faz aos 7 ou 8 anos o fazemos com nossa idade toda, que nunca sabemos ao certo qual será ela toda, de tal modo que aquilo que fazemos no começo traz essa força do que sempre retorna como na primeira vez que em que fora feito e vivido.
Na adolescência e juventude também tudo o que fazemos traz nossa vida toda ainda por  viver, porém   em rascunho mais fraco do que na infância. Isso se deve ao fato de que já não somos mais todo brincadeira, nossa mente já não é mais criadora do lúdico: o futuro se torna um plano cronometrado, mensurado, como se o tempo por vir apenas existisse para realizar nossos objetivos planos.
Quando se chega aos 50 anos, contudo, parece que aquilo que fazemos não traz mais a virtualidade de nossa vida inteira por vir. O futuro se  torna horizonte reduzido ao ato, ao aqui e agora. Isso pode levar lentamente ao desespero , como perda do futuro, tempo do desejo.  O maior desespero pode advir da não aceitação do tempo, trazendo uma fixação obsessiva em manter-se  como na juventude, mas apenas por fora, na aparência.
Mas o começo dessa idade pode também inaugurar uma atitude nova, pois é nela, e não aos 30 ou 40, que pode começar a ganhar força  essa percepção da virtualidade do todo da vida, todo este que nunca se esgota nos 50, ou 60, ou 70...
É por volta dos 50 que pode nascer essa percepção não totalmente racional ou pragmática , uma percepção filosófica-poética , desse todo da vida na infância começado, e cujo fim deve ser vivido como se o viveu em seu começou: na inocência .
Quem envelhece com essa compreensão, talvez a “velhez” não o pegue: “Quando crescer vou virar criança” ( Manoel de Barros).




quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

acervo cláudio ulpiano


“Acervo” não é um lugar onde se guardam coisas. “Acervo” vem de “cérvix”: coluna vertebral. A coluna vertebral não é apenas o que sustenta a cabeça, ela também é o que nos põe de pé e serve de elo entre o cérebro e nossos pés e pernas: é atravessando a coluna   que as ideias e desejos nascidos no pensamento alcançam nossas mãos e pernas,  tornando-se ação sobre o mundo. Não por acaso, Fernando Pessoa percebeu o fato: a coluna vertebral tem a forma de um ponto de interrogação. Pois é isto que põe o homem de pé: sua capacidade de pôr questões.  Se os senhores do poder nos querem de joelhos, resistamos e fiquemos de pé, com Cláudio Ulpiano.




quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

mito, poesia e filosofia


Em sua Filosofia da mitologia, Shelling considera que a arte grega revela, de forma segunda ou derivada, o que o mito expressa de forma primeira, originária. Por isso, a arte grega buscava na mitologia seus temas. Exatamente por ser arte, invenção, a arte não pode ser primeira, sem perder sua natureza de arte. A invenção artística  é assim  considerada  por existir algo não inventado que se lhe contrapõe, tal como o refletido em relação ao reflexo . Se tudo fosse inventado, não se teria consciência da invenção. Se assistíssemos a uma peça de teatro que nunca terminasse , e se nós mesmos fôssemos parte dela, essa peça já não seria teatro, seria a vida mesma, mesmo que fôssemos apenas espectadores dela.
Segundo argumenta Shelling, a mitologia não é arte, ela é uma forma singular de produzir conhecimento, conhecimento do que vem primeiro, exatamente por ser divino ( não no sentido religioso). Por isso, por dar a conhecer o que é primeiro, a mitologia  não é segunda, ela é primeira. Ela é a invenção sem a consciência de invenção. A mitologia vive a experiência de não separação entre o conhecimento e aquilo que é conhecido. Logo, ela é realidade, uma realidade absoluta, isenta da separação entre subjetividade e objetividade, corpo e espírito. Nesse sentido, é impossível para nós vivermos o mito tal como o viveram os gregos que o inventaram , talvez apenas o poeta e a potência imaginante da criança disso sejam capazes. Ao inventarem os mitos, os gregos inventavam a si mesmos, sem que houvesse antes dessa invenção um grego como “verdade objetiva” do que é ser grego. Talvez seja esta a grande lição que temos de aprender com os gregos: sermos os artistas de nós mesmos.
O grego assim inventado não é histórico, mas simbólico. “Sym-bólico” : união ou agenciamento das partes. “Dia-bólico”: separação das partes. Todo símbolo é uma parte que se oferece à outra parte dela que somos. O símbolo agencia diferenças no encontro que o expressa. O “diabólico”, ao contrário, é o que nos reduz a um ego, a um cogito. Talvez nada mais diabólico do que disse Descartes, atormentado pelo seu “Gênio Maligno”: “o homem está só no mundo, e fala apenas consigo mesmo”. Mas os sabiás com trevas, como Manoel, Deleuze e Espinosa, acreditam nessa simbólica poético-filosófica: “o homem está só no mundo, se fala apenas consigo mesmo”.
Por isso, esse grego simbólico inventor de mitos também podemos o encontrar em nós , desde que ainda nos afetemos pelo Canto das Musas, e aprendamos não exatamente a nos comportarmos  , mas a “inventarmos comportamento”.[1]
Como diz Deleuze, “a literatura é o esforço para interpretar engenhosamente os mitos que não mais se compreende, por não sabermos mais sonhá-los ou produzi-los”[2]. O mito começa com o caos. Perdemos, talvez, o sentido desse começo, no qual arte e vida ainda não se haviam  separado. Em Aristóteles, a arte imita a vida. Naquela época em que se produziam os mitos, porém, a poesia era a vida mesma que se repetia outra, como sentido produzido para si mesma, como Caos e como Gaia, Terra.



[1] “Comportamento”, Ensaios fotográficos, p. 65.
[2] A ilha deserta e outros textos, Editora Iluminuras, 2004, p. 15.



                

terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

o mito, o conceito, o número e o poema


Poesia não é apenas versificação,

ela também é fabulação*, narração de mundos.
                                                                                                                                                   Paulo Leminski



Segundo o poeta Leminski, três são as produções mais originais da mente: o Mito, o Conceito e o Número. A arte tende ao Mito, a filosofia se apoia no Conceito, a ciência só confia nos Números. O Mito é fabulação, o Conceito é conhecimento, o Número é descrição. Durante muito tempo, havia apenas o Mito. Depois, o Conceito veio tomar-lhe o posto . Hoje, o Número pretende dar conta de tudo.
Em sua origem, o Mito não era arte, pois a arte somente existe enquanto se refere a outra coisa diferente dela. A arte nasceu quando o homem tomou consciência da distinção entre algo que é real , “em si” (não sendo, por isso mesmo,  inventado), e sua imagem produzida , enquanto realidade segunda, sensível. Para a arte, a realidade  pode ser coisa ou afeto. A pintura, por exemplo, imita a coisa, ao passo que a música imita o afeto . A poesia reúne pintura e música, por isso imita coisa e afeto, fazendo do afeto uma coisa real.  
Quando predominava o Mito não havia, portanto, distinção entre realidade e invenção. E talvez seja este o caráter imorredouro do Mito: a percepção de que toda realidade é invenção, mesmo a realidade que os Números pensam descrever “neutra e objetivamente”.
Somente quando surge o Conceito filosófico é que se teve, ou se inventou, a consciência da distinção entre realidade e invenção. Por isso, o Conceito inventou a si mesmo ao mesmo tempo em que inventou a arte. Esta nasce quando o Mito perde sua força geradora de mundos. O Conceito emerge desqualificando o Mito :este apenas balbuciaria a realidade sobre a qual o Conceito, e somente ele, sabe dissertar  com raciocínios  lógicos.  O Conceito substitui, ou crê substituir, o Mito como autoridade única para oferecer resposta à indagação fundamental: para quê e por que existimos? O Conceito pretende explicar a Origem e o Fim de toda existência, e não apenas da existência humana. O Conceito assim procede quando faz Racional Metafísica.  Porém, embora refute o Mito, o Conceito o absorve para fins pedagógicos: o mito se  torna a parte retórica e alegórica da filosofia. Por outro lado, o que era apenas um método ou andaime para o Conceito subir, o Número,  torna-se , com o tempo, o único critério objetivo para a mente se libertar da imaginação Mitológica e do pensamento metafísico, pois ambos impediriam a mente de conhecer cientificamente, "clara e distintamente", a realidade. Com o triunfo da ciência, reina o Número.
Contudo, o infinitamente pequeno e o infinitamente grande parecem resistir a tal quantitativismo descricionista, de tal modo que a cosmologia e a microfísica contemporâneas parecem retornar ao Mito, ao mesmo tempo que reatam amizade com a metafísica.
Queremos introduzir um quarto elemento nessa trindade Mito-Conceito-Número. Talvez esse quarto elemento seja um todo do qual cada um dos três seja um diferencial. Esse quarto elemento é o Poema. O poema é invenção de mundos, instauração de “por quês?” e “porquês”, sendo também uma forma de conhecimento não instrumental do mundo. O Poema pode auxiliar a mente a parar de brigar com a mente, quando se divide em impérios estanques litigantes; pois a mente é apenas uma, conquanto se expresse vária. 
Não seria isto, talvez, o que Espinosa nomeia “Ciência Intuitiva”?



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* o poeta que é apenas versificador se preocupa mais com o aspecto formal do poema, ao passo que o poeta-fabulador narra mundos, constrói perceptos, instaura sentidos. O poeta versificador é poeta, sem dúvida.Porém, o poeta-fabulador por vezes parece mais do que poeta, assemelhando-se a um filósofo, ou melhor, a um pensador. É no poeta-fabulador que está o Poema , que é mais do que rima e versos.  

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

manoel: o passarinho à toa


Eu pertenço de andar atoamente.
Sei falar a linguagem dos pássaros: é só cantar.
Manoel de Barros
                             

 Quanto mais ações o corpo é capaz, mais rico se torna o pensamento.
Espinosa

Nossos cicerones são aves cantando.
Cartola

Aqueles que amaram a música e permaneceram puros quanto ao resto,
tornam-se pássaros canoros após morrer o corpo.
Plotino


Os passarinhos que nasceram e vivem em gaiolas ocupam-se mais a cantar do que os passarinhos que nasceram livres e vivem a “voar atoamente”.
Os passarinhos que nasceram livres exercem sua liberdade em múltiplas ações, e não apenas no cantar. Eles  também voam, ciscam a terra, bicam os frutos, enamoram-se, constroem ninhos, criam seus entes e lhes ensinam a voar.
Os passarinhos que nasceram no cativeiro  são livres apenas no cantar. Por isso cantando tentam se libertar, mas seu canto de prisioneiro só lhes faz lembrar a liberdade que nunca viveram. É por isso que eles necessitam tagarelar seu canto o tempo inteiro, para tentar fugir do desespero.
Passarinhos de cativeiro , se cantam bem envaidecendo seu dono, até ganham  concursos e títulos;  por isso, mesmo tristes, inflam o peito, e olham com desdém os passarinhos sem dono. Mas o passarinho-andarilho  descobiça academias e prêmios: "voar fora da asa", atoamente ,  é o único  poder que desejam.






quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

centenário de jacob , o orfeu do bandolim





O mito é um passado que é um futuro 
disposto a se realizar no presente.
Octavio Paz

Descanse tranquilo onde cantam.
Os maus não cantam.
Schiller

Em grego, o nome “Orfeu” significa:”aquele que toca a lira”, “aquele que possui a arte de tocar a lira”. A lira é um instrumento singularíssimo, que requer muita sutileza e nuances para a sua execução. Na mitologia, ela é associada primeiramente a Apolo, o deus da forma, do limite (em muitas representações de Apolo ele aparece portando uma lira). Mas Orfeu vem de outra linhagem: ele é discípulo de Dioniso, o deus do ilimitado, das metamorfoses. Orfeu dará à lira uma dimensão que vai muito além de Apolo.Orfeu fará da lira a expressão tangível de suas  próprias cordas vocais, cordas estas que o intangível toca por intermédio das mãos da alma, para assim fazer viver, no som que se expande, o Afeto que a todos toca.
Em Apolo, a lira era instrumento para executar a música celeste, apenas audível aos deuses olímpicos. Orfeu era um homem, não um deus.Porém, ele alcançava uma dimensão divina com a música que extraía de sua lira, música esta que divinizava o terrestre: “celestava as coisas do chão”, como diz Manoel de Barros. 
A música é , dentre todas artes, a primeira a nascer.Na verdade, não foi o homem quem criou a música, esta sempre existiu. Segundo Pitágoras, a música surgiu junto com o universo.Para ouvi-la, era preciso ouvir também o universo, ou ao menos parte dele. O primeiro homem que assim se deixou afetar, ouvindo o universo,tornou-se músico.No mito, a primeira música que um homem ouviu nasceu quando este homem pôs as tripas de um carneiro para secar penduradas nos galhos de uma árvore.Quando o vento passava entre as tripas, podia-se ouvir um som que parecia dizer algo. Foi a capacidade de ouvir a natureza enquanto realidade expressiva que fez surgir , no homem, o músico, o artista. Finas cordas extraídas das tripas de um carneiro amarradas nos chifres de um bode, esta foi a primeira lira inventada, este foi o primeiro instrumento que nasceu para reproduzir, reinventando-a, a música que a natureza já fazia, música esta que a própria natureza era e é. Assim surgiu a música Apolínea, música que nasce da vibração das cordas.

A música dionísica tem outro nascimento.Certa vez, Pã enamorou-se de uma Ninfa e a quis como par. Mas esta fugiu e , querendo  esconder-se,metamorfoseou-se em caniços de bambu .Exausto de procurá-la, já querendo desistir, mas desejando expressar o afeto que estava encerrado dentro dele, Pã tem a ideia de pegar um feixe de  caniços que vê perto de si. Sem que saiba, esses  caniços eram a metamorfose de sua amada, o objeto de seu desejo.Ele os amarra e começa a soprá-los, ora sopra um, ora outro, ora todos. Assim nasceu a flauta.
Pã fizera o que Freud , Jung e Sartre chamarão de "sublimação". Sublimar não é reprimir um afeto, mas transfigurá-lo e expressá-lo sob a forma de um bem cultural no qual o afeto vai sobreviver desprovido de sua carga meramente individual e passional. "Pã" , que era um dos discípulos de Dioniso, significa: "todo". Pela música, o afeto sai da subjetividade e ganha o "todo", o mundo, o universo, através de um soprar que sai de dentro, ao contrário da música de cordas, que nasce de um tocar de fora, com os dedos ou outra coisa, as cordas. É por isso que a música apolínea pode ser matematizada, pois ela se mantém a certa distância do mundo interior, ao passo que a música dionisíaca é o próprio Pneuma, o sopro vital, que se tornou cósmico: através da música , o Pneuma se torna igual ao vento cósmico que produz  música, posto que é música. Daí o caráter paradoxal de  Orfeu: ele toca a lira, instrumento de Apolo, porém a toca com a alma, já que ele também canta. Com Orfeu, nasce a canção. Cantando, o Pneuma fazia vibrar também cordas, porém cordas "interiores", ao mesmo tempo físicas e espirituais : as cordas vocais. Orfeu não cantava as guerras, tampouco louvava inalcançáveis céus. Ele cantava a vida em sua simplicidade, e a transfigurava com seu canto, tal como, entre nós, Cartola, Paulinho  ou Noel. Orfeu celestava o simples, tornando-o sublime .
A música de Orfeu produzia encantamento. “En-cantar”: encher-se de canto.Cantar é mais do que falar ou dizer palavra, cantar é transformar em palavra o sopro vital.Quem canta faz cantar.Orfeu enchia de canto até mesmo os brutos, de tal maneira que o canto silenciava a brutalidade. Ninguém permanecia o mesmo ao ouvi-lo.
Muitos comparam a alma à lira: assim como esta, a alma é composta de cordas diferentes, heterogêneas. A razão, o desejo,a  imaginação, a memória...são as cordas da nossa lira.Saber pensar, saber falar, saber sentir, saber ouvir...são músicas que tocamos com nossa alma, com todas as suas heterogêneas partes.Pensar e sentir são vibrações. As cordas vibram porque elas são tensionadas. “In-tensidade”: qualidade do que existe tensionado (como a corda do arco que impulsiona a flecha, como as cordas do bandolim das quais nasce um chorinho: o bandolim é o tatataraneto da lira, e mesmo no "chorar" do chorinho há um cantar... ). Intensa era a música de Orfeu,pois viva era sua voz, seu canto;incontáveis eram seus acordes. E mesmo na divergência há acordes: acordes discordantes. A música que tocamos,a música que somos nasce de sabermos compor com essas cordas heterogêneas, plurais. A alma do artista nunca é monocórdica, uma vez que sua música nasce do agenciamento das cordas diferentes. Para essa música não há partitura, apenas o improvisar que já é o rascunho  como obra , como “forma em rascunho”.
A esposa de Orfeu se chamava Eurídice. Na Grécia antiga, na tradição órfica dos Mistérios,  “Eurídice” também era um dos nomes da alma (assim como Psiquê e Pneuma também o são: Pneuma, "sopro", foi traduzido para o latim como "Espiritus"...). Assim, era agenciado com sua alma,com seu "sopro",  fazendo-o intenso, que Orfeu produzia  o mistério poético do encantamento. Ele o fazia não apenas com uma parte da alma, mas com ela inteira. E a alma quando se torna inteira nunca cabe totalmente dentro de si própria: ela salta para fora, encontra para si um corpo em qualquer coisa, mesmo nos objetos aparentemente inertes. E tudo a alma pode então fazer ter alma.
Um afeto a guia nessa tarefa : a confiança. "Con-fiar": fiar junto. Fiar é produzir um fio , uma tecitura, uma narrativa.Fiar é produzir um sentido, que é o caminho sobre o qual se anda, avança, sem que o objetivo seja chegar a um ponto que se torne a morte do fio. Pois o sentido  de tecer e fiar é estender o fio ao máximo que ele pode chegar. Mas ninguém sabe qual é esse máximo, dado que o fio deve nascer de um novelo que concentre em si o mundo inteiro a se desdobrar, ampliar: "nov-elo", "novo elo". A razão de ser do fio é criar novos elos, e é sempre de um novo elo que ele também nasce.Somente os que produzem sentido narram, posto que confiam no sentido. Confiam não exatamente em si apenas, confiam em si enquanto instrumento de  produzir um sentido que os ligue ao outro, ao cosmos, ao infinito,permanecendo no entanto  ligado ao novelo de onde o fio nasce e nunca para de nascer.
Orfeu e Eurídice tiveram um filho, cujo nome é Museu,  poeta como o pai. Orfeu,porém, teve um fim trágico. Após morrer, Eurídice foi parar no Hades. Este era o lugar do Esquecimento. Ao morrerem , as almas esqueciam que viveram, tornando-se assim sombras.Elas esqueciam a vida. Simbolicamente , a morte de Eurídice significava que o poeta esqueceu-se da vida, perdeu-a. E o Mistério de onde a poesia nascia,o Mistério que a alma era,  tornou-se escuridão. A Escuridão é o que fica quando se tira o Mistério da vida. "Mistério" e "místico" provêm de uma mesma palavra: "mys", que significa "fechar a boca". Porém, esse "fechar a boca" não significa, como erroneamente se interpreta, ficar em silêncio. "Fechar a boca" , nesse caso , refere-se à boca que apenas diz palavra , e nada mais. Heidegger dizia que a diferença mais nítida entre a vida autêntica e a vida inautêntica reside no fato de que esta última é "tagarela". A tagarelice é um desperdício da palavra. "Mys" significa fechar essa boca que tagarela e nada diz. Os tagarelas tudo querem  dizer, embora nada digam. O mistério da fala poética é exatamente esse: um "afloramento de falas" que expressa o que a fala prosaica não consegue dizer.Misterioso não é o que se oculta ou se põe na sombra, ou diz coisas incompreensíveis; misterioso é o que se esforça para  calar a tagarelice da doxa, a começar a que pode estar nele,  para ousar dizer o que nunca foi dito.Não porque estivesse oculto, mas sim em razão de ainda não ter sido inventado.
Por algum motivo, a alma de Orfeu esqueceu-se do mistério e se viu na escuridão. Perdeu o sentido e perdeu-se do sentido.Ela se tornou o passado. Pois é isto a morte para a alma: ficar presa no passado.Não o passado que , do presente, a gente lembra sob a forma de recordação.Se a alma fica presa do passado, o presente já não existe para ela, tampouco o futuro.No passado não há mistério, mas também não há vida: há apenas um "viveu" que ainda se pensa vida.Para Orfeu libertar sua alma, para libertar a si mesmo, era preciso resgatar sua alma do passado. E assim ele fez, indo ao Hades procurar por Eurídice. Quando ele chega ao Hades, vê apenas sombras. Como achar novamente, no meio de sombras , a própria alma? Orfeu começa a cantar suas poesias e canções. Somente estas podem trazê-lo de volta a si mesmo.Ninguém pode resgatá-lo, a não ser ele mesmo.Ele não acha primeiro sua alma para depois reencontrar sua poesia. Ele cria sua poesia para assim achar-se como alma.
Todo retorno é difícil.Ainda mais quando se vai ao ponto onde se perdeu.O Deus Hades, senhor daquele mundo escuro, disse ao poeta: "vá e leve sua Eurídice, mas não se volte para olhá-la antes de ultrapassar totalmente a fronteira desse meu mundo".Mas onde termina essa fronteira? Onde cessa o passado e se inicia uma vida nova? Onde paro de me esquecer e me lembro? Talvez essas dúvidas tenham abalado  a confiança do poeta, levando-o a pôr-se em dúvida acerca de si mesmo. Pensando que sua alma já estivesse livre do passado que a fizera prisioneira, Orfeu volta-se para olhá-la, e este olhar a põe de novo lá, fora do alcance .E foi assim que o poeta perdeu-se de si mesmo, ficando totalmente mudo, ausente de si .  
As Fúrias, que eram as deusas da vingança, achavam agora que o poeta lhes cederia  , e colocaria sua arte a serviço delas.Mas o poeta recusou casar-se com elas e fazer da poesia um canto da morte . Não exatamente a morte física, mas a morte em seu sentido mais amplo, como morte ou banalização do sopro vital. Essa banalização/despotencialização  do sopro vital  pode ser ouvida , inclusive, em certas formas de música que , hoje, entopem televisões e rádios, de tal modo que parece que o Hades estendeu seus domínios não apenas aos mortos, mas também aos vivos. Enciumadas pelo amor que o poeta devotava à alma, as Fúrias, que eram divindades que desconheciam o que é amar( elas sabiam apenas o que é o odiar), elas então  fizeram Orfeu em pedaços. Quando Museu vê seu pai em pedaços, em fragmentos, nasce nele o desejo de reunir esses pedaços para fazer deles novamente partes de um todo, pois o todo, a essência de Orfeu, permanecia na alma de Museu, como parte também dele.Recriando Orfeu , Museu recriaria a si mesmo; e novamente, através dessas partes, Orfeu  renasceria e poderia ser conhecido por todos. Foi assim que nasceu a primeira exposição do mundo, tendo um poeta como tema, para dessa forma ensinar aos homens o que é a poesia, que é sempre o resgate lúdico da vida que está em nós mesmos, para assim potenciá-la. Museu   percebeu que o poeta  ainda permanecia vivo: Orfeu estava vivo  em cada coisa que ele produziu  e criou.  Ele estava vivo como vibração, como sentido.





domingo, 11 de fevereiro de 2018

platão , espinosa e o amor

Tanto o sábio quanto o homem vulgar possuem em suas almas partes boas e más.  
O que os distingue é que o sábio sempre se esforça para agir com sua parte boa.
Plotino 

É interessante a imagem que Platão e Espinosa fazem do amor. Tão interessante quanto diferem radicalmente entre si. A imagem de Platão é mais conhecida, embora muitos conheçam a história sem reportá-la ao seu verdadeiro autor.
Platão acreditava que o amor é desejo. Desejo daquilo que falta. O desejo seria a marca de uma incompletude radical. Só desejamos porque nos falta aquilo que nos faria voltar à unidade originária, no tempo perdida. Obtida a outra metade que nos falta, restituída assim a unidade perdida, finda o desejo , como se extingue o fogo quando não há mais madeira para queimar. O objetivo do desejo é encontrar aquilo que ele deseja :uma outra metade também perdida, para assim findarem ambos em uma unidade que apaga a diferença de cada um dos desejos em suas diferenças. O destino do desejo é ser apagado, morto. Tornar-se completo, segundo Platão, seria fundir-se em uma unidade que revelaria que a diferença é ilusão.
Espinosa pensa de outro modo. Para ele,  desejar é buscar um outro desejo que se componha com o nosso. Desejar é , junto com outro desejo do nosso diferente, criar um terceiro indivíduo, do qual meu desejo e o outro desejo sejam partes vivas. A amizade, por exemplo, é um terceiro indivíduo nascido de Pedro e Paulo enquanto amigos. Pedro e Paulo são partes da amizade que os une, a amizade está tanto no todo quanto está nas partes. Mas a amizade não é um conjunto, uma vez que podem existir conjuntos vazios, porém não pode existir amizade sem amigos. A amizade é uma relação que acrescenta às partes que se relacionam um novo sentido. A amizade não está somente na relação, tampouco apenas nos amigos. Ela está tanto na relação quanto nos amigos, embora não esteja do mesmo modo nas partes e na relação-todo: nos amigos ela está como afeto, na relação-todo ela é ideia. 
Enquanto em Platão a unidade originária pré-existe ao desejo que a busca, em Espinosa a unidade não pré-existe aos dois desejos que a inventam, ao se conjugarem. Mediante o terceiro indivíduo que nasce dos dois desejos conjugados, cada desejo não é negado ou suprimido, mas potencializado : um vive no outro por meio da Vida que ambos inventaram em comum.Vida que se alimenta das diferenças que se auto-enriquecem, que se auto-inventam. Quando dois desejos se unem e criam um terceiro indivíduo superior, nasce desse terceiro indivíduo um desejo também superior, concernente à alma e também ao corpo, desejo que não é mais de um ou do outro, porém  dos dois desejos transformados e potencializados em um único desejo que se quer a si mesmo. Assim compreendido, o desejo não é falta, dado que ele se possui a si mesmo ao se dar para o outro, que também o oferta. Pois é isto o amor: oferta de amor, e não cobrança. 
Assim conjugados, ambos desejam a mesma coisa: manter vivo o terceiro indivíduo que só existe por ação deles . Por meio do terceiro indivíduo  , ambos podem cada vez mais desejar não o que falta, mas o que potencializa o que já se é, singularmente.








sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

o carnaval


O sentido original do carnaval remonta a Dioniso. Segundo o mito, foi Dioniso que ensinou a festa aos homens. Quando era ainda criança, Dioniso foi despedaçado pelos seus irmãos maiores, movidos por ciúme e inveja. Sabia-se que Dioniso tinha uma metade humana e outra metade divina, uma metade mortal e outra que nunca morria. Mas qual era a parte divina dele? Ninguém sabia...Exceto Zeus. Então, quando Zeus viu Dioniso-criança despedaçado, buscou entre as partes a que era divina, nesta estaria Dioniso ainda vivo . Era o coração a parte divina. Zeus pegou o coração de Dioniso-criança e dele fez nascer novamente Dioniso. Isso explica seu nome: “Di-oniso”, “duas vezes nascido”.Quando nasceu a primeira vez, Dioniso veio ao mundo chorando, como todos os bebês; ao renascer , porém, ele saiu do coração sorrindo, em festa. Dioniso festejava para lembrar aos homens que nascer de novo é a mais necessária das artes, a despeito dos despedaçamentos aparentemente invencíveis.Foi isto que ensinou Dioniso aos homens: tornar a vida de novo nascente,nesta vida e não noutra.

E mesmo antes de descobrir o vinho, ainda criança, Dioniso já se embriagava com seu puro leite : “É preciso embriagar-se...Mas, com quê? Com vinho, poesia ou virtude , a escolher. Mas embriaguem-se!” (Baudelaire)





terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

ordinário, extraordinário



Manoel define sua poesia como uma “Estética da Ordinariedade”. “Ordinário” significa a mesma coisa que “comum” ou “regular”. À ideia de “ordinário” costumamos opor a noção de “extraordinário”. Vale a pena lembrar a origem matemática desses termos. Na matemática, os “pontos ordinários” de um triângulo são os inumeráveis e indistintos pontos que ocupam cada um dos lados da figura, ao passo que seus três “pontos extraordinários”, ou “singulares”, localizam-se em cada ângulo do triângulo. Em uma reta, por sua vez, os pontos extraordinários são dois: os que ocupam os extremos da linha.
Todavia, a diferença entre ordinário e extraordinário mostra toda a sua riqueza quando examinamos o círculo. Tal figura geométrica parece destituída de pontos extraordinários ou singulares. Mais do que uma linha reta, geralmente costuma-se afirmar que nossa vida é um círculo: o círculo de nossa vida. Então, estaria o círculo de nossa existência destituído de momentos singulares? Estaria nossa vida refém do ordinário?
Mas o círculo guarda um segredo, tanto na matemática como na vida: qualquer ponto ordinário seu pode metamorfosear-se em ponto extraordinário, se por ele passar uma “tangente”. No encontro da tangente com o círculo, ambos dividirão o mesmo ponto, abrindo assim o círculo a uma força que vem de fora de seus limites e contornos. Quando o ordinário se converte em extraordinário, “desabre” um novo sentido.
Assim, entre o ordinário e o extraordinário não existe uma diferença intransponível: é no seio do ordinário que o extraordinário acontece. “Cada coisa ordinária é um elemento de estima” :“é no ínfimo que eu vejo a exuberância”, afirma o poeta. É preciso reinventar tangentes...



segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

a vida é inocente...

Um filósofo conta a seguinte história: Imagine  um homem rancoroso querendo  julgar a Vida por intermédio de  sua própria vida. Seu objetivo :  achar a “raiz do mal”. Ele teria o poder de examinar sua vida como se fosse um filme  visto de frente para trás, do presente para o passado. E mais: ele poderia “apagar” os acontecimentos julgados imerecidos de terem existido. Então , ele começa por examinar seus 20 anos , e vê que  fizera coisas que condena, como se embriagar muito, por exemplo. Assim, ele “apaga” de sua existência esse acontecido. Porém, ele julga que a causa do “mal” está mais atrás . Ele vai aos 10 anos. Encontra também nessa idade coisas a apagar, como o ter matado aula para ir jogar bola . Porém, a  “raiz do mal”  ainda não foi achada. Ele vai aos 8 anos, e mesmo aí encontra o que culpar. Talvez, ter assaltado a geladeira para comer  o doce que a mãe proibiu, ou ter brincado escondido de médico com a vizinha. No entanto , o “mal” parece estar mais atrás . Ele vai então aos 12 meses de idade :mesmo aí ele acha o que condenar, talvez o fato de sujar as fraldas. O homem prossegue recuando, vai aos três meses: envergonha-se em ver-se sugando o seio da mãe. O ato é apagado . Porém , ele imagina mais recuada a  “raiz do mal” . O homem se vê com 1 dia de vida, e mesmo aí ele encontra o que condenar e apagar, sabe-se lá o quê, talvez a nudez do corpo. Ele vai mais atrás ainda: se vê com 10 segundos, 9, 8, 7...3, 2,1...ele vai nascer...Ele pode julgar seu nascer   como um  mal e apagá-lo? Se ele julgar o nascer  um mal e quiser apagá-lo, não seria esse homem  um doente, um louco que odeia a vida? A vida é inocente... É preciso protegê-la de tais homens, sobretudo quando   querem ter o poder  de  educar as crianças ou dominar o governo de nossas cidades e Estados. Se os homens andam mal, a culpa não é da vida.





sábado, 3 de fevereiro de 2018

devires manoelinos

Não sou  criança ou índio ; também não sou bicho ou planta. Não sou  nada disso na medida em que se considere essas coisas como conjuntos fechados, com identidades fixas, "cercadas". O que sou? Sou o que vive “entre”, incognoscível: ser de “nadifúndios”. Sou esses seres  menos a cerca que lhes circunscreve uma identidade, um limite. Assim , “desabro-me muitos”, empoemando-me outros em meu íntimo. De maneira nomádica, não identitária, descubro o que em cada ser  há de não nomeável,  o que há de vivo, incercavelmente  vivo. E se alguém apontar para mim um espelho, verá "nada":um devir-imperceptível.



quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

o coração, o desejo e a razão (2)


Aquiles vai à frente e puxa os demais. Heitor também fica à frente, para proteger quem está atrás. Um é amigo da guerra, o outro o é da paz. Quando ambos se enfrentam, até os deuses param: querem ver qual dos  dois  pode mais. Eles lutam não apenas no campo de batalha, eles se enfrentam também no dos ideais.
Aquiles ama saltar ; Heitor ,  pés firmes no chão. Aquiles quer sempre conquistar ; Heitor, defender o irmão.
Se em Aquiles a poesia aos deuses exalta, em Heitor ela é obra da humana condição.
Entre ambos havia uma muralha:  um obstáculo para Aquiles; para Heitor, uma proteção.
De longe os espreitava Ulisses,  o homem da ardilosa razão. Ulisses não tinha a coragem de Aquiles, tampouco de Heitor o coração. Sua arma era o cálculo pragmático, a frieza da abstração.
Enquanto  os autênticos  abertamente  se enfrentavam, Ulisses dissimulava sua mesquinha ambição: enquanto lutam os ideais opostos até à morte, ardilosamente  Ulisses foge com o ouro na mão.