A
EDUCAÇÃO COMO ACERVO DE IDEIAS [1]
Em qualquer lugar
onde o homem experimentou se pôr de pé,
ele próprio se
tornou o centro do grande círculo,
e o começo de um
caminho.
(Clarice Lispector)
Segundo Fernando Pessoa,
no início dos tempos o homem andava de quatro, como um cão. Sua coluna cervical
era paralela ao chão, parecendo um travessão [ - ]. E sua cabeça estava voltada
sempre para baixo, a procurar por sobras e restos.
O que pôs o ser humano de pé não foram os pés. O ser humano foi elevando-se quando seus olhos se
desterritorializaram do chão e se reterritorializaram no céu infinito acima dos
interesses rasteiros[2] .E foi assim
que nasceu o desejo: em latim, “desiderare”, “ir às estrelas”. De certa maneira
, o Eros Filosófico, enquanto impulso afetivo-pensante expresso no
termo grego “philo”, é a intensificação
e potencialização de um desejo assim. “Ir às estrelas”, mas sem deixar de pôr
os pés na Terra[3].
(De desiderare vem “sideral” : “lugar das estrelas”. Esse sideral poético-metafísico que põe de pé também parece ser o tema da pintura “Noite estrelada sobre o Ródano”, de Van Gogh. Acrescentei os versos do poeta Keats)
De pé, vista de lado, a
coluna cervical assemelha-se a um ponto de interrogação [ ? ], pois é o
interrogar que pôs e põe o homem de pé (o interesse estreito o coloca de
quatro, enquanto o medo o põe de joelhos).
Não por acaso, o ponto de
interrogação é o sinal que expressa a disciplina mais filosófica das disciplinas filosóficas:
a Metafísica. De Aristóteles a Sartre, passando por Espinosa, Nietzsche ,
Heidegger e Deleuze, a metafísica é esse impulso para pôr-se de pé diante da
Existência.
“Cervical” e “acervo” vem
do termo latino “cérvix”. Um autêntico “acervo” não é feito de coisas mortas , inertes. A coluna cervical , por exemplo, não é apenas o que sustenta a
cabeça. Pois a coluna cervical também é
o que nos põe de pé e serve de elo entre o cérebro e o restante do corpo : é
atravessando a coluna cervical que as
ideias e desejos nascidos no pensamento se tornam força , alcançam nossas mãos e pernas, traduzindo-se em ação sobre o mundo.
É por isso que o poeta-pensador Fernando
Pessoa nos lembra que a coluna
cervical tem a forma de um ponto de
interrogação. Segundo o poeta, não são exatamente os pés e pernas que põem o ser
humano de pé, e sim sua capacidade de elevar-se mediante as interrogações que coloca
para si mesmo. Pois é isto que põe o homem de pé: sua capacidade de pôr
questões. Assim como a coluna cervical,
um acervo existe para manter de pé as
ideias que nos fazem seres pensantes.
Enquanto acervo de uma
biblioteca , os livros são fontes para sustentar e pôr de pé as ideias que
educam e transformam. Filosofia, literatura, arte, cultura e educação são expressões desse sentido
originário de acervo, pois são essas produções que mantêm o ser humano , a sociedade democrática e o pensar
crítico/criativo de pé.