domingo, 30 de março de 2014

livro: Pensar de outra maneira - a partir de Cláudio Ulpiano






SUMÁRIO
Um estilo (co)inspirando a vida - Mário Bruno
Aventura involuntária: sentidos e devires em Gilles Deleuze - James Arêas
O problema dos três corpos - Tatiana Roque
Pensamento, imanência e dança - Maria Cristina Franco Ferraz
A fenomenologia e a noção de plano de imanência no Rio de Janeiro - Paulo Domenech Oneto
Dobras barrocas e desdobramentos contemporâneos - Ana Lúcia M. de Oliveira
Repartir num espaço aberto: condições de compossibilidade - Mário Bruno
A guagueira e a arte poética em Deleuze - Guilherme Castelo Branco
Nos labirintos do tempo - Maria Helena Lisboa da Cunha
O fora como o (não-)espaço da literatura - Tatiana Salem Levy
A máquina abstrata de rostidade - notas sobre artes, literatura e filosofia - Michelle Nicié
De uma saudade - André Queiroz
A aula: o afeto - Luís Carlos de Morais Júnior
O agenciamento-Cláudio - Elton Luiz Leite de Souza
Devir deficiência: pragmática e subjetivação: para uma ética do acontecimento - Lilia Ferreira Lobo
O trabalho como objeto histórico - Jô Gondar
Uma experiência com a potência do falso - relato de um curta metragem - Eduardo Goldenstein
Cláudio Ulpiano: o filósofo do anexato - Auterives Maciel
Em memória de Cláudio - Silvia Ulpiano
Uma nova imagem do pensamento - Cláudio Ulpiano

sábado, 29 de março de 2014

sumário do livro







Inventar aumenta o mundo.
Manoel de Barros

SUMÁRIO

LISTA DE ABREVIATURAS , 5

INTRODUÇÃO , 7

- PRIMEIRA PARTE: A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA DO DESLIMITE , 18

1. A Expulsão do Poeta da República da Razão: o problema da Mimese , 18             
A quem deve pertencer a coroa do reino da linguagem? / A Sensação não cabe em
uma forma / A linguagem como espelho do Real / O problema da Diferença / A
razão como cocheiro / Arte egípcia X arte grega

2- Estética da Forma e Estética do Deslimite, 38
Experiência e Experimentação / Espírito Clássico e Espírito Romântico /
Geofilosofia / Caos-Germe: a luta contra os clichês / “Inventar aumenta o
mundo”

- SEGUNDA PARTE : UMA DIDÁTICA DA INVENÇÃO , 60

1- “Retrato quase apagado em que se pode ver perfeitamente nada” , 60
O imperceptível / Um sujeito larvar / Espaços lisos / Rebeldias

2- Ninguém pode “passar régua” nos Territórios Existenciais , 66
Da subjetividade / Da necessidade de aprender a desaprender/ Uma fonte que se
alimenta de escuros

TERCEIRA PARTE: O DESLIMITE DA NATUREZA , 72

1- Desformar a natureza , 72
O instinto lingüístico / O deslimite / Ordinário, extraordinário

2- Ignorãças , 80
Individuação e poesia / “Nadifúndios”/ A arte de ser com as coisas/ Devir,
Repetição e Diferença / A arte de ser Outro / Inventar comportamento

3-Olhos de descobrir , 101
Transver o mundo / Devir-Criança / O que pode um corpo?

QUARTA PARTE : O DESLIMITE DA PALAVRA , 111

1-Da Pragmática , 111
A Língua / Representação e expressão / A quarta dimensão da linguagem: o sentido

2- O agramatical , 120
Um devir-outro da língua / Empoemar as palavras / O delírio é uma sensatez

3- O reino da despalavra , 127
O afeto / Desarrumar a cartilha, errar a língua

CONCLUSÃO: O VOO INTERROMPIDO POR UM PONTO , 134


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS , 144

quinta-feira, 27 de março de 2014

ensaios de pop'filosofia 3



(trecho do livro)


                                                   O PEQUENO SOL 
 Para brilhar e ter luz própria
é preciso ter caos dentro de si.
Nietzsche


Um dia, à arvore que  o inverno desprotegia, e a fazia crer apenas em gelo  , frieza e melancolia , um dia à essa árvore uma nuvem imprevista fez cair , perto de suas raízes, um raio de sol. E este beijou o extremo das raízes quase secas, que estremeceram,   fazendo renascer nelas a  memória de uma primavera já quase esquecida. Embora tão diminuta fosse aquela faísca de vida, a árvore sentiu-se aquecida, e percebeu que um novo fruto ainda podia, de suas entranhas,  nascer. E sob aqueles dias frios ainda ela fabricou, dentro de si, um pequeno sol.










quarta-feira, 26 de março de 2014

poética da existência


Na ponta do meu lápis só tem nascimento.
Manoel de Barros

A alma humana possui atividades que lhe são imanentes.Estas atividades receberam o nome de “faculdades”. Há dois sentidos para a palavra faculdade. O primeiro deles é o mais conhecido: imaginação,razão,vontade,memória, sensibilidade, etc., são as principais faculdades nesse primeiro sentido mais comum e variado. Existe ainda um segundo sentido,no qual a palavra faculdade designa atividades mais específicas. Nesse segundo sentido da palavra faculdade temos o Conhecer, o Agir, o Sentir e o Fazer.Este segundo sentido da palavra faculdade determinará a relação das faculdades no primeiro sentido. Por exemplo, quando se trata do conhecer é a razão, ou a inteligência, a faculdade que terá a preponderância sobre as outras, pois o conhecer nasce quando a razão comanda ou subordina as outras faculdades. No agir,por sua vez, é a vontade a faculdade que comandará as outras.No sentir e no fazer a faculdade principal é a sensibilidade, que é a faculdade mais complexa e rica de todas,uma vez que ela está ligada intimamente à vida do corpo.
Algumas disciplinas nascerão dessa “especialização” do termo faculdade no segundo sentido. Do conhecer nascerá a epistemologia ou teoria do conhecimento.O agir ensejará duas disciplinas: a ética e a moral. Já o sentir  dará nascimento a duas disciplinas: a estética e a poética. A estética estuda sobretudo como a obra de arte nos afeta ( a questão do “gosto”nasce daí),ao passo que a poética estuda como a obra de arte é feita. A estética fala da arte a partir sobretudo do espectador,já a poética pensa a arte sob a perspectiva do criador. Uma coisa é a estética do teatro,outra coisa diferente é a sua poética. Muito se fala da estética da pintura, de tal maneira que todos querem ter uma opinião, um gosto,sobre o que um determinado pintor quis dizer,mas pouco se pensa sobre o "como”, isto é, acerca da maneira como  a obra foi feita, e sua feitura nada tem a ver com as opiniões do artista, tampouco este produziu sua obra para contentar o gosto da época. Ao contrário,muitas vezes uma obra sobrevive  à opinião demeritosa que recebera do gosto  estético que vigorava em determinada época :  a mesma obra que hoje leva multidões ao museu ou à galeria, em sua época a opinião ou o gosto estabelecido a condenava à morte ou à solidão...Vermeer,por exemplo,foi condenado pelo gosto artístico da época, que era aficionado pelas marinas e desprezava as cenas íntimas que Vermeer pintava.Para a alegria da arte, a obra sobrevive , embora muitas vezes não sobreviva às dificuldades aquele que produziu a obra.
 Como diz Espinosa, somente podemos compreender verdadeiramente uma coisa, não importa qual,  se compreendermos como essa coisa foi produzida,e não apenas entrando em contato com ela já feita .
Quando se trata do conhecer é a razão que comanda. No agir, é a vontade. E quando se trata do   sentir? O sentir é tão rico e vivo que, nele, não há exatamente comando de uma faculdade sobre as outras.O que há é uma relação heterogênea na qual cada faculdade no primeiro sentido,mesmo a razão, se descobre como criadora. Então, no sentir não é exatamente a imaginação que comanda,embora ela possa ter, e tem, um papel  decisivo.
Mas faltou falar de outra atividade da alma não mencionada: o pensar. O pensar não é a mesma coisa que o conhecer. Um traço expressivo caracteriza o pensar: este é sempre um questionar. Quando questionamos o que conhecemos ( ou o que nos dizem que é importante conhecer), e não apenas o aceitamos passivamente, dessa maneira pensamos.Quando questionamos como as pessoas agem , também estamos pensando.E quando questionamos o que sentimos e fazemos, também é  pensando que o fazemos. Enfim, o pensar é uma atividade que se diz e se faz em apenas um sentido. E este sentido é inesgotável, como o é a própria vida.O conhecer depende da razão,o agir depende da vontade,mas o pensar não depende de nenhuma faculdade específica: ele não se insere exclusivamente nesta ou naquela faculdade, uma vez que o pensar se insere diretamente na vida,em um modo de vida.O pensar é expressão de um todo, e nunca de apenas uma parte tomada isoladamente. É por isso que ele não é atividade que possa ser comandada por apenas uma faculdade.
Por vezes, o conhecer pode perder o seu caráter de processo e se congelar em metodologias, o mesmo pode ocorrer com o agir, quando ele fica enrijecido pelos comandos morais ou jurídicos. E mesmo o sentir pode se tornar algo parecido a   um clichê que se propaga de forma padronizada.Todavia,o pensar é sempre um processo, um devir,uma potência.Segundo dizia Nietzsche,o pensar é   como o vento do degelo que faz derreter as geleiras mais enrijecidas: ele as torna  novamente fluxo,rio, tempo, devir.
 O pintor pensa por e com as  imagens,o músico pensa por e com os sons;ele pensa com o corpo, enfim. Manoel de Barros dizia que ele escreve com o corpo. Poesia é para ser incorporada, e não apenas “mentada”,dizia ele. Os grandes cientistas também foram, antes de tudo,pensadores, e assim inovaram a física, a matemática, a biologia, etc. Eles não apenas conheceram: eles questionaram o que era aceito como sendo já conhecido. Eles introjectaram vida no conhecer, assim como Glauber introjectou vida na imagem, e Clarice introjectou vida na palavra, e Rodin introjectou vida na pedra, e Tunga introjectou vida no aço com suas instalações. Nada é refratário à vida quando se pensa.
A poética trata do fazer,ao passo que a ética diz respeito ao agir,ao agir humano. A poética pensa as obras, o “como” das obras; a ética  pensa sobretudo a liberdade:como agir sem ser de forma  submissa?O extraordinário acontece quando o agir e o fazer se agenciam,quando a ética e a poética contraem núpcias.Desse agenciamento pode  nascer a seguinte questão: e quando a obra a ser criada é a nossa própria vida? Como devemos agir para produzirmos?Quando isso acontece,nasce o desejo de que nossa vida seja , antes de tudo, uma invenção,uma criação,e não apenas uma imitação ou clichê.  Será que uma vida vale a pena ser vivida se não for como uma obra de arte que se inventa e produz?

Foucault chamava de “estética da existência” essa necessidade de fazermos de nossa vida uma obra de arte. Espinosa nos fala de uma “poética da existência”. E dessa mesma poética nos falam Epicuro,Nietzsche, Deleuze...E não são poucos os que não apenas falaram dessa poética da existência,como  também a fizeram e a fazem.



Vermeer,Alegoria da Pintura (1666 – 1667)
 óleo sobre tela /120 × 100 cm
Kunsthistorisches Museum, Viena, Áustria

quinta-feira, 20 de março de 2014

de que são feitas as narrativas

                                     A IDEIA DE  NARRATIVA E SUAS ORIGENS

Quando a forma predomina,
desaparece o sentimento.
Balzac

A  narrativa é um fluxo, como um rio.Mas não é como um rio de corredeira, que carece de  paradas.Uma narrativa possui  momentos de parada e deleite. Ela deve ter  um ritmo, e todo ritmo nunca é homogêneo. A narrativa congrega o contínuo e o descontínuo em sua linha que nunca é reta. E é por isso que ela pressupõe o tempo bem  como espaços que não são apenas físicos,pois há espaços de afetos, espaços de memória,espaços de sonho. Uma narrativa nunca está  totalmente subordinada ao  tempo objetivo do relógio. Uma narrativa produz seu próprio tempo,que é chamado de tempo diegético, que é o tempo que a própria narrativa produz.Por exemplo, a visita a um museu pode durar  certo tempo no relógio,mas a exposição enquanto narrativa pode nos fazer ir ao passado longínquo,bem como  a um futuro apenas vislumbrado.
 E é por ser assim que toda narrativa pressupõe um encontro. Os tiranos não narram, e os loucos perderam essa capacidade de narrar .Todavia, mesmo estes  são capazes ainda de narrar, como mostra muito bem o Museu do Inconsciente, que além das conhecidas funções atribuídas a um museu (Pesquisar, Preservar,Comunicar e Educar), também exerce  outra função : “Curar”.Com o auxílio da arte, empregando as variadas formas  de narrativa que a arte possibilita,muitos internos conseguem conquistar significativas melhorias em seus estados clínicos.E  o processo de “cura”que eles conquistam também nos ensina acerca de nossos próprios dramas e conflitos.
 Narrar não é apenas informar. O tão requisitado Google, o “Dr. Google”, certamente pode informar, com textos e imagens,bem como com sons, mas ele não é capaz de fazer uma narrativa. Qual a voz do Google? Do que ele se lembra? Ele tem memória? Desejo? E o mais importante:ele tem uma virtualidade inconsciente que pode surpreender  a ele mesmo? O Google nunca poderia dar uma aula ou realizar uma exposição , pois aula e exposição  devem ser  narrativas , e não apenas imagem e texto projetado ( os quais se copia).
Realizar  uma narrativa também não é meramente ordenar e classificar objetos e documentos (como nas exposições taxionômicas, mais comuns em certos tipos de museu de ciência),mas inventar para eles uma ordenação dotada de um ritmo e disposição que os faça existirem em composição, agenciados.
A idéia de narrativa possui dois mitos principais: o Fio de Ariadne e Eco e Narciso.De maneira simbólica, esses mitos tocam em questões que devem estar presentes na concepção de uma exposição enquanto narrativa .

- O fio de Ariadne
O mito do Fio de Ariadne envolve um enigma como fundo:o labirinto. Toda narrativa,portanto, tem como fundo um enigma,enigma este que se quer vencer e transpor pela criação de um sentido que nos conduza.Além do labirinto, o mito em questão fala de mais dois personagens.Mais do que meros personagens, são dois símbolos,são duas possibilidades que podem surgir na existência humana.
O primeiro personagem/símbolo  é Teseu.Este  representa a racionalidade simbolizada pelo homem como padrão.Teseu anda sempre firme, não dá um passo sem planejar antes onde pisa e como pisará.Teseu teme o imprevisto, e evita tudo o que não cabe em uma forma. Teseu quer a tudo dominar com régua e compasso. Seu caminho é feito de estradas retas , às vezes curvas.Mas raramente ele salta ou sai para “andar atoamente”, como diria Manoel de Barros.Por isso, Teseu tem horror ao labirinto, ele teme os enigmas e mistérios  da vida.
O outro personagem é o Minotauro, que é também um personagem simbólico.Um dia, uma vontade nasceu em Teseu: matar o Minotauro. Este era um ser híbrido: nem homem e nem touro, mas a soma dos dois, cujo todo fazia nascer um ser diferente do que a mera soma das partes.E era isso que o fazia um monstro: ele não era uma coisa ou outra, porém as duas ao mesmo tempo, e esta coisa que ele era não se podia classificar segundo um conceito.Um ser deste somente podia morar em um labirinto. Onde todos se perdem: era aí que o Minotauro se sentia em casa...Minotauro representa os aspectos animais da passionalidade: a violência,o ódio, a fúria,etc.Ele é o que os psicólogos chamam de a parte irracional do homem.No campo coletivo e social, é essa parte que gera a guerra , a intolerância ,enfim,a  violência ( tanto a física quanto a simbólica,como o preconceito ou a discriminação, por exemplo).




 Labirinto de vidro ( Mostra de Arte Carioca/2012).Instalação produzida com placas de vidro transparente temperado.Local:Cinelândia, Centro do Rio de Janeiro.


Simbolicamente, o labirinto representa a vida em suas múltiplas e infinitas direções possíveis, direções estas que não podemos seguir ao mesmo tempo,pois devemos fazer escolhas. O labirinto é o fragmentar de uma reta, e é por isso que ele choca. Ele é o fragmentar infinito de uma mesma reta que não leva mais a nenhum lugar.É por isso que o centro do labirinto não é como o centro de um círculo ou como o centro de uma caverna, uma vez que ele não é um centro que abriga ou protege. O labirinto não nos permite conhecer para onde se vai ou de onde se veio. Há apenas o desejo de se sair dele, sem se saber os meios. Pois o que poderia ser um meio para dele se sair, pode ser um meio para nele entrar e se perder: pensando estar indo para fora dele,podemos no entanto estar indo para o seu temível centro.
O Minotauro mora no centro do labirinto.Quem descobre o centro do labirinto, encontra o Minotauro. E ninguém sabe como este monstro se comportará, assim como ninguém controla totalmente seus impulsos instintivos. Mas os instintos fazem parte da vida, fazem parte do aspecto profundo da vida,ao passo que a consciência e a inteligência são criações mais recentes da vida ( e,por isso,mais frágeis quando comparados à força cega dos instintos).Ligados umbilicalmente, um homem e uma besta, um homem e uma fera: é isto o Minotauro... E os dois formam um só. Isto devora e nos devora: devora o que em nós é homem. É a isto que Teseu não tolera, este um feito de contrários que o Minotauro é, pois isto impede, segundo ele, a distinção do Bem e do Mal, do Racional e do Animal, enfim, da Lei e da Força.Mas o que Teseu desconhece é que tanto ele quanto o Minotauro são aspectos da vida: o animal fundido com o homem, com o predomínio daquele; o racional junto ao animal, com aquele reprimindo este. Teseu pensa que pode vencer o Minotauro, e de fato o poderia se o encontrasse em céu aberto, sob a luz do sol da Razão. Todavia, Teseu ignora que não pode vencer o labirinto.O impede de vencer o labirinto exatamente a arma da qual ele extrai seu poder: o conhecimento retilíneo, racional.Para entrar no labirinto , Teseu teria que se despir de sua lógica. Entretanto, se isto ele fizesse, ficaria Teseu sem seu escudo e sem sua arma.
Então, o salva um terceiro aspecto da vida: Ariadne. Em grego, Ariadne provém de um termo que significa “aranha”. A teia da aranha é uma espécie de labirinto onde a aranha aprisiona suas presas. Assim, Ariadne é uma produtora de labirintos, e é por isso que ela o conhece bem, pois conhecer uma coisa é ser capaz de produzir a idéia que nos permite conhecê-la. Ariadne não está presa dentro de um labirinto, tal como o está um prisioneiro dentro de uma cela, sobretudo se este prisioneiro ignora a prisão e imagina que a cela o torna forte pelo fato de ninguém conseguir sair dela, tal como acontece com o poder do Minotauro, que é o mero poder da destruição; tampouco Ariadne vive o labirinto como se fosse um meio externo que a limitasse . Artista, ela conhece como se produz um labirinto, e sabe que para vencer um labirinto é preciso um fio, uma linha. Não uma linha que se traça com esquadro ou régua, mas uma linha que se desprende de um novelo, e que permanece ligada a este, tal como permanece ligado o produto ao seu produtor, o raio à fonte de luz, os atos ao seu autor, o rio à sua nascente. O novelo é uma virtualidade da qual a linha nunca se separa, o que faz dela uma linha de fuga,como diziam  Deleuze e Guattari.
 Entre o racional de Teseu e o irracional do Minotauro está Ariadne como expressão da Arte.Somente esta sabe como se vencer o irracional. Este é vencido pela construção de uma narrativa que,sem negar o mistério do labirinto, nele se entra e dele se sai, uma vez que o fio da narrativa está preso a um novelo. Ao contrário da linha reta, que começa e termina em um ponto,o fio da narrativa está preso a um novelo, que simboliza uma memória e uma identidade coletiva,ou seja, todo um reservatório de possibilidades para se dar sentido à vida. Por isso, uma narrativa nunca termina, pois basta puxar o fio que ele,o fio, se estende ainda mais. É por isso que toda boa narrativa nos leva a querer ouvir mais narrativa, além de nos despertar também o desejo de narrar. É com o fio de Ariadne que Teseu, desperto, entra no labirinto e mata o irracional enquanto este dormia. O fio de Ariadne, fio do afeto, permite a Teseu entrar e sair do labirinto, sem morrer ou enlouquecer. Porém, Teseu apenas seduzira Ariadne, pois logo a abandona quando consegue lograr seus intentos neuróticos( a neurose representa ,segundo a psicanálise, a dificuldade do racional em se relacionar  com os sentimentos:ao invés de lidar com eles, o neurótico os reprime,o que acaba gerando apenas sofrimento interno, apesar de uma aparente situação de “controle”).
 Todavia, por muito tempo não chorou Ariadne, pois logo a desposa Dioniso, o Deus cujo nome seu poder revela: Di-oniso, “aquele que nasceu duas vezes”,onde o segundo nascimento, que é em verdade um renascimento, explica e dá sentido ao primeiro nascimento.Enquanto não se renasce, renascer nesta vida onde nascemos e não noutra, o primeiro nascimento permanece obscuro, sem sentido, um mero viver ao sabor do que acontece.O renascer não é uma outra vida: mas potencialização da Vida que nasce, renovada, de si mesma.Em toda narrativa a realidade renasce e ,através do relato, aprendemos mais acerca da realidade e sobre nós mesmos.

- Eco e Narciso
Eco era uma ninfa que possuía o dom de contar histórias. Estas histórias prendiam a atenção,ao mesmo tempo que transportavam quem as ouvia para uma realidade que a própria narrativa tecia.Nessas narrativas havia imaginação,memória,sonho, fantasia, e não apenas informação.Querendo tirar proveito desse dom, Zeus certa vez pediu a Eco  que esta deleitasse sua esposa, a deusa Hera, com suas narrativas. Zeus tinha como intenção fim escapar da ostensiva vigilância de sua esposa.
Então, deu-se o combinado:todo dia Eco vinha visitar Hera . Ao ouvir as narrativas de Eco, Hera se esquecia de tudo,inclusive  de seu esposo.E assim se passaram vários dias.Eco fazia o que também fizera Sherazade. Esta vivia em uma aldeia onde o Sultão, o homem mais poderoso dali, fora traído por sua noiva  às vésperas do casamento.Como vingança, ele resolve se casar com todas as jovens da aldeia,uma a uma . Após a lua de mel, ele proferia uma sentença de morte e as matava antes de o dia amanhecer.Assim, ele matou inúmeras mulheres. Até que chegou a vez de Sherazade. Quando o Sultão se preparava para matá-la, ela lhe pediu para contar uma história. Em princípio,o Sultão aceitou com má vontade ouvir o que a Sherazade tinha a lhe contar, e ainda ordenou que ela fosse breve, pois o dia já estava amanhecendo e ela , Sherazade, não veria a luz do sol.Mas o Sultão ficou tão entretido com a narrativa,que não reparou que um novo dia já estava nascendo. Sherazade pede então para interromper a narrativa e retomá-la no dia seguinte. Embora contrariado, o Sultão aceita. Pela primeira vez, alguém saía vivo do encontro com ele, que era a encarnação do poder.No dia seguinte, ela prosseguia com a história e logo a emendava com outra.Atento, o Sultão parecia se transportar para aquela vida tão viva, e o fazia esquecer-se da dele. Logo novamente o dia amanhecia antes de uma história acabar, e Sherazede pedia para retornar depois para prosseguir no relato. Novamente o Sultão concedia , e assim Sherazade vencia a morte.
E assim se passaram 3,7,10, 100,1001 noites...Com  o poder de sua imaginação e arte, Sherazade vencia a morte e o poder.Simbolicamente,toda narrativa visa vencer a morte em seus vários aspectos e sentidos,inclusive o esquecimento,que é também uma espécie de morte.




Sherazade (2008), de Sami Hilal. Local: Palácio das Artes, BH.
Na obra,a idéia da continuidade da narrativa é expressa pelos livros  que continuam uns nos outros ,mostrando uma unidade nascida da heterogeneidade.
O movimento sinuoso dos livros ligados uns aos outros evoca o fluxo de um rio.
E o rio é um dos símbolos do fluir do tempo.    

A história de Eco lembra a de Sherazade. Eco entretinha Hera todos os dias com suas narrativas cheias de cores,emoções,acontecimentos, suspenses. Um dia, porém, Hera desconfiou que Eco  estava ali a pedido de Zeus, que com isso conseguia escapar de seu lar.Então,Hera resolveu se vingar de Eco. Para alguém com o dom de Eco,o dom de narrar e criar histórias, a pior maldição que pode ocorrer não é exatamente ficar mudo ou perder a voz, a pior maldição foi aquela que Hera lhe fez cair: Hera não tornou Eco muda. Ela ainda continuaria com sua voz. Mas Hera cortou os fios que ligavam sua boca à sua alma. Assim,Eco somente poderia falar se alguém puxasse conversa com ela. Ela não teria mais autonomia para retirar as palavras de sua imaginação e memória. Ou seja, as palavras de Eco seriam apenas a repetição das palavras dos outros: uma palavra que apenas imita, e não cria.
Triste, Eco veio se esconderem uma floresta. Ela estava atrás de um arbusto quando viu então um jovem muito belo cujo nome era Narciso.De imediato,Eco se apaixonou por Narciso.Ela queria falar , mas não conseguia.Embora as palavras estivessem em seu coração,não havia mais caminho até à boca, pois Hera destruiu esse caminho.Inadvertidamente, um movimento de Eco vez com que um galho do arbusto mexesse. Narciso voltou-se e indagou: “Quem está aí?”.Atrás do arbusto ouviu-se uma voz dizer: “Quem está aí?”.Narciso prosseguiu: “Se você não aparecer eu vou partir”. Atrás do arbusto a voz repetiu: “Se você não aparecer eu vou partir”. Imaginando que era alguém zombando dele, Narciso deu de ombros e se foi. Sentida, Eco foi esconder-se em uma caverna. Sempre que alguém entra em uma caverna e chama por ela, Eco responde: faz-se o eco.
Mas Narciso não acaba bem. Sabe-se que Narciso tinha uma triste característica:  pensava apenas em si mesmo e desprezava  o sentimento  dos outros.Ele se achava o umbigo do mundo.Porém,certa vez a própria Afrodite se apaixonou por ele. Narciso, contudo, também não dera atenção a Afrodite.Esta então lançou-lhe uma maldição.
Certa vez Narciso foi atravessar um lago profundo. De repente,ele viu alguém que despertou,pela primeira vez,sua atenção e interesse. Era a primeira vez que Narciso tinha sua atenção voltada para algo que não era ele próprio.E o ser que ele via o atraía fortemente.Pela primeira vez ele percebeu o quanto errou ao desprezar o interesse alheio por ele.Uma insegurança começou a tomar conta dele, uma insegurança nascida do desejo de agradar em agradar o outro e também ser correspondido. Ele toma coragem e resolve acenar para o ser que ele via. Este também acena para ele, e este aceno correspondido fez a alegria de Narciso. Ele resolve então sorrir para o ser que ele via, e este também sorri para ele. “Como é bom amar e ser amado”, pensou Narciso antes de esticar a mão em direção ao ser que ele via. E este também esticou a mão para Narciso. Quando Narciso enfim ia tocar a mão do outro , seus dedos tocaram a superfície do lago.O que Narciso via era apenas o reflexo dele mesmo projetado na fina lâmina do lago. Narciso se apaixonou por sua aparência. Ele ficou embevecido por ela, como se ela fosse outra pessoa. Ele nada mais via a não ser a ele próprio. Mas ao mesmo tempo algo dizia para ele que aquela imagem era um nada.E essa percepção o fazia sofrer de forma profunda. Entre seguir sua vida e se unir ao nada daquela imagem, ele optou por se atirar no lago atrás da própria imagem que ele, no entanto,  atravessou.
Narciso representa o oposto de Eco, antes de essa ter sua boca cortada de sua alma. Incapaz de qualquer relação com o outro, fechado apenas na contemplação de si mesmo, Narciso representa o museu tradicional  fechado em sua própria coleção, em seu próprio mundo,contemplando apenas a si mesmo, incapaz de estabelecer uma relação dialogada com o outro, com a diferença.



Narciso (2006), obra de Vik Muniz ( releitura da obra de Caravaggio).Material empregado para a composição: sucatas.






quarta-feira, 19 de março de 2014

exercícios clínico-poético-filosóficos

                          
                          EXERCÍCIO PARA PARAR  DE FALAR MAL DOS OUTROS


Mais numerosos são os que  se tornaram bons pelo exercício
do que pelos bens que herdaram.
Demócrito
                                                                                                                                                     

Não levo a sério quem ainda não aprendeu a rir de si mesmo.
Nietzsche


Como todo exercício, este requer esforço e paciência,bem como um estar de acordo com aquilo que se deseja.Neste exercício , porém , só há  uma exigência: ter senso de humor.E não adianta  trapaça ou  dissimulação,pois não é um jogo para derrotar  ou rivalizar com A ou B, tampouco há um “mestre” ou “personal” que o execute  antes como modelos para  seguirmos. Ao contrário da academia,onde se paga e se pode não ir, este exercício é gratuito , ele é conquista da Graça, e só depende do interessado a sua obediência e execução, daí sua maior dificuldade de realização, pois ele exige que estejamos inteiros e não pela metade: ele não tolera a preguiça em sermos.
 Assim como algo em nós pode resistir  quando começamos  um exercício físico buscando a nossa saúde, também pode aparecer  uma reatividade  em nós como obstáculo para que nós mesmos paremos de falar mal dos outros . A força dessa reatividade é proporcional à vida que ela consegue furtar daqueles que a denegam, fingindo que ela não existe, bem como daqueles que a aceitam como uma espécie de “vício original da natureza humana”.Assim, justificam  a recusa a buscar a saúde em nome de uma pretensa doença que já nos condena a priori. Mas esta força reativa extraí sua força de nossa fraqueza, fraqueza esta que nos leva mais a odiar e temer a doença do que a amar e buscar a saúde.
Devo dizer que eu mesmo venho praticando este exercício,para assim honrar os livros e os professores que admirei e admiro, para que o contato com eles não tenha sido  apenas tempo desperdiçado com  erudição estéril. Eu ainda sou um aprendiz, um esforçado aprendiz nesses desaprendizados.
Primeiramente, deve-se começar a parar de falar mal dos outros lá onde está a parte mais visível e audível  desse ato: a fala. Para os que falam muito, este ponto é o mais difícil, pois há prazer envolvido, prazer em falar, para não dizer compulsão: neste caso, o falar mal dos outros é um apêndice, uma “especialização”. Então, o ponto inicial do exercício é calar ou se esforçar para tal quando nascer a vontade de falar mal de alguém. Mas não se deve simplesmente calar de imediato,pois a repressão nada consegue nos assuntos que envolvem a liberdade, pois parar de falar mal dos outros não é fruto de uma repressão , e sim da liberdade. Contudo, isto só percebemos no meio do processo de cura, e  este processo só possui meio, nunca fim( não é uma corrida ou disputa com prêmio e medalha no fim, para que todos falem bem de nós...).
Então, continue a falar mal dos outros com alguém, pois é impossível parar de todo esta prática, para não dizer vício. Em princípio, você deve continuar a falar mal dos outros com a pessoa que você mais deveria  confiar, aquela que deveria ser a sua melhor amiga, aquela que mais lhe acompanha, inclusive quando você está só. Mas para chegar até esse ponto, pare de falar mal dos outros na frente de sua esposa ou esposo, de seus filhos, de seu namorado ou namorada, de seus pais, de seus alunos ou professores, de seus amigos e amigas... Pare de falar dos outros na frente de todos estes, e se recolha a falar mal dos outros   apenas para e com você mesmo. Mas não apenas fale:também escute.Estranho, muito estranho: será um falando e outro ouvindo...E os dois serão você mesmo.Todavia,o início da “cura” está na sua escuta: a libertação do falar mal terá início quando aquele que se escuta não suportar mais ouvir-se. E não importa também se você tem razão ou não, pois os que falam mal dos outros sempre acham que têm razão. Este é o ponto mais decisivo:libertar-se da vontade de ter razão.
E aí vem o segundo ponto do exercício: será que você mesmo vai aturar a você mesmo nesses arroubos solitários de razão? Esse ponto do exercício é o mais difícil , pois é o ponto no qual o maldizente requer de si mesmo ser um bom ouvinte, um bom ouvinte das mazelas que se supõe possuir os outros. Será decisivo haver um avanço nessa etapa, embora  pouquíssimos passem além desse ponto, e os mais afoitos já começam a contar vantagem e proclamar vitória antes de realmente vencer essa etapa (e estes são os que mais amam falar mal dos outros, a tal ponto que desistem do exercício e passam a falar mal de si mesmos, inclusive falar mal de si mesmos na frente dos outros, antes que os outros o façam). Enfim,é difícil a cura...
Mas se houver o mínimo de amor a si mesmo, chegará um ponto em que se perceberá a inutilidade de se falar mal dos outros, tanto diante dos outros quanto diante de si  mesmo. E será você que deve aprender isso com você mesmo.E por esse aprendizado se deverá ser grato, mesmo àqueles que hipoteticamente nos fizeram algum mau.
Este é o momento onde se compreenderá que o falar mal dos outros não nasce na boca,mas no pensamento . É lá na forma como se pensa que nasce o ódio. As razões de o ódio ali nascer são muitas,  inclusive o ódio a si mesmo, ódio inconsciente,  projetado no ódio aos outros.
Chegado a esse ponto, com paciência se perceberá que se poderia estar pensando tantas coisas e fazendo tantas outras, ao invés de se estar pensando mal dos outros. E se perceberá ainda que o que nos impede de pensar tantas coisas afirmativas,bem como fazê-las, não são os outros, mas nós mesmos. E será uma vitória sobre si mesmo se quem lhe disser  isto for você mesmo, mas sem que isto seja um ato de ódio para consigo mesmo, mas de compreensão e aperfeiçoamento,como autoconhecimento.Já não se sentirá sozinho consigo quem ouvir isto de si mesmo, pois terá em si mesmo um amigo , amizade esta que poderá viver com os outros, sobretudo aprendendo que criticar não é odiar, seja aos outros ou seja a si mesmo.
Chegado a esse ponto do exercício, já se compreende seu processo e efeitos, embora o mais importante seja a causa.Não são os outros que são a causa de nós pensarmos mal, somos nós mesmos a causa ou a causa parcial disso, pois pensar o mal já é pensar mau, ensina-nos Espinosa.Por outro lado, não existe “pensamento positivo”, a não ser como um pleonasmo, pois pensar já é afirmativo, e isto também depende mais de nós mesmos do que dos outros, seja este outro um mestre ou um livro, embora sejam decisivos os encontros, a começar o encontro consigo mesmo.

  Mas perderá tudo quem cantar vitória antes do dia  de amanhã. E  ainda para chegarmos até o amanhã é preciso que nos libertemos do ontem, do passado, do que passou.E isto só o poderemos se abrirmos uma pequena porta, uma pequena fresta que seja, uma fresta em nossa alma, através da qual  possamos ver e perceber o que realmente é eterno.


sábado, 8 de março de 2014

ensaios de pop'filosofia 2




           


À memória de Cláudio Ulpiano

(trechos do livro)



                DA RECUSA DAS CRIANÇAS EM PENTEAR O CABELO


     A natureza da alma é semelhante ao vento.

                                       Anaximandro


O pensamento é tal qual um vento que bate desfazendo o penteado de nossas certezas prontas, desarrumando o arrumado de nossa aparência prevista.
Talvez por isso mais próximo do pensador está a criança que se rebela contra o pente e contra a mão que com ele se arma, querendo moldar-lhe o fluxo solto dos cabelos conforme uma intenção disciplinadora.
A criança  que foge, com o cabelo em desalinho, de sua mãe com o pente em punho, assemelha-se ao pensador que escapa , com seu pensamento, da maneira de pensar e sentir dominantes e das formas acadêmicas de se fixar e dogmatizar o pensamento. 
Enquanto que o adulto  tem no seu penteado-opinião a fixidez arrumada à maneira de uma identidade que se quer fazer conhecer ( para os outros e, sobretudo, para si mesmo), a criança, ao contrário, faz do não-penteado a imagem  inocente do seu cabelo-devir.

                                                                    Para a pequena Maria Vitória.




                                    O POETA E O ECONOMISTA*
                                                            Ao amigo Carlos

Cinco doentes terminais se encontravam numa enfermaria. Cada um em sua maca, todos gravemente doentes. Havia nessa mesma  enfermaria uma pequena janela, única comunicação com o mundo  exterior . Diante da janela cabia apenas uma maca. E nesta maca ficava um dos doentes , a olhar o dia inteiro para fora. Ele passava todo o tempo descrevendo , aos outros pacientes, o que ele via através da janela. “Daqui vejo um grande mar azul e sereno, posso também sentir o aroma de sua brisa. Vocês também conseguem sentir?”, perguntava ele aos outros doentes.  Apenas um dos pacientes dizia que não conseguia sentir, os restantes diziam que sim, que sentiam a brisa.
Prosseguia o paciente da janela: “Daqui também posso ouvir crianças brincando numa pracinha arborizada. Algumas brincam de bola, outras soltam pipa. Vocês também conseguem ouvi-las?” .Novamente o mesmo paciente que não sentira a brisa também não conseguia ouvir o riso das crianças brincando. Os outros três pacientes ouviam, mesmo que com muita dificuldade. Alguns recordavam  de seus netos, outros de seus filhos. E todos lembravam de si mesmos quando crianças. Assim, algo dentro deles sorria, brincava novamente.
“Daqui ouço também, no pequeno coreto de uma praça, uma bandinha tocando canções de amor, enquanto casais dançam celebrando a vida. Vocês conseguem ouvir a música?”. O único que não conseguia ouvi-la era o mesmo paciente que não conseguira sentir o aroma do mar e nem o riso das crianças. Os três restantes, ao contrário, não só a ouviam, como também se lembravam de bailes por eles vividos, onde cada um encontrou o amor de sua vida. Amor esse que , naquele momento, esperava por eles em casa.
Enfim, o paciente-rapsodo  passava o dia nessa tarefa de narração  dos simples acontecimentos do mundo, trazendo à presença dos pacientes aspectos belos do real de cada dia.  Essas descrições os animavam profundamente. Tais palavras não só os mantinham vivos, como também despertavam neles o ânimo de voltarem para a vida. Assim, eles suportavam melhor a doença que lhes sobreveio ─ arranjando forças para , quem sabe,  vencê-la. Muitos dias se passaram assim. E a vida, filtrada  através da percepção do paciente da janela, resplandecia novamente na memória e imaginação dos pacientes ouvintes.
No entanto, o paciente da janela era o mais doente de todos, não obstante a sua dedicação diária na descrição da vida que ele presenciava através da janela. Numa certa manhã, nenhuma palavra vinha de sua maca. Nunca mais viria nenhuma palavra : ele havia  morrido. A maca perto da janela ficou então vazia. Por esse motivo,  os quatro pacientes restantes queriam ir para esse lugar aparentemente privilegiado, para assim poderem contemplar aquele belo mundo que  o paciente ausente lhes descrevera. Mas havia  lugar para um paciente apenas.
Após deliberarem entre si, os pacientes chegaram à conclusão de que o paciente mais grave dentre eles deveria ser o merecedor da janela. O escolhido foi exatamente aquele que não conseguira sentir o que o paciente-narrador descrevera  da existência. Todavia,  ele poderia agora, ele mesmo, testemunhar toda aquela beleza, para assim reparti-la com os demais .
Contudo, quando o paciente foi colocado na janela, nada disse. Ficou mudo, fechou os olhos. Novamente os abriu. Porém,  não conseguia falar. Os outros pacientes estavam ansiosos para saber se havia alguma  novidade no mar, se novas crianças  apareceram...
Mas a única coisa que o paciente lhes disse foi: “Nada posso ver, sentir ou escutar. Pois em frente à janela não há mar, paisagem ou praça. Há apenas um muro cinza. Há apenas um  muro cinza”, repetiu.
No dia seguinte, um dos pacientes morreu. Dois dias depois , um outro. Ao fim de uma semana, apenas o paciente da janela sobrevivia. Mas ele também não durou  por muito mais  tempo.
O  primeiro paciente a ocupar a janela e descrever o mundo  foi, em vida,  um poeta. A seu pedido, seu corpo foi cremado , e  suas cinzas  lançadas no mar que banhava a sua cidade natal.  Ele, ao contrário do paciente que o sucedeu na janela, parecia conseguir ver  através do muro cinza, que era real também para ele. Mas o velho poeta pôde  de algum modo  transpor o  muro cinza com os olhos de sua imaginação e desejo, fazendo brotar esse mesmo olhar naqueles que o ouviam: estes também conseguiam sentir  e viver, de algum modo, o mundo que as palavras criavam. E o mundo visto através desses olhos também era, para eles que o  sentiam, real . Apenas um dos pacientes não conseguia sentir. E exatamente este viu a “verdade”, a objetividade, os fatos, nada mais que os fatos... “Diante da janela há apenas um muro cinza”.
O segundo paciente que ocupou a janela foi , em vida,  um economista. Administrou uma grande empresa de investimentos. Temia riscos, cortava custos, maximizava lucros.  Foi um  defensor intransigente do pragmatismo e da ciência objetivista. Esperava-o um mausoléu esculpido em mármore.
O muro cinza representa tudo aquilo que nos rouba a visão do horizonte, apequenando a nossa percepção das coisas e de nós mesmos. Nesses tempos de indigência, o muro cinza está por toda parte: na mídia, na escola, na política, enfim, diante de nossas janelas espirituais e existenciais.
Resgatando o sentido original da poesia, como “poiésis”, isto é: “produção” , acreditamos ser a poesia o elemento ao mesmo tempo didático e político para a produção de uma visão libertadora que possa, malgrado o muro, possibilitar-nos  uma  visão do horizonte.






* Essa história me foi contada. Tomei a liberdade de apresentar mais uma versão dela, alterando vários elementos.





                                               O NASCIMENTO DE BUDA


  

                                       O homem virtuoso nunca fica sozinho:
                                                    perto dele sempre se instalam bons vizinhos.

                                                                                       Confúcio



Preocupado com o futuro de seu filho que estava prestes a nascer, o poderoso rei foi consultar-se com o vidente de seu reino. Deste último, o rei ouviu o seguinte: “Meu senhor, o seu filho tem pela frente dois caminhos que ele poderá trilhar: o caminho da direita ou o caminho da esquerda. Se ele seguir o caminho da direita, ele terá muito poder, subjugará a muitos e será o dono do mundo; se ele seguir o caminho da esquerda, apenas de si mesmo ele será o dono  . É o senhor que deverá, agora, escolher o caminho que seu filho   seguirá...”. Sem pensar muito, o rei disse: “quero que ele tenha muito poder e seja o dono do mundo”. “Então, disse-lhe o vidente, cuide para que ele jamais queira conhecer a si mesmo.”
Quando o filho do rei nasceu, este último resolveu construir para o futuro príncipe  um imenso castelo. Dentro do castelo ele mandou instalar circos e teatros;  equipou-o também com uma quantidade fabulosa de servos e escravos, que  realizariam de imediato todas as vontades e desejos do futuro príncipe, preparando-lhe banquetes e festas sem fim . E para que não faltasse realmente nada ao futuro príncipe, o rei cuidou para que cerca de  duas mil esposas  lhe fizessem companhia  .
O objetivo do rei era zelar para que se cumprissem as palavras do vidente: o futuro príncipe deveria viver uma vida voltada única e exclusivamente para as coisas exteriores, entregue ao prazer imediato proporcionado pela fruição sem limites das coisas. Nunca ele perderia, jamais ele conheceria o insucesso; apenas elogios ele ouviria, nunca críticas. Todos seriam seus bajuladores e imitadores; ninguém seria mais famoso do que ele, e muito menos ainda alguém lhe superaria em inteligência e beleza ; às suas palavras, todos estariam de acordo: seu gosto seria a regra. Em tudo ele seria o maior campeão. E foi desse modo que, dentro do castelo , o futuro dono do mundo  cresceu e viveu.
 Todavia,quando os trinta anos estavam próximos, houve então um dia no qual  o jovem príncipe resolveu dar um passeio. Seria a primeira vez que ele sairia dos limites de seu castelo, para assim ver o mundo.
Mal a carruagem se afastou um pouco do castelo, uma cena chamou a atenção do jovem príncipe. Andando com muitas dificuldades, um homem se aproximou da estrada e estendeu a mão para o príncipe  enquanto a carruagem passava. O homem era espantosamente  magro e aparentava resignada aflição. A mão estendida era uma espécie de súplica endereçada à carruagem do príncipe. Junto ao homem estava  uma esquálida mulher, que trazia nos braços uma pequena criança igualmente esquelética. Assustado e sem nada compreender, o príncipe perguntou ao cocheiro o que se passava com aquela família. Sem parar a carruagem, o cocheiro então lhe respondeu: “meu caro príncipe, fique tranqüilo. O horror que está diante de suas vistas jamais vitimará ao senhor, que  tem muito poder e riqueza.  Saiba que isto que lhe choca as vistas  é a pobreza.”
Era a primeira vez em sua vida que o jovem príncipe via a pobreza. Embora assustado com a visão da pobreza, ecoavam em sua mente as palavras tranqüilizadoras do cocheiro.  “A pobreza nunca me pegará, pois tenho poder e riqueza”, repetia o jovem príncipe para si mesmo. 
Algumas semanas depois, novamente o príncipe manifestou o desejo de passear fora dos limites de sua propriedade. Nas cercanias do castelo, uma nova visão o aterrorizou. Ele viu estendido à beira da estrada um homem de pouco mais de trinta anos. O aspecto do homem era horrível. Muito magra e pálida, sua face transparecia dor e sofrimento. Enquanto a carruagem passava, o homem olhou fixamente nos olhos do príncipe, que desviou o olhar daqueles olhos quase já sem vida. Com fingida calma na voz, o príncipe perguntou ao cocheiro se aquele homem era mais uma vítima da pobreza. Contudo, mantendo o  rumo dos cavalos, o cocheiro lhe disse: “ meu senhor, do que acaba de ver, o senhor merece manter precaução. Embora seja difícil  acontecer com o senhor o mesmo fato, dessa desgraça , no entanto, nem mesmo o senhor está a salvo. Pois  o senhor acaba de ver a doença. Mas fique tranqüilo, o senhor é jovem, poderoso e saudável”.
A visão da doença o aterrorizou muito mais do que a pobreza, embora ambas fossem de uma fealdade monstruosa.  Da pobreza ele estava a salvo, mas não da doença. Pela primeira vez na vida, ele viu o limite de seu poder, pois uma inimiga poderosa se deu a conhecer: a doença.
Alguns dias depois, um novo passeio aconteceu. Não muito longe do castelo, uma outra cena  chamou a atenção do príncipe. Movendo-se mais lentamente que uma tartaruga, e apoiando-se em um trêmulo bastão, seguia junto à estrada um estranho homem . Caíram de sua cabeça quase todos os cabelos, e os poucos que restavam pareciam estar cobertos de neve, embora não nevasse ali; sua coluna estava arqueada como se um grande peso  o homem carregasse ,mas ele nada carregava. Sua pele estava toda talhada, como se alguém o castigasse com navalhadas,mas onde estava o seu impiedoso carrasco? Impressionado com tal cena , o príncipe perguntou ao cocheiro se aquele homem era vítima da pobreza ou da doença. Parando a carruagem, o cocheiro olhou para o príncipe e falou: “ meu caro príncipe, o que o senhor   vê é  o último porto ao qual todos aportarão um dia, inclusive o senhor. O que o senhor vê nesse homem é a velhice: os cabelos dele estão brancos porque o inverno da existência chegou-lhe para nunca mais ir embora; suas costas estão curvadas porque ele carrega o peso dos anos;  e aquelas marcas que parecem navalhadas, na verdade são as rugas feitas pelo carrasco-tempo”. “ E depois deste porto, o que vem?” , perguntou-lhe o príncipe. “Depois deste porto, meu príncipe, vem a morte. E antes que o senhor me pergunte o que é a morte, eu já lhe respondo: a morte é o fim. E dela ninguém escapa.”
Ao retornar para o castelo, pela primeira vez em sua vida o príncipe ficou sozinho em seu quarto. O castelo , de imenso e poderoso que era antes, agora ele lhe   parecia tão pequeno e sem razão. Dir-se-ia que ele procurava algo dentro de si, embora nem ao menos ele soubesse o que esse algo era e nem porque procurá-lo.
Alguns dias depois, o príncipe quis passear novamente. Ele pediu para que o cocheiro tomasse uma pequena estrada  transversal à via principal. E foi nessa pequena estrada que ele se deparou com  a cena  mais impressionante de todas. Ele viu um homem que embora estivesse vestido de maneira simples  e não carregasse pertences, tal homem não aparentava ser vítima da pobreza;  o príncipe reparou também que não obstante a magreza aparente, aquele homem nada tinha de doente;   e o mais estranho: embora aparentasse ter vivido muito, os anos não lhe pesavam nas costas e o sofrimento e a solidão não lhe navalharam fundo as faces. “Estranho aquele homem”, disse o príncipe ao cocheiro. “Quem ele é?”, perguntou em seguida. “Aquele homem, meu príncipe, é um sábio”. Inquieto, o príncipe prosseguia: “E como ele fez para vencer a pobreza, a doença e a velhice? Ele não teme a morte?”. “Essas perguntas, meu príncipe, somente ele lhe poderá respondê-las”.
O príncipe desceu então da carruagem e foi atrás  do sábio. Ao alcançá-lo, o jovem príncipe interpelou o homem e, sem demora, manifestou-lhe seu medo da pobreza, da doença , da velhice e , sobretudo, da morte. Mal escondendo seu desespero, o jovem príncipe disse que o mundo era estúpido  e sem sentido ; por fim,  amaldiçoou  o dia em que resolvera sair, pela primeira vez,  de seu castelo.
Sem perder a tranqüilidade, o sábio disse ao príncipe: “ meu jovem, continuas ainda preso ao teu castelo, embora penses que conheceste o mundo . Nesse castelo ao qual me refiro, és não o príncipe, mas o atormentado prisioneiro. Pois o castelo que te aprisionas  é o teu próprio ego. Viveste até agora apenas nos limites desse castelo, alienado em tuas fantasias de prazer e posse,  acorrentado a  ti mesmo. Quando olhas para o mundo  a partir do teu castelo , vês apenas insegurança, desordem e desimportância, pois assim te parece tudo aquilo que foge ao teu poder, que tu já sabes pequeno. É dentro deste castelo, e não fora, que se encontram a pobreza, a doença, a velhice e a morte. Liberta-te desse castelo, liberta-te de ti mesmo, e aprenderás que a única coisa que escraviza é o medo. Viveste até aqui não em função de ti mesmo, como erradamente pensas,  mas na cegueira  da ignorância do que tu  realmente és . Vejas o mundo a partir do próprio mundo, e não a partir do teu castelo, pois somente assim tu te libertarás da cegueira que tu chamavas de visão. Se fizeres dos teus olhos os olhos do mundo, verás o teu ego não mais como realeza, mas como prisão. ”
Nunca mais o príncipe retornou ao castelo que seu pai lhe dera. E pela primeira vez ele saía do castelo do seu ego. Liberto daí, pela primeira vez ele viu de fato o mundo. E estes olhos que viram o mundo nunca mais se fecharam, mesmo depois de sua morte. Pois esses olhos  permanecem abertos em todos aqueles que buscam  vencer as   paredes de seu próprio castelo.



                                                  O CACTO


A planta de maior raiz é o cacto. Geralmente, a extensão  de sua raiz chega a nove ou dez vezes o tamanho do corpo do cacto que vemos à superfície do chão. Quem se fia apenas no cacto visível, e pensa que a parte  que vê é todo o ser do cacto, por certo este desconhece a outra parte, bem maior, que cresce invisível sondando o subsolo da terra. O cacto assim se expande para a profundidade porque ele busca aquilo do qual a superfície está carente.
O cacto tem raízes  profundas porque ele procura , no seio da terra, veios de água. Pois no deserto que existe em torno do cacto a água é o bem mais raro.Desse modo, o cacto aprende a procurar no fundo da terra o bem que o céu nega ao deserto. E ao sugar do coração da terra o líquido precioso que outrora pertencera ao céu, forma o cacto dentro de si  um mundo que  somente as nuvens e os pássaros que voam alto podem conhecer e provar.
E devido ao esforço que lhe custa obter o bem valioso e raro, e visando protegê-lo, o cacto adorna-se com uma  aparência áspera e rude ¾ em relação a qual os homens, por ignorarem o que o cacto guarda, procuram manter distância. 
Mas aqueles que não temerem  a casca  que envolve  e guarda o precioso tesouro, que com tanto esforço o cacto conquistou para si, estes poderão encontrar , dentro do cacto, o valioso bem que lhes matará a sede. E dessa generosidade só é capaz   aquele que, com coragem e paciência para vencer o deserto, sonda o ventre  da terra para aí encontrar , oculto,   o maior bem do céu.




                                       DIFERENÇA E REPETIÇÃO
                                                       a Gilles Deleuze
                                                          
                                                            Repetir repetir - até ficar diferente.
                                                                    Manoel de Barros
         
Repetir não é reproduzir ou imitar. Repetir e  imitar são atividades que diferem em natureza. Na repetição, dois elementos encontram-se presentes: o repetido e o meio onde a repetição é levada a efetuar-se, isto é, a diferença. Desse modo, toda repetição tem como condição uma diferença, pois é nessa última que o repetido  devém o motivo da repetição. Na imitação ou reprodução, ao contrário, a diferença é anulada ou diminuída em sua positividade, sendo então considerada menos eminente ( moral e ontologicamente) que o  imitado ou reproduzido . Este último é elevado à condição de Modelo para as imitações  que o tomam como referência ou Fundamento.
  A condição para que isso funcione desse modo repousa na idéia de que ele, o Modelo, não seja reprodução ou imitação de nada que lhe seja preexistente. O Modelo existe em si, não tendo sido criado ou inventado. Ele é o critério primeiro de toda aferição de verdade e objetividade.  E é a partir da eminência do Modelo que se distribuem as hierarquias entre as imitações: a melhor imitação , a mais elevada, é aquela que mais se aproxima do Modelo. “Aproximar-se do Modelo” significa: “a ele assemelhar-se”.   O Modelo torna-se então a Identidade Referencial à qual toda imitação procura assemelhar-se. E as melhores imitações ou reproduções, aquelas que se encontram no ápice da hierarquia, são exatamente aquelas  cuja diferença se encontra no grau mais baixo de potência ou afirmação de sua respectivas singularidades ou perspectivas. Todo Modelo só se propaga com a condição de reduzir as diferença a zero.
Ocorre na repetição que a diferença torna-se o elemento genético e positivo que confere à repetição um critério seletivo que não é por eminência hierárquica, mas por potência inovadora. Repetir é inovar, isto é, estender diferencialmente a potência daquilo mesmo que se repete. Pois, na repetição, o próprio repetido é já repetição de um outro repetido que também é repetição, isto é, diferença. Só a diferença tem a potência de se repetir em outras diferenças . Só a diferença é o verdadeiro Modelo a servir de plano aos agenciamentos afirmadores da multiplicidade.
Para a repetição, a regra é a diferença. A maçã de Cézanne , por exemplo, não imita ou reproduz a maçã percebida, mas a repete a partir de uma diferença que se eterniza ao  tornar-se visível por intermédio das tintas. Estas últimas tornam-se maçã  ao mesmo tempo em que a maçã devém tinta, isto é, coincide com a própria perspectiva que lhe acrescenta , por sensação, uma diferença. Sendo que a maçã pintada não existe fora da perspectiva que a produziu ( e expressa, diferencialmente, a maçã efetiva que nela se repete).
Toda repetição é um devir do repetido. E o próprio repetido é já um devir. Toda repetição é um  devir do repetido, no qual se acrescenta  ( ao repetido) uma diferença que o faz ser sua própria perspectiva.



                                                               A SEMENTE



Sonhei que   eu estava sendo  operado do coração. O médico que me operava tinha a cara do Fernando Pessoa. Tudo me levava a crer que era realmente ele. O mesmo chapéu , o mesmo bigode , os mesmos olhos múltiplos atrás da vidraça dos óculos.
Após abrir meu peito e retirar o coração, o poeta-médico me disse que aquela parte de mim estava consideravelmente pesada, e que era preciso extrair do meu coração o excesso de peso. Assenti com o poeta, demonstrando  minha concordância e confiança no poder da poesia em intervir num coração adoecido.
Então,  o poeta-médico  foi extraindo do coração  coisas que pareciam ser não sangue ou músculo, mas sim algumas palavras que ouvi e que entraram em mim como balas de revólver; retirou também   o rosto de  pessoas que eu  precisava esquecer, principalmente daquelas que eu já pensava ter esquecido, mas que ainda permaneciam em mim, sem que eu soubesse ; tirou  situações vividas no limite da honra;  tirou também  planos desfeitos de um futuro em comum ; jogou fora decepções, ingratidões... e o  que mais o adoecia: saudade.
Depois de extrair tudo isso que me pesava o coração, o poeta se preparava então para recolocá-lo novamente no meu peito. Quando olhei para o meu coração na mão do poeta, fiquei surpreso. Pois o coração estava  tão pequeno que eu pensava que , daquele tamanho, ele não seria forte suficiente  para me fazer de novo  vivo.
Porém, recolocando o coração  no vazio do peito, o poeta por fim me disse: “ele está assim pequeno porque do seu velho coração retirei o inessencial e  deixei apenas a semente:  dela brotará um coração novo, pois a envolvi com o adubo-tempo”.



                                                   HORÓSCOPO


Diante de minha janela existe uma pracinha. Nela, mães passeiam com seus bebês em carrinhos. Reparei que quase todos os carrinhos possuem um tipo de cobertura removível, que permite ao bebê uma visão completa do céu. Fiquei pensando no impacto da  primeira imagem do céu sobre  o espírito da criança ao contemplá-la. Como um espelho que produz aquele mesmo que nele se vê, imaginei as criancinhas recebendo aquele infinito dentro de si mesmas, de tal maneira que em suas pequenas almas algo do céu se depositasse, e aí ficasse como caráter a crescer.
O CÉU DE SÊNECA.Os nascidos em abril e maio vêem um céu de um azul calmo e transparente, em cuja profundidade um sol em pontilhado derrama seu amarelo sem crispar ou se intumescer. Um céu como véu transparente, que esconde-mostra o mistério de viver. Sendo assim, a imagem de tal céu imprime um caráter contemplativo e sereno àqueles que nascem sob seu cobertor sem margens.
O CÉU DE SHOPENHAUER.Os nascidos em junho ou julho vêem um céu espesso, cinza compacto,um céu de inverno, que empurra o espírito para dentro de si mesmo e de sua caverna. Instalados dentro de si mesmos, os nascidos sob tal céu tendem à introspecção e ao exame pessimista dos fatos ¾ incluindo aí os fatos da política e os do amor.
O CÉU DE EPICURO.Os nascidos em setembro vêem um céu onde tudo se prepara para nascer: céu de primavera. Um otimismo inconsciente, tal como aquele que impele o embrião a crescer,  impregna-lhes as retinas. E o mundo , envolto em um mistério por  descobrir, abre, àqueles que o souberem ler, o seu livro-natureza ¾  cujo papel, letras e sentido  narram histórias de amizade e amor.
O CÉU DE NIETZSCHE. Os nascidos em novembro e dezembro vêem um céu em chamas, de um sol imperador. São almas em busca de seus extremos e ultrapassamentos, a brincar de equilibrar-se sobre a linha de seus próprios limites. São  almas sempre preparadas para saltar por sobre a linha, atraídas pelo abismo, pelo excesso e pelo seu mais adorado Deus: o risco.


                                             MEDICINA DA ALMA

Sêneca, o mestre estóico, recebeu a visita de seu jovem discípulo. Este vinha decidido a comunicar ao mestre a sua despedida da vida filosófica.  O discípulo considerava que a filosofia não servia para ele. Para justificar sua decisão, ele confessou ao mestre que a filosofia estava conduzindo-o a enganar a si mesmo: “quando vejo alguém se banqueteando em uma mesa farta”, explicava o discípulo,  “sinto vergonha do almoço que tive, tão simples e insignificante ele era, em comparação com tal banquete. Isso me faz sentir inveja daquele que se farta no banquete, pois na verdade eu também queria poder ter a mesma coisa. Depois , quando vejo alguém com belas roupas e carruagens majestosas, finjo que não desejo essas coisas. Contudo, corrói-me por dentro a inveja, acabo por ficar infeliz. Pois queria andar também assim. Quando vejo o poder e a fama  de um senador,   cuja mão todos querem beijar na esperança de obter favores,  sinto inveja desse prestígio . No entanto, a filosofia me diz para não fazer dessas coisas a finalidade de minha vida. Por isso, coloquei  num prato a filosofia e, no outro, aquilo que a maioria  deseja ( fama, poder , riqueza), e a balança  de minha alma pendeu para este último lado. Venho então lhe dizer que não quero mais saber da filosofia.”
“Meu caro jovem...”, disse Sêneca, “seu maior erro é pensar que eu sou diferente de você. Por vezes, quando o inimigo me encurrala, quase cedo também à idéia de que é mais útil estar de acordo com a opinião da maioria do que com a de um só, mesmo que esse ‘um só’ seja eu mesmo. Contudo, saiba que a filosofia não é feito uma vacina que se toma uma única vez e fica-se por toda a vida livre da doença ( e  essa doença, o inimigo que mencionei, tem vários nomes: ignorância, inveja, intolerância, mesquinhez , superficialidade, espírito de rebanho... ). Ao contrário,  a filosofia  é como  uma pílula que deve ser tomada todos os dias”.


CUBRA O PONTILHADO E VEJA A FIGURA QUE SE FORMA

As palavras divinas estão escritas em uma língua que ninguém jamais conseguirá decifrar ─ sobretudo os lógicos, sobretudo os teólogos, sobretudo os alfabetizados na língua do poder.
Aos tolos, as palavras divinas parecem profecias; e os mais tolos ainda as tomam como Leis.Para as crianças, as únicas que as entendem, as palavras divinas são traços em pontilhado dos quais se aprende o sentido quando, inocentes de toda culpa e ressentimento,  os cobrimos com o lápis do amor  na mão. Finda a brincadeira de cobrir os dizeres divinos,o que se vê não são textos, frases ou cânones.Vêem-se apenas infantis desenhos da imaginação de um Deus também criança: um barco no mar voltando carregado de peixes;uma pipa colorida que um menino empina; um casal de idosos passeando de mãos dadas;  um céu cheio de estrelas emoldurando uma praça cheia de gente; e, pairando acima de tudo, o caos e o cosmos reconciliados, abraçando-se numa dança.