sábado, 19 de março de 2016

Cartola:corra e olha o céu ( de outono)





Eu tentei me horizontar às andorinhas.
Manoel de Barros

O plano de imanência é o horizonte absoluto.
Deleuze & Guattari


***   ***   ***




                                                           OS ACHADOUROS


                                                               Quando o sábio se vê reduzido à necessidade,
mesmo aí ele acha mais ocasiões de ofertar do que de receber,
pois ele possui um tesouro que nunca se esgota:
o de possuir a si mesmo.
Epicuro.


No poema Achadouros Manoel de Barros nos fala de uma  senhora, a "negra Pombada, remanescente de escravos do Recife", que  contava aos meninos sobre Corumbá ter “achadouros” , que eram buracos  feitos pelos   holandeses  em seus quintais para esconder suas moedas de ouro, antes de fugirem apressadamente do Brasil. Durante muito tempo em Corumbá, movidos pelo desejo de encontrar tais tesouros , os homens  escavaram  quintais para ver se ali achavam ouro.O poeta é aquele que busca os achadouros também, mas o tesouro que ele deseja é outro : ele escava o ordinário e ali acha o extraordinário; ele escava o habitual e neste acha o incomum; ele cava em si mesmo e dentro de si ele acha o mundo ainda por descobrir. Ele acha, em meio ao barro,  ao húmus, ele acha/inventa o ouro de uma vida da qual nunca cessam os inauguramentos.



(Céu de outono)




( Outono 8 )



( Paisagem de dentro vista de fora)






quarta-feira, 9 de março de 2016

o nascimento da filosofia

Quem o mais profundo pensa,
ama o mais vivo.
                            Hölderlin


A pérola que mais vale a pena buscar não é aquela que se esconde nas ostras que vivem sob as águas; a pérola mais preciosa vive no íntimo da palavra que não é apenas palavra.
                            Maimônides


- Os primeiros filósofos e a filosofia
O nome “pré-socráticos” expressa um conjunto heterogêneo de pensadores.O termo “pré” não significa que eles vieram exatamente “antes” de Sócrates no tempo. Ao contrário, alguns lhe foram contemporâneos. Assim, o termo “pré” designa uma visão da filosofia que toma Sócrates como referência e padrão.Outros ainda empregam  a expressão “pré-platônicos”, uma vez que tomam Platão como o início da filosofia.
É errada a visão que considera inexistir nos  pré-socráticos uma reflexão sobre o ser humano.Entretanto, a maior dificuldade  para a  reconstrução  dessa visão que eles possuíam do homem repousa na escassez de fontes. Poucos escritos dos pré-socráticos chegaram até nós. Sabe-se, por exemplo, que Demócrito , o atomista, teria escrito bem mais que Platão!Todavia, apenas fragmentos nos chegaram.
Segundo  argumentam Deleuze e Guattari no livro O que é a Filosofia? ( Editora 34), é com os pré-socráticos que surge, pela primeira vez, o termo “filósofo”. Este termo nasce  mais especificamente com Tales de Mileto. O filósofo veio ao mundo  antes da filosofia. O filósofo surgiu em um espaço “entre” o Ocidente e o Oriente, pois foi nessa área limítrofe das colônias da Grécia que o filósofo apareceu. Há algo do Oriente em Tales,isto é, há nele um tipo de sabedoria que não se apoia apenas em conceitos.Há nele a poesia, a alegoria, a linguagem simbólica – acompanhadas de uma intuição profunda, quase mística.Enfim, o filósofo também era, em seu berço, um poeta. Muitos pré-socráticos, até mesmo Parmênides, evocam as Musas para inspirá-los. Pitágoras, apesar de matemático, criara uma doutrina esotérica acerca da transmigração das almas, o que faz dele o primeiro filósofo a acreditar na imortalidade da alma .
A filosofia, sustentam Deleuze e Guattari,   nasceu um pouco mais tarde.A filosofia surgiu após já ter nascido o filósofo.  Enquanto este apareceu às margens da Grécia, a filosofia é fruto genuíno de Atenas, o coração do Ocidente. Para a filosofia emergir, foi preciso que o filósofo perdesse essa aura poética e mística,foi necessário que ele deixasse de ser um sábio:foi preciso que ele desse as costas para o Oriente místico.
A filosofia aparece  somente em Atenas, no auge da Grécia Clássica.A filosofia nasceu em um determinado meio político ávido por debates e disputas verbais. A Grécia de então era um meio atravessado por rivalidades de toda ordem. Nesse ambiente  era fundamental a constituição de associações. Nasce então  uma idéia muito especial de “amizade” que será considerada a base da filosofia. A filosofia seria um exercício dialogado entre aqueles que buscam a sabedoria tendo como elo uma forma muito especial, não privada, de amizade.Na Grécia Clássica, o filósofo se torna um “amigo da sabedoria”, um “amigo do conceito”. Enquanto amigo do conceito, o filósofo vai também  defender o conceito dos seus “falsos amigos”:os meros sofistas. Um amigo,um verdadeiro amigo,nunca faz seu amigo de meio para obtenção de coisas materiais. Segundo pensava Platão, os sofistas faziam da sabedoria um meio para obtenção de fama e dinheiro. Na verdade, então, eles não faziam sabedoria,mas”falsa sabedoria”, uma “aparência de sabedoria”. Sócrates, Platão e Aristóteles dedicaram boa parte de seus ensinamentos para refutar esses falsos amigos do conceito.
No Banquete, porém, Platão demonstra que o termo “philia” , presente em “philosophia”, não designa apenas “amizade”. “Philia” também significa , de forma mais profunda, “amor”. De maneira provocativa e sutil, Platão quer com isso dizer que o filósofo não é apenas um amigo do conceito: ele também é um amante do conceito, ele é um enamorado do saber. Enquanto “amigo do conceito”, podem aparecer rivais,como os sofistas.Mas como amante do conceito, o filósofo não tem rivais, uma vez que ele e a sabedoria formam uma unidade cujo elo é o amor. Aqui, Platão reata com certo misticismo pré-socrático de fundo pitagórico , no qual tinha grande importância a intuição silenciosa do Bem,isto é, daquilo que  a mera palavra não alcança (  mais tarde ,  Plotino e Santo Agostinho dedicarão belíssimas páginas a esse tema). Esse aspecto de amante da sabedoria dará ao filósofo uma condição de “estrangeiro”, isto é, de alguém que não se deixa determinar pelas convenções de uma determinada pólis. Sem dúvida, Sócrates é um personagem importantíssimo nos diálogos de Platão, talvez o mais  relevante.Todavia, importante também é o personagem apenas designado como “o estrangeiro”, isto é, aquele que porta uma fala que transcende ao estabelecido pelas leis e costumes que os homens estabelecem, de forma convencionada , em uma determinada pólis. Se a condição de “amigo” liga o filósofo aos homens, nascendo assim questões pedagógicas e políticas,  a condição de “amante” o liga ao divino que imortaliza sua alma, fazendo-a conhecer e viver a união amorosa com o Celeste.

- Principais pré-socráticos
Apesar da diversidade de doutrinas que caracteriza esse grupo de filósofos, uma questão pode ser apresentada como sendo a característica geral dos pré-socráticos: a busca pelo Um. Diante da multiplicidade de aspectos que a natureza apresenta aos órgãos da sensibilidade, os pré-socráticos buscavam a unidade que tornaria essa multiplicidade pensável e inteligível. A esta unidade eles deram um  nome: arqué.Este termo grego possui uma rica carga semântica. Os principais sentidos atribuídos a arqué são: origem, princípio, comando e causa. Os pré-socráticos empregavam arqué no sentido de causa. Perguntar sobre a  arqué era indagar acerca da causa que gerou tudo o que existe.
Diante da multiplicidade de aspectos cambiantes que nossos sentidos testemunham, o pensamento se erguia diante dessa multiplicidade e fazia uma exigência: o Um, a arqué, a causa. A pré-socrática representou o primeiro momento de tematização de um problema que acompanhará toda a filosofia , de Tales de Mileto  a Deleuze: as relações entre o Um e o Múltiplo. Se o múltiplo constitui a realidade tal como ela se apresenta aos sentidos, alcançar o Um exige outro instrumento distinto da sensibilidade. Assim, emerge igualmente nesse período uma visão de que o homem é constituído por dois princípios: a sensibilidade, necessariamente ligada ao múltiplo, sendo ela própria múltipla, e o Logos, este igualmente Um, tal como a arqué. Assim, seria o Logos o instrumento que poria o homem em contato com a arqué, com o Um.
Os primeiros pré-socráticos estão ainda muito próximos da poesia. Há neles uma visão do caráter divino da natureza. Em grego, natureza é “physis”, palavra esta cujo sentido  se reporta ao processo de  “nascer” ou “brotar”. Mais do que se pautarem pela abstração dos conceitos, eles ainda se apóiam em imagens, apesar de já se fazer presente a exigência de racionalização comandada pelo Logos.
Tales de Mileto dizia que “tudo é água”. A água seria a arqué da qual tudo nasceu. Como ele chegou a essa posição?Após a chuva, ele percebia que a natureza se renovava ou renascia. Quando estão saudáveis, os olhos estão sempre umedecidos. Do mar vêm vários seres vivos. A placenta, que é o primeiro berço de todo ser vivo, é um reservatório de água. As fontes trazem vida aos desertos. Assim, onde está a água se encontra  a vida. Por outro lado, Tales  constatou que tudo o que morre e definha vai perdendo água e secando. A terra sem umidade se torna estéril. Enfim, Tales intuiu que a água é o princípio da vida. Então, existe a água visível em suas mais variadas formas. Mas existe ainda a água enquanto arqué ou causa de tudo o que existe. Esta água universal não tem um aspecto particular, e só o logos intuitivo a pode apreender. Ela não é doce ou salgada: ela é simplesmente água, a pura água que apenas o pensamento pode intuir e conceber.
Heráclito, por sua vez, afirma que o fogo é a arqué ou o  Um do qual tudo é feito. Este Um, no entanto, reúne nele o múltiplo, de tal modo que este Um é idêntico ao movimento, ao devir. O fogo nunca fica imóvel, e é por isso que ele também é a imagem do tempo. E é isso que diz o célebre fragmento de Heráclito: “Nós não podemos entrar duas vezes no mesmo rio”. Quando saímos do rio e retornarmos para entrar nele, suas águas já passaram, assim como nós mesmos já somos “outro”. Muda o rio e mudamos nós.Nada é, tudo devém,pensava Heráclito. “Devir” significa: “vir de novo”. Cada “momento” do devir é uma repetição, um re-venir. Cada momento do devir é uma repetição dele mesmo, que sempre se repete diferente, pois nunca ele é o mesmo, assim como as águas do rio do tempo.Segundo dirá Platão, ninguém mais que Heráclito compreendeu tão perfeitamente o mundo sensível, que sempre é regido pela mudança. Hegel, Nietzsche, Bérgson e Deleuze foram muito influenciados por essa intuição heraclítica do devir.
Mas por que as coisas mudam? Heráclito dirá: “não existe um porquê”( Aristóteles , por sua vez, responderá a Heráclito afirmando que as coisas mudam para realizar um fim: a forma). Heráclito dizia que há no devir uma “inocência” pela qual o devir  constrói e destrói, tal como crianças que brincam de construir e destruir castelos de areia. Não raro, Heráclito  era visto observando crianças brincando e jogando. E a muitos ele dizia que aprendia mais com elas do que com os doutos. Para muitos, um obscuro. Para outros, o primeiro dos pensadores trágicos. Com Heráclito teria nascido o primeiro pensamento da imanência. “Imanência” provém de “i-manare”. “Manancial” se origina de manare. Manancial é a mesma coisa que “fluxo”. Assim, imanência é, literalmente, o que existe interior ao fluxo, ao devir, ao tempo. Por oposição, temos o vocábulo  “transcendência”. “Transcendência” é: “ir para além dos entes” ( no núcleo da palavra transcendência  existe o termo “ens”, “ente”).
Vale destacar outro pré-socrático: Empédocles. Ao invés de apontar para apenas um elemento como arqué, Empédocles nos diz que a causa de tudo são as quatro raízes e os dois princípios. As quatro raízes são: a água, o fogo, o ar e a terra. Os dois princípios são o Amor e o Ódio. O Amor é a Vida, ao passo que o Ódio é a morte. Sob o poder do Amor, as quatro raízes se combinam para gerar tudo o que existe, uma vez que tudo o que existe seria a união da água, da terra, do fogo e do ar. O ódio, por sua vez, é o princípio que dissolve o ser organizado e faz as quatro  raízes  voltarem a existir separadas. O ódio faz as raízes existirem sós.O ódio é a solidão.O ódio não destrói as quatro raízes, ele apenas desfaz os seres que nascem de sua união e composição. Além de realidades meramente físicas, Empédocles introduz Afetos (Amor e Ódio) na gênese do mundo. Estes afetos não estariam apenas no homem, eles não seriam tão somente subjetivos. Tais  afetos seriam também cósmicos e presidiriam, ao mesmo tempo, a vida dos homens e a vida do universo.
Outro pré-socrático importante foi Anaximandro. Com Anaximandro, o pensamento atinge graus de abstração nunca antes alcançados. Para este pensador, a arqué não é a água, o ar , a terra, o fogo ou a mera combinação deles. Para ele, a arqué não pode ser nada de determinado, pois tudo o que é determinado possui um limite, uma identidade. E tudo o que possui limites não é o todo. Assim, para ele  a arqué ou causa de tudo será chamada de Apeiron. A-peiron:o que não tem limites.Mas por quê existem as coisas com limites, as coisas finitas? A resposta de Anaximandro introduz um elemento de julgamento moral: as coisas finitas existem por uma culpa. Todo ser finito que se separa do infinito o faz por uma culpa. Dessa forma, tudo o que é limitado, por isso mesmo, sofre. O sofrimento é a condição existencial de tudo o que existe separado. Anaximandro acreditava que a sabedoria seria um processo de reatamento com o que não tem limites, o que implicava em uma regra de vida que se libertasse do império das coisas limitadas. Por exemplo, bens materiais, por maiores que sejam, são coisas com limites.Todo apego ao limitado, seja o limitado das coisas ou o limitado do “ego” ( embora Anaximandro não empregue exatamente esta palavra tão moderna),  todo apego alimenta ainda mais a culpa e o sofrimento.  Por essa razão, impede a liberdade e o pensamento.
Por fim, existiu Parmênides.Para este filósofo , a arqué não é mais nada físico, tampouco a combinação de coisas físicas.A arqué também não é, para ele, algo que se assemelhe a afetos humanos.  A arqué, porém, também não seria o infinito, o que carece de fins. Para Parmênides, a arqué, a causa de tudo, seria o Ser. E o que é o Ser?A resposta de Parmênides é seca,lacônica, e já anuncia,firmemente, o princípio fundante da  lógica: o Ser é o Ser. O Ser é idêntico a ele mesmo. O Ser não devém. Quando a água devém nuvem, ela deixa de ser água para se transformar em outra coisa. Como pode algo deixar de ser?Aceitar o devir é aceitar um paradoxo:afirmar que o não ser é.Assim, pensava Parmênides, o Ser não se move, ele não muda: ele simplesmente É. Os sentidos nos enganam: eles não nos mostram o Ser, eles nos mostram apenas as aparências. Desse modo, existiriam dois caminhos: o da Verdade, caminho este que apenas a alma pode trilhar,  e o da opinião,que é o caminho no qual reinam as aparências e ilusões nascidas de vivermos apenas a vida do corpo. O caminho da Verdade  é o do Ser,ao passo que o da opinião é o caminho da mera aparência, isto é, do não ser. Com Parmênides são esboçadas  as primeiras exigências de um pensamento lógico, que posteriormente será desenvolvido por Aristóteles;em Parmênides também se dá início à célebre  distinção entre Essência e aparência, tema este que merecerá especial atenção de Platão, e que marcará, até hoje, o vocabulário da filosofia.

- O nascimento da pólis
A arte  pode ser também um espelho que reflete não apenas a personalidade daquele que a criou. Ela também pode ir mais além, e expressar a sociedade e a época em que ela foi produzida. Daí a função pedagógica da arte,a sua “Paidéia”[1],que ensina não apenas sobre a sua especificidade enquanto obra de arte, como também sobre o mundo do qual ela foi uma expressão.
Como se sabe, a Grécia Clássica representou o período de surgimento da democracia e da filosofia. O principal fruto da democracia foi a pólis. Esta palavra costuma ser traduzida por “cidade”. Porém, existe ainda um sentido mais rico e pouco conhecido. Trata-se do termo   “organização”. Por exemplo, na palavra “própolis” encontramos esse sentido de pólis como organização ( pró-polis= a favor da organização,uma vez que a colméia é uma organização). Assim, a pólis é mais do que algo físico ou urbano. A  pólis é uma organização  que envolve também um espaço mental[2]. O homem será, ao mesmo tempo, criador da pólis e criatura dela. O homem assim compreendido será chamado de “politikos”. Em português: cidadão.
O centro da pólis era designado como “ágora”. Esta era a praça pública. “Ágora” procede de “agon” , que significa “disputa”. A ágora era um local onde se travavam disputas. O instrumento de tais disputas não eram lanças ou espadas, mas a palavra. A palavra dialogada era a base do exercício do poder na democracia nascente.  Havia uma condição para que se pudesse usar tal instrumento: que o homem que a empregasse  fosse livre e proprietário. Em grego,”propriedade” procede de “oikonomia” ( “oikos” é “casa), de onde nasce economia. Desse modo, emergem a política e a economia como espaços que deveriam ser, no entanto, mantidos separadamente: o politikos não deveria buscar o poder político para obter favorecimentos em sua esfera privada e econômica. A palavra dita em praça pública, e da qual nasciam as leis, deveria ser expressão de sua vontade em agir pelo bem comum.Tal palavra não poderia ser   mero instrumento  de interesses econômicos  particulares. A palavra também não poderia ser veículo da passionalidade,uma vez que a palavra deveria servir à razão. Uma razão política, nascida do esforço para  domar a contingência.
Mas quando surgiu exatamente este homo politikus?Este homem difere daquele que viveu à época mitológica. O homem do período mitológico viveu em um período  no qual imperavam reis e triunfavam guerreiros , enquanto muitos viviam a condição de escravos, submetendo-se àqueles. Inexistia o homem livre,  tal como o concebemos. Isto porque não havia ainda, àquela época, a democracia. O centro da vida de então era o castelo onde morava o déspota, e não a praça pública do povo.Além disso, não havia ainda uma clara delimitação , e separação, entre o universo humano e o dos deuses.Mesmo o guerreiro justificava suas ações pela influência de alguma divindade.
Porém, entre o desaparecimento do  guerreiro e o aparecimento do  cidadão há um período de passagem e transformação. Esta transformação não envolve apenas a política, pois ela também implica uma transformação mental do homem. Assim como a poesia ( a epopéia) é o melhor instrumento para compreendermos a mentalidade do homem que viveu na Grécia mitológica, há  outra arte que desempenhará papel fundamental para compreendermos essa nova mentalidade humana que emerge com a democracia. A arte em questão é o teatro.  Hoje, mal percebemos a importância que já possuiu essa arte. Todavia, essa arte está na base de constituição do homem que passa a viver no período democrático. Este período exigirá do homem uma nova relação com suas ações. Estas não poderão mais evocar a influência dos deuses como co-autores.Doravante, o homem deverá assumir-se como responsável pelos seus atos. E foi no teatro grego que esse processo de passagem foi primeiramente tematizado. Dessa maneira, o teatro também constitui um fator de educação cívica do cidadão, pela qual ele aprendia a evitar os fatores que impediam que ele se assumisse como responsável pelos seus atos. Nasce, nessa época,o primeiro esboço de uma teoria da vontade humana [3] .

- Os sofistas: o homem como o  metron de todas as coisas
Foi nesse ambiente de extrema valorização do indivíduo, e da palavra, que surgiram os Sofistas. A maioria deles veio de fora de Atenas.Por isso, não podiam exercer atividades políticas nesta capital da Grécia. A origem dos Sofistas se liga a Sicília, àquela época uma colônia grega. Nesta cidade um tirano foi deposto pelos cidadãos com a ajuda de um retórico chamado Córax. Este ajudou os cidadãos a como falar bem em público e defender suas causas diante dos juízes. Teria sido Córax o inventor da retórica. Ele teve um discípulo: Górgias. Este  deu à retórica outros fins, fins também comerciais. E foi com Górgias que nasceu o termo “sofista”, que a partir de Platão passou a ter um sentido pejorativo.
Com os sofistas, as questões cosmológicas são substituídas pelos temas antropológicos. O homem passa ao centro da reflexão filosófica. Protágoras , outro famoso sofista, resume bem essa atmosfera com o célebre pensamento: “O homem é a medida (metron) de todas as coisas: daquelas que são,na medida em que são, e daquelas que não são, na medida em que não são”.Platão,ao refutar os sofistas, dirá que apenas a Idéia pode ser a medida das coisas que se podem conhecer.
Filosoficamente, os sofistas inauguram o relativismo e perspectivismo enquanto visões do homem e do universo. Para eles, a verdade nada mais seria do que uma perspectiva que derrotou suas rivais. Eles, no entanto, eram apenas “professores”, já que não podiam exercer atividades políticas. Seus cursos eram procurados avidamente por todos aqueles que queriam vencer seus rivais em praça pública, e assim ver transformado em lei ,  e obedecido por todos, o que nascia apenas dos seus desejos e ambições.Como conseqüência, os preços das aulas subiram de tal modo que apenas os mais ricos podiam pagar. Assim, o poder econômico passou a preponderar sobre o interesse público, o que acarretou em um descrédito nas leis. Resumidamente:o caos passou a rondar a nascente democracia. E os sofistas passaram a ser perseguidos, presos e até mesmo expulsos. É nesse ambiente conturbado, política e eticamente, é nesse ambiente que surge Sócrates.

-Sócrates
Ao surgir, Sócrates teria sido confundido como mais um sofista. Inclusive, alguns inimigos de Sócrates, que são os mesmos inimigos da democracia, fizeram de tudo para manterem essa confusão até o fim , para assim tirarem proveito e condená-lo à morte,como de fato o fizeram.Mas os que se acercavam com sinceridade de Sócrates, e  o ouviam falar e questionar, estes de imediato  percebiam, não sem admirado  espanto,  que o grande dom da palavra que Sócrates possuía servia a outros fins, embora o próprio Sócrates dissesse que “apenas sabia que nada sabia”.
Entre aqueles que dele se aproximaram, havia um jovem que até então admirava os sofistas e pensava em seguir a carreira de autor de teatro. Esse jovem ainda se chamava Aristocles, mas passará à  história com outro nome:Platão. Sob o impacto do contato com Sócrates, o jovem Platão rasga seus poemas e decide se dedicar exclusivamente à filosofia (embora, até onde se sabe, nunca o velho Sócrates  teria exigido que o jovem  discípulo rasgasse poemas...).
Ao conhecer Sócrates, o jovem Platão descobre  seu caminho. Entre as muitas lições que ouviu de Sócrates, e que depois reproduzirá ( nem sempre fielmente...) em seus célebres Diálogos, uma delas merece destaque, pois essa lição também a aprenderá Aristóteles, e esta lição muito o influenciou na invenção da Lógica Dialética. A referida lição é a seguinte: “Para lutarmos contra a palavra mentirosa só temos uma arma: a palavra verdadeira”. A mera força bruta pode fazer calar a palavra mentirosa, mas não extirpa sua raiz da alma. Apenas a palavra que traz a verdade pode derrotar a palavra mentirosa . E a palavra verdadeira deve vencer a mentira à luz do dia, uma vez que a palavra mentirosa teme a luz. Ela vive da ardilosidade, da intriga e da dissimulação, uma vez que a movem interesses que vivem à sombra da razão.Assim, aquele que defende a verdade deve saber usar a palavra, pois aqueles que defendem a mentira só sabem usar a palavra, uma vez que carecem de ideias e virtudes. São as ideias e as virtudes que dão força à palavra que traz a verdade.Ou seja, o que torna as palavras verdadeiras vivamente poderosas é que elas não são apenas palavras ( flatus vocis).
Um fato marcante acerca de Sócrates é que ele dizia ouvir “uma voz interior”. Nele existiam ouvidos para ouvir essa voz que não era humana. Tomando de empréstimo uma expressão que já fazia parte da cultura grega, mas dando a ela outros fins, Sócrates  chamava essa voz interior como sendo a voz de um Daimon. Contextualizando esse termo com outro de nós mais próximo, a voz do Daimon seria a “voz da consciência”, a “voz da interioridade”. Sócrates ouvia essa voz e a  fazia de autoridade: era ela que pautava a sua conduta,e não os valores ( ou a falta deles...) dominantes. Essa interioridade que Sócrates descobre não era uma interioridade meramente psicológica. De forma mais profunda, ela era uma interioridade que o ligava ao Bem. É pelo interior que se alcança, alçando-se, o Bem.
Sócrates evocava a duplicidade de sentidos presente no termo “soma”. De “soma” nasce “somático”. “Soma” significa “corpo”.Mas “soma” também significa, em grego, “túmulo”. Sócrates explorava essa duplicidade do termo soma para indicar que o corpo era o túmulo da alma: quanto mais a alma vive apenas a vida do corpo, mais ela está como que  “morta”, morta em vida, morta para a vida do pensamento e para todos os frutos que ele pode conceber, como o fruto das virtudes; ao contrário, quanto mais a alma busca a vida que é dela própria,mais ela se percebe eterna e ao Bem busca se unir.
Outro pensamento de Sócrates muito sábio:”Conhece-te a ti mesmo”. Para ele, somente quem conhece bem uma coisa pode aperfeiçoá-la. Por exemplo,o bom sapateiro é aquele que conhece bem os sapatos. Por isso, o bom sapateiro sabe não apenas consertá-los, ele sabe igualmente  aperfeiçoá-los. O fim maior de todo conhecimento é o aperfeiçoamento. Assim, conhecer a si mesmo é aperfeiçoar a si mesmo. Sabe-se quem se conhece  pelo esforço que  faz para aperfeiçoar-se. O ignorante,ao contrário,já se acha perfeito, e é por isso que não busca verdadeiramente conhecer-se. O bom sapateiro conhece a essência dos sapatos, e é por isso que ele é capaz de melhorar os sapatos em suas existências imperfeitas. Se todo conhecer é um aperfeiçoamento, este aperfeiçoamento é praticado em razão de algo que já existe perfeito, e que funciona como modelo. Este ser perfeito é o Bem, modelo de todo aperfeiçoamento.    Conhecer a alma é, também, conhecer quem a fez. É o Bem o produtor da alma. E conhecer o Bem é fazê-lo. Sabe o que é o Bem quem o faz, pois o Bem não é matéria teórica,mas prática.
Dessa maneira, as preocupações de Sócrates versam quase que exclusivamente sobre o plano ético-moral.  É Platão que dará um estatuto epistemológico e ontológico às palavras que ouviu do seu mestre. Platão transformará em sistema aquilo que em Sócrates era vida e ação.

Referências:
BORNHEIM, G.Os filósofos pré-socráticos. São Paulo: Cultrix, 1998.
NOGARE, P. Humanismos e anti-humanismos.Petrópolis:Vozes, 1979.
VAZ, C. Antropologia filosófica I. São Paulo: Edições Loyola, 1995.
Filme sugerido:
Sócrates, de Rossellini.




[1] Para saber mais sobre o assunto: WERNER, Jaerger. Paidéia: a formação do Homem Grego. São Paulo: Martins Fontes,2001.
[2] A esse respeito: VERNANT, Jean-Pierre. “O universo espiritual da pólis”, As origens do pensamento Grego.Rio de Janeiro: Difel, 2002.
[3] Em termos estritos, a doutrina das faculdades humanas somente pôde  estabelecer-se quando a filosofia se debruçou sobre o Sujeito, fato este que caracteriza a Filosofia Moderna. No entanto, em termo lato , amplo, já existe desde os gregos , ainda que em esboço, uma tematização  de que o homem é dotado de determinadas atividades, que posteriormente serão conhecidas como “faculdades”. O principal texto a esse respeito é: VERNANT, Jean-Pierre. “Esboços da vontade na tragédia grega”. In: Mito e tragédia na Grécia antiga. Tradução Anna Lia A. de Almeida Prado, Filomena  Yoshie Hirata Garcia e Maria da Conceição M. Cavalcanti. São Paulo: Perspectiva, 1999.
















sexta-feira, 4 de março de 2016

ciência, técnica e ética:o nascimento do homem na mitologia grega

                O NASCIMENTO DO HOMEM NA MITOLOGIA GREGA[1]

  O céu da teoria é cinza;
  mas sempre verdejante é a árvore da vida.
                                                      Goethe


A mitologia grega constitui o primeiro capítulo da história da filosofia. Neste período,porém, inexistia ainda o logos, uma vez que todos os fenômenos, tanto os naturais quanto os humanos, todos os fenômenos eram explicados a partir do mythos.Mesmo quando o logos vier predominar, já na Grécia Clássica, mesmo assim o mythos ainda se fará presente, sobretudo nos relatos de Platão e dos autores do teatro.
Há nos mitos a presença marcante de uma narrativa poética e simbólica. As principais fontes dos mitos são os poemas de Hesíodo ( Teogonia e Os trabalhos e os dias) e Homero   (Ilíada e  Odisséia). Todavia, estes poetas não são os autores dos mitos, eles apenas os relatam por escrito, uma vez que os mitos nasceram das narrativas  populares cuja origem se perde no tempo.Os mitos surgem em uma Grécia Arcaica ágrafa, sem escrita, predominante oral. Daí a importância da palavra falada como instrumento de construção da memória e identidade daquele povo, que será o berço da filosofia e da democracia.
Da perspectiva da Antropologia Filosófica, interessa-nos conhecer como se esboçou, nesse período inaugural,  a primeira concepção grega do homem. Mas para compreender o surgimento do homem, segundo aquela concepção, é preciso antes lançar um olhar sobre como vieram a existir os deuses gregos,pois teriam sido estes que criaram o homem.Criaram-no com uma finalidade, com uma razão.
Faremos a seguir uma exposição deliberadamente simples, e que possui um teor interpretativo mais atento ao sentido geral do que aos detalhes. Interessa-nos, sobretudo, mostrar a natureza simbólica de tal linguagem mítica. Ao fim do texto será apresentada uma pequena referência bibliográfica, caso haja o desejo de querer saber mais.

- A origem dos deuses gregos
O que vem primeiro que tudo?As primeiras páginas do poema Teogonia, de Hesíodo, buscam dar uma resposta a esta pergunta segundo a perspectiva do mito. Antes de tudo existir, antes mesmo dos deuses existirem, existia apenas o caos. O caos é uma realidade indeterminada, um “abismo sem fundo”, conforme os termos da Teogonia. Nele, o alto e o baixo, o pequeno e o grande, o belo e o feio,o justo e o injusto, a noite e o dia...tudo isto e mais outras coisas ainda não estavam distintas:tudo estava misturado, carecendo ainda de princípios que os separassem. Assim, o caos é a indistinção de coisas que precisam ser separadas. Simbolicamente falando, o caos prepondera quando aquele par de contrários ainda são tomados como sendo a mesma coisa. Então, quando o injusto existe da mesma maneira que o justo, quando a feiúra ( moral) existe com a mesma força que a beleza, quando o baixo não se distingue do alto, quando a escuridão e a luz   são confundidos...quando isto acontece estamos diante do caos ( tanto naqueles tempos quanto nos dias que correm...).
A primeira divindade a surgir do caos  foi Gaia. Em português, a Terra.Com Gaia, surgiu o chão,o plano horizontal, que é a dimensão fundante do espaço.Do ventre de Gaia, e não do caos, surgiu outra divindade: Uranos, o Céu. Este se pôs acima da Terra, e lá ficou. Entre ambos, um vazio.Várias outras divindades gregas nasceram depois do caos.A divindade mais importante foi Eros, o Amor. Segundo o mito, esta divindade se caracterizava por “unir o que está separado”. Então, ele foi colocar-se entre o Céu e a Terra.Sob o poder de Eros, Terra e Céu se uniram, e desta união surgiram novas divindades. Surgiram então Cronos ( o Tempo), Mnemósyne ( a Memória), Thêmis ( a Justiça) , e mais outras divindades.             
Doravante, as divindades não representavam apenas aspectos físicos, uma vez que surgem divindades que, simbolicamente, expressam afetos e faculdades humanas (como a memória). As últimas divindades a nascerem, porém, representavam aspectos não muito louváveis. É o caso dos Ciclopes. Estes eram gigantes e possuíam apenas um olho no meio da testa. Simbolicamente, estas divindades representavam, com seu único olho, a estreiteza que pode haver na visão quando ela se torna refém das paixões, como será o caso,na democracia ateniense, da doxa. A doxa, a mera opinião infundada, nasce de um olhar limitado.Apenas uma visão limitada pode servir à violência. No mito, os Ciclopes eram a expressão da violência e da ignorância.
Na sequência da narrativa mítica, Cronos, o Tempo, destrona o Céu e passa a reinar no lugar dele. Com o reinado  do Tempo, o Céu se afasta totalmente e se torna tão distante da Terra que muitos esquecem que ele existe. Então, o Tempo se casa com Reia. Temendo que um filho seu, um filho do tempo, fizesse o mesmo que ele fez com o Céu, o Tempo pede a Reia que esta lhe dê o filho tão logo este nasça. Sob o seu poder, cada filho do tempo era então devorado.O Tempo devora cada filho que ele gera.
Certa vez,  contudo, nasceu um filho que portava certo aspecto que muito impressionou Reia. Esta se deu conta que este filho não deveria ser devorado pelo Tempo. Havia algo neste filho que parecia escapar ao poder destruidor do Tempo. Réia então o guardou no ventre da Terra.O filho do Tempo cresceu escondido . Seu nome: Zeus, o deus da justiça enquanto virtude ética. Crescido, este luta contra o Tempo e vence sua tirania que a tudo devora. Com Zeus nasce o Olimpo, a elevada morada divina que  torna mais próximo  Uranos, o Céu. Com sua vitória, Zeus liberta as divindades que o Tempo tentou destruir.


(Monte Olimpo, Michelangelo, Abóbada da Capela Sistina)

- O nascimento do homem
Até esse ponto da narrativa ainda inexistia o homem ,bem como todos os outros seres vivos . Zeus pede então a dois irmãos seus que fizessem toda a obra. Estas divindades se chamavam Prometeu e Epimeteu. Zeus lhes incumbiu da tarefa de criar a natureza.  Ele  fez algumas exigências : cada ser criado deveria ser dotado de uma essência que lhe permitisse viver e se desenvolver. E o mais importante: a principal criatura a ser criada deveria ser o homem. E tudo deveria ser feito dentro de um determinado tempo, ao fim do qual Zeus retornaria para ver a obra. Prometeu era a divindade mais indicada para comandar a obra, pois Epimeteu era uma divindade cuja característica principal era a volubilidade e ausência de constância. Porém, por estar atarefado com outras coisas, Prometeu pediu a Epimeteu que este começasse a obra. Prometeu viria ao fim para concluí-la.
Quando Epimeteu voltou-se para a natureza para criar os seres deu-se conta que diante dele estava apenas uma matéria muito indeterminada e confusa, na qual as formas ainda não haviam se separado e distinguido da matéria .Ao invés de começar pelo homem , Epimeteu inicia a obra pelos animais. A cada espécie criada ele a fazia dotar de alguma virtude da natureza, para que assim tal espécie pudesse se desenvolver e sobreviver. Em algumas espécies ele pôs a força, em outras ele colocou o veneno, em outras ainda a capacidade de voar; e houve aquelas que receberam a capacidade de respirar debaixo d’água. Algumas espécies receberam um cobertor natural para que pudessem ,apenas com a espessa pele, suportarem o frio extremo. Outras espécies receberam uma visão tão arguta que mesmo à noite eles poderiam ver. Enfim, Epimeteu foi esvaziando a dispensa da natureza e dotando cada espécie com aquilo que a natureza poderia oferecer. Chega então Prometeu para inspecionar a obra. A primeira coisa pela qual ele procura é o homem. Onde está o homem?Epimeteu se dá conta então que se esquecera completamente do homem. E indica para Prometeu onde estava o homem: este era um simples esboço no barro, um rascunho que mal se distinguia daquela matéria. Em latim, barros é “húmus”. Etimologicamente, “homem” procede de “húmus”.
Prometeu percebe então que a criação do homem não poderia ser feita apenas a partir daquilo que a natureza poderia oferecer. Prometeu se decide a ir buscar no divino o modelo para construir o homem.
A primeira divindade que Prometeu buscou foi Hefesto, o deus artesão-operário. Este deu a Prometeu, para este dar aos homens,a habilidade de usar as mãos. As mãos passaram a ser empregadas para fabricar coisas. Nascia assim a técnica e, com ela, o homo faber: o homem que fabrica coisas para seu sustento. Este homem já não aceita simplesmente a natureza externa: ele a transforma.  Todavia, apenas usar as mãos não  tornaram o homem  um ser completo, pois as feras conseguiam ainda assim destruí-lo e vencê-lo. Prometeu busca ajuda de outra divindade: Atena, a deusa da sabedoria. Esta aceita dar a Prometeu, para este dar aos homens, a capacidade de raciocinar: os homens recebem a inteligência. Com a inteligência, os homens aprendem a contar, a medir, a raciocinar, enfim, a falar. Com a inteligência, nasce o homo sapiens.
Todavia, os que receberam a inteligência não foram os mesmos que receberam a habilidade técnica-manual. Entre estes dois tipos de seres humanos, os trabalhadores e os intelectuais,passou a existir então uma inimizade: cada um via no outro apenas a capacidade que faltava a este outro, e que era a capacidade daquele que julgava depreciativamente  a diferença. Cada classe desprezava a outra. Eles não se uniam, não viam entre si nada de comum. Assim, facilmente a natureza os vencia. Prometeu resolve ir então diretamente a Zeus e pedir-lhe ajuda. Este aceita conceder a Prometeu, para este conceder aos homens, o sentido ético da justiça. Zeus fez uma exigência: que este sentimento fosse colocado em todos os homens, e não apenas em parte deles. Este sentimento seria o afeto que os levaria a agir conforme o comum, e não apenas conforme o interesse particular, individual ou de classe.Prometeu resolve então colocar o afeto pela justiça,pelo comum, exatamente no lugar que serviria para mediar os conflitos entre os intelectuais e os operários, entre a teoria e a técnica, enfim, entre o cérebro e as mãos. Este lugar mediador foi o coração. É o coração que equilibra o homem, o equilibra primeiramente dentro dele mesmo, para que assim ele possa se equilibrar na relação com os outros. Nasce, dessa forma, o homo eticus.
Seguindo a justiça, os homens aprenderam a cooperar: e assim nasceu a sociedade. O homem não era mais apenas um ser individual, ele se percebeu também um ser de comunidade, um ser social. E assim eles passaram a comandar a natureza: tanto a externa quanto a interna, aquela que se revela como passionalidade ( ódio, rancor, cobiça, etc.).
Contudo, por muito tempo não durou aquela conduta pautada na justiça.Como sabiam falar e dominar a inteligência,logo os intelectuais criaram leis. Depois, o Estado. E este passou a ser monopólio deles. Nasceu assim o déspota.E este passou a crer que possuía uma origem diferente: não o barro, mas o ouro. O déspota criou uma casta com privilégios,bem como um exército para reprimir os operários pobres, que foram então tornados servos. O homem passou a ser então o leão do outro homem, a serpente do outro homem, o lobo do outro homem. Horrorizado, Zeus pensou em destruir com um raio toda a humanidade. Mas decidiu se vingar com uma lição: levaria o homem a ser destruído pela sua própria ambição e pouco amor pela justiça.
Zeus então pede a Afrodite que crie um ser que seria o instrumento de sua vingança. Zeus solicita  a Afrodite que crie um ser que o homem fique cego ao vê-lo. A pele desse ser deveria tão macia que, ao tocá-la, o homem se esqueceria do aveludado das pétalas. Esse ser também deveria ser tão perfumado que o homem ,ao sentir seu perfume, também se esqueceria do perfume das rosas. Esse ser também saberia usar com sedução as palavras, para que o homem sempre acredite nelas.  E o mais importante: esse ser deveria ter dois estômagos, para que a insatisfação fosse o seu estado mais freqüente, e nunca o homem pudesse preenchê-la totalmente.  O nome desse ser : Pandora, a primeira mulher  criada.
Zeus a envia de presente aos homens. O mais poderoso dos homens a faz de esposa.Zeus envia um baú ao casal. Na tampa do baú estavam escritas as seguintes palavras: “Não abra antes do  permitido”.A irrefreável curiosidade também era uma das características de Pandora.Não obstante a advertência, ela abre o baú. Dele saem a doença, a pobreza, as pestes e o pior dos males: a morte. Até então os homens não morriam, tampouco procriavam. Quando Pandora se apressou em fechar o baú, dentro dele ficou apenas a esperança.
Entretanto, algo de misterioso acontece com Pandora, mais especificamente com aquele seu segundo estômago. A semente da vida nele se depositou, cresceu e se alimentou. O segundo estômago morreu para que no lugar dele nascesse o útero.
Ela que trouxe a doença e a morte, agora dentro dela estava sendo gerada a vida. Zeus viu então um novo papel para Pandora (que, simbolicamente, representa a sensibilidade, a sensibilidade à vida). Que ela seja o instrumento da educação do homem. Que a sensibilidade à vida o auxilie a entender o que a inteligência não compreende; que o amor à vida o ensine a apreender realidades que as mãos não podem tocar.

- Conclusão
Pelo mito podemos perceber  que o homem é apresentado como um ser dotado de partes diferentes, como um ser heterogêneo. Ao invés dessas partes se harmonizarem, nasce no entanto um conflito. De um lado, o empirismo da técnica; de outro, a postura  teórica da inteligência . Este conflito também se mostrará no campo político, impedindo a convivência democrática dos homens. Platão chamará de “faculdades” essas partes diferentes do homem. Séculos depois, Kant retomará a mesma nomenclatura, criando assim uma “doutrina das faculdades”, componente fundamental de sua filosofia e daquelas que vieram depois, seja para referendá-la ou para criticá-la.
O mito aponta ainda para uma faculdade muito especial: a sensibilidade, simbolizada pelo coração. O coração como símbolo da vida em seu sentido mais amplo, não apenas biológico ou orgânico. De um lado, a técnica; de outro, a teoria. Entre ambas, a necessidade da ética.

-Referências básicas:
BACON, F. A sabedoria dos antigos. São Paulo: Unesp, 2002.
BRANDÃO, J. Dicionário mítico-etimológico. Petrópolis: Vozes, 1991. 2vols.
___________. Mitologia grega. Petrópolis: Vozes, 1998. 3 vols.
GILSON, É. Deus e a filosofia. Lisboa: Edições 70, 2003.
NOGARE, P. D. “O humanismo dos gregos”, Humanismos e anti-humanismos: Introdução à Antropologia Filosófica. Petrópolis: Vozes, 1988.
PETERS, F. E. Termos filosóficos gregos - um léxico histórico. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1974.
SOUZA, E. L. L. de. “O nascimento da jurisprudência”, Filosofia do direito, ética e justiça – filosofia contemporânea. Porto alegre: Núria Fabris, 2007.
VERNANT, J-P. Mito e pensamento entre os gregos. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1990.

- Outras referências:
CUNHA, A. Dicionário etimológico. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.
SALLES, W. Dentro do dentro: os nomes das coisas. São Paulo: Mercúrio, 2002.






[1] Texto elaborado pelo Profº Elton Luiz como complemento às aulas.


-capítulo do livro: