domingo, 31 de março de 2019

os três tipos de amizade


Os gregos distinguiam três tipos de amizade: a pessoal, a profissional e a política ( também chamada de amizade ética). As duas primeiras são amizades privadas, enquanto a terceira é pública ou social . O que difere cada uma dessas amizade é o vínculo que a torna possível.  A amizade pessoal tem por vínculo o prazer compartilhado  por determinados aspectos da vida. Pessoas que não têm o mesmo prazer por determinadas coisas dificilmente conseguem manter tal tipo de amizade pessoal ou privada. A amizade profissional tem por vínculo o interesse . É nesse tipo de amizade que o outro é chamado de “colega”: colega de profissão. As pessoas na amizade ética ou política  se unem tendo por vínculo o desejo comum por democracia e justiça. A amizade pessoal é vivida no espaço privado da casa enquanto meio distinto da política. A amizade profissional une os homens em torno de certos interesses privados , mas pode desuni-los pela concorrência profissional. A amizade política ou ética é vivido no espaço público e torna cidadão aqueles que aceitam se pautar por tal vínculo não privado ou comercial. A amizade ética é a condição da vida política democrática . Os revolucionários franceses chamaram tal amizade de “fraternidade” ( sem a qual não existe igualdade ou liberdade) , já os libertários a intitulam “companheirismo solidário”. A amizade pessoal tem por motor um outro igual a mim. Já o coleguismo profissional une aqueles que têm interesses convergentes. Mas somente a amizade ético-política  me une ao outro enquanto diferente de mim: ela nos faz descobrir o prazer não egoico de lutar pela  justiça, bem como o interesse não comercial ou profissional pela liberdade comum, tanto a liberdade do outro quanto a minha, pois uma não existe sem a outra.



o poder teológico-político como máquina delirante


O poder teológico-político não é nem teológico ou político, mas um monstro nascido de duas atividades antagônicas. A política preza o pôr as ideias sob a luz ( ideal iluminista) ou no meio da ágora, para que sejam avaliadas, criticadas ou elogiadas, antes de serem deliberadas e tornadas, como leis, regra para todos. O teológico cultiva o fechamento em torno de dogmas inquestionáveis , às vezes acessíveis apenas a poucos. Mas quando o político e o teológico se unem, nasce uma forma de poder que põe sob risco a luz do entendimento e a ágora enquanto espaço público democrático. O poder teológico-político , quando alcança o poder, traz para este certos dogmas inspirados em “gurus” ou “iluminados” que se creem governados diretamente por algum Deus. Além disso, exigirá a força bélica de polícias e exércitos a serviço de seu delírio, pois um dos traços do poder teológico-político é a paranoia: eles se acham “eleitos” e, ao mesmo tempo, perseguidos. A viagem de bozo a Israel também tem uma motivação teológica-política. O bozo , a Damares, o Velez e o Ernesto Araújo creem que o fim do mundo está perto. Segundo eles, Cristo estaria aguardando a conversão dos israelitas ao cristianismo para que Ele possa assim voltar . O bozo, em seu delírio de grandeza, imagina ser o agente dessa conversão-aproximação, juntamente com o Trump. E o anti-Cristo? Ele já estaria entre nós ameaçando o Brasil e o mundo. Para eles , o anti-Cristo não é uma pessoa, mas um “Ente Maligno” : o comunismo. E os budistas, muçulmanos, as religiões africanas , as mais de mil outras religiões que existem no mundo, elas também precisam se converter? Não, pois são eles que também serão julgados no Juízo Final , juntamente com os ateus e comunistas. São ideias delirantes e paranoicas assim que movem o Ernesto Araújo e sua “política externa”. No fundo, assim essa gente delira: não é preciso educação para os jovens, basta impor-lhes decorar a Bíblia; ou aposentadorias para os idosos, basta que eles frequentem a igreja ( a igreja deles, é claro...); nem é preciso florestas , rios ou a natureza. Se o fim do mundo está próximo, para que essas coisas? Essas coisas vão acabar, deliram eles, e é por isso que eles já querem acabar primeiro com a política. Pois é nela e dela, deliram eles, que o “anti-Cristo-comunismo” vive...




sábado, 30 de março de 2019

encontros com manoel


(foto: Roberto Higa) 

Para quem gosta de Manoel de Barros, na segunda quinzena de abril começo um grupo de estudos sobre a poesia dele. Esse grupo está ligado a uma pesquisa que estou desenvolvendo. É aberto ao público e acontece na Unirio, quinzenalmente. É oferecida carga horária para alunos de graduação da Unirio ou de qualquer outra instituição que queiram participar . Para o público em geral não precisa inscrição ,  é só chegar.  Abraços!        



                                                      

quinta-feira, 28 de março de 2019

o lápis do poeta


Manoel de Barros só escrevia à mão sua poesia, e sempre a lápis. Nunca lapiseira de plástico, sempre  lápis de madeira. Curiosamente, “digitar” é um ato que faz parte da atividade de “bater”, “golpear”. Quem digita, bate com os dedos nas teclas. Escrever à mão expressa outro tipo de movimento: desenhar. Quem escreve agencia sua mão com o corpo do lápis, e  por intermédio deste é nosso corpo que também escreve, com seus nervos e fibras, incluindo as do coração. Quem escreve à mão  desenha, parecendo às vezes que o lápis também dança na ponta de seu grafite, como a bailarina  equilibrada na ponta dos pés. Para que na palavra também se expresse a vida,  mais adequado  é o lápis do que a caneta: a tinta que sai desta é coisa química, mas o grafite que o lápis liberta veio da imanência da terra, é vida. O cérebro não funciona da mesma maneira quando se digita e quando se escreve à mão, quando se bate e quando se desenha, quando se golpeia e quando se dança. Há certa violência em bater-digitar. Talvez essa seja uma das razões que explique porque  os fascistas gostam tanto de violentar também as teclas e, por intermédio destas, as ideias, encontrando no meio digital um ampliador de suas violências físicas e simbólicas. Nada contra o digitar, porém escrever à mão, a lápis, é ato mais afim ao poema que , como gente, também nasce: “Na ponta do meu lápis há apenas nascimento”(Manoel de Barros).



( fonte da foto: blog “Os Fazedores”. A foto  é uma composição com um desenho feito pelo  próprio Manoel)
                                                                                                                                                                      

quarta-feira, 27 de março de 2019

a tangente


Manoel de Barros define sua poesia como uma “Estética da Ordinariedade”.  Mas a “ordinariedade” de que fala Manoel nada tem a ver com o   “ordinário” das coisas ética e politicamente pequenas.  Curiosamente , a  ideia de “ordinário”  vem da matemática, assim como  a noção de “extraordinário”. Na matemática, os “pontos ordinários”  de um triângulo são os inumeráveis e indistintos pontos que ocupam cada um dos lados da figura, ao passo que seus três “pontos extraordinários” ou “singulares” localizam-se em cada ângulo do triângulo. Em uma reta, por sua vez, os pontos extraordinários são dois: os que ocupam os extremos da linha.
Mas  a relação  entre ordinário e extraordinário mostra toda a sua riqueza quando examinamos o círculo. Tal figura geométrica parece destituída de pontos extraordinários ou singulares. Geralmente se  costuma dizer que nossa vida é um círculo: o círculo de nossa vida. Então, estaria o círculo de nossa existência destituído de momentos singulares? Estaria nossa vida refém do ordinário?
Porém  o círculo guarda um segredo, tanto na matemática como na vida: qualquer ponto ordinário seu pode metamorfosear-se em ponto extraordinário, se por ele passar uma “tangente”. “Tangente” significa: “ o que toca ou afeta”. Na matemática, a tangente é uma linha, porém na vida uma tangente pode ser qualquer coisa que, como “linha de fuga”,  potencialize o sentir e  o pensar. “Linha de fuga” não é fugir de algo, mas fazer fugir algo que estava aprisionado. Toda tangente abre o que está fechado, deixando entrar luz, ideia  ou ar.  No encontro da tangente  da poesia com o círculo de nossa vida , este é tocado e se abre, o suficiente para um pouco de  vida de novo entrar.  





domingo, 24 de março de 2019

o padeiro...


“Minhas palavras não se ajuntam por sintaxe, mas por afeto”, diz Manoel de Barros. “Sintaxe” é toda “Ordem” que precede o que fazemos e exige que façamos o homogêneo que ela ordena, cobrindo-nos com seu uniforme .  Quando as pessoas “se ajuntam apenas por sintaxe” , impera o “mesmal” de um rebanho a fazer tudo igual . Somente o “Afeto” nos põe dentro da  palavra: “A palavra abriu o roupão para mim: ela quer que eu a seja” , afeta-nos o poeta. É o afeto que ensina cada palavra a ser companhia para outra, para que assim aprendam a ser as pessoas companhias umas para as outras. Fazer-se companhia é mais do que oferecer  amizade privada  ou colocar-se em  igualdade conforme a sintaxe das leis.“Companhia” vem de “compane”. “Pane”  está  na raiz da palavra “panificadora”, pois “pane” é, em latim,   “pão”. Assim,“companheiro” é : “aquele com quem dividimos o pão”. Há o  pão que alimenta o corpo, como aquele que faltou ao povo francês, e que Maria Antonieta, zombando, disse: “Não têm pão? Comam brioches!”.Então, de outro pão precisaram  os não resignados : a justiça, que é o pão que alimenta  a ação dos que, como companheiros ,  enfrentam  as tiranias. A farinha desse pão é a liberdade, e o seu fermento ,  a indignação.  Há poetas que , mais do que poetas, também são padeiros que, com versos,   fabricam tal pão que não nos deixa  morrer de fome :  “Poesia pode ser que seja fazer outro mundo” (Manoel de Barros) .







                                                                                                      

                                                                                 


sexta-feira, 22 de março de 2019

o que pôs o homem de pé


Segundo Fernando Pessoa, no início dos tempos o homem andava de quatro, como um cão. Sua coluna vertebral era paralela ao chão, parecendo um travessão . E sua cabeça estava voltada sempre para baixo, a procurar por sobras , restos e rastros.  O que pôs o homem de pé, segundo o poeta,  não foram os pés. O homem foi elevando-se quando seus olhos se desterritorializaram do chão e se reterritorializaram no céu aberto  acima dos interesses rasteiros . E foi assim que nasceu o desejo: em latim, “desiderare”, “ir às estrelas”.
De pé, vista de lado, a coluna vertebral se assemelha a um ponto de interrogação , pois é o interrogar que pôs e põe o homem de pé : o interesse estreito, ao contrário,  o coloca de quatro, enquanto o medo o põe de joelhos.                                                                                                          


                                                                                                     
“Em qualquer lugar onde o homem experimentou se pôr de pé, ele próprio se tornou o centro do grande círculo, e o começo de um caminho”. (Clarice Lispector)

(imagem: “Poesia”, Haroldo de Campos)













Segundo Deleuze, a reterritorialização que se segue a uma desterritorialização nunca é uma adaptação, mas sempre uma criação de novos meios por agenciamento. Por exemplo, a mão humana nasceu da desterritorialização da pata  do território da locomoção seguida de  sua reterritorialização sobre um pedaço de galho que, por sua vez,  se desterritorializou da árvore e se tornou bastão, instrumento, potencialização da ação. A reterritorialização criou não apenas a mão: ela  criou  também  a técnica. Criar algo novo nunca é um ato isolado, mas sempre um agenciamento, como o agenciamento mão-utensílio. A desterritorialização dos olhos e sua reterritorialização no infinito criou os olhos poéticos-filosóficos e a substância infinita que tais  olhos veem e pensam, tal como a viu e pensou Espinosa.


quinta-feira, 21 de março de 2019

procustos


Outro mito que lembra o bozo é o de Procusto, considerado o mito que simboliza a intolerância. Procusto construiu uma cama e a oferecia para as pessoas se deitarem. Quando as pessoas se deitavam na cama , porém, nunca ninguém cabia direito nela: às vezes a cama se mostrava pequena, fazendo sobrarem os pés e a cabeça. Procusto pegava então um machado e decepava a cabeça de quem acreditou em sua oferta, pois somente se tornando acéfalo se poderia caber naquela cama. Noutras vezes a cama parecia exagerada. Procusto amarrava então os pés e as mãos de quem se deitou na cama e os puxava para forçar os outros a caberem em seu exagero, mas o que ele conseguia era desmembrar as pessoas , deixando-as sem pernas e braços para reagirem. Quando as pessoas criticavam aquela cama, Procusto se limitava a pegar uma régua, a sua régua, e media a cama. Depois ele dizia: “O que vocês estão criticando? Acabei de medir a cama, ela é perfeita: cada lado é do tamanho do outro, a cama é homogênea. Se há algum defeito ele está em vocês, que são heterogêneos e diferentes! Amoldem-se, mesmo que à força, e caberão na minha ‘Verdade’!”.

( imagem abaixo: "não ao fascismo"; não por acaso, o símbolo do fascismo é o machado)




quarta-feira, 20 de março de 2019

sobre o uso dos mitos...


Às vezes, os simpatizantes do bozo  o chamam de "mito". De certo modo, eles não estão errados. Pois mitos não são apenas Zeus, Hermes, Afrodite, Eros, Dioniso ...Também são mitos , por exemplo, os "Ciclopes" , que eram seres de um olho só na testa simbolizando “estreiteza de visão”. Os Ciclopes eram inimigos de Zeus, o deus da ética e da justiça, e de Eros, o deus do amor. Os Ciclopes, segundo Jung, simbolizam o que de besta bárbara ainda vive no homem, como sombra persistente mesmo hoje nesse mundo tecnológico, pois o bozo-Ciclope também usa a tecnologia a serviço de sua visão estreita. Outro mito que parece simbolizar o bozo são as “Eríneas”, deusas do ódio e da vingança. Foram elas que despedaçaram “Orfeu”, o poeta que cantava a vida e a arte. As Eríneas despedaçaram Orfeu  pelo seguinte motivo: quando Eurídice morreu, o poeta Orfeu parou de cantar. Eurídice era o par de Orfeu. Para os gregos, “Eurídice” também é um dos nomes da alma, assim como “Psiquê” e “Pneuma”. Então, as Eríneas queriam que Orfeu esquecesse a alma e servisse a elas, cantando assim a guerra , o ódio e a vingança, para ajudá-las a espalhar tais vilezas  pelo mundo. Como Orfeu se recusou a usar sua arte para servir à barbárie, as Eríneas o despedaçaram, tal como as Eríneas de hoje que despedaçaram a placa de rua com o nome da Marielle... Mas isso não fez morrer o poeta , pois seu filho de nome “Museu”, poeta como o pai, recolheu os fragmentos  que Orfeu se tornou e os reuniu novamente, fazendo surgir assim a primeira exposição do mundo, na qual  Orfeu reencontrou sua alma-Eurídice expressa em sua  arte. Pela ação de Museu, a vida de Orfeu estaria conservada e  a servir de lição para nos ensinar que, por  mais que a barbárie tente, ela nunca vai vencer  totalmente a poesia, a vida e a arte.



terça-feira, 19 de março de 2019

a fila...


A ideia de que o Brasil é um país “em desenvolvimento” é sempre colocada em oposição a duas outras espécies de países: os já desenvolvidos e os subdesenvolvidos. O Brasil estaria no meio, como se o mundo  fosse uma fila :  quem está no meio dela , como nós,  deve olhar mais para frente, seguir o “líder”, e não olhar muito para quem está atrás, mesmo que sejam nossos irmãos.  Essa visão nasceu da “ideologia do progresso”. Essa ideologia vende a ilusão de que se seguirmos o líder um dia chegaremos aonde ele está.  Mas será que os países que são hoje desenvolvidos um dia foram subdesenvolvidos? O que caracteriza os países subdesenvolvidos é que eles foram objeto de exploração colonialista, incluindo  a escravidão. A maioria dos países desenvolvidos foram aqueles que exploraram, como colônia,  os que hoje são subdesenvolvidos ou em desenvolvimento. Os EUA foram colônia no passado, mas os explorados eram sobretudo os negros que lá viviam. Hoje, Trump e seus apoiadores  vendem a ideologia de que os que estão  atrás na fila, se se comportarem bem, um dia estarão mais perto deles.  A visão de que a história das sociedades é uma fila aliena os povos da América Latina de se verem lado a lado.   Devemos suspeitar da história e seu ideologizado progresso e redescobrir a geografia. A geografia nos põe  diante do plano horizontal de  nossas vizinhanças. Os países desenvolvidos não são nosso futuro, na verdade alguns deles são aqueles que nos roubam a possibilidade de  um futuro, o nosso e o de nossa vizinhança.  A geopolítica nos faz ver, inclusive, que o tal líder da fila colocou um muro farpado em suas fronteiras  para manter seus vizinhos pobres à distância... A geopolítica nos mostra que a ideologia do progresso escamoteia um presente predador que ameaça o futuro  do próprio planeta  terra . A ideologia do progresso muitas vezes esconde  uma mentalidade medieval ressuscitada . No caso do governo bozo, nem a imagem da fila serve mais. A imagem mais correta talvez seja a do servil lacaio  seguindo seu dono.





Sobre uma geofilosofia inspirada em Deleuze , tive o prazer de participar deste livro organizado pelo  Wenceslao  (geógrafo e pensador político do espaço) :



segunda-feira, 18 de março de 2019

Hesíodo e a origem dos deuses


Segundo o mito, antes  de tudo  existia o Caos. E foi do Caos que nasceu a primeira divindade: Gaia, a Terra. A palavra "nascer" não é muito adequada, pois todo nascer pressupõe um pai e uma mãe. O Caos não é homem ou mulher, macho ou fêmea, tampouco o Caos é filho de alguma coisa. O adequado talvez seja dizer que Gaia emergiu do Caos, tal como uma ilha que sobe do fundo do oceano. Gaia emergiu   da multiplicidade indivisível de uma realidade inesgotável. Gaia é singular, incomparável, única de sua espécie: Ancestral Mulher. De Gaia nasceu Uranos, o Céu. "Nascer" também é um termo inadequado, já que Gaia não tinha par. Talvez seja mais adequado dizer que o Céu-Uranos foi um pedaço da Terra que se separou dela, pondo-se acima a gravitar. Nessa época , a Terra era toda ventre, múltiplos ventres. Cada ventre era uma caverna que ia dar no Caos, a imanência fértil, da qual a Terra emergiu. E foi por um desses ventres que veio ao mundo Eros, o Amor. Este ocupou o lugar vazio entre a Terra e o Céu, pois o Amor fez nascer a ideia de que toda separação é vazio a ser vencido. Sob o poder de Eros, o Céu deitou-se sobre a Terra: as estrelas daquele viraram sementes desta, e assim nasceram novos deuses filhos do Céu e da Terra. Cada divindade nova nascia das estrelas do Céu  plantadas como sementes na Terra. Talvez seja isso que queira dizer Manoel quando ensina que "poesia é celestar as coisas do chão." Entre essas estrelas-sementes a mais potente foi Cronos, o Tempo, filho do Céu e da Terra unidos  por Eros. 


“A literatura é o esforço para interpretar engenhosamente os mitos que não mais se compreende, por não sabermos mais sonhá-los ou produzi-los.” (Deleuze)




manoel de barros: a estética da ordinariedade




No Livro de pré-coisas , na prosa poética intitulada "Agroval*", Manoel de Barros descreve um acontecimento ordinário do pantanal. “Ordinário”, aqui, significa a mesma coisa que comum ou regular. À ideia de “ordinário” costumamos opor a noção de “extraordinário”. Vale a pena lembrar a origem matemática desses termos. Na matemática, os “pontos ordinários” de um triângulo são os inumeráveis e indistintos pontos que ocupam cada um dos lados da figura, ao passo que seus três “pontos extraordinários”, ou singulares, localizam-se em cada ângulo do triângulo. Em uma reta, por sua vez, os pontos extraordinários são dois: aqueles que ocupam os extremos da linha.
Todavia, a diferença entre ordinário e extraordinário mostra toda a sua riqueza quando examinamos o círculo. Aparentemente, tal figura geométrica é destituída de pontos extraordinários ou singulares. Mais do que uma linha reta, geralmente costuma-se afirmar que nossa vida é um círculo: o círculo de nossa vida. Então, estaria o círculo de nossa existência destituído de momentos singulares? Estaria nossa vida refém do ordinário?
Mas o círculo guarda um segredo, tanto na matemática como na vida: qualquer ponto ordinário seu pode metamorfosear-se em ponto extraordinário, se por ele passar uma tangente. No encontro da tangente com o círculo, ambos dividirão o mesmo ponto, abrindo assim o círculo a uma força que vem de fora de seus limites e contornos. Quando o ordinário se converte em extraordinário, acontece o deslimite - renovando-se a vida.
Assim, entre o ordinário e o extraordinário não existe uma diferença intransponível: é no seio do ordinário que o extraordinário acontece. “Cada coisa ordinária é um elemento de estima”, afirma o poeta. Pois, complementa, “é no ínfimo que eu vejo a exuberância”. Em "O Guardador de águas", ele revela ainda: “No achamento do chão também foram descobertas as origens do voo.” É no ordinário do chão que o extraordinário, como voo, é “achado”. Enfim, “o chão é um ensino”.
"O que eu descubro ao fim da minha Estética da Ordinariedade , afirma o poeta,é que eu gostaria de redimir as pobres coisas do chão".

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*"Agroval" é um neologismo criado pelo poeta e significa: "lugar onde se cultiva a vida".

domingo, 17 de março de 2019

o segundo estômago...


( esta história acontece na sequência do episódio narrado na postagem anterior)

Zeus chama Hefesto , Atena e Afrodite. Após pegar um pouco de barro e umedecer com sua saliva, ele pede a Hefesto que modele naquele barro um novo ser tomando como modelo a inteligência de Atena e a beleza de Afrodite. O homem foi feito com barro seco, mas esse novo ser absorverá o elemento divino com o qual é umedecido. Zeus fez uma exigência: que esse novo ser tivesse dois estômagos. Sua intenção com isso era tornar esse ser extremamente crítico pois  nunca ficaria satisfeito. Esse ser assim esculpido por fora e por dentro se chamou Pandora, a primeira mulher. Zeus a mandou  de presente aos homens, e o chefe dos homens então se casou com ela. Logo depois Zeus mandou um baú de presente escrito na tampa “não abra”. Mas por curiosidade Pandora o abriu , e do baú saíram  a doença , muitos outros males e também a morte. Quando Pandora correu para fechá-lo, lá dentro do baú ficou apenas a esperança ( que o grego considerava um mal...). Mas aconteceu algo imprevisto e misterioso , que nem os deuses previram: aquele segundo estômago de Pandora passou por uma metamorfose, talvez pela ação da saliva divina que o corpo de Pandora absorveu. E aquele segundo estômago se converteu em fonte produtora de vida, ou seja, uma capacidade que somente os deuses tinham. Pois aquele segundo estômago se metamorfoseou em útero. Assim , Zeus fez de Pandora sua aliada na tarefa civilizacional de, não se submetendo ao  poder belicista do homem , gerar , proteger e  cultuar a vida.



sábado, 16 de março de 2019

a criação do homem


Zeus concedeu a Prometeu e Epimeteu a tarefa de  criar os seres vivos. Zeus fez apenas duas  exigências: “Que cada ser receba uma qualidade para ser a sua essência  e que se capriche na criação do ser humano”. Prometeu era o mais indicado para realizar a obra, mas precisando    se ausentar pediu então a Epimeteu para começar a obra: “Mas não se esqueça do homem!”, advertiu antes de sair.  Epimeteu resolveu começar a obra  pelos animais.  Em  alguns  ele pôs  a força; noutros ele colocou a velocidade. Outros receberam o dom de voar; o veneno receberam  outros. Enfim, Epimeteu foi esvaziando a despensa da natureza... Chega Prometeu para inspecionar a obra e , com preocupação, grita: “Onde está o homem!?”  Epimeteu aponta para o barro: o homem era ainda um simples esboço no barro ( “homem” vem  do latim “húmus”, “barro”). Prometeu percebe então que precisa pedir auxílio aos deuses para fazer o homem.
Prometeu buscou Hefesto, o deus artesão-operário. Este deu a Prometeu, para este dar aos homens, a habilidade de usar as mãos. Nascia assim a técnica e, com ela, o homo faber. Este homem já não aceita simplesmente a natureza externa: ele a transforma.  Todavia, apenas usar as mãos não foi suficiente, pois as feras conseguiam sobrepujar tal homem. Prometeu busca a ajuda de Atena, a deusa da sabedoria. Esta dá a Prometeu , para este   pôr nos homens, a inteligência. Os homens aprendem a contar , a escrever e  a teorizar. Nasce o homo sapiens.
Mas os que receberam a inteligência não foram os mesmos que receberam a habilidade técnica-manual. Entre  os que sabem empregar as mãos e os que só sabem teorizar nasce uma inimizade: cada um via no outro apenas a ausência  da qualidade própria. Surgia assim  a intolerância :  não viam entre si nada de comum.  Prometeu resolve ir então diretamente a Zeus . Este aceita conceder a Prometeu, para este pôr nos homens, o sentido ético da justiça. Zeus fez uma exigência: que este afeto  seja colocado em todos os homens , somente o senso ético tornaria os homens inteiros. Prometeu instala esse  afeto pela justiça no coração do homem, libertando-o  da guerra  entre a teoria e a técnica,  entre o cérebro e as mãos. É esse afeto  que equilibra o homem, o equilibra primeiramente por dentro, para que assim ele possa se equilibrar na relação com os outros. Nasce, dessa forma, o homo eticus. Os homens aprenderam a cooperar: e assim nasceu a sociedade.
Contudo, por muito tempo não durou  o governo da sensibilidade ética. Como sabiam  escrever  e desconfiavam da sensibilidade, os teóricos criaram as leis. Depois criaram o  Estado, que se tornou   monopólio deles. Nasceu assim o déspota impondo a crença de que tinha  uma origem diferente: não o barro, mas o ouro. O déspota criou uma casta de sacerdotes e juízes com privilégios, bem como um exército para reprimir os herdeiros de Hefesto-Operário, reduzindo-os a servos presos a  grilhões. O homem passou a ser então a serpente e o lobo do outro homem... Ao ver o que se tornou sua obra, novamente Prometeu com indignação gritou: “Onde está o homem!?”  Os que não são surdos a tal grito  se apresentam,  resistindo  aos déspotas e quebrando  grilhões.



( o texto acima que escrevi  é uma interpretação do poema de Hesíodo "Os trabalhos e os dias")


quinta-feira, 14 de março de 2019

a arma aponta pra gente


Segundo Espinosa, a pior fase da vida é a infância. Não por algum problema intrínseco a essa fase da vida. A infância é a pior fase porque é nesse estágio da vida que mais sofremos a influência dos adultos que nos cercam, sem termos ainda o discernimento para avaliar criticamente o que certos adultos fazem e cultivam.  Um adulto tem como escolher de quem se aproximar ou afastar, mas a criança não tem como pensar seus encontros.  Ela está à mercê, na mente e no corpo. Se um adulto se aproxima de alguém quando na verdade deveria se afastar, isso é um erro de seu discernimento. Porém  uma criança não tem ainda essa capacidade de avaliar.  “Criança” significa: “aquele que crê”.  A criança é a crença em seu estado puro ,  sem o conhecimento da índole dos adultos que a cercam.  O mau não está nessa propensão a crer e imitar, o mau está no adulto que se vale disso e se apresenta como modelo a imitar. Esse adulto poderá  “entrar” de tal modo na mente  da criança que depois  dará muito trabalho à  boa educação retirar essa má influência, quando ainda dá tempo para retirar...   A criança é “inocente”, isto é, sem a noção do que é veneno ou alimento. Mas um adulto que força uma  criança a imitar um comportamento que simula uma arma apontada genericamente , na verdade é para a sociedade inteira que essa arma estará sendo apontada. Tal adulto parece querer inocular na criança o veneno de que é isto que merece  o outro: uma arma apontada pelo simples fato de ser  outro, diferente. Na sua inocência,  a criança imita. Mas não há nenhuma inocência  no adulto que a força a imitar : a arma que ele faz a mão inocente da criança virar  está apontada pra gente.

( relutei muito em postar essa foto junto com o texto, tão constrangedora ela é. Mas quando agimos movidos pela justa indignação, e não por mero ódio , ao  fazermos uma acusação é preciso mostrar o crime)


obs.:O livro “Werther”, de Goethe, foi proibido por décadas em vários países. Werther é um jovem romântico que escreve cartas de amor  para uma mulher pela qual ele se apaixonou. Era uma mulher casada. Então, ele escreve uma última carta justificando um ato extremo que ele cometeria. Em seu delírio , ele tinha a certeza de que aquela mulher seria de outro apenas naquela vida, mas seria dele em outra vida. Ele comete então o suicídio. As cartas são tão persuasivas que vários jovens em situação semelhante também se matavam. Porém o poder de persuasão do livro era aumentado devido à mentalidade da época: o “Romantismo”. O que quero dizer é que tragédias semelhantes à de Suzano já aconteceram no passado, isso é fato. Mas o gesto do bozo é mais perigoso enquanto mau exemplo às crianças e jovens devido à mentalidade de ódio e belicista que paira sobre nossas cabeças. Seu gesto insano potencializa tal mentalidade.




Crianças precisam de meios que potencializem sua criatividade e compreensão progressiva do mundo e de si própria. Adultos e instituições que auxiliem a criança nessa descoberta tornarão a infância a melhor das épocas.





terça-feira, 12 de março de 2019

manoel e o estilingue


Segundo o poeta Manoel de Barros, há na poesia uma didática. Não uma didática para nos ensinar teorias, isso fica para as academias e seus doutos. A didática que a poesia ensina é uma “didática da invenção”. Ensinar a inventar, essa é a lição de tal didática, sobretudo  para a vida. Manoel diz que aprendeu essa didática não em livros ou cartilhas, ele a aprendeu com um menino:  "inventei um menino levado da breca para me ser”. O poeta inventou um menino para sê-lo: e é o próprio menino inventado que ensina a Manoel como inventar-se.    Esse menino, diz o poeta, é “a criança que me escreve”.   Essa criança não é uma idade da vida, mas a própria potência da vida em seu “minadouro” e novidade. Para que não nos domine a “velhez” , o poeta nos convida para os  seus “exercícios de ser  criança”. “Velhez”  não é uma idade, “velhez” é uma forma de mentalidade e poder   que quer impor a todos o seu “mesmal”.   Os exercícios de ser criança consistem em  dar cambalhota,  apertar a companhia e sair correndo , atirar com estilingue nas latas, brincar de pique, jogar bola na rua , mesmo que a isso proíba o guarda... Os exercícios são  as “peraltagens” de que são capazes as crianças. É preciso aprender  a fazer essas peraltagens  com as palavras , de tal modo a fazer a gramática dar cambalhota , bem como  driblar com o sentido insubmisso as significações dominantes e  seus guardas.   Inventar com   as palavras uma    lúdica arma, um simbólico estilingue, apontado contra a velhez  reaça.

“O homem seria metafisicamente grande se a criança fosse seu mestre. ” (Kierkegaard)






terça-feira, 5 de março de 2019

o que é a filosofia...


A palavra “filosofia” nasceu da reunião de “philo” e “sophia”. “Philo” significa tanto “amor” como “amizade”. Por isso, filósofo não é apenas quem raciocina ou meramente teoriza, filósofo é quem vive e potencializa afetos afirmativos da vida. “Sophia” significa “sabedoria”. “Sophia” não é só teoria, fórmulas, razões. Ela também é Vida, Arte, Poesia. São a essas coisas que o filósofo dedica Afeto. Para Deleuze, não há filosofia sem um modo de viver filosófico. Um modo de vida filosófico não significa uma vida erudita mergulhada em livros, nem um tipo de vida que, para ser vivida, necessita de um título filosófico auferido pela academia. “Sophia” também pode ser um nome próprio feminino. "Sophia", ou "Sofia", é o belo nome que muitos pais escolhem para chamarem a quem trazem à vida. Pois é isto a sabedoria: um trazer à vida para afirmar a vida, resistindo àqueles que a querem morta. Por outro lado, “Teoria” é tão abstrato que ninguém   se deixa chamar assim, tampouco pode ser o nome de alguém “Razão” , “Ciência” ou “Verdade”. Não dá para imaginar alguém se chamando “Verdade”! (embora muitos tenham   a pretensão de encarná-la e serem os donos exclusivos dela, mesmo que  à força...). Mas assim como uma pessoa é mais do que seu nome, a sabedoria é mais do que sabedoria: ela também é generosidade, modéstia e coragem.


sábado, 2 de março de 2019

o albatroz, o oceano e as ilhas desertas...


Quando atravessa o oceano o albatroz é capaz de ficar   no céu dias a voar, pois nesse tipo de travessia ele nunca sabe quando encontrará um lugar para pousar. Voar assim só ousa  quem confia em suas asas. Os pássaros de asas menores voam apenas nos limites do litoral , no máximo se aventurando às ilhas próximas já por eles conhecidas. Mas o  albatroz precisa de asas gigantes , do tamanho de sua travessia. As asas do albatroz são tão imensas  que, no solo,  ele nunca consegue recolhê-las totalmente : elas  foram feitas para explorarem o céu ,  não para se acomodarem ao chão rasteiro. Cientistas descobriram recentemente que o cérebro do albatroz inventou uma estratégia para realizar sua corajosa “linha de fuga” : enquanto o albatroz voa sobre o oceano , metade do seu cérebro dorme, ao passo que  a outra metade fica em vigília; um olho sonha, o outro ao horizonte mira. Durante a travessia, a metade do cérebro que sonhava  desperta  renovada,  deixando   ir sonhar a outra metade que, acordada,  ao mundo externo percebia. Porém se engana quem pensa que  é na metade do cérebro  que vê a realidade dada que o albatroz se  fia, pois  quem se desterritorializa sobre oceanos é na sua parte que sonha  que ele  se orienta e confia. O albatroz só encontra pouso quando acha, no meio do oceano, ilhas desertas nunca antes vistas.

“Poesia é voar fora da asa” (Manoel de Barros)
“Sonhar é acordar-se para dentro” (Mário Quintana)




sexta-feira, 1 de março de 2019

a voz do futuro


Creio que essa situação que nos tem paralisado é o sintoma de uma ameaça inédita que estamos sofrendo: a ameaça da “morte do futuro”. Nunca na história da humanidade o futuro esteve tão ameaçado. Ele já esteve ameaçado de ser destruído fisicamente por bombas atômicas na “guerra fria” . Hoje a ameaça é ao futuro enquanto dimensão de criação de uma outra sociedade : mais justa, menos desumana. Às vezes se diz que é preciso “matar o passado” para continuarmos vivendo, quando nele aconteceu algo que não superamos e nos provocou um “trauma”. Esse passado traumático deve ser morto  em nome de uma transformação que abra o presente ao futuro. Hoje o trauma não é em relação a algo acontecido , mas ao que acontece agora  e nos enluta por um futuro  ainda nem nascido. Politicamente, o futuro sempre foi o território  para o qual se direciona o pensamento de esquerda. A direita, ao contrário, é a vontade de conservar o passado. Esquerda e direita não têm a mesma visão do presente: a esquerda pensa o presente como um momento para a construção  do futuro, ao passo que a direita considera  o presente um risco aos valores  do passado. Mas o que vivemos hoje é uma direita que parece ter mudado de foco. Ao invés de apenas se contrapor à esquerda na defesa do passado, a neodireita agora resolveu destruir não a esquerda diretamente mas aquilo que constitui a sua razão de ser : o futuro. Parece que para a neodireita o amor ao passado é só uma máscara atrás da qual se esconde seu verdadeiro rosto: o ódio ao  futuro (por motivos que talvez só a  psicanálise explique...). A antiga direita se pautava  por um respeito ao passado , daí sua estima pela tradição e aos idosos; hoje, a neodireita se caracteriza mais pelo ódio ao futuro, e por isso quer encurtá-lo   para  os idosos, sobretudo os idosos pobres,  ameaçando extinguir suas aposentarias , e com isso diminuindo o que tem de futuro suas vidas. Quando olhamos para traz vemos a escravidão em nosso passado vergonhoso. A neodireita parece querer uma nova versão dessa vergonha.  A resistência a isso é  a justa indignação: ela é a voz do futuro pedindo que a gente o defenda.

“A indignação é o afeto comum que une os justos  em defesa da comunidade que   o tirano   ameaça de morte ” ( Espinosa)