Há um poema de Manoel de Barros no
qual ele diz: "Vi que tudo o que o homem fabrica vira sucata: bicicleta,
avião, automóvel ... Até nave espacial vira sucata." E completa: “O que é
verdadeiramente novo nunca vira sucata.”
Não só automóveis e celulares viram
sucata : doze meses atrás , 2021 foi chamado de ano novo , e 2020 virou sucata.
Hoje, é 2022 que recebe a etiqueta de ano novo, enquanto 2021 está virando
sucata.
Se olharmos para o tempo com os olhos
do poeta, veremos que não se encontrava então
em 2021 o tempo novo tão desejado, assim como não está em 2022 o tempo que não
vira sucata.
Mas onde encontrar esse
tempo-embrião, esse tempo de minadouros?
Segundo o poeta, não é no produto
criado que se encontra o novo, e sim no ato de criação. O rio só mantém seu fluxo vivo e avança se estiver
umbilicado à nascente da qual continua a fontanejar, sendo criado.
O novo nunca pode ser representado
por abstrações , pois ele vive nas singularidades concretas.
“2022” é uma abstração , uma
convenção do calendário hoje vigente. Ao longo da história, porém, povos
diferentes tiveram outras formas de contar o tempo segundo outros calendários.
Os povos originários , por exemplo, vivem muito mais próximos do tempo que não
vira sucata, pois os indígenas não vivem
o tempo sob números abstratos, e sim a
partir dos acontecimentos singulares da
própria natureza, segundo os ritmos do sol e da lua.
Os números são abstrações porque
conseguem representar somente as quantidades, nunca as qualidades , os ritmos e
as intensidades. Somente um tempo concreto, singular, qualitativo e intenso tem
força para resistir a virar sucata, pois
um tempo assim tem a potência da vida e
de seus ritmos.
Mas onde encontrar esse tempo singular? Onde
fica sua nascente, seu nascedouro, sua natência?
O poeta assim responde: os dias, os
anos, os séculos, os milênios...tudo isso vira sucata. Mas o que nuca vira
sucata é a aurora. A aurora é a nascente da qual brota o autêntico tempo novo.
E nós mesmos nunca viraremos sucata,
não importa a idade que tenhamos, enquanto nos horizontarmos afetados por uma aurora
. Para que, juntando forças, possamos “fazer amanheceres”, como ensina o poeta, apesar dessa noite longa...
Não somente em 2022, mas sobretudo no hoje , no aqui e agora, desejo a todas e todos necessárias auroras!
Uma
aurora sempre vem para nos lembrar que todo dia é dia novo, e não apenas
o 1º de janeiro!
“Erguer-se...
Como se ergue a aurora do seio da
noite.” (Homero)
“Durante as viagens sem rumo dos
andarilhos,
eles são instalados na natureza igual
se fossem uma aurora.” (Manoel de Barros)
Com sua simplicidade plena de nobre elegância, deixo aqui a aurora-alvorada
cantada pelo poeta Cartola ( na flauta, Carlos Poyares) :