Muitas traduções da obra de Espinosa
perdem em clareza quando não atentam para a distinção entre dois termos : afeto
e afecção. Algumas traduções, as mais danosas para a compreensão do pensamento
de Espinosa, traduzem ambas por uma única palavra: "paixão". Outras
ainda as traduzem por "sentimento". E há aquelas que mantêm apenas o
termo afeto,reduzindo o sentido de afecção à mesma coisa que afeto.Todos esses
procedimentos lançam confusão não apenas sobre o que Espinosa quer dizer, como
também sobre o próprio sentido desses termos em nossas vidas diárias. Sem
dúvida, a dificuldade maior para os tradutores reside no sentido do termo
"afecção" ( affectio,
em latim).Isso porque há um certo materialismo no sentido original deste termo,
fato que os tradutores mais idealistas ou espiritualistas reputam indigno de
colocar de forma essencial na compreensão de todas as coisas, inclusive o
homem. Mas é um erro conceber o termo afecção apenas em sua acepção
materialista.
Etimologicamente, afecção pode ser
traduzido por "tocar", no sentido de que o artesão toca o barro, o
pintor toca a tinta, o sol toca o nosso rosto, etc. A afecção é uma ação de um
agente ( nos exemplos dados, o artesão, o pintor e o sol).Ao tocar aquilo que
ele toca, o agente produz uma modificação naquilo que ele toca. Essa
modificação é sempre instantânea, e modifica o corpo tocado.Nos exemplos que
demos, a afecção é a modificação que um corpo sofre ( a tinta, o barro, nosso
rosto) devido à ação de um outro corpo que lhe permanece externo. Esse primeiro
sentido de afecção envolve a relação de determinação de um ser finito sobre o
outro ( mesmo o sol, embora imenso, é um ser finito tanto quanto o nosso rosto
que ele toca).Ora, toda ação engendra um resultado, um efeito. O efeito ou
resultado de "tocar" é "ser tocado". O "ser
tocado" é um índice ou sinal de que houve um "tocar". O ser
tocado não é uma ação, como o tocar, mas um resultado, um padecer. O fato de
ser tocado torna um ser paciente, no sentido de ele ser aquele que sofreu a
ação.Enquanto o tocar é imediato, o ser tocado é sempre mediato: ele expressa
uma ação que se fizera. O tocar envolve sempre uma percepção, ao passo que o
ser tocado permanece existindo apenas na memória ou na imaginação, como uma
imagem presente de uma ação ausente. Ou melhor, essa imagem se torna presente
pelo esforço que nossa alma faz para recordar ou imaginar o tocar que se fizera
em seu corpo, e do qual a imagem é o resultado, o indício ou signo. Na verdade,
o ser tocado é a continuação do tocar persistindo na memória ou imaginação
daquele que sofreu a ação. O "ser tocado" é exatamente o sentido de
afeto ( em latim, affectus).
Vista da perspectiva do corpo que age, a
afecção é um agir, um tocar. Entretanto, como ela nasce de um encontro de um
corpo com outro, a afecção produz, no corpo que sofre a ação, uma marca, um
indício, um vestígio. Esse vestígio ou marca não é um ser, ele é uma ausência
do ser que agiu e produziu a marca. Então, no corpo passivo a afecção é esta
marca da qual nasce a idéia que lhe é correspondente. Ora, uma ideia não nasce
no corpo, ela nasce na alma. A ideia nascida dessa marca, dessa ausência, será
exatamente o afeto.Tal idéia, por isso mesmo, será dita confusa, uma vez que
uma idéia adequada expressa sempre a existência de um ser, e não a ausência dele.
A idéia confusa também é chamada de “imagem” por Espinosa.É por isso que o
afeto nascido da afecção é uma paixão.A paixão revela mais o estado do corpo
que sofreu a ação do que a essência do corpo que agiu. Mas o corpo que sofreu a
ação imagina que a idéia que nasce da ausência do corpo que agiu pode nos fazer
conhecer o corpo agente. Essa idéia confusa se alimenta da ignorância de como
ela nasceu, ela pressupõe a ignorância de que a afecção é ação de um corpo
também. Quando compreendemos isso, percebemos que a afecção é uma ação inserida
em uma Natureza que é Causa da ação de tudo que existe, posto que a Natureza é
sempre Agente. As idéias confusas, as paixões, nos deixam reféns das imagens,
dos efeitos. Sob as paixões, confundimos o efeito com a causa. Se as paixões
nascem de ausências, por que elas têm tanta força sobre a alma?
Para Espinosa, é a alma que extrai de seu
próprio ser a força para dar existência ao que é um mero efeito, uma imagem, um
fantasma. É por isso que as paixões alienam a alma e impedem que ela se torne
ativa. A alma se torna ativa pela compreensão nascida das idéias adequadas, que
sempre expressam o que existe, e não a ausência do que existe alimentada pela
impotência da alma para existir plenamente. Quando compreendemos que as afecções
são sobretudo ações, e não o mero resultado passivo delas, conseguimos nos
libertar da condição passional de sermos um mero resultado da ação das coisas
sobre nós. Além disso, mesmo quando alguém se comporta movido por uma paixão,
sobretudo as tristes, tal reagir também é uma ação: uma ação que pode menos do
que poderia aquele que assim padece se ele de fato agisse de forma livre,
alegre, potente. Quando compreendemos que tudo é ação, positividade, mudamos
nossa perspectiva no entendimento daquilo que comumente chamamos de bem e mal,
pois percebemos que nenhuma ação , nenhum existente, é um bem ou mal em si.
Quando compreendemos a positividade da afecção, compreendemos que ser é
existir, e existir é agir: mesmo na ação a mais pequena do mais ínfimo ser,
intuímos a Ação da Natureza que nunca age visando outro fim que não seja sua
própria Ação, sua própria Existência,que em nós se expressa como ação da alma,
o compreender, e ação do corpo, o agir.Ser ativo não significa exatamente fazer
muitas coisas que exigem músculos, movimentos agitados e
"adrenalina", pois ouvir é uma ação, olhar também o é, e há uma
virtude ativa em saber se calar ( segundo Espinosa, o "falar", o
"falar muito" sem saber ouvir, é uma paixão muito comum em quem não
tem realmente o que dizer).
De um certo tocar pode nascer o afeto do
amor ou da amizade como resultado ou efeito ( as paixões alegres), ao passo que
de um outro tocar pode nascer o ódio ou o rancor ( como paixões tristes). E o
mais estranho: o afeto não é o tocar, mas o resultado acompanhado da idéia
confusa ou imagem deste. É por isso que de um mesmo tocar pode nascer , em uns,
o amor, em outros, o ódio . Por exemplo, o funk toca da mesma maneira,
fisicamente falando, aqueles que o amam e os que o odeiam, pois o amar e o odiar
não são o tocar, mas o resultado dele de acordo com a constituição ou modo de
ser de cada um: de acordo com a maneira de ser de cada um, de um mesmo tocar
nascerão afetos distintos; se uma pessoa se modificar, ou buscar viver de forma
desalienada, o que hoje lhe provoca um amor passivo amanhã talvez não lhe
provocará mais.Não podemos negar a existência de uma afecção, porém o vínculo
entre a afecção e o afeto que dela nascerá dependerá do quanto somos passivos
ou ativos diante daquilo que nos acontece. Não há uma causalidade férrea que
determine que de uma determinada afecção nasça um afeto determinado. Quando
compreendemos as razões que fazem uma afecção existir, nos tornamos capazes de
desfazer os laços entre a ação das coisas e nossas reações em relação a elas,
sobretudo se tais laços nos fizerem escravos ou passionais, isto é, incapazes
de governarmos a nós mesmos.
Os tradutores mais apressados costumam
então referir a afecção às modificações do nosso corpo causadas pela ação de
outros corpos, ao passo que o afeto seria uma modificação nascida em nossa alma
que espelharia a modificação gerada em nosso corpo. Todavia, essa visão
dicotômica se torna incongruente quando nos debruçamos sobre um outro sentido
de afecção, dessa vez referida não mais aos seres finitos, mas a Deus ou a
Natureza. Tudo o que existe, segundo Espinosa, é uma modificação de Deus. Logo,
tudo é uma afecção de Deus. As coisas nascem do tocar de Deus. Mas a quem Deus
toca? Ora, por ser único, e tudo, Deus não pode ser tocado por algum outro ser
que lhe seja externo. Se isso fosse possível, este ser teria que existir à
parte de Deus. Todavia, se Deus ou a Natureza é, em Espinosa, tudo, não pode haver
algo distinto dele , pois isso seria limitá-lo, o que é um absurdo. Assim, e
isso parece e é poesia ( no sentido original de "poiésis",
produção), Deus é um tocar que toca a si mesmo. É Deus que produz em si mesmo
tudo aquilo que é uma modificação ativa dele mesmo. Deus é imanente a tudo: o
que ele produz permanece nele, pois cada ser é uma maneira dele mesmo, uma
modificação singular dele . Cada ser que existe é uma maneira de ser de um
mesmo Ser que se expressa de infinitas maneiras. Em Deus, a afecção , o tocar,
e o afeto, o tocado, são identificados à Potência divina de Existir.Todas as
afecções de Deus existem de forma necessária. Em Deus, portanto, só há um
afeto: o Amor. Das afecções de Deus não pode nascer outro afeto que não seja o
Amor, e isto por uma necessidade que é idêntica à liberdade, necessidade esta
que é imanente a cada ser singular que existe.Ser livre não é fazer o que
quiser ou seguir uma inclinação, ser livre é agir de acordo com essa
necessidade que produz o Amor. A identidade do tocar e do tocado, da afecção e
do afeto, é o Amor que nasce do Amor: e por ele, nele e com ele nascemos nós
mesmos como expressão singular de sua autoprodução.É a experiência desse Amor
que leva o poeta, como afirma Manoel de Barros, a dizer “eu-te-amo a todas as coisas”.Esse Amor é uma
Ação, não uma paixão ou um padecer. Esse Amor é uma Ação: ele é ação de
produzir autoproduzindo-se , ele é Poiésis.
Somos uma modificação de Deus; logo, somos
o resultado ou o produto desse Amor em Obra. Deus e o Amor são o mesmo, assim
como são o mesmo, nele, o agente e o paciente. Ou melhor, em Deus há apenas o
Amor como Agente: o paciente fica por nossa conta, quando desejamos aprender a
Amar esse Amor, pois é com paciência que se o pratica. O afeto nascido assim é
idêntico à idéia adequada que aprendemos a fazer de nós mesmos e da Natureza.
Deus é Ação, jamais uma paixão. Por não
ser paixão, Deus jamais tem raiva ou fúria, tampouco pode modificá-lo o que os
homens fazem ou deixem de fazer. Ele não espera devoção ou culto, nem
obediência, pois somente os tiranos vaidosos, passionais, a isto querem.Deus
não recompensa ou castiga. Ou melhor, a única recompensa é compreendê-lo, e
viver de acordo com o Amor que ele é.Somos o produto desta Ação, somos uma
parte dessa Ação, e compreender isso não se faz sem a Alegria que é idêntica ao
Amor.Se somos um produto da Ação, é nossa essência o agir, e não o padecer ou
sofrer.Deus é Perfeito porque ele é Ação de modificar-se: e é por essa razão
que o homem mais sábio é aquele que se esforça para aperfeiçoar-se, e isto
consiste em modificar-se. Em Espinosa, tudo o que existe é uma modificação ou
afecção de Deus. Não apenas os corpos, as ideias também são afecções de Deus.
Nesse sentido, há afecções que não são materiais, embora sejam tão reais quanto
os corpos. Quando experimentamos e compreendemos nosso corpo e nosso espírito
como afecções de Deus, dessa compreensão nasce um afeto que é a expressão de
que somos tocados por aquele Amor, e a partir dele tocamos, produzimos, agimos,
enfim, existimos.
Não existe o "mal em si", existe
o mau em nós, não fora de nós. O mau é tudo aquilo que diminui nossa força,
nossa potência.O mau é a tristeza e o ódio.Estes não existem fora de nós, eles
não são ações, mas reações, padeceres.A tristeza e o ódio existem em nós como
aquilo que diminui nossa existência e nos afasta de nossa saúde ( salut). Não é a partir de
outra coisa, uma coisa que lhe seja exterior, que o homem age ou
existe, já que toda ação se constitui de acordo com a relação com a
Potência que lhe é imanente. Não é subordinando-se a "fins externos"
, teleológicos, que o homem age, pois toda ação nasce da nossa afirmação da
Potência que é Ação Pura, Potência esta que não existe exterior a si mesma.É em
relação com essa Potência ou Força que a alma conquista sua própria força e
potência, sua confiança, sua virtu,
sua firmeza, o que a torna apta para tomar posse de si mesma. Só quem dispõe de
si pode exercer a generosidade.A Moral exige que a alma tenha força sobre o
corpo, para assim dominá-lo e reprimir suas inclinações.A Ética de Espinosa afirma, ao contrário, que
a alma só se torna potente quando conquista sua própria força, agindo a
partir desta.