A
SINGULARIDADE EM KIERKEGAARD
O homem
seria infinitamente grande,
se a criança fosse seu mestre.
Kierkegaard
Certas
poesias suscitam cores. Quando as lemos, vemos cores, cores que tingem a alma
que as lê e se afeta. Há poesia também na prosa. Há coisas que apenas se pode
dizer através da poesia, mesmo que sob a veste da prosa. Os textos do filósofo
Kierkegaard suscitam uma experiência poética na qual nossos olhos, nossos olhos
do espírito, são inundados por uma intensidade expressa por uma cor: o vermelho.
Este vermelho, no entanto, não nos cega, ele nos faz ver. Ele nos faz ver
claramente o que somente se pode ver quando ultrapassamos a luz clara da razão.
Ele nos faz ver a paixão. Não a paixão meramente passional que nos torna
passivos, mas a paixão libertária de um pensamento apaixonado. Somente
apaixonado, e apaixonando-se, que o pensamento vence o abstrato dos conceitos
mortos, “puros”, estéreis. Somente sob a paixão que lhe é própria que o
pensamento também pode nos fazer apaixonar por ele. E o que é um pensamento
apaixonado e apaixonante? O pensamento somente pode conquistar essa condição
quando descobre e vive a sua singularidade. O que é o singular? O singular é o
único.
O
singular, o único, tem a cor vermelha, mais o vermelho da brasa do que o
vermelho do sangue; ou melhor, a brasa é seu sangue. Segundo Kierkegaard,
tornar-se singular implica descobrir a força constitutiva do “estar perante”. O
singular não é o que existe só , como “um todo à parte”; o singular é o que
existe perante. Existir perante é afirmar a relação, o encontro. É somente
existindo perante que o singular encontra e afirma o seu ser próprio.
A
singularidade é o inverso do ego. Este nega todo existir perante, dado que
imagina existir apenas em si mesmo. O ego nega o outro. No entanto, ele alucina
um outro, um outro que ele imagina ser. O ego está sempre querendo ser um
outro. O outro que se reflete em um espelho, sobretudo o espelho das coisas.
Para fugir de si mesmo, o ego se aliena nas coisas que ele consome, veste, dirige,
compra, vende. O ego está sempre querendo ser um outro, outro este que lhe
falta, outro este que lhe trará a coisa que ele deseja, e pela qual ele anseia
ter, consumir, mostrar, ostentar, invejar. Paradoxalmente, o ego quer ser a
imagem que lhe mostra um espelho qualquer. Ele quer ser um reflexo, um reflexo
do mundo que o cerca, e sobre o qual ele se extroverte. A televisão, a novela,
a propaganda...fornecem ao ego o outro que ele deve desejar ser, para assim
fugir de si mesmo, para assim aceitar e se conformar com a vida que a
televisão, a novela e a propaganda lhe oferecem. Ele quer ter outros dentes,
mais brancos; ele quer ter outros cabelos, mais lisos; ele quer ter mais
amigos, que ele crê ter sendo outro, mesmo que apenas finja ser nas páginas
virtuais cheias de sorridentes amigos.
Mas
esse querer ser outro encobre o vazio de ser ele mesmo. O ego deseja o
automóvel, deseja a casa, deseja a bugiganga tecnológica, deseja a fama, deseja
o reconhecimento, deseja o poder, deseja o título....ele deseja essas coisas
como um outro que lhe fará ser ele mesmo. É se cercando de coisas que ele
imagina se pôr diante dele mesmo, de tal modo que ele reduz o próprio outro ser
humano à coisa. Essa inautenticidade
conduz o ego ao desespero. Em Kierkegaard, o desespero caracteriza um tipo de vida
cercada de coisas, coisas estas que cercam um vazio. Esse vazio enseja a
dissimulação, o fingimento, o cálculo, o cinismo, a ironia, a inveja, enfim, a
angústia como sintoma de uma vida inautêntica.
Afirmar
a autenticidade passa pelo “pôr-se diante de”. O “pôr-se diante de” implica em
vencer em nós o esconder-se , o dissimular-se. A autenticidade passa pelo
colocar-se diante da diferença, como diferença. É o “pôr-se diante de” que
singulariza, uma vez que nos faz compor com o outro.
Pôr-se
diante dos pais nos singulariza no âmbito da família. Pôr-se diante dos amigos
nos singulariza no afeto particular da amizade. Pôr-se diante da sociedade nos
torna cidadãos. Mas só nos tornamos filhos autênticos, amigos autênticos e
cidadãos autênticos quando nos colocamos diante de, e não “no lugar de”. Colocar-se
diante de é afirmar o não-eu como elemento constituinte da nossa própria
diferença, e que nos livra de querer ser um eu que vive à parte, à parte da
comunidade, à parte de si mesmo. A amizade possui uma “medida” maior do que a
família, já que a família é limitada pelo sangue e a amizade não o é. Não posso
criar laços sanguíneos com um estranho, mas posso criar laços de amizade. Há
uma indeterminação na amizade que não existe na família. Por isso a amizade me
amplia mais, ela me aproxima mais da minha singularidade, pois aproximar-se de
nossa singularidade não é estreitar-se, mas ampliar-se, sempre através de um
agenciamento, de uma relação. Mais ampla do que as relações de amizade são as
relações sociais. Nestas, outras virtudes preponderam além da amizade, como a
virtude da justiça, a virtude do conhecimento, etc. Assim, não é um mesmo
“pôr-se diante de” o colocar-se diante da família, dos amigos e da sociedade. Mas
não há como pôr-se diante da sociedade e colocar-se atrás da família, como se
esta fosse uma cerca em descontinuidade com o social, como se fosse um mundo à
parte. Por outro lado, colocar-se diante dos amigos não implica em colocar-se
contra as virtudes que me colocam diante da sociedade. Ampliar-se não significa
negar um circuito de menor amplitude. Desse modo, o colocar-se diante da
sociedade nos amplia mais do que o colocar-se diante dos amigos, embora estes
nos ampliem também. O colocar-se diante da amizade nos amplia mais do que o
colocar-se diante da família. Ampliar-se significa: conquistar a autenticidade
da nossa singularidade. Uma família que alimenta o edipianismo apenas produz
édipos egóicos, que terão dificuldades em se relacionar e produzir a autonomia
que compõe a vida social. Uma amizade não autêntica engendra descontinuidades
em relação às relações políticas e sociais, de tal modo que se confundirá o amigo
com aquele de quem se espera um tratamento de burla às regras, como se houvesse
uma antinomia entre a esfera da amizade e a amplitude política do social.
Assim, colocar-se diante do social é perceber como política as relações que
chamamos de familiares e de amizade. Ampliar-se como singularidade é aumentar a
capacidade de compreensão; logo, de ação. Quanto mais egóico é um ser, mais ele
reduzirá as relações políticas àquelas de menor amplitude, as relações
familiares, desvirtuando, no entanto, a natureza destas ( “déspota” significa,
em grego, “pai”).
Quanto
maior a amplitude, maior a liberdade que ela implica. As relações sociais têm
como base a liberdade. Mas a liberdade não é fazer o que o ego quer , tampouco
é a liberdade um mero subordinar-se à
lei; liberdade é um pôr-se diante, inclusive um pôr-se diante das leis.
Quanto
maior for a amplitude daquilo em relação ao qual nos colocamos diante, maior é
a nossa singularidade, porém menor será a determinação, o limite. Nada é mais
sem medida do que o infinito. É colocando-se diante do infinito que podemos
conquistar um maior grau de autenticidade, de singularidade. O infinito é o
mais indeterminado, e este mais indeterminado é o que, no entanto, mais pode
nos singularizar e nos libertar do desespero de uma vida refém do limite das
coisas, inclusive o limite, estreito limite, das opiniões que hoje governam o
mundo.
Pôr-se
diante do absoluto amplia todos os nossos outros pôr-se diante de, uma vez que
nos faz sentir mais viva a nossa singularidade. Não há como nos pormos diante
de nós mesmos a não ser nos pondo diante de um outro, de uma diferença. O
absoluto é um outro do qual somos uma parte singular, viva. Ampliar-se é fazer
parte do que é sem medida. E este sem medida não está fora das medidas e as
negas. Diferentemente, ele é imanente a tudo aquilo que é autêntico e que se
afirma afirmando a relação, o encontro, o agenciamento.
O
infinito não tem medida. Porém, é ele que mais nos singulariza quando , com
ousadia e paixão, colocamo-nos perante ele.

(tirei esta foto de uma exposição sobre os
“Heterônimos de Fernando Pessoa”, no Paço Imperial )