Quando eu era criança, bem
criança, meus pais só podiam me dar de presente de natal brinquedos bem simples, como carrinhos de plástico .
Eu recebia tais brinquedos e , agradecido, os guardava , quase não brincava com
eles.
Pois esses brinquedos e outros
que dependiam do dinheiro não me faziam falta , pois eu gostava mesmo era de
brincar com as próprias coisas, subvertendo seus sentidos e usos utilitários.
Por exemplo, eu gostava de pegar
o chinelo de meu pai e fazer de carrinho. Como carrinho lúdico, ao chinelo não
faltava nada, pois estava em meus olhos a fonte de vê-lo outra coisa diferente
da “visão acostumada”.
Minha mãe era costureira. Eu
também gostava de brincar com os carretéis de linhas multicoloridas dela, para
assim inventar um Fio de Ariadne como linha de fuga para
tecer outros mundos.
Há uma diferença entre fantasia e
criatividade. Imaginar que há fantasmas debaixo da cama é fantasia, e fantasia assim
alimenta o medo que infantiliza e apequena. Mas jogar um lençol sobre a cabeça para
brincar de fantasma, isso é criatividade que esconjura o medo e faz crescer por
dentro o pensamento livre. O fantasioso é refém de sua mente, já o criativo faz
de sua mente um meio para ressignificar o mundo.
Brincar com o carrinho de
plástico era bom, mas brincar com o chinelo feito carrinho era mais do que
brincar: era ato poético-político, ainda que inocente, de transmutar o sentido do que está dado.
Quando cresci, li no poeta Manoel
de Barros algo que me ajudou a compreender esse processo lúdico-transmutador.
Manoel diz que a poesia nasce de
uma brincatividade originária, brincatividade essa que existe antes da palavra,
na imanência da vida. Quando essa brincatividade ganha nossos olhos, ela
os empoema , fazendo nossos olhos “transverem o mundo”.
Hoje, creio que somente consigo enxergar
possibilidades de mudar a realidade , por menor que seja essa realidade e por mais
simples que seja a mudança, quando aquele olhar ludicamente subversivo do
menino renasce em mim, abrindo os olhos
do adulto.
Às amigas & amigos, desejo-lhes
um Feliz Natal e Boas Festas , sobretudo com saúde, saúde do corpo e da mente em
mútuo auxílio, como ensina Espinosa. E
que possamos cultivar e partilhar olhares que transvejam caminhos novos ,pessoais
e coletivos.
O tempo não é um velho, mas uma
criança: dentre seus vários brinquedos, o sempre novo é a esperança.
(Como “Cartão de Boas Festas”, partilho
aqui a obra “Iemanjá” / do artista
cubano Manuel Mendive. Na língua iorubá,
“Iemanjá” significa “Mãe que gera”, como Pachamama e Gaia , figuras da Mãe-Terra)
O mundo do menino impossível
(Jorge de Lima)
Fim da tarde, boquinha da noite
com as primeiras estrelas
e os derradeiros sinos.
Entre as estrelas e lá detrás da igreja
surge a lua cheia
para chorar com os poetas.
E vão dormir as duas coisas novas desse mundo:
o sol e os meninos.
Mas ainda vela
o menino impossível
aí do lado
enquanto todas as crianças mansas
dormem
acalentadas
por Mãe-negra Noite.
O menino impossível
que destruiu
os brinquedos perfeitos
que os vovós lhe deram:
o urso de Nürnberg,
o velho barbado jagoeslavo,
as poupées de Paris aux
cheveux crêpes,
o carrinho português
feito de folha-de-flandres,
a caixa de música checoeslovaca,
o polichinelo italiano
made in England,
o trem de ferro de U. S. A.
e o macaco brasileiro
de Buenos Aires
moviendo da cola y la cabeza.
O menino impossível
que destruiu até
os soldados de chumbo de Moscou
e furou os olhos de um Papai Noel,
brinca com sabugos de milho,
caixas vazias,
tacos de pau,
pedrinhas brancas do rio...
“Faz de conta que os sabugos
são bois...”
“Faz de conta...”
“Faz de conta...”
E os sabugos de milho
mugem como bois de verdade...
e os tacos que deveriam ser
soldadinhos de chumbo são
cangaceiros de chapéus de couro...
E as pedrinhas balem!
Coitadinhas das ovelhas mansas
longe das mães
presas nos currais de papelão!
É boquinha da noite
no mundo que o menino impossível
povoou sozinho!
A mamãe cochila.
O papai cabeceia.
O relógio badala.
E vem descendo
uma noite encantada
da lâmpada que expira
lentamente
na parede da sala...
O menino pousa a testa
e sonha dentro da noite quieta
da lâmpada apagada
com o mundo maravilhoso
que ele tirou do nada...
Chô! Chô! Pavão!
Sai de cima do telhado
Deixa o menino dormir
Seu soninho sossegado!