sábado, 28 de novembro de 2020

as três metamorfoses

 

Nietzsche diz que o homem pode passar por três metamorfoses :a do burro, a do leão e a da criança. O burro é aquele que diz “sim” ao que está dado: ele aceita, passivamente, os valores estabelecidos por intermédio dos quais o poder dominante se perpetua. Sua forma de aceitação é “oferecer as costas” para carregar, assim se entregando à “servidão voluntária” , nisso lembrando também um “gado”. É assim que o burro se sente “útil” : carregando o peso que em suas costas colocaram. Todos nascemos mais ou menos burros, pois carregamos , desde a infância , os valores de um mundo que já achamos pronto, dado. Quando o poder diz que só se deve ensinar às crianças tabuada e gramática, e nada de artes e filosofia, o que ele quer é manter submissos seus carregadores também no futuro. O leão pode nascer do burro quando este sofre uma metamorfose, aprendendo a dizer “NÃO”. Ninguém sobe no dorso de um leão: ele vê em tudo uma jaula onde querem prendê-lo. O leão é ferozmente crítico e cético, imaginando que ser potente é negar . O leão pode mais do que o burro, porém é incapaz de criar , pois para criar é preciso crer. E o leão em nada crê. O leão imagina que crer é ser como o burro que ele já foi. Do leão pode surgir nova metamorfose: a criança, aquela que redescobre a força do “Sim”. Pois o Sim da criança não é como o sim alienado do burro. O Sim da criança sobreviveu ao não do leão, o incorporou como crítica, porém vai além dele, tornando-se afirmação de uma potência criativa . A criança não carrega, como o burro; nem ruge e ameaça, como o leão. Ela libertou-se de todo peso, corre e dança, e há nela uma força mais poderosa que a dos dentes e garras. O burro é refém dos valores do presente que o esmaga e aliena; já o leão nasceu quando este presente virou passado que o leão não quer mais que se repita. Mas a criança é , ao mesmo tempo, metamorfose no presente e libertação do passado em razão de uma crença ativa no futuro , uma “linha de fuga”, como criação de novas possibilidades para a vida, a despeito das forças obscurantistas que ameaçam retê-la. Não se trata de otimismo ou esperança, mas de perseverança: “Só podemos destruir sendo criadores”. (Nietzsche)






quinta-feira, 26 de novembro de 2020

poetas da bola

Nietzsche dizia: “É preciso proteger os fortes dos fracos.”  Em Nietzsche, “forte” é a “potência”, a criatividade, a afirmação da vida. “Fraco” é o ressentido, o autoritário, o negador da vida. Essa frase de Nietzsche  se aplica a várias coisas, inclusive ao futebol . Na bola, o forte é  mais do que mero atleta : o forte-potente também é   criativo, artístico, pensador. O criativo respeita as regras, mas não se limita a elas,  pois ele exerce  uma potência singular  :  sua arte de jogar/pensar. Por isso , ele também sabe  inventar o improvável que não está previsto na “regra acostumada”,  sem fazer de sua invenção  uma burla ou infração. Quando  Leônidas da Silva inventou a “bicicleta”, o juiz parou sem saber o que fazer, pois Leônidas “inventou um comportamento” apoiado apenas naquilo que “pode um corpo”, como já dizia Espinosa. Quem “inventa comportamento” é poeta, ensina Manoel de Barros.  Em geral, o craque-criativo-pensador sofre violências e agressões. Do ponto de vista meramente físico, o jogador que entra violentamente no craque, imaginando que assim o vence, só aparentemente o violento-brigão é forte. Do ponto de vista do futebol, o mero violento  é fraco. Forte é o pensador-criador, e é por isso que ele precisa ser protegido. Quando se aplica o cartão amarelo ou vermelho para  proteger o forte-criativo dos fracos-violentos, é porque se quer proteger igualmente o futebol enquanto prática mais do que meramente de força física. Talvez tal cuidado pudesse nos inspirar na  política: proteger os fortes (os que têm ideias fortalecedoras das regras democráticas) dos fracos (os que têm apenas a força do dinheiro, da mídia ou da mera força bruta mesmo que idolatra destruição e armas...).

Baudelaire dizia: “seja sempre poeta, mesmo em prosa”. Sem precisarem ler Baudelaire, Leônidas da Silva, Garrincha e Maradona aprenderam a lição: “sendo um poeta, mesmo com a bola”.

( foto: Maradona e Piazzolla)





                        ( música do vídeo: "Libertango", de Piazzolla)





(música do vídeo: "Diferente" , do grupo neotango Gotan Project)




domingo, 22 de novembro de 2020

o osso, o arquivo e o documento

 

 No poema  “Escova”, Manoel narra um acontecimento que presenciou quando criança: ele viu dois homens sentados no chão “escovando osso”. No princípio, diz o poeta, “achei que aqueles homens eram loucos”  ficando assim no chão “escovando osso.” Mas ele olhou bem e viu que não podiam ser loucos aqueles homens, pois eles não escovavam de forma mecânica, fazendo por fazer ou por obrigação; havia neles um cuidado no escovar, como se o osso fosse um pergaminho antigo, um papiro, um mapa de um tesouro perdido. O poeta descobriu então que aqueles homens eram "arqueólogos": eles escovavam o osso para dele retirar a poeira, a sujeira, a craca. Num tempo muito antigo,  aquele osso fez parte de um esqueleto sob músculo e pele de um animal imenso. O osso era parte de um ser vivo que não existia à parte. Pois esse ser vivo era parte de um mundo  hoje extinto. Contudo, esse mundo não desapareceu totalmente, ele ainda  está vivo , “arquivado” no osso. O osso também pode ser um arquivo que guarda a origem de onde veio. "Arquivo” vem de “arqué”: “origem”. Esse osso também se torna um "documento". Essa palavra vem de “docere”, de onde nasce também “docente”: “aquele que ensina”. Arquivo e documento, o osso guarda sua origem que ensina não só sobre o passado, ensina também sobre nosso presente,  fazendo-nos compreender que nosso mundo é parte de um mundo maior do qual o mundo extinto também era uma parte, e que nosso próprio mundo também corre o risco de  ser extinto, sobretudo pela ignorância humana que se imagina um ser à parte da natureza, e assim a preda, destrói, queima , dizima.

Manoel diz que aprendeu a escovar também, só que as palavras: o poeta escova as palavras, retira delas a craca, a sujeira , o clichê, a torpeza, a estreita de visão, a opinião obscurantista, as verdades do ódio, o preconceito, a intolerância.... tudo isso que nas palavras colocou a mentalidade sem poesia, sem criatividade, sem empatia, sem conhecimento...mas que adora usar as palavras para fazê-las de arma de suas vis , preconceituosas e obscurantistas opiniões.

O poeta escova a palavra até achar de novo a semente dela, para assim fazer nascer dela poesia, sentido novo, reinauguramentos para que possamos vencer , agindo, os que nos querem extintos. A escova do poeta é instrumento ao mesmo tempo  crítico, clínico e criativo.




sexta-feira, 20 de novembro de 2020

manoel, a arraia , quilombos

 

Na rica  fala do povo do pantanal, “agroval” significa:  “lugar onde se cultiva a vida”. “Agroval” também é o nome que Manoel de Barros escolheu para  um de seus mais belos  poemas. O poema narra o que faz uma imensa  arraia quando as águas do pantanal secam e põem a vida em perigo: a arraia abre suas grandes asas  e pousa no barro, retendo parte da água abaixo de si. Com arte e cuidado, a arraia recria um  pequeno pantanal entre seu abdômen e o chão úmido , para que nesse espaço  protegido o coração do pantanal possa habitar e perseverar  , vivo. Generosa, a arraia deixa tudo o que  corre perigo  vir morar sob suas asas, fazendo delas abrigo. Migram  não apenas bichos, instalam-se  também sementes  de futuras flores e frutos, de tal modo que nesse pantanal em rascunho  tudo o que vive devém embrião da arraia-útero. Sob a proteção de tal Gaia, a vida continua, resiste, fortalece-se; acontecem agenciamentos, contágios, enamoramentos da vida por ela mesma, una e múltipla. Até mesmo uma festa se esboça, feito uma  Kizomba a celebrar a vida salva pela Vida. Pois quando as águas do pantanal  vão secando , aumenta a lama e vai sumindo o oxigênio.  Os predadores   sorrateiros e oportunistas  lucram com a desolação  e   ficam à espreita para predar a vida que sufoca . Mas a arraia é resistente: quando o oxigênio falta às águas, a arraia aprende a sorvê-lo do ar para  partilhá-lo como “Pneuma” . Na Grécia antiga, “Pneuma” é um dos nomes da alma, assim como “Psiquê”.  Pneuma é o sopro que dá  vida ao corpo e forma com ele um único e singular ser. Em latim,  “Pneuma” é traduzido por “Spiritus” : “sopro que dá vida”.

Apesar dos perigos em torno, nunca a arraia  se entrega ou desabraça a quem prometeu proteger. Quando as águas novamente  caem do céu e  a vida pode recomeçar, a arraia levanta as asas e  parteja  os seres que salvou do perigo, como uma utopia que enfim sai das teorias e  livros  para ser criada na prática.

Não seria tal ação da arraia o modo como a própria  natureza nos ensina o que é a virtude ético-política  que Espinosa chamava de “fortaleza”? Não seria tal comunidade de resistência  pela vida a expressão na natureza daquilo que nossos ancestrais ,em luta  contra a tirania,   nomearam  Quilombo?

 

“Poesia pode ser que seja fazer outro mundo.”(Manoel de Barros)

 

“Se roubam a liberdade de um poeta, ele escapa por metáforas.”(Manoel de Barros)

 

“Toda multiplicidade é composta não por coisas prontas, mas por realidades intensivas, pré-individuais, como o embrião de uma realidade nova.” (Deleuze)

 

( o poema “Agroval” , que aqui interpreto, faz parte do “Livro de pré-coisas”)









quarta-feira, 18 de novembro de 2020

o vinho, o azeite e o pão

 

Originalmente, a ideia de cultura nasceu da prática de cultivo de três plantas cujo valor é também simbólico: a vinha, a oliveira e o trigo.  A vinha é a árvore da qual  vem o vinho. Essa bebida está associada à festa, à alegria. Pois festa e alegria também são partes daquilo que entendemos ser o homem.  Da oliveira vem o azeite de oliva. O azeite é tempero, ele permite temperar o alimento. De tempero vem “temperança”, uma das virtudes  fundamentais da ética. O azeite também é parte dos ritos sagrados de diferentes sociedades , pois ele é um   elemento que unge e protege . E do trigo vem o  pão. O pão é o que mata a fome. Mas há também o aspecto simbólico do “pão”. Em latim, por exemplo, “pão” é “panis” , raiz do termo “companis”, do qual nasce “companheiro”: “aquele com quem dividimos o pão.” Há o pão que mata a fome do corpo, e há também o pão que alimenta a ação ( o pão da liberdade) , o conhecimento (o pão das ideias) e a sensibilidade( o pão das artes). 

A vinha e a oliveira conseguem crescer no meio selvagem, isto é, sem precisarem ser cultivadas. Porém  o trigo é tão frágil, requer tantos cuidados, que ele somente cresce sendo cultivado pelas mãos humanas . “Cuidado” vem de “caute”: prática de proteger o que é frágil. Não porque seja fraco, e sim em razão de ser uma potencialidade que, para aflorar, requer que cuidemos. É por isso que o trigo é a semente que também simboliza a condição humana enquanto potencialidade. Ao contrário, quando se faz culto da selvageria ( nos vários sentidos que essa palavra tem) , da  semente nascem apenas inumanidades  que põem em perigo a condição humana e o terreno aberto e plural da cultura.

Do trigo não vem apenas o pão, dele também vêm o bolo, o macarrão, a farinha, as diversas massas...enfim, múltiplas realidades  que  podem nascer  da potencialidade  que vive nele. Semelhante ao trigo também é o homem: somente a cultura pode nele fazer aflorar o poeta, o cientista, o médico, o jardineiro, o professor, o cidadão, enfim, ele mesmo. Pois é a cultura o meio físico e simbólico para  o homem criar e dar um sentido a ele mesmo.


            (o livro de Jung é apenas uma sugestão de leitura)



sábado, 14 de novembro de 2020

acervo de ideias

 

Um autêntico “acervo” nada tem a ver com um depósito de coisas inertes, mortas. Tampouco podem as réguas medirem o tamanho e amplitude das ideias que, virtualmente , vivem  num acervo e aguardam para serem descobertas, experimentadas, vividas. Pode-se dizer de um autêntico acervo o que Manoel de Barros disse sobre o seu Pantanal poético-filosófico: “Não se pode passar régua no Pantanal. Régua é existidura de limites, e o Pantanal não tem limites.”   E complementa o poeta: “O tamanho de uma coisa não se mede com régua, mas pela capacidade que tem a coisa de nos encantar.”

“Acervo” vem de “cérvix”: "cervical". A coluna cervical  não é apenas o que sustenta a cabeça, ela também é o que nos põe de pé e serve de elo entre o cérebro e nossos pés e pernas: é atravessando a coluna   que as ideias e desejos nascidos no pensamento alcançam nossas mãos e pernas,  tornando-se ação sobre o mundo. Não por acaso, num dos seus poemas Fernando Pessoa percebeu o fato: a coluna cervical  tem a forma de um ponto de interrogação [ como este : ? ]. Pois é isto que põe o homem de pé: sua capacidade de pôr questões. Assim  como a coluna cervical, um acervo existe para manter de pé  as ideias que nos fazem seres pensantes. O poder obscurantista sempre nos quer tristes , impotentes, de joelhos; resistamos e fiquemos de pé, pois é para isso que servem a educação, a arte, a poesia, a filosofia , a cultura e o Acervo Cláudio Ulpiano.

( em homenagem ao inesquecível professor Cláudio Ulpiano , nascido num dia como hoje,  14 de novembro  [ de 1932 ] ,  e renascido em cada texto dele que lemos, em cada belíssima aula dele que revivemos)




quinta-feira, 12 de novembro de 2020

paulinho da viola: 78

 

Li recentemente entrevista com o  grande Paulinho da Viola, que hoje faz 78 anos! Na entrevista, Paulinho responde  a um  jornalista acerca de seu modo de ser. Paulinho é reconhecidamente alguém modesto e simples, reservado mesmo, por vezes tímido no trato. Porém,  ele nada tem de tímido quando se trata de expressar, extroverter, a poesia através da música. Por outro lado, muitos cantores extrovertidos, que falam pelo cotovelo e atropelam seus entrevistadores, e que vivem a dar opinião medíocre acerca de tudo, tais cantores extrovertidos são impressionantemente introvertidos, tímidos, quando se trata de chegar perto, e conquistar, a poesia e a música! Se levarmos em conta essa  autêntica extroversão, Paulinho é extrovertido: “voltado  para” a alma plural  que lhe vai dentro, dele e de nós.

Essa alma plural é o que Paulinho  chama de “alma suburbana”, enquanto ethos social originário e heterogêneo  .Nesse sentido, a raiz “sub” não é exatamente o que é inferior, “sub” é o que está por baixo dando sustentação, como o alicerce da casa, como o solo sobre o qual corre o rio, como o caráter que sustenta as ações visíveis de um homem. Mais longe a esse respeito foi Espinosa, que também emprega a raiz “sub” no termo “substância”, porém com outro sentido: nele o sub é onde se encontra a  Potência. Em Espinosa, a Potência também é suburbana (esse "sub" da potência expressa o mesmo que o "pré" das Pré-coisas manoelinas).

Então, para o poeta Paulinho sub-urbano não é  algo inferior à urbanidade da zona sul. Sub-urbano é o que dá sustentação existencial às nossas existências urbanas. A base desse sub não são exatamente valores familiares ou religiosos; a essência desse “sub” são os  valores ético-políticos, valores esses que também se tornam música em Paulinho.

Mais do que no espaço privado das casas, onde reina o “meu”, é no espaço suburbano de vizinhança que se aprende  o afeto pelo comum como prática das comunhões. “Os comparamentos matam a comunhão”, ensina o suburbano Manoel de Barros. Não por acaso , o termo “demos”, de onde vem “democracia”, não designa o centro da pólis, e sim o seu subúrbio , significando também o povo que nele mora.

Viva Paulinho da Viola!

 

“Aprendo com o povo sintaxes tortas.”(Manoel de Barros)






 



terça-feira, 10 de novembro de 2020

a besta...

 

Segundo Deleuze, “besteira” vem de “besta”. A besta não é um animal determinado, mas um “fundo indeterminado” oculto  em todo animal. Nos animais, porém, o instinto os dota   de certo comportamento reconhecível ,  impedindo que esse fundo indeterminado da besta tome o animal. O leão é o leão, a hiena é a hiena, o lobo é o lobo. A ferocidade desses animais não é maldade ou crueldade, mas ações que se explicam pelo instinto, pela natureza. Nenhum desses animais se comporta como uma besta indeterminada, pois seus comportamentos são explicáveis por sua natureza. O homem é o único ser no qual o instinto não tem força para protegê-lo desse fundo indeterminado,  tampouco pode a  inteligência , sozinha,  livrar o homem  da besta que vive nele. As armas, por exemplo, são  ciências aplicadas ( física, mecânica, balística...)   a serviço da besta. O mundo digital, apesar de fruto da tecnologia avançada, também pode servir à mentalidade obscurantista e atrasada da besta. Quando a besta toma a mente e a boca do homem, nasce então a besteira. Para quem sabe ouvir, crianças nunca dizem besteiras, somente os adultos que são uma besta  podem dizer besteiras que tanto doem ouvir. A besta pode até mesmo se servir da religião, tal como vemos nos fanatismos armados de intolerância. A besta pode se servir do Estado, nascendo assim o Leviatã Fascista raivosamente militarizado. Quando a besta toma o homem, este se torna um ser irreconhecível , virando um bicho que a natureza não explica mais e tampouco a cultura , pois é esta última que corre risco, ameaçada por violências físicas  e simbólicas. Incapaz de empatia, a besta zomba da morte, se compraz com a destruição e faz do negacionismo a sua   macabra religião.  Enfim,  a "besta" é a presença  no homem de um "buraco", de uma “obscuridade”, enfim, de uma "morte".  Não a morte biológica, mas a morte como política: necropolítica. Como a "besta" é movida por esse "buraco-negro", bestialmente se volta contra tudo aquilo que é criação de sentido, como a educação, a cultura e as artes. A "besta" quer fazer tudo  ruir para seu buraco-negro para ver se o preenche, porém isso é impossível, o buraco é sem fundo. A "besta" não é cultura ou contracultura, ela é anticultura. A besta  odeia  a natureza, e por isso quer  sempre  destruí-la : fisicamente, como faz com as florestas; ou simbolicamente,  com a “demonização” do corpo e do desejo. 

Por detrás desse ódio da besta aos diferentes e à heterogeneidade social se esconde um ódio mais profundo e doentio: um ódio à própria  vida.                                                                                                                                                                                                                                                        

(Na mitologia, a “Besta” era representada pelo Minotauro: metade touro, metade homem. Mas a bestialidade do Minotauro, sua “sede de sangue”,  não vinha do touro, que é herbívoro. A bestialidade vinha da  parte humana  acéfala,  que se valia da força bruta do touro para dar vazão à sua loucura)






sábado, 7 de novembro de 2020

espinosa & manoel

 

Uma das frases de Espinosa mais citadas é aquela na qual o filósofo diz: “Ninguém sabe o que pode um corpo”, isto é, nunca sabemos previamente o que é capaz de criar , agindo, a potência do corpo. Exatamente por engendrar algo novo, do criar não se pode ter um conhecimento prévio. Quando Espinosa fala do corpo, não se deve entender apenas o corpo orgânico . É preciso ampliar a noção de corpo para compreendermos toda a riqueza que Espinosa quer nos dizer . A linguagem também é um corpo. É exatamente por não saber o que pode  o corpo da palavra que o poeta cria sentidos novos com ela, para assim ampliar os sentidos do que podemos dizer. Na exposição do Museu da Maré está a porta que fez parte do gabinete de Marielle. A porta está ali não apenas como porta que foi de um gabinete, mas como parte do corpo da luta de Marielle. Pois também não sabemos tudo o que pode o corpo social quando ele age para enfrentar tiranos.  Não podemos saber, antes, tudo o que pode um corpo. Pois para saber o que pode um corpo é preciso agir a partir dele.  Este  “não saber” não é uma ignorância acéfala, mas algo que para ser sabido depende da ação do corpo, que assim engendra saberes novos  ainda não pensados e sabidos. Espinosa também diz que “o corpo é a alma mesma apreendida de uma perspectiva diferente”; e que “a alma é o corpo mesmo apreendido de uma perspectiva diferente.” Assim, não sabemos tudo o que um corpo pode porque também não sabemos tudo o que pensar pode, desde que compreendamos que o corpo e alma também são potências . O que pode o corpo das ruas? Pode esse corpo unido  enfrentar o poder daqueles que ameaçam de morte o corpo e a alma de nossa sociedade heterogênea e plural? Somente podemos saber o que  a rua pode nos tornando ativamente o corpo coletivo dela.  Esse “não saber” o que pode um corpo, seja o corpo das palavras ou o corpo social (“não saber” esse íntimo à  criação),  esse “não saber” também é  o que Manoel de Barros chama de “ignorãça”. 

“Quando permanece algo de inexplicável naquilo que explicamos, isso nos enriquece de maneira inexplicável.” (Kerényi)










quarta-feira, 4 de novembro de 2020

carolina de jesus

 

O filósofo Husserl dizia que o pensar teórico  , sempre formal e abstrato, requer a “suspensão das crenças”.   Não apenas  “crença” no sentido religioso , mas crença até mesmo enquanto impulso intuitivo do coração. O pensar teórico   requer que nos dispamos de tudo até ficar apenas a nudez  da “razão pura”. Já o poeta Coleridge retruca o filósofo e diz: a poesia requer não a suspensão das crenças, mas das descrenças. Sobretudo da descrença que nos derrota antes mesmo de começarmos a luta. Só liga sua vida à poesia quem crê no que a poesia pode.

 

“Mais importante do que o pensamento é o que ‘dá a pensar’, mais importante do que o filósofo é o poeta.” ( Deleuze)

“Quem não tem instrumentos de pensar, inventa.” (Manoel de Barros)




Essa história se encontra em La Fontaine: Eros, o Amor, entrou em conflito com Atena, a Deusa da Razão. Os deuses olimpianos tomaram o partido de Atena. Como punição, Eros ficou privado de ver a Luz do Olimpo, ficando assim cego. Afrodite interveio e pediu a Zeus que fosse dado a Eros ao menos uma bengala para ele poder caminhar. Zeus disse que não daria ao Amor uma bengala, e sim um guia: e assim Zeus mandou a Loucura ( “Mania”, em grego) conduzir o Amor a partir do coração. Aqui, “loucura” não tem o sentido de enfermidade mental , mas de uma inspiração transmutadora que guia o Amor por caminhos não alcançados pela luz da razão.