O EMPIRISMO DE DAVID HUME
Onde o interior e o exterior se tocam:
aí se encontra o centro da alma.
Novalis
David
Hume, o filósofo empirista, dizia que as ideias nascem das sensações. Não há
ideia que não tenha nascido da sensação. Depois, ele precisa seu
pensamento e diz: não há oposição entre a ideia e a sensação, pois a ideia nada
mais é do que uma sensação enfraquecida, desvitalizada. Mas quando a ideia
“entra” em nossa mente ela não penetra em uma casa vazia. Nossa mente não é uma
casa vazia. Assim como uma casa pré-determina o percurso que faremos dentro
dela em razão dos compartimentos ou cômodos que ela tem, quando a ideia entra
em nossa mente ela se submeterá a certas exigências da nossa mente.
Nossa
mente não consegue, por sua natureza, lidar com duas coisas: o
imprevisível e o caos. E aqui está o problema: a origem das ideias, segundo
Hume, é imprevisível, pois vem de algo que existe fora da mente. Então, para
controlar essa natureza imprevisível e caótica da ideia, a mente tem uma arma:
as regras. É com as regras que a mente luta contra o caos das sensações e com a
imprevisibilidade de tudo o que existe fora dela e que ela não tem como
dominar, dado que a mente se percebe existindo em um mundo que não depende dela
para existir, embora ela precise desse mundo para ser uma mente, apesar de ela
não saber o que esse mundo é em si. Para proteger-se do caos, para não ser ela
própria um, a mente se arma com regras. Estas não legislam sobre as coisas tais
como elas são, elas se aplicam apenas às ideias, que são a existência mesma,
porém enfraquecida. Digamos que a ideia não é o corpo que a roupa veste, mas a
roupa sem o corpo. Deste ela mantém apenas a forma, o vestígio, a semelhança.
As regras da mente apenas valem para o caos que se enfraqueceu e se tornou
ideia, mas nunca as regras poderão um dia transformar totalmente o caos em
objeto transparente às regras de nossa mente.
Todavia,
como a existência humana se dá na superfície das coisas, e não na sua profundidade
, as regras modelam nosso mundo, e cremos que nosso mundo é “o” mundo.
São
três as principais regras que constituem nossa mente, e por meio das quais a
mente conformará as ideias: causalidade, identidade, espaço/tempo.Fora da mente
não existe causalidade, identidade, espaço e tempo. Porém, essas regras são
“vazias”. Para elas ganharem vida, elas precisam ser preenchidas com um
conteúdo, esse conteúdo são as ideias. É aqui, e não antes, que
surge a percepção. Ter percepção não é a mesma coisa que ter sensações.
Estas antecedem aquela. As sensações são as ideias mesmas. A ideia
é, ela mesma, uma sensação que se
enfraquece e deixa de ser o que ela é para se transformar em outra coisa dentro
da mente, quando então a sensação enfraquecida se conforma às exigências de
haver regras, causas, identidades, sucessão temporal e contiguidade espacial.
Nela mesma, a ideia é a sensação mesma, e esta não é uma coisa ou substância..Então,
a ideia não é ideia de algo, mas enfraquecimento de algo que se torna então
ideia, e como ideia pode entrar em uma mente e ser regrada, tornando-se
assim representação de uma coisa, de um objeto.
Quando
a sensação enfraquecida é “domada” pelas exigências da mente, somente aí nasce
o que chamamos de “percepção”: percebemos então uma cadeira, um homem,
uma coisa, enfim. Além disso, a ideia que nasce da sensação é sempre ideia
singular,simples, ao passo que, submetidas às regras, as ideias simples se unem
a outras, formando ideias compostas. “Cadeira”, por exemplo, é uma ideia
composta de outras ideias. Tudo o que percebemos , e que chamamos de realidade
objetiva, são já ideias compostas, isto é, ideias que se unem a outras segundo
a regra da identidade, sobretudo.
Nossa
percepção é construída, não é natural. As regras da mente são projetadas para
fora como se pertencessem à própria natureza das coisas. As regras da
mente não são individuais, e nem apenas biológicas. Segundo Hume, o natural e o
social se confundem. O que hoje julgamos natural não o era para os homens de
sociedades passadas. E o que hoje julgamos natural não o será para as
sociedades que virão. O homem medieval julgava que a bruxa era a causa da
peste. Hoje o homem julga que são os germes a causa. Há algo em
comum entre o medieval e o homem de hoje: a crença na ideia de causa. Talvez,
quem sabe, no futuro se julgue que as doenças têm outras causas, mas ainda
assim haverá a crença de que há uma causa. Essas regras valem não apenas para o
âmbito do conhecimento, elas valem também para o mundo das práticas.Por
exemplo, em toda época, em qualquer sociedade, os homens sempre acharam que a
felicidade tem uma causa. Para alguns, a felicidade estava na contemplação do
Bem; para outros, na posse de muitas mulheres; há ainda os que dizem que a
causa está no acúmulo de bens. A ideia de causa define o que os homens
acreditam ser “o normal”.O que caracteriza toda época é que cada época
julga ser sua normalidade o normal de todas as épocas.E a época mais terrível é
aquela que julga que todas as épocas que a antecederam eram apenas
esboços para se chegar a ela, e que ela é a época definitiva, além da qual não
haverá nenhuma outra, pois ela é o próprio "fim da história".
O
artista, porém, parece escapar do mero domínio das regras da mente, e é por
isso que ele é um extemporâneo, alguém que escapa aos determinismos
comportamentais de sua época histórica.Mais do que histórico, o artista é um
devir. Nunca o artista se contenta com a felicidade dos “normais” de sua época
histórica, sobretudo com a felicidade e sucesso daqueles que são considerados
os "artistas normais " de sua época, os quais a mídia explora e
vende.Ele quer ir além das regras da mente, para assim viver/experimentar o
perigoso lugar onde as ideias nascem. Ou melhor, ele quer fazer o caminho contrário
ao das ideias. Estas nascem das sensações, elas são as sensações mesmas, porém
enfraquecidas, e que se tornam ideias dentro da mente, ou “representações” das
coisas que imaginamos perceber fora de nós como "mundo objetivo". O
artista desce o caminho , ele o refaz. Primeiramente, ele precisa abandonar a
certeza lógica e social das regras. Ele precisa vencer a causa, duvidar das
identidades...E não raro esse “vencer” toma ares de perda, de fracasso, de
insucesso ( para aqueles que vencem graças às identidades, às causas e aos
valores dominantes de dada sociedade). Tampouco o artista é um
refém da fantasia que torna a mente paralela ( “esquizo”) à realidade, pois ele
vai além da mente socialmente conformada, ele busca o ponto que antecede o
enfraquecimento da ideia, pois ele quer a potência, ele quer a vida mais viva,
mesmo que para isso lhe faltem ideias.
Ele
sai da representação, e segue a ideia em direção ao seu nascimento, ele quer
ver onde ela nasce: saindo da casca oca do universal, ele vai ao
singular...Retirando a roupa, ele quer ver o corpo nu das coisas.À medida em
que ele se aproxima do singular, a sensação vai ganhando força, existência,
intensidade....E quando chega nesse ponto, ele faz a mais estranha
das descobertas, uma descoberta alucinante, fantástica, que desarma nossa
mente lógica e suas regras, tanto as regras lógicas quanto as sociais. O
artista descobre que seu caminho de ir para fora da mente é, ao mesmo tempo,
uma vereda para se aprofundar ainda mais dentro da mente....E que a origem da
ideia é a origem da própria mente.Ou seja, não há origem como ponto inicial ,
há apenas meio , processo. Somente quando a mente está sob regras, socialmente
determinada, é que ela tem a ilusão, ilusão científica e do senso comum, de que
existe uma oposição entre a mente e uma realidade pronta que existe fora dela.
Contudo, quando o artista explora e se explora, ele descobre que o extremo do
mundo externo e o extremo do mundo interno se tocam e embaralham suas
fronteiras, formando assim uma terra incógnita.E o que vemos aí?
Não vemos mais regras.
Qual
o valor das regras? Estabelecer critérios para a combinação ou síntese das
ideias. Por exemplo, pela regra da causalidade estabeleço uma conexão entre
duas ideias: vejo a ideia de calor, depois percebo a ideia do evaporar, e
sintetizo uma ideia com a outra, emitindo um juízo: “o calor é causa da
evaporação(efeito)”. Quando vamos a esse ponto obscuro onde mente e
matéria são indistintos, as ideias não deixam de se combinar, porém
elas se combinam aleatoriamente, sem regras. Tudo se torna possível....Torna-se
possível uma pedra falar, uma serpente voar, uma nuvem ter olhos...Segundo
Hume, esse é o mundo da fantasia. A fantasia é uma combinatória sem regras.
Logo, a mente não tem o poder de controlar e regrar a fantasia.E é isto o caos:
não a desordem, mas uma combinatória de elementos sem a menor causalidade, sem
a menor identidade, sem antes, durante ou depois, ou sem estar em algum lugar.
Phantasia: phantasma.
Na mitologia havia um personagem chamado Phantaso, que era o ser
responsável pela produção das imagens do sonho.Da mesma raiz vem o termo
“fenômeno”: aquilo que aparece. No sentido filosófico, a diferença entre
fantasia e fenômeno está no fato de que o fenômeno aparece para a consciência
desperta, ao passo que a fantasia aparece para a consciência adormecida,
sonhante. Logo, é a consciência, ou mente, que difere fantasia e fenômenos.
Neles mesmos, se retirarmos a relação que eles estabelecem com a consciência,
não existe diferença entre fantasia e fenômenos. Para a fenomenologia, por
exemplo, fenômeno é tudo aquilo que aparece para a nossa mente como sendo a
realidade que percebemos ( é o mundo que o senso comum chama de realidade ,
enfim, a própria “Matrix”).
O
artista vai ao caos e volta, e retorna de olhos vermelhos, pois foi ao sol que
ele foi, para assim ver/sentir onde nasce o dia. Ele nos faz pensar/sentir
o que não o consegue a mente socialmente regrada: pensar o singular, o
acaso, as formas de duração não redutíveis ao tempo, as diferenças que
não cabem na forma geral da identidade...