Apenas os
movimentos do corpo não são suficientes para explicar se tais movimentos são
ativos ou passivos, potentes ou impotentes. Quem visse o Judas em seu beijo , e
não conhecesse a ideia que acompanhava aquele gesto, poderia imaginar que
aquele movimento era expressão de um amor. Quem vê o boxeador desferindo um
soco certeiro , pode imaginar que ele golpeia movido pelo ódio ao adversário.
Mas o beijo de Judas é pior do que um soco, ele é um movimento do corpo que, do
ponto de vista do afeto que o move, está acompanhado de um ódio, um ódio ao amor. Já o soco do
pugilista não é raiva ou ódio, é um soco acompanhado da ideia de amor ao boxe.
Entre mafiosos, os enfáticos movimentos
de um abraço pode não ser manifestação de amizade, mas uma sentença de
morte.
É mortal para
nós mesmos imaginar que só existem Judas e mafiosos, pois assim temeremos quem
nos beija e abraça, e acharemos mil argumentos para nós mesmos não beijar ou
abraçar. Judas e mafiosos estão por aí...Mas saberá melhor identificá-los quem
souber beijar com lealdade aquilo que o
Judas beija para trair, ou abraçar com
vida aquilo que o mafioso abraça para matar, seja uma vida, os valores éticos ou a democracia.
*** ***
NECESSIDADE E DETERMINAÇÃO
Espinosa distingue entre necessidade e determinismo.
Portanto, é um imenso equívoco taxá-lo defensor de um determinismo
racionalista.
Todo ente finito
existe de forma determinada, isso é certo. O vapor existe de forma determinada
porque causas determinadas o
determinaram a ser vapor. “Determinado” é tudo aquilo que é determinado a ser
isto ou aquilo conforme a ação determinada de outra coisa. No caso do vapor, sua
existência determinada é determinada pela ação determinada do calor sobre a
água. Mas tanto o calor quanto a água também existem de forma determinada, pois
outras coisas determinadas os determinaram a ser calor e água e não outra
coisa. É assim que a ciência conhece a realidade e a explica: buscando a causa
determinada de uma existência determinada. Nenhuma coisa determinada pode ser a
causa do seu próprio existir determinado: a causa de sua existência determinada
é sempre outra coisa também determinada. O pai é a causa determinada da
existência determinada do filho, mas tanto o pai quanto o filho são modos ou
maneiras de ser de uma existência absoluta e necessária.
O necessário não é o determinado. Um homem determinado nada
mais pode ser do que o efeito de coisas determinadas que o determinam a agir de
forma determinada, isto é, de forma não livre. Um homem que faz algo
determinado não significa que o faça de forma necessária. Os que confundem o necessário com o
determinado podem imaginar que fazem o que fazem por fatalismo, ou por terem
sido "eleitos" pelo destino, ou ainda devido a causas deterministas férreas.
Quando Kant preconiza a rigidez da lei moral, o faz sob o modelo da
determinação, de tal modo que ninguém consegue ver a necessidade de uma vida
assim vivida.
Necessária é toda ação que se explica por ela mesma, e não
como efeito determinado de outra coisa determinada. Determinar é de-terminar, "dar término", fins, contornos. Necessário é o que nasce do “esse”, isto é, do
ser singular de um ente ( ens) existente.
Um poeta emprega uma língua determinada dotada de
determinadas regras . Porém, o poema que ele cria não é determinado pelas
regras determinadas da língua. Seu poema nasce de uma necessidade expressiva
sem a qual não há poeta. O poeta que encontra na expressão poética sua
necessidade, encontra também sua liberdade como idêntica a essa necessidade. Liberdade
não é algo espontâneo ou indeterminado
que se opõe à determinação. Liberdade é a expressão de uma necessidade
que não nega o determinado, porém se afirma em uma ação mais potente do que
todo ato determinado.
Espinosa foi excomungado, isso é determinado; passou por
dificuldades materiais e de saúde, isso é determinado; escolheu escrever em
latim e sob o modelo da geometria, isso também é determinado. Mas nenhuma
dessas determinações explica o que há de necessário em sua Ética. Algo determinado
nasce de algo determinado que pode fazer
nascer outra coisa determinada a partir
de sua determinação. No entanto, o
necessário não nasce do determinado. O necessário nasce de si mesmo como ação
que é causa de si mesma, e não efeito de
outra coisa. O necessário não é o possível de ser necessário, pois o possível
não é necessário. O necessário já é o que é real , sendo impossível a sua
impossibilidade.
Nossa existência determinada nos mostra que aquilo que nos
acontece de forma determinada também acontece a outras coisas, dadas as mesmas
condições determinadas ( não apenas Espinosa foi excomungado, outros também o foram antes e depois dele, sob as mesmas condições determinadas). Mas o que fazemos de forma necessária expressa a
singularidade de um acontecimento único que de só de nós depende , enquanto
expressão de uma realidade absoluta que é sempre necessária, nunca determinada:Espinosa, apenas ele, escreveu de forma necessária uma Ética, sem que para tal seja determinado que se tenha sido excomungado...
A passividade é algo determinado, porém não é necessário; as
paixões tristes ( ódio, inveja, rancor, etc.) também são determinadas, mas não
são necessárias; mesmo a morte é determinada, nunca necessária.