quinta-feira, 30 de agosto de 2018

o "Objeto"


Dois homens de pensamento muito técnico, “pragmático” e “objetivo”, foram passear fora da academia científica  e acharam um objeto esférico no meio do pátio. Disseram: “Que coisa maravilhosa: um Objeto!”. Quase ao mesmo tempo, cada um tirou do bolso uma fita métrica para medir aquela esfera que nunca tinham visto. Primeiro a mediu um , depois o outro. No entanto, cada um achou um número diferente para a circunferência, uma diferença ínfima em milímetros, pois eles não usavam a mesma fita métrica. Repetiram o procedimento metódico, porém repetiu-se a não coincidência do que achava um e do que achava o outro. Então, diante do impasse , perderam a paciência, um começou a acusar o outro de não ser objetivo, técnico, pois cada um achava que era a sua própria medida que dizia a verdade  objetiva , sem "paixões" ou erros, acerca do Objeto. Um chegou a dizer que o outro era um metafísico disfarçado, enquanto o outro gritou: “você deve ser na verdade um poeta!”.Um partiu para cima do outro, e enquanto rolavam  atracados  no chão, um menino que passava   olhou inocentemente para o tal “Objeto ”, riu, veio   correndo e deu um bico no tal Objeto esférico inventando uma bola lúdica para suas peraltagens brincativas.


"O homem seria metafisicamente grande 
se a criança fosse seu mestre."(Kierkegaard )




indignação não é ódio


Segundo Espinosa, não se deve confundir “ódio” com “indignação”. A indignação, motor da busca pela justiça, é um afeto ativo nascido da compreensão de que  uma injustiça sofrida por outro cidadão de nós diferente   é um mau que também nos atinge, ao passo que o ódio é um sentimento reativo transformado em vontade de destruir o outro   , física ou simbolicamente, às vezes o estigmatizando como  um “Mal” . Indignação é desejo de justiça, ódio é vontade de  vingança. A indignação une os homens na luta pela justiça para todos, já o ódio os põe uns contra os outros e coloca  em perigo o todo.  O ódio é imaginação, não é conhecimento consistente das coisas . Jamais o astrônomo  conheceria adequadamente as estrelas se as odiasse, nunca um médico conheceria o remédio certo para curar uma doença se apenas a odiasse, jamais alguém pode conhecer o que é a democracia odiando quem é  ou pensa diferente. Ao contrário, é o conhecimento o processo que pode libertar o homem do ódio, desde que ele comece por conhecer a si mesmo primeiro  compreendendo  que a causa de uma limitação própria nunca tem por causa exclusiva  a diferença do outro.  Enfim, o que caracteriza um cidadão, diz Espinosa, não é exatamente votar  ou empreender negócios, mas ser capaz de se indignar com a injustiça sofrida por um outro.

 Palavra poética se une mais por afeto do que por sintaxe”(Manoel de Barros).           
                                                                                                                                                       

- imagem : “Duelo a pauladas”, de Goya. Nesse quadro, Goya quis fazer um retrato da intolerância: “Dois homens lutam a pauladas enterrados até os joelhos [a areia movediça como símbolo da ignorância: quem faz da ignorância chão, será tragado por ela]. Nenhum sentido na luta: um enfrentamento absurdo em uma paisagem árida [infértil]”.


sábado, 25 de agosto de 2018

multitudo X Casagrande

Não se deve confundir “popular” com “populismo”. A elite e seus partidários costumam dizer, insensíveis à urgência de quem tem fome: “dar o peixe às classes D e E é populismo. O certo é ensiná-los a pescar”.  Mas o rio comum onde vive o peixe a elite cercou, pôs seguranças armados e  diz que é propriedade dela, mesmo havendo mais peixes lá do que ela precisa. A elite também se apropriou da vara de pesca e do anzol, mesmo originalmente não sendo dela, negociando-os  a juros de agiota para acumular seu capital.
Mas o popular não é  a classe D ou E : tais classificações  fazem parte da ideologia de “pedigree” que reforça a lógica Casagrandista de que ter propriedades e dinheiro, não importando os meios , faz de alguém um superior, um   “Classe A”. O popular nada tem a ver com esse alfabeto do poder. O popular é multiplicidade horizontal sem castas, como a “multitudo” democrática de Espinosa. O popular não é pobreza, mas uma forma de riqueza que não se mede em dinheiro ou capital. O popular não é o que vende muito, o popular é o que não se deixa vender ou pescar pelos donos do sistema. O popular é uma nobreza nascida da potência criativa mestiça , e não de pedigrees elitistas pouco nobres.  A nobreza-popular se aprende na alma de Cartola,  no sax de Pixinguinha, na voz de Clementina ,  na viola do Paulinho, no lápis de Manoel: “Aproveito do povo sintaxes tortas” , ensina o poeta. “Popular” não é só um substantivo, como “povo”; “popular” também pode ser   um verbo expressando a ação de  (re)inventar um povo: “escreve-se em função de um povo por vir e que ainda não tem linguagem.”(Deleuze).
A primeira vez que ouvi a palavra “popular” foi há muito tempo, na boca do educador Darcy Ribeiro, que dizia: “ o popular não é monopólio de um único partido. Somente unidas as forças populares podem vencer a Casagrande”.


(unidos: Clementina, Cartola & Pixinguinha)











quarta-feira, 22 de agosto de 2018

o pantanal de manoel


O mundo atual confunde o mero “diminuir a distância no espaço ” com o “criar proximidade” com o sentido .  Por exemplo, posso pegar o avião e ir ao Pantanal tirar fotos e as exibir . Isso é diminuir a distância entre seres  no espaço. Mas quando Manoel de Barros põe o Pantanal em seus versos, de qual Pantanal seus poemas nos põem perto? O avião me leva para dentro do Pantanal físico , porém ele não é capaz de pôr o Pantanal dentro de mim. A foto registra o Pantanal como objeto imóvel para ser visto de fora. Já o Pantanal poético me aproximo dele nos versos : ele  não é um lugar que existe no fim do caminho, ele é o próprio caminho poético que fazemos criando-o também com nossa mente   empoemada pelos versos. Quanto mais próximos estamos desse Pantanal inventado, mais perto chegamos daquilo que em nós inventa sentidos para o mundo.
A tecnologia nos impõe o modo de ser dela, ela nada tem de "neutra": o avião nos leva longe, desde que entremos em seu estômago. O telescópio diminui a distância entre nós e as estrelas, desde que façamos nosso seu olho de vidro. O computador nos põe em comunidades virtuais, desde que nossa mente entre em sua “caixa”. O telescópio da ciência diminui a distância entre nós e a lua, porém nos afasta de seu mistério, pois a transforma em mero objeto, coisa. Não nos enganemos, assim somos para o feicibuqui: objetos mercadológicos com os quais eles ganham rios de dinheiro diminuindo a distância entre as empresas e nossa vida privada, vendendo-a. Seremos menos “ objetos comercializáveis” para eles quanto mais   nos colocarmos próximos da vida comum não privada ,  e agir para potencializá-la.




sexta-feira, 17 de agosto de 2018

os feiticeiros...


"Nós, os feiticeiros..." (Deleuze e Guattari)
               
A filosofia não nasceu na Grécia. Ela foi deixada lá ainda criança, tal como aqueles bebês deixados à porta de alguém. Inclusive, a tez da filosofia é mais escura e mestiça do que a branca pele grega. Há quem diga que seus pais eram Egípcios; outros afirmam que foram os Assírios que a conceberam; e há quem defenda ainda que os pais da filosofia foram os nômades povos do deserto que se guiavam pelas estrelas e desprezavam a propriedade privada. A porta em que a filosofia foi deixada para ser cuidada pertencia à casa de um homem digno chamado Tales. Ele a criou e a ensinou a ficar de pé.Com Heráclito Sofia aprendeu a brincar; com Nietzsche, a dançar; e  a fazer-se mais viva Sofia aprendeu com Espinosa, diante daqueles que a querem morta.

(Não se deve confundir feiticeiros com Caciques, pois a filosofia também tem seus Caciques, assim como a política.Os Caciques imaginam que ter poder é dominar, explorar, vencer, ser o primeiro, derrotar o rival. Os Caciques tendem à paranoia. Já os feiticeiros exercem a potência. Esta é o exercício de descobrir misturas entre seres heterogêneos. Por isso, os feiticeiros operam por alianças, contágios, mestiçagens. Os feiticeiros estão mais próximos dos Guerreiros do que dos Caciques, uma vez que todo feiticeiro é um Guerreiro do mundo espiritual.No mundo espiritual  os inimigos são os maus pensamentos, os sentimentos de ódio e tristeza, de tirania e escravidão.
Os Caciques moram no centro da taba, ao passo que os feiticeiros frequentam as zonas fronteiriças das aldeias, os limiares, tornando-se a ponte entre estas e a floresta imensa.Os Caciques exibem a cabeça dos animais mortos como troféus, já os feiticeiros aprendem os signos e as maneiras dos animais nos quais a vida moldou beleza,  força, altivez, independência ,coragem - e, não raro, os feiticeiros são aceitos como um deles, aprendendo seus cantos, suas camuflagens, suas velocidades e percepções.)
                                                                                                                                                                    
(16/08:no calendário ,dia do filósofo)   



quinta-feira, 16 de agosto de 2018

espinosa e os meios


O sol não existe com a finalidade de fazer a planta crescer, porém a planta cresce ao compor-se com o sol. A planta não existe com a finalidade de nos alimentar, porém nos alimentamos cultivando as plantas. Nenhum ser existe para ser a finalidade do outro. Cada ser pode ser, no entanto, o meio ou instrumento que auxilie um outro ser a afirmar aquilo que ele já é. Basta o sol ser o sol, tal como ele é,  para ele ser o que de melhor existe para a planta ser a planta. O mesmo vale para as pessoas: é sendo cada um o que já é que poderá ser para o outro um bom encontro . Também é cada um sendo o que já é que poderá ser para o outro um mau encontro. O bom  encontro , inclusive, nunca é uma promessa, mas uma relação real  nascida de cada um já ser o que é, e não da promessa de cada um virar, em palavras,  outro.  A diferença entre o bom e o mau encontro  não está  em cada ser singular , mas no que cada ser pode  aumentar ou diminuir de si mesmo na relação com o outro. E isso que já somos não precisa ser do mesmo nível que o outro em termos de potência: o sol tem mais potência que a planta, porém a potência da planta somente é um “menos” quando comparada com a potência do sol. Nela mesma, a potência da planta é como toda potência, inclusive a nossa: aumentará se tiver um bom encontro, diminuirá se sofrer um mau encontro. Não é o outro ser o responsável exclusivo pelo bom ou  mau encontro:  nós também somos corresponsáveis pelos amores e  alegrias que nos acontecem   e mesmo dos ódios e  tristezas  que  imaginamos vir apenas do outro. O sol não envia as flores que a planta fabrica, mas com a energia que  o sol envia a planta fabrica flores. Uma pessoa não envia a amizade inteira  à outra, é esta que a fabrica tornando-se da amizade parte, aumentando suas energias. Uma pessoa não envia o ódio inteiro  à outra, é esta que  o fabrica fazendo-se  do ódio parte , diminuindo ela própria suas energias, enquanto potência de agir, sentir  e pensar.




sábado, 11 de agosto de 2018

livro: poesia pode ser que seja fazer outro mundo





( trechos dos autores)
       
“Manoel tinha um poder de atravessar o erudito e o popular, ir de Heidegger e emendar com as formas dos Bugres. O poeta aponta o logos frágil do homem e assim sua salvação é a criação, como interconexão com o existir, sem comer apenas o utilitário cariado pelo consumo.” Paulo Vasconcelos (Escritor, autor da orelha do livro)

“Nem reis nem regências. É que a potência expressiva da linguagem poética (luxúria) não é nunca uma fuga ativa dos padrões linguísticos (regências) sem ser, ao mesmo tempo, uma fuga de modelos de compreensão, morais ou políticos que se impõem a nós (reis). Trata-se, portanto, de olhar para as coisas em sua inocência, como puramente terrestres, ainda sem nome”. Paulo Oneto (Filósofo/Ufrj)

“A obra poética se faz para que o poético seja capaz de dizer-se. Dizer-se é obrar. Poética é com-posição de espaço-temporalidades. A poética não se pode compreender desde uma unidimensionalização de um tempo crônico, desde um tempo medido apenas. A obra poética, pelo seu próprio, desde o seu próprio, age como cronos, kairós e aión a um só tempo para além da medida. “ Antônio Jardim (Músico e Filósofo/ Uerj-Ufrj)

“No caderno do andarilho (fiz uma bruta força para não lembrar de Nietzsche) achei algumas regras. Sosseguem, na inutilidade não nasce nem ajuda nem autoajuda. São regras de pisar ‘cheio de vogais pelas pernas vai o caranguejo soletrando-se’; de misturar ‘os girassóis tem dom de aurora’ ou ‘um dia um girassol encontrou com Deus. Foi em Van Gogh’ ou; mais ligada ao aprender: ‘grilo faz a noite menor para nela caber’. Em tudo tem regras de poetar.” Ieda Tucherman (Profª e Pesquisadora da Eco/Ufrj)

“Escolhi como vereda para este artigo uma afirmação de Manoel de Barros , ele dizia não pertencer à geração de 45, sua poesia não era de reconstrução, não queria voltar aos sonetos, retesar versos frouxos; desejava palavras ‘arrombadas de escombros’. Por isso, cabia falar dos morcegos que voam dentro das ruínas, do lixo sobrado e dos rios podres que comem dentro das casas e dentro de nós; e falar dos restos humanos fazendo discursos nas ruas. Nesse sentido, seus personagens simples são os ‘passarinhos de uma demolição’”. Mário Bruno ( Poeta e Filósofo/ Uff-Uerj)

“Nessa manhã me perdi em seu quintal. Tinha saído antes do sol atrás de um filme que nunca soube qual, ou sim, mas não onde estaria. Pouco sabia daquelas paisagens e suas figuras. Dispensei pensar depois aprendi com ele a não tentar domar o tempo, que naturalmente tudo encontra lugar no texto (mesmo que seja o do corte, supressão do traço).” Gabraz Sanna (cineasta)

“Manoel de Barros irá adotar um processo similar ao de Miró. Assim como o pintor catalão, irá valorizar o que é desprezado, o entulho, o lixo no plano do conteúdo e no da forma irá desconstruir a sintaxe da frase, aprenderá a errar a língua, tirará as palavras de seu contexto habitual, produzindo novos encantamentos poéticos.” Luiz Henrique Barbosa (Professor e Crítico Literário)





sexta-feira, 10 de agosto de 2018

pindorama


Ela se chamava Maria Madalena. Nasceu na Nova Holanda, de pai desconhecido. Aos 13 ficou grávida do traficante do lugar. Mas pouco viveu o recém-nascido,  morrendo antes que soubesse andar.
Aos 15 foi viver na rua, virando a puta de muitos que só a queriam usar: seguranças, policiais, agentes sociais...vários a exploravam muito sob a máscara de fingir ajudar.
Aos 18 ela parecia ter 50: enquanto a distraíam etílicos sonhos, vinha o tempo feito um ladrão roubar seus anos, sem dó , sem pena.
Padres, pastores, pais de santo, ungidos...Todos diziam que a poderiam recuperar.
Um chegou a  dizer que sua vida era castigo,culpa de outra vida, karma a lhe pesar.
Maria Madalena pegou de novo barriga, de novo a perdeu.Seu corpo era todo ferida,mas lhe doía mais a alma que enlouqueceu.                                           
Numa fria madrugada,ela caiu junto a um ipê perto da Lapa,entre sacos de lixo e urina de cão.
Ela caiu perto da raiz,e só a aurora testemunhou sua desaparição.
O ipê a sorveu para dentro de si, a limpou de toda sujeira humana, secou-lhe toda ferida insana, a alimentou com seiva até dormir.
Hoje , Madalena virou beleza que o ipê ao céu fez florir.

(a flor do ipê é uma das poucas que floresce colorida resistindo ao  cinza do inverno. Por poder  ser explorada comercialmente, os brancos colonizadores  escolheram o pau-brasil como árvore do Brasil , mas para os índios que aqui viviam era o ipê a árvore que protegia e curava Pindorama)




quinta-feira, 9 de agosto de 2018

o profeta, o messias e o apóstolo das ideias


Há o “candidato-profeta”, que é aquele que vive de promessas. Ele  diz   que sabe como chegar à terra  prometida impoluta , desde que se creia nele, mesmo ele  parecendo  estar perdido e seus pés sujos de  lama. Há o “candidato-messias”, que se autoproclama o ungido, o iluminado, o escolhido. Não interessam os programas e os partidos: só ele é a salvação. Ele não vai governar: fará milagres, desde que se o aceite  como  a pura encarnação da Verdade , e que se renuncie   às ideias, às regras, a si mesmo. E há o “candidato-apóstolo”. “Apóstolo” significa: “aquele que porta uma ideia,  comunicando-a com sua vida”. Ele não promete, tampouco pede obediência acrítica: ele ensina e propaga o que aprendeu. Ele se converteu em democrata , pois é a democracia a ideia que o converteu. Os candidatos-profetas vivem  a pregar o ódio aos  outros candidatos-profetas que prometem paraísos outros . Já o candidato-messias não quer cidadãos, homens livres, ele se cerca de adoradores , mesmo que medíocres. O candidato-apóstolo não promete a terra fértil lá longe, ele traz as sementes para que , em conjunto e cooperativamente, as plantemos, mas  não sem esforço. E,   quem sabe,  consigamos  reverter essa desertificação em que estamos.
( adaptei aqui o que diz Deleuze comentando Espinosa: o autêntico filósofo nunca é um profeta das ideias, tampouco um messias como incorporação da “Verdade”. O filósofo, diz Deleuze, assemelha-se a um apóstolo que ensina a potência da ideia a partir  da própria  ideia libertária que aprendeu  e o fez filósofo. Ele não quer ser obedecido ou imitado, ele deseja ser o agente de  agenciamentos, composições, bons encontros).



terça-feira, 7 de agosto de 2018

democracia e poder de agir


O homem livre  nunca termina de esculpir sua própria estátua, 
pois a arte viva não está na pedra enfim moldada, 
mas no ato de fazer-se que nunca termina.
Plotino

Poder não é a mesma coisa que potência. Foi pensando nessa diferença que Espinosa, por exemplo, definiu e defendeu  a democracia. Em latim, “potência” é “potentia”, enquanto “poder” é “potestas”. “Potência” é a capacidade de realizar ou fazer algo, já o poder , a potestas, é essa capacidade sendo exercida em ato. O professor tem a potência de ensinar, mesmo estando em casa. É quando ele está em sala, no encontro com os alunos, que ele exerce isso que ele pode: nasce a potestas, o poder,  como expressão de uma potência. É a potentia que legitima a potestas, o poder. O médico tem a potência de curar:  é no encontro com o paciente que de tal potência nasce um poder, quando seu saber vira ato, acontecimento, sempre em uma relação. O cidadão tem a potência de governar. Nas experiências históricas de democracia direta, participativa,  cada cidadão exercia, em agenciamento com outros, funções que em nossa sociedade quem faz é o prefeito. Em nossas sociedades , embora tenhamos a potência  de governar, não temos o poder: delegamos esse poder a outro - o prefeito, o presidente, etc. É como se fôssemos  professores,  médicos, porém nos tornássemos  , no sistema representativo de poder,  alunos e pacientes de péssimos professores e médicos charlatães. Ou seja, na democracia representativa somos separados daquilo que podemos. Temos a potência , mas nos roubaram os meios de governarmos a nós mesmos, e chamam a isso de liberdade.  Somos forçados a delegar nosso poder de agir a indivíduos de pouca potência , de capacidade nula. E que usam o poder recebido para manter a vida impotente deles, ao custo da nossa potência, da nossa saúde, da nossa vida.





sábado, 4 de agosto de 2018

diferença entre poder e potência


Há forças dominantes e dominadas. A diferença entre dominante e dominada se estabelece em razão da quantidade de força. As dominantes têm mais força, as dominadas o  têm menos. Força em relação a quê? Força como capacidade de dominar outra força, fazendo-se “vencedora”. Assim, o estado natural das forças é estarem em luta.  Esse modelo quantitativista  vale para tudo o que é força, incluindo  as forças políticas e até mesmo as forças psíquicas, pois certas ideias dominam nossa mente pela força que têm em vencer outras ideias. Mas uma ideia que vence pela força , como “ideia fixa”, não significa exatamente que ela nos torna pensadores...
Dessa diferença quantitativa entre as forças surge uma distinção qualitativa: as forças dominantes serão chamadas de “ativas”, ao passo que as dominadas serão as “reativas”. Mas as   reativas-dominadas  podem enfraquecer  as ativas-dominantes , contaminando-as com reatividade : é o que acontece na política quando um partido que se pretende libertário  é  dominado pelos partidos reacionários com os quais negocia “alianças”. A busca pelo poder alterna, às vezes com tons de comédia noutras de tragédia, dominantes e dominados.
Seria  isto então ser “poderoso”: ser dominante a todo custo, não importando por quais meios? A  potência não  é a mera força. Para que a força se metamorfoseie em potência é preciso que nela nasça um querer,  um “minadouro do criar”, como diz Manoel de Barros. A potência  não é  quantidade ou qualidade: ela é intensidade, e aprende a doar força aos que não a tem,  sem pedir força-obediência em troca, pois força não lhe falta, transborda. Esse querer que metamorfoseia o mero poder em potência  precisa ser , no entanto, conquistado: ao modo como um pintor conquista as tintas, ou um músico os sons, ou o albatroz o ar sobre o qual aprende a voar. Não raro, é ao preço de derrotas que se conquista essa força-potência : "A força de um artista vem das suas derrotas", ensina Manoel de Barros.





quarta-feira, 1 de agosto de 2018

a fecundação


A fecundação:  um óvulo e milhões de espermatozoides. Somente um deles, apenas  um, conseguirá entrar no óvulo.  É o espermatozoide que consegue forçar uma entrada ou é o óvulo que o deixa vir para dentro? Ou acontece as duas coisas ao mesmo tempo? Ao entrar,  o espermatozoide não faz do óvulo uma propriedade sua  , como uma casa e seu proprietário   ; nem será o espermatozoide um inquilino temporário do óvulo. Na fecundação, espermatozoide e óvulo não ficam medindo força para ver quem vai derrotar o outro, como homens rivalizando em opinião. Na geração, espermatozoide e óvulo  se encontram   um no outro, escolhem-se, como partes que inventarão um todo novo. O mesmo acontece quando a semente de uma ideia nova fecunda nossa mente.

“A palavra abriu o roupão para mim: ela quer que eu a seja” 
(Manoel de Barros)

(O Núcleo da Criação, Frida Kahlo)