terça-feira, 30 de junho de 2020

rizomas



Gosto muito da ideia de “rizoma”. Rizomas são plantas cujas raízes crescem horizontalmente. As folhas e flores de uma planta rizomática são pequenas e discretas. Quem olha para a parte visível de um rizoma e o compara com uma imponente palmeira real , por exemplo, não consegue ver o verdadeiro tamanho e força dos rizomas. Pois as raízes dos rizomas crescem logo abaixo do chão, na nervura da terra. Suas raízes abrem-se em todas as direções , como afluentes de um rio que nunca para. Não raro, a extensão da raiz de um rizoma suplanta o tamanho visível de uma palmeira real, revelando que o rizoma expressa outro tipo de nobreza: enquanto a realeza da palmeira se mede em metros acima do chão , a nobreza dos rizomas se mede pelo tanto que eles se horizontam cobrindo a terra. As palmeiras reais são símbolos do poder de castelos e palácios; mas os rizomas são plantas que constroem pluralmente um espaço aberto , democrático. Como as árvores, os rizomas também dão frutos , e alguns passarinhos que nidificam no chão preferem a horizontalidade de certos rizomas para construírem seus ninhos.
Às vezes , a gente olha para um campo e vê inúmeras flores , parecendo que cada uma existe isolada como um ego ensimesmado. Mas se a gente pudesse olhar um pouquinho abaixo da terra, veríamos que cada flor brota de um mesmo rizoma comum que as mantém conectadas .E o mais surpreendente é a arte de que alguns rizomas são capazes: eles escalam o tronco de certas árvores, como fazem os cipós. Depois, os rizomas exploram determinado galho como se examinassem o peso que ele é capaz de suportar . Os rizomas então se enrolam no galho e descem feito cordas : para que a gente possa fabricar com elas um lúdico balanço para as crianças brincarem.

“A poesia que brota de mim tem raízes crianceiras. ”(Manoel de Barros)

( imagem: Deleuze & Guattari fazem do rizoma a inspiração para a criação de uma nova filosofia)



sábado, 27 de junho de 2020

o dia claro

“Hades” era, ao mesmo tempo, o nome de uma divindade e  de um lugar: o Hades. Esse lugar ficava abaixo da superfície,  porém ainda dentro de Gaia , a Mãe-Terra, como uma espécie de útero  às avessas: enquanto o útero gera vida, o Hades serve de abrigo a quem morreu. Os homens são injustos com o deus Hades, não reconhecendo que  ele é o último a nos dar abrigo quando ninguém mais o pode dar. O Hades não é a mesma coisa que o “inferno”, pois para o Hades não iam apenas os maus, ia  todo mundo que morria. Na Grécia antiga,  quando alguém  morria a sombra se descolava do corpo e ficava sozinha. O corpo era incinerado nas cerimônias fúnebres, mas como  queimar uma sombra? Era a sombra então que era recebida no Hades, juntando-se a milhares de sombras que ali já estavam. Isto explica em parte a escuridão do Hades: mais do que física, sua escuridão era por ali   só haver  sombras. Quando estamos vivos, às vezes nos esquecemos de alguma coisa. Vem então nossa memória e nos ajuda a recordar. “Recordar” é : “re-cordis”, “trazer de novo ao coração" ( cordis , em latim). Mas quando a pessoa morria e se tornava sombra, acontecia um esquecimento mais profundo: ela se esquecia de si própria. Pois é isto a morte para os gregos: Esquecimento Absoluto. Não o esquecimento dos outros em relação a nós, mas esquecimento de nós mesmos em relação a nós mesmos, não nos lembrando mais o que é a vida. Morrer, para os gregos, é esquecer de si. Certa vez ,o poeta  Orfeu foi ao Hades, porém sem ter falecido. Ele foi em busca de sua Eurídice que havia morrido . “Eurídice” também é um dos nomes da alma, assim como “Pneuma” e “Psiquê”. Simbolicamente, isso significa que a alma do poeta, tomada de grande dor e tristeza,  havia "morrido", parando de cantar. Parar de cantar é, para o poeta, morrer. Mas somente ele poderia resgatar sua Alma-Eurídice, pois somente ele tinha a arte de fazer viver de novo  almas. Chegando ao Hades, isto é, à região escura que também estava no interior  dele mesmo, Orfeu reúne forças e começa a cantar. As canções de Orfeu  eram simples, porém ricamente  elaboradas, cheias de vida. Eram canções talvez semelhantes às que Cartola cantava...Ao ouvirem Orfeu, as sombras foram novamente se lembrando de si mesmas:  tornaram-se novamente almas, focos de luz,  cujo corpo era a arte trazendo-as à vida. Por um instante, fez-se no Hades um dia claro.

“Descanse tranquilo onde cantam, os maus não cantam.” (Schiller)

“A literatura é o esforço para interpretar engenhosamente os mitos que não mais se compreende, por não sabermos mais sonhá-los ou produzi-los." (Deleuze)







sexta-feira, 26 de junho de 2020

eros, afrodite, psiquê e plotino


Eros primeiro  amou Afrodite, achando que Afrodite era tudo; até que Eros  conheceu Psiquê, esquecendo de imediato Afrodite. No início ,   Eros foi só de Afrodite;  depois  esqueceu Afrodite e passou a ser só de Psiquê. Com isso, Eros  produziu  tristeza em Afrodite , ao mesmo tempo que mantinha Psiquê ignorante de que ele já havia amado, e muito, um outro ser. Por isso, Eros fazia de tudo para que Afrodite e Psiquê se ignorassem, como se a alegria de uma fosse a dor da outra, de tal maneira que a felicidade de ambas ele não poderia oferecer. Na mitologia, Eros é o Amor, Afrodite simboliza o Corpo, enquanto Psiquê é a Alma.  Assim, os gregos achavam que o Amor não pode amar, ao mesmo tempo, o Corpo e a Alma. O Corpo proporciona  prazer ao Amor, enquanto a Alma lhe faz nascer a Sabedoria ( Sophia). “Prazer” em grego é “hedon”, de onde nasce “hedonismo”. Ou o Hedonismo ou a Sabedoria:  essa deve ser, segundo os gregos, a escolha que a parte de nós que ama deve fazer. Platão, por exemplo, fez da escolha exclusiva do Amor pela Alma a base de sua filosofia, ao mesmo tempo condenando o Corpo como não tendo, para o pensar, nenhuma serventia. Para Platão, filosofar é aprender a morrer.
Plotino não concordava com essa visão dicotômica , nisso inspirando a Espinosa. Segundo Plotino, a função maior do Eros-Amor , a sua utilidade suprema , não é escolher entre a Alma e o Corpo, mas fazer a Alma e o Corpo unirem-se um ao outro para viverem o ato de pensar  como paixão  pelo viver.

“Se a gente não der o amor ele apodrece dentro de nós.” (Manoel de Barros)





-Obs.:  Sempre me perguntam se Eros não seria filho de Afrodite . Isso depende da versão do mito, é comum haver variações de sentido do mito , tanto entre os autores gregos quanto entre os gregos , os latinos e os autores do Renascimento. Em Platão,por exemplo, Eros é filho de Pênia ( a deusa da penúria ou carência, e é por isso que quem ama, segundo Platão, se sente carente) com  o deus Poros ( cuja simbologia é muito rica e complexa, significando também "artimanha" ou "estratégia", pois quem ama sempre faz estratégias para estar perto ou conquistar o objeto amado). Em Homero e Hesíodo, por outro lado,  Eros terá outro sentido ( em Hesíodo, Eros nasce diretamente do Caos...) . Existe ainda a interpretação de Plotino, que aqui tentei esboçar. Essa interpretação de que Cupido ( Eros , em latim) é filho de Vênus ( Afrodite)  é a de Apuleio, um autor latino. É essa interpretação de Apuleio que serve de base às interpretações de Freud e Lacan sobre o mito de Eros. E também há a versão de Fernando Pessoa . Em mitologia, é comum haver essa variação do sentido de um mito, conforme a fonte.Além disso, quando os mitos gregos foram rebatizados pelos romanos, não houve uma tradução literal, pois em muitos casos  os mitos ganharam novos aspectos e perderam outros. Um povo sempre imprime seu ethos próprio à mitologia que vem de outro povo. Vênus e Cupido  têm aspectos que Afrodite e Eros  não têm. Cupido está mais próximo daquilo que nós chamamos de "Desejo". E é assim que Espinosa chama o desejo : "cupiditas "( isto é, "relativo a Cupido").

quinta-feira, 25 de junho de 2020

os tupinambás


Existiram e existem muitas etnias e povos indígenas de grande valor. Mas talvez nenhum povo  tenha sido mais nobre e guerreiro do que o povo tupinambá. Os primeiros colonizadores tentaram comprar a obediência deles, não conseguiram. Depois quiseram  negar seus deuses, porém isso só fez aumentar o amor  dos tupinambás a  seus Ancestrais. Por fim, tentaram exterminá-los... Mas  um único tupinambá tinha mais coragem e força do que dez dos mercenários invasores. Inclusive, além das flechas e lanças, os tupinambás tinham uma arma que não provocava mortes ou ferimentos, sendo  muito eficaz para afugentar o inimigo evitando derramamento  de sangue : quando percebiam que os inimigos vinham em emboscada , os tupinambás começavam a tocar uma flauta cujo  som parecia   um grito de aviso, pois o som  parecia dizer: “Se vierem atacar , vão terminar como eu”. Pois a flauta era feita com o fêmur oco de mercenários  incautos que tentaram escravizar  os tupinambás. Quando ouviam tal réquiem da taba, as pernas dos mercadores  de gente fugiam correndo...
No final do século XIX e começo do século XX, sob a influência do positivismo, o Estado e os milicos brasileiros consideravam  um insulto viverem  aqui  povos  que não estavam nem aí para a tal “Ordem e Progresso”: tais povos eram livres e felizes só com a natureza. Por perseguição,  os milicos obrigaram  vários povos indígenas  a se miscigenarem , outros foram caçados e exterminados. Novamente , a maior resistência veio do povo tupinambá. Foi mais ou menos nessa época que os “Integralistas”, espécie de avôs dos bolsonaristas de hoje, resolveram travar uma “guerra santa” contra os tupinambás . Inclusive, acusavam os tupinambás de “comunistas”, por eles tratarem a terra  como  “bem comum” sem dono ou proprietário. Os Integralistas fizeram lei  determinando que “os tupinambás eram povos extintos”: queriam extingui-los primeiro na lei  para facilitar depois o extermínio na realidade concreta.  Como não conseguiam vencer os tupinambás empregando  armas e revólveres , covardemente mandaram para seus rios barcos com cadáveres infectados por doenças. Quando os tupinambás ficaram contaminados, as autoridades da época só aceitavam tratá-los   se eles se entregassem, se convertessem e deixassem de ser quem eles eram. Os Integralistas espalharam então o boato de que o povo tupinambá estava  enfim extinto:  a “civilização branca-fundamentalista-capitalista” havia , parece,   vencido.
Recentemente, porém, descobriu-se  que os tupinambás estão vivos, eles não morreram: vivem em Ilhéus, na Bahia, ainda  lutando para manter seus territórios . Dia desses, um cacique tupinambá concedeu entrevista a um jornalista. A primeira pergunta foi acerca do que o cacique achava da ameaça do governo bolsonarista à vida dos índios. O cacique respondeu mais ou menos o seguinte: “Meu povo já conhece, há séculos, esse tipo de gente: são versões novas dos antigos mercenários  e  Integralistas que tentaram acabar com a gente. Para o azar deles, corre em nossas veias o mesmo sangue dos que resistiram a eles.”








quarta-feira, 24 de junho de 2020

negacionismos


Quando alguém afirma  que “a terra é plana” ou que “a covid-19 é uma gripezinha”, por exemplo, só na aparência essas frases são afirmações, pois na verdade elas são negações: negações do que afirma a ciência. Pouco interessa aos negacionistas o que são de fato a terra ,o vírus ou qualquer outra realidade,  pois o que interessa a eles de verdade  é negar  o conhecimento e a ciência. Por detrás dessa negação existe algo mais profundo e doentio, que é a negação delirante da própria realidade. O que caracteriza o verdadeiro conhecimento  é ser  sempre uma afirmação ou abertura da mente à realidade, e nunca a negação desta,  pois somente a realidade, ou o conhecimento dela,  é antídoto para nos proteger de mentalidades delirantes. O cientista que descobre a cura para uma doença  nunca começa negando  a doença: ao contrário, primeiro ele reconhece que a doença existe e é real, para assim vencê-la com  um conhecimento também real, isto é, com a ciência. O negacionista que nega a realidade da ciência revela, na verdade, outra realidade:  a da  ignorância que ignora a si mesma, fazendo da negação-destruição o seu maior sintoma. E mesmo dessa ignorância pode também haver  ciência, uma vez  que  a filosofia, a sociologia, a psicologia e a psiquiatria estudam o negacionismo como um objeto de estudo delas, procurando desse modo  compreender por quais motivos o negacionismo existe .   Quem nega que o negacionismo existe é o próprio negacionista , incapaz de conhecer o que ele mesmo é. E quando se juntam vários deles,  imaginam que se fortalecem quando na verdade se enfraquecem ainda mais , pois se aplica ao caso aquele diagnóstico de Nietzsche: “O tolo se torna ainda mais tolo quando se junta com outros tolos." Os negacionistas ameaçam  com armas e violência quem discorda deles, nós nos apoiamos na ciência , inclusive na ciência política, para tentarmos compreender  porque existe o negacionismo, quais suas causas e efeitos. Não para  aceitar o fenômeno, mas para nos proteger dele e enquadrá-lo em  um tratamento, à maneira do cientista-médico enfrentando uma doença.Nos casos mais brandos , deve-se  tentar mudar , com argumentos, o modo de ver deles, se isso for possível e não nos violentar ; porém nos casos mais graves,  sobretudo quando eles obtêm cargos públicos,   a receita para tratar o  negacionismo é a cassação de mandatos ou  a cadeia, quando nossa vida estiver ameaçada por eles . E nunca, nunca mesmo, deixar  na mão deles  a educação dos jovens e das crianças.



segunda-feira, 22 de junho de 2020

o albatroz




No poema “O albatroz”, o poeta Baudelaire nos explica o  motivo de o albatroz ser o pássaro de maiores asas: é porque ele aceita o desafio do oceano. “Venha voar sobre mim se tiver coragem!”, assim é o desafio do oceano . A maioria dos pássaros voa apenas de ilha em ilha, perto do litoral conhecido, muito longe não se aventurando. Mas o albatroz criou imensas asas porque ele ouviu e aceitou o desafio .  Quem voa sobre o oceano nunca sabe se vai achar onde pousar. Voar assim só voa quem confia em suas asas. O albatroz é capaz de ficar uma semana voando sem parar ! Quando tem sede , ele atravessa  as nuvens e bebe a água diretamente sob a forma de gotículas, antes de elas caírem como chuva e se tornarem o próprio oceano . O albatroz também inventou outra arte em sua travessia: enquanto voa, metade de seu cérebro dorme, fechando um dos olhos,  enquanto a outra metade fica de vigília , mantendo o outro olho aberto . Um olho sonha, o outro ao horizonte mira. Porém se engana quem pensa que é apenas  o olho aberto que guia o albatroz: pois quando nuvens negras barram sua visão, é com o olho que sonha que o albatroz avança em sua linha de fuga . Às vezes, no meio do oceano,  o albatroz vê abaixo de si um navio, ele então desce e pousa. O albatroz tenta fechar e guardar suas asas, porém  elas são maiores do que ele: hábeis para voos no céu, elas atrapalham o andar no rasteiro chão. Resultado: no chão o albatroz anda desajeitado, o que faz a marujada rir zombeteiramente. Quando enfim descansa, o albatroz novamente abre as asas e faz do vento uma escada para subir até ao altar azul onde novamente será coroado príncipe. Vendo o albatroz se elevar, a marujada cala o riso e algo neles se eleva também. Mas o capitão do navio , com ódio e inveja , tenta se vingar da liberdade do albatroz atirando contra ele  flechas e bala de canhões. Porém  o albatroz voa tão alto e potentemente, que não o alcançam flechas, canhões e nem a opinião maledicente dos homens. E quando vê a tempestade adiante , o albatroz a atravessa pelo meio e segue em frente.

“Sonhar é acordar-se para dentro” (Mário Quintana)











domingo, 21 de junho de 2020

mitos: ontem e hoje


Às vezes, os simpatizantes do bozo o chamam de "mito". De certo modo, eles não estão errados. Pois mitos não são apenas Zeus, Hermes, Afrodite, Eros, Dioniso ...Também são mitos , por exemplo, os "Ciclopes" , seres de um olho só na testa simbolizando “estreiteza de visão”. Os Ciclopes eram inimigos de Zeus, o deus da ética e da justiça, e de Eros, o deus do amor. Os Ciclopes, segundo Jung, simbolizam o que de besta bárbara ainda vive no homem, como sombra persistente mesmo hoje nesse mundo tecnológico, pois os Ciclopes de hoje usam a tecnologia a serviço de sua visão estreita. Outro mito que simboliza o bozo são as “Eríneas”, deusas do ódio e da vingança. Foram elas que despedaçaram “Orfeu”, o poeta que cantava a vida e a arte. Quando Eurídice desapareceu, o poeta Orfeu parou de cantar. Eurídice era o par de Orfeu. Para os gregos, “Eurídice” também é um dos nomes da alma, assim como “Psiquê” e “Pneuma”. Então, as Eríneas queriam que Orfeu esquecesse a alma e servisse a elas, cantando assim a guerra , o ódio e a vingança, para ajudá-las a espalhar tais vilezas pelo mundo. Como Orfeu se recusou a usar sua arte para servir à barbárie, as Eríneas o despedaçaram, tal como as Eríneas de hoje que despedaçaram a placa de rua com o nome da Marielle... Mas isso não fez morrer o poeta , pois seu filho de nome “Museu”, poeta como o pai, recolheu os fragmentos que Orfeu se tornou e os reuniu novamente, fazendo surgir assim a primeira exposição do mundo, na qual Orfeu reencontrou sua alma-Eurídice expressa em sua arte. Bozo também lembra Procusto , um personagem de índole questionável que oferecia uma “cama” fabricada por ele às pessoas que passavam cansadas por uma estrada. Quando as pessoas se deitavam na tal cama, porém, acontecia algo estranho: ninguém cabia direito nela. Quando a pessoa era maior do que a cama , Procusto pegava um machado e decepava as pernas e a cabeça , deixando o incauto acéfalo.Quando, ao contrário, a pessoa era menor , Procusto amarrava as pernas e os braços dela com correntes , esticando brutalmente até desmembrá-los... Ninguém sobrevivia àquela cama transformada em túmulo: querendo que cada um se amoldasse à força, Procusto acabava matando todo mundo. Quando as pessoas reclamavam, Procusto pegava uma régua e media com rigidez militar a cama, e dizia: “A cama é perfeita, normal, exata: cada lado é idêntico ao outro . A régua não mente! O defeito está em vocês : diferentes e heterogêneos. Amoldem-se , mesmo que se violentando, e caberão na minha Verdade!” A cama de Procusto pode receber vários outros nomes: “Minha Opinião”, “Meu Dogma”, “Meu Credo” ...O que não couber em tais “fôrmas”, Procusto vingativamente corta, nega, mata – física ou simbolicamente . O tamanho de tal cama é o da pequeneza: só acéfalos cabem nela.




sábado, 20 de junho de 2020

raízes , rizomas...


Segundo a mitologia, Hades é o deus que habita a região escura muito abaixo da superfície da terra. Nesse lugar nenhuma luz entra. Certa vez, porém, Hades ouviu risos vindo da superfície. Ele subiu e viu Perséfone... Ela estava com sua mãe , a deusa Ceres. De “ceres” vem “cereal”, pois Ceres é a divindade do plantio e colheita dos cereais. Ceres é filha de Cronos, o Tempo, com Cibele, a deusa da fertilidade. E foi em sua neta Perséfone que a fertilidade de Cibele se tornou uma força criativa semelhante àquela que vemos no artista, pois Perséfone é a deusa cuja arte é fazer nascer flores. Perséfone mata outra fome diferente daquela que Ceres mata: Perséfone mata a fome de beleza, de poesia e de cores. Hades se apaixonou pelas flores e quis levá-las para enfeitar sua noite eterna. Foi uma imensa surpresa, pois ninguém imaginava que pudesse nascer em Hades um desejo por cores. Ele raptou então Perséfone para fazê-la morar lá embaixo . Porém, naquele mundo carente de luz , de Perséfone nasciam rosas só com espinhos , sem as pétalas, flores da dor que elas eram. Enquanto isso, sentindo a falta de Perséfone, Ceres ficou deserta : o grão não mais germinava nela. Havia agora fome de pão e beleza, de pão e poesia, e ninguém sabia qual das duas fomes doía mais: a primeira esvaziava o estômago, a segunda ao coração secava . Zeus interveio e foi feito então um acordo. Durante parte do ano Perséfone viveria entre a gente, de sua presença nascendo a primavera , o verão e o outono. Durante outra parte do ano, uma parte mais breve porém doída para nós, Perséfone viveria lá embaixo . Desta maneira nasceu o inverno: o período em que Perséfone desce para ir morar com Hades. Mas para nos confortar um pouco e minorar a tristeza pela sua ausência, Perséfone criou flores que florescem no inverno. Foi assim que nasceram a Tulipa, a Angélica , o Crisântemo , a Orquídea e o Lírio. Hoje, 20 de junho, começa o inverno. Vendo chegar ao fim sua saudade por Perséfone , Hades lá embaixo a recebe, ao mesmo tempo que começa a nossa saudade por ela , até que em setembro ela retorne.
Ainda bem que pode nos socorrer outra mitologia, a tupi-guarani, que considera a nossa árvore do ipê a própria Árvore da Vida e expressão perseverante da Mãe-Terra: florescendo o ano inteiro, ela nos protege de todo inverno com uma resistente primavera.

“O céu da teoria é cinza;
mas sempre verdejante é a árvore da vida.” (Goethe)

- imagem: “Roots” ( “raízes”), de Frida Kahlo.



sexta-feira, 19 de junho de 2020

da utilidade da arte para a vida


Na vida cotidiana, a imaginação sempre precisa de signos ou sinais externos  que confirmem a verdade do que ela apenas imagina. Por exemplo, amo alguém para o qual ainda não me declarei, ao mesmo tempo que imagino que ela talvez também me ame. Para confirmar essa imaginação, para que ela não seja apenas fantasia mas verdade, vivo a expectativa, velada ou explícita, de que o objeto amado dê sinais que confirmem o amor que imagino, se esse amor imaginado   será de fato amor, quando correspondido, ou  apenas dor, se rejeitado. Tais signos podem  ser um sorriso, um olhar , coisas assim. Porém, a imaginação nas relações humanas domina tanto, que mesmo quem é casado há anos não escapa de esperar sinais ou signos do ser amado. E mesmo quando esses são dados, parecem não ser o suficiente, quando se é  inseguro ou ciumento. Como as relações imaginativas são sempre espelhadas, aquele que amo está sempre a esperar que eu dê sinais de que também o amo, o que pode gerar cobranças. O mesmo vale nas situações que envolvem o ódio: quando odiamos  algo, sempre buscamos nesse objeto do ódio sinais ou signos que justifiquem nosso ódio. Por outro lado, quando imaginamos que alguém nos odeia, mesmo que seja apenas uma imaginação nossa ,  dificilmente escapamos de imaginar que esse ódio dela por nós  é de fato  real:  acabamos por odiar  ou agir como se de fato tal alguém nos odiasse. No amor , esperamos sinais objetivos e externos de que a pessoa nos ama, para assim amá-la; no ódio, ao contrário, às vezes nem esperamos a confirmação objetiva de que a pessoa de fato nos odeia: já agimos, ou reagimos, e também a odiamos. 
Este é o aspecto reativo da imaginação nas relações afetivas presentes no nosso cotidiano: ela, a imaginação,  espera um sinal externo que confirme o que imaginamos. Porém, quase sempre a imaginação “alucina” esse sinal externo: se ela é demasiadamente insegura, imaginará que o olhar que recebe da pessoa de quem gosta em segredo é, na verdade, um olhar de desprezo, quando na verdade é de amor; os convencidos ou narcísicos, ao contrário, sempre alucinam que os sinais de desprezo que recebem são, na verdade, sinais de inveja. Isso acontece com a imaginação porque ela não é  a parte nossa capaz de conhecer de fato o  mundo externo. Contudo, na nossa relação com a realidade que nos cerca é sempre ela que faz a mediação, não raro projetando sobre a realidade , como se fosse verdade, aquilo que está apenas em nossa imaginação. 
Para vencer isso, diz Espinosa, é preciso formar uma ideia adequada das coisas. Ideia não é a mesma coisa que “imagem”. É por isso que conhecer de fato uma realidade, seja uma coisa ou pessoa, requer mais do que as imagens que formamos dela. Quem em nós forma as imagens é a imaginação, ao passo que as ideias são produzidas em nós pela compreensão. Quando compreendemos algo, já não mais apenas o imaginamos. A imaginação depende de signos ou sinais externos que confirmem a veracidade do que ela imagina, já a compreensão depende apenas dela mesma , de sua potência interna: e é dela, e não da imaginação, que nasce a autêntica autoconfiança.
Mesmo na arte a imaginação depende também de signos externos. Aqui, porém, os signos não são externos no sentido de algo objetivo, pois é a própria imaginação que cria os signos por intermédio dos quais irá expressar-se. Na vida cotidiana, a imaginação pode alucinar e criar autoenganos, ao passo que na arte a imaginação cria um real que expressa variados  tipos de realidade: realidade do sonho, realidade do desejo, realidade da própria imaginação. Ou seja, a realidade da arte é inventada ou criada, sem que isso seja um delírio ou alucinação, mas uma forma de conhecimento de realidades não conceituais. Na vida cotidiana, a imaginação pode se deixar tomar por “delírios mórbidos”, já na arte a imaginação se torna ato de pensar por imagens: ela cria “delírios ônticos”, como na ´poesia de Manoel de Barros.  Na arte, o ato de imaginar cria signos para o amor , para o ódio e para todos os outros afetos, seja na tinta do quadro, no som da música ou no corpo do ator,  de tal modo que, pela arte, conseguimos compreender esses afetos que tanto podem gerar sofrimento e incompreensão na realidade cotidiana. Compreendê-los não para fugir deles ou reprimi-los, mas para vivê-los em sua  verdade:no caso do amor, não esperar apenas recebê-lo,  mas também saber ofertá-lo e partilhá-lo; no caso do ódio, não deixar que ele nos cegue.



hoje: aniversário de chico buarque


Antes de ouvir Chico,eu o li. Antes de ouvi-lo como música,eu o li como poesia:como poesia que se lê para ampliar nosso pensar e sentir. A primeira vez que li Chico foi na escola, numa  época na qual ainda pairava sobre nós a ditadura.  Eu não tinha mais do que 11 ou 12 anos. Eu já  sabia ler livros : livros de história, de física, de química, de geografia e até livros sobre literatura. Porém, até então eu não havia experimentado toda a potência que pode haver na leitura. E a potência da leitura nada tem a ver com apenas desenvolver o intelecto. Foi a poesia presente na canção popular  que, quando criança,  me fez aprender a ler. Ler não apenas a letra, mas o mundo que ela expressa: mundo por descobrir.
Li pela primeira vez Chico  em uma aula de língua portuguesa dada no antigo primeiro grau. Ao invés daqueles livros tradicionais que,na parte de interpretação de textos,  empregavam os “parnasianos”, a nossa querida professora  resolveu adotar um livro heterodoxo, plural :o livro apresentava  as letras de músicas dos compositores que participaram dos festivais da canção . Tais festivais ainda eram recentes, eu era bem pequeno quando eles aconteceram. Por isso, eu não tinha memória ou vivência deles. Sem dúvida, aquele livro  fazia o que Foucault chama de micropolítica da resistência.
Quando li  “Construção”, de Chico, experimentei pela primeira vez aquilo que Deleuze e Guattari chamam de “desterritorialização”. Desterritorializar-se é fugir de um território habitual,costumeiro, ordinário.Como diz Manoel de Barros, desterritorializar-se é fugir do acostumado de toda cartilha,incluindo as cartilhas que tentam codificar nossa percepção, palavras  e maneiras de pensar e agir. 
Ao ler Chico, eu não apenas me desterritorializava : eu me reterritorializava em um território composto de   sensações e afetos que não eram apenas pessoais.
 Essa desterritorialização  me  ampliava para além dos muros da escola: me lançava no mundo,  me inseria no cosmos. Foi a partir dali que me apaixonei por ler, e que compreendi que todo ler também é um “me ler” e “nos ler” ,sobretudo ler o sentido que nunca poderá ser reduzido apenas a livros , muitos menos os de “Moral e Cívica” , a cartilha com a qual os milicos queriam nos adestrar.
Embora eu não entendesse intelectualmente todos os significados imanentes à letra do Chico, algo em mim ali “desabriu” e “horizontou”, como diz Manoel de Barros. E creio que foi ali que começou a nascer em mim, ainda em embrião, o filósofo.













Chico Buarque na voz de Elis ( esta música é a expressão daquilo que Lacan chama de "amoródio"):

Outra de Chico & Elis:

quinta-feira, 18 de junho de 2020

manoel, pessoa & os fluxos


Virou  opinião comum hoje falar em “amores líquidos”, “amizades líquidas”, “política líquida”  e até mesmo em “ensino líquido”... Nostálgicos de "valores sólidos", os conservadores de toda espécie atacam a "volubilidade" desses nossos dias, e bradam por uma ordem rígida a qualquer custo. Porém, esse “líquido volúvel” nada tem a ver com a água poetizada por Manoel de Barros: “Sou água que corre entre pedras: liberdade caça jeito”. Tal fluxo poético-existencial é fluido, mas não é sem força ou volúvel; ele é firme, possui consistência, porém não é rígido; ele é nômade, andarilho, mas sabe aonde ir, “horizontando-se”. Ele é o fluxo da liberdade criativa que os obstáculos, físicos ou simbólicos, não conseguem reprimir ou deter, por mais que tentem. Nem todo líquido é fluxo. Os líquidos se amoldam à forma de seus recipientes, e assim são “capturados”; já os fluxos ou inventam seus caminhos ou secam e morrem.
Em “O guardador de águas”, Manoel diz que “guarda águas”. Guardar também é cuidar. O poeta cuida de fluxos. Fluxos dentro e fora dele. Cuidar dos fluxos é o oposto de construir represas, muros, gramáticas, ordens rígidas. Não se pode "passar régua" nos fluxos. Só se pode guardar fluxos sendo também um. O rio amazonas nasceu da geleira no alto dos Andes, mas da geleira devindo fluxo, correndo, fluindo. Os fluxos somente podem ser guardados em espaços abertos, "horizontados"; seja esse espaço horizontado o pantanal, a mente , o coração ou a sociedade  democrática.
O sólido talvez nada mais seja do que um líquido que enrijeceu dogmaticamente até virar uma identidade que não aceita a diferença; o líquido talvez seja um fluxo que perdeu sua consistência, sua crença em si mesmo, e vai tanto para lá como para cá,  como as volúveis águas de um lago sob a ação do vento.

“Há ondas em minha alma:
quando ando, embalo-me.”(Fernando Pessoa)






quarta-feira, 17 de junho de 2020

autoconhecimento em espinosa


Segundo Espinosa , todo autoconhecimento visa conhecer a ideia que somos. A ideia  que somos , porém, não pode ser encontrada ou buscada fora de nós mesmos. Pois se a ideia  que  somos estivesse fora de nós mesmos, como saberíamos se , ao encontrá-la fora de nós, tal ideia seria, no entanto, a ideia de nós mesmos? Ideias que estão em livros entram em nós por nossos olhos , quando as lemos;  ou na voz do professor, quando com ele aprendemos ,  escutando-o. Porém, a ideia que somos não pode estar em livros, por mais instrutivos que sejam, nem na voz do professor , por mais didático que o professor seja.
Então, como encontrar e autoconhecer a ideia que somos? A semente do abacate está dentro da fruta-abacate, e faz da fruta-abacate o que ela é e não outra coisa. A semente que está dentro da fruta-abacate é para ela o mesmo que é para nós a ideia que somos. A  fruta-abacate não precisa sair procurando a semente do abacate fora dela para conhecer-se fruta-abacate.  A fruta-abacate e a semente que está nela não são duas coisas, assim como não são duas coisas, mas uma só ,  a alma e o corpo que fazem ser o que somos. Assim, conhecer a ideia  que somos é conhecer algo que sempre esteve onde estamos : quando temos dificuldade de sabermos o que somos, essa dificuldade não se deve à ausência da ideia que somos , mas devido à ausência de nós em relação a nós mesmos. 
Uma ideia nunca vive sozinha, diz Espinosa. Assim , a natureza de toda ideia, inclusive da nossa, é , quando se acha, no mesmo instante compreender-se unida a outras  ideias diferentes dela, tal como a semente do abacate que , sem perder sua singularidade, liga-se à árvore da qual proveio e  à árvore que nascerá dela. Tal como a semente, a ideia que somos é uma potencialidade, e não algo pronto. 

"Poeta é ser que vê semente germinar." 
(Manoel de Barros)




              

o que põe o homem de pé


Segundo Fernando Pessoa, o que pôs o homem de pé não foram os pés, o que colocou o homem de pé foi  sua capacidade de colocar questões,  perguntas. Assim considerado, o tamanho de um homem não se mede em centímetros ou metros, mas pela amplitude e potência de sua pergunta e questionamento. Lá no início dos tempos, diz o poeta, o homem andava de quatro, como um cão. Sua coluna cervical  era paralela ao chão, como um travessão. De tal maneira que seu rosto estava sempre voltado para o chão, atrás de rastros e restos, ao mesmo tempo que  seus olhos,  apequenados, só enxergavam  o que era útil ao interesse rasteiro e imediato. Deve ter sido de noite, sob o céu aberto e estrelado, que os olhos do homem começaram a se erguer para olhar e tentar compreender o infinito que ele não podia pegar com a mão e nem sentir o cheiro. Os olhos do homem então  se desterritorializaram do estreito chão que viam com a cabeça baixa e se reterritorializaram no infinito do céu aberto. Os olhos “horizontaram-se”, diria Manoel de Barros; com eles, a própria mente do homem também se horizontou. A palavra “desejo” vem de “desiderium”, cuja raiz é “siderium”, “sideral” em português. Desejar é: “alcançar o sideral”, enquanto espaço aberto onde vivem as estrelas. É esse desejo que coloca  de pé o pensar no homem, para que assim o homem  se volte também para o próprio mundo imediato onde vive, para que o compreenda e possa transformá-lo, ao invés de apenas viver de quatro ou de joelhos, refém da ignorância ou do medo.  Complementa então o poeta: quando o homem está de pé e o olhamos de perfil, a coluna cervical que o ergue assemelha-se a um ponto de interrogação sustentando sua cabeça.


( imagem: “Poesia”, de Haroldo de Campos)




("Infinito" , de Décio Pignatari)








terça-feira, 16 de junho de 2020

espinosa : diferença entre indignação e ódio


Segundo Espinosa, não se deve confundir “ódio” com “indignação”. A indignação é um afeto ativo nascido da compreensão de que  uma injustiça sofrida por outro cidadão de nós diferente   é uma violência  que também nos atinge, ao passo que o ódio é um sentimento reativo transformado em vontade de destruir o outro   , física ou simbolicamente . Indignação é desejo de construção da justiça, ódio é vontade de  vingança. A indignação une os homens na luta pela defesa do que nos torna dignos, já o ódio arrebanha os que fazem da ignorância bandeira e partido. O ódio geralmente se arma com preconceitos, intolerâncias , fake news...ou ainda  com o estúpido revólver mesmo, ao passo que a indignação se expressa não apenas em passeatas ou manifestos, mas também   na arte e pensamento críticos.  Enfim, o que caracteriza um cidadão, diz Espinosa, não é exatamente votar  ou empreender negócios, mas ser capaz de se indignar com a injustiça sofrida por um outro. E a indignação deve ser  ainda maior , nos unir ainda mais,  quando o ódio autoritário quer destruir  a própria democracia. Pois não foi a democracia que criou a indignação , foi a indignação que criou a democracia , pois antes mesmo de existirem as leis democráticas e seus Tribunais com magistrados togados, foi a indignação corajosa de homens libertários que primeiro derrotou  a tirania medieval dos que impunham  servidão e    vassalagem. Indignação não é um ódio ao que é indigno, mas um amor ao que é digno, transformando esse afeto em  ação que nos diferencie e agencie coletivamente. A vacina não age diretamente na destruição do vírus, a vacina  fortalece nossa saúde para que esta, afirmando-se, destrua o vírus.
Certa vez, um fanático do ódio quis matar Espinosa. Rápido, Espinosa desviou do golpe. Ao invés de apenas alimentar ódio  a tal homem, Espinosa se indignou com a simbologia de tal ato, cujo alvo não era apenas ele ,  mas  o próprio pensar livre e democrático de não importa qual tempo. Compreender Espinosa não é  apenas decifrar  intelectualmente a lógica do seu  texto, mas fazer ressoar em nós a sua voz calma e doce, porém firme e indignada, para que ela se some à nossa e  potencialize o nosso coro plural de indignados que não  pode nunca se  deixar calar.






domingo, 14 de junho de 2020

espinosa & manoel: guardadores de águas...


Muito se discute  acerca do que Espinosa chama exatamente de “Deus”. Longe de mim querer dar uma resposta à questão. Desejo apenas apresentar uma perspectiva deliberadamente  simples, poética. Como diz Deleuze, “mais importante do que o pensamento é o que dá a pensar.” O pensamento se apoia em conceitos, já o pensar é como o artesão que fabrica ideias . Deleuze então complementa: “Mais importante do que o filósofo é o poeta”, este artesão de ideias esculpidas na própria sensação que o corpo também sente.
Logo no início de sua “Ética” , Espinosa não emprega o termo “Deus”, ele evoca a  ideia do  “Absolutamente Infinito”. A palavra “absoluto” significa : “ab-soluto”, “o que não é solúvel”, ou seja, “o que não se dissolve”. Então, ele quer nos fazer pensar-sentir-experimentar a ideia de que existe uma realidade que não se dissolve, e que nós mesmos somos expressões ou maneiras de ser dessa realidade absoluta. Não apenas nossa alma , enquanto pensa, é uma expressão singular dessa realidade absoluta , também o é nosso corpo, enquanto age.
Então, Espinosa não dá um nome específico a essa realidade absoluta, ele tenta nos fazer pensar-sentir-experimentar sua ideia, e só a compreenderemos  de fato se nos apreendermos como partes singulares dela, aqui e agora e não no “além”. “Ideia” não é a mesma coisa que  “nome”. “Nome” designa algo, já a “ideia” nos faz pensar em algo, mesmo que esse algo não possa ser designado por um nome específico. Como as crianças,  “poetas gostam de usar palavras que ainda não têm idioma”, ensina Manoel de Barros.
O nome “Deus” é  possuidor de significados que geram disputas teológico-políticas entre os homens, dividindo-os em religiões muitas vezes em constante  guerra . Já o “Absolutamente Infinito” ninguém pode querer ser o dono dele e nem falar em seu nome, pois somente se torna  expressão  do Absolutamente Infinito quem ama pensar, sentir e viver a potência libertária das  ideias, agindo para que os obscurantistas , sempre inimigos das ideias, não as dissolvam.
Assim,  usando aqui como metáfora poética a ideia da água, na aurora de sua “Ética” é como se Espinosa falasse  da simples e pura ideia da água: a “natureza naturante” . Essa água absoluta   não está só no oceano, na chuva e no  rio , ela está também no suor e na lágrima , bem como na água da placenta que nos envolveu e alimentou no corpo da mãe. Todas as águas são uma expressão singular  ou maneira  de ser dela , enquanto “natureza naturada” ou fluxo da Vida.






Quando as crianças são muito pequenas, têm uma capacidade de compreensão menor do que a de um adulto. Porém, as crianças têm alguma capacidade de compreensão , e é por isso que, dependendo da idade, elas conseguem compreender alguma coisa do que seja o universo, a geração da vida, preceitos éticos, etc. Mas tudo vai depender de como esses conhecimentos serão passados para as crianças, sobretudo no que diz respeito à linguagem a ser empregada para alcançar o nível de compreensão delas. Têm maior sucesso com as crianças as narrativas que possuam figuras , cor, imaginação. Mas para um adulto produzir tais narrativas, é preciso que ele conheça o conceito científico ou filosófico que servirão de base a tais narrativas, porém adaptando tais conceitos à narrativa afim a crianças. Mas a própria humanidade teve sua infância, lá no começo da história. E foi em meio a essa infância que a humanidade “descobriu” o alfabeto, isto é , a palavra escrita. Antes que a humanidade se tornasse “adulta” com o advento da filosofia, ela colocou no papel relatos escritos que expressavam mais a infantilidade de sua mente do que a verdade daquilo do qual ela queria tratar. Com o tempo, esses relatos escritos se tornaram objeto de culto, e deles se afastou o espírito que ali ainda balbuciava. “Espírito” , para Espinosa, não tem conotação religiosa, mas filosófica. “Spiritus” é a tradução do “Pneuma” grego, significando “sopro úmido” ou “sopro da vida”. Assim, diz Espinosa, a mera letra no papel é somente terra seca, infértil, se nela não soprar o sopro vivo do espírito, que é o sentido. A letra no papel às vezes se torna objeto formal de culto, porém o espírito jamais pode ser objeto de culto, pois a atividade de pensar, expressão maior do espírito, nunca é apenas formal: ela é sempre potência criadora de sentido, e nunca está apenas na letra e no papel, pois ela se abre ao infinito, ao universo, ao mundo, à sociedade, para assim compreender e agir no aqui e agora.

sexta-feira, 12 de junho de 2020

como nascem as borboletas...


Muito se fala, com razão, das borboletas. São exaltadas sua beleza,  cores e destreza alada. Na Grécia, por exemplo, as asas das borboletas eram consideradas símbolos de Eros, o Deus do Amor. Enquanto os pássaros  já nascem com asas, as asas de Eros somente nascem após uma metamorfose. “Metamorfose” não é a mesma coisa que “transformação”. A raiz de ambas é o termo “morphé”, que significa “forma” em grego. Toda  transformação acontece quando um ser vai mudando, porém permanecendo dentro dos limites de uma mesma forma, como a criança que se torna  jovem, depois adulto, mas  dentro  dos limites da mesma forma : a forma humana. Já a metamorfose é uma mudança  radical de forma, como a borboleta que se metamorfoseia da lagarta.
Porém, pouco se fala da lagarta nesse processo. Muitos a tratam como uma roupa velha e carcomida ,  abandonada pela borboleta que voa , colorida. Considero isso uma  injustiça contra essa artista. Sim, pois a lagarta é uma artista , uma artista que trabalha em silêncio, longe dos holofotes e das vistas, como Espinosa cuidadosamente polindo as lentes que fabricava , até poderem ser lunetas  mirando  as  estrelas infinitas  .  
De tudo o que ingere da natureza, a lagarta depura e destila um fio de seda. Com esse fio, sem que ninguém  veja , ela vai bordando dentro de si uma arte, uma fantasia, como o manto multicolorido que cerzia Bispo do Rosário, mesmo em meio à dor e ao sofrimento. O fio é ,para a lagarta, o mesmo que a palavra é para  o poeta, ou o que a ideia é  para o  pensador libertário : linha de fuga e liberdade.  Até que chega o dia em que a arte fica  pronta, a lagarta não pode mais esconder de ninguém a artista que é por dentro . Confiante , ela parteja a si mesma , vestindo-se  com a arte que criou, agora também sua pele verdadeira  . Já não há mais contradição consigo mesma : agora,  ela é por fora como já era por dentro, todo mundo agora vê a borboleta. E com as asas que bordou com o fio de seda, ensina a reinventar-se, para que assim , quem sabe, a gente também seja.

“Poesia é voar fora da asa.” (Manoel de Barros)

“Penso renovar os homens usando borboletas.” (Manoel de Barros)

(imagem: Arthur Bispo do Rosário e suas asas)




terça-feira, 9 de junho de 2020

as três metamorfoses


Nietzsche diz que o homem pode passar por três metamorfoses :a do burro, a do leão e a da criança. O burro é aquele que diz “sim” ao que está dado: ele aceita, passivamente, os valores estabelecidos por intermédio dos quais o poder dominante se perpetua. Sua forma de aceitação é “dar as costas” para carregar. É assim que o burro se sente “útil” : carregando o peso que em suas costas colocaram. Todos nascemos mais ou menos burros, pois carregamos , desde a infância , os valores de um mundo que já achamos pronto, dado. Quando o poder diz que só se deve ensinar às crianças tabuada e gramática, e nada de artes e filosofia, o que ele quer é manter submissos seus carregadores também no futuro. O leão pode nascer do burro quando este sofre uma metamorfose, aprendendo a dizer “NÃO”. Ninguém sobe no dorso de um leão: ele vê em tudo uma jaula onde querem prendê-lo. O leão é ferozmente crítico e cético, imaginando que ser potente é negar . O leão pode mais do que o burro, porém é incapaz de criar , pois para criar é preciso crer. E o leão em nada crê. O leão imagina que crer é ser como o burro que ele já foi. Do leão pode surgir nova metamorfose: a criança, aquela que redescobre a força do “Sim”. Pois o Sim da criança não é como o sim alienado do burro. O Sim da criança sobreviveu ao não do leão, o incorporou como crítica, porém vai além dele, tornando-se afirmação de uma potência criativa . A criança não carrega, como o burro; nem ruge e ameaça, como o leão. Ela libertou-se de todo peso, corre e dança, e há nela uma força mais poderosa que a dos dentes e garras. O burro é refém dos valores do presente que o esmaga e aliena; já o leão nasceu quando este presente virou passado que o leão não quer mais que se repita. Mas a criança é , ao mesmo tempo, metamorfose no presente e libertação do passado em razão de uma crença ativa no futuro , uma “linha de fuga”, como criação de novas possibilidades para a vida, a despeito das forças obscurantistas que ameaçam retê-la. Não se trata de otimismo ou esperança, mas de perseverança: “Só podemos destruir sendo criadores.”(Nietzsche)



"Quando duas liberdades são realmente livres, e não mera aparência de liberdade, elas não lutam uma contra a outra, elas se juntam."(Espinosa )

segunda-feira, 8 de junho de 2020

gramática das cores, poética da luz.


Muitas são as cores. Porém três, apenas três , são as cores-fontes das quais todas as outras cores nascem. As três cores primárias são: o amarelo, o vermelho e o azul.
O amarelo simboliza o sol, é a cor mais quente. É por isso que os girassóis que Van Gogh pintou expressavam sóis que nele irradiavam, vivamente. Das páginas de Nietzsche também irradia um amarelo intenso, chama que é de mais de um sol: "Para brilhar e ter luz própria é preciso ter sóis dentro de si", dizia ele para nos incendiar de poesia.
O vermelho simboliza o sangue, fluxo da vida. Vida que corre e transpõe toda barreira, vida que não pode parar, como o sangue nas veias. As revoluções democráticas tingem de vermelho suas bandeiras, às vezes compondo-a com outras cores, para ser o sangue a correr na veia comum de um povo que luta. A bandeira brasileira carece dessa cor que simboliza afeto e vida ( temos apenas o amarelo do ouro que não é do povo, mais o verde da floresta já quase arrasada...).
O azul é a cor do céu, é cor que “horizonta”. Também é a cor da paz ,mais do que o branco, vez que o azul é a cor da paz de espírito. A felicidade, dizem , é azul : é céu que se abre dentro. Sêneca vestia azul, a mesma cor preferida de Espinosa. A voz que "celesta as coisas do chão", voz da poesia, "é voz pintada de azul"( Manoel de Barros).
Porém existe ainda a luz .Esta não é o branco. Pois o vermelho,o azul , o amarelo...todas as cores, enfim, são expressões ou variações da luz, não menos que o branco: gramática das cores, poética da luz. A luz também não é a claridade que emana do sol, uma vez que esta nasce do amarelo. Há na luz mais paz e paciência do que há no azul, mas sem fazer desta uma cor intranquila ou impaciente. Por fim, há na luz mais paixão do que há no vermelho, mais calor do que há no amarelo de todos os sóis juntos. Plotino dizia que a autêntica beleza não está na proporção do rosto, muito menos na cor de sua pele , como pensavam os estreitos estetas gregos, que diziam ser belo apenas o rosto de pele branca. Para Plotino, a beleza está no rosto que emana luz, não importando a cor da pele ou forma do rosto. Rosto iluminado, como o de Clementina.

“Borboleta é uma cor que avoa “ (Manoel de Barros)













domingo, 7 de junho de 2020

a didática do poeta


Segundo o poeta Manoel de Barros, há na poesia uma didática. Não uma didática para nos ensinar cartilhas . A didática que a poesia ensina é uma “didática da invenção”. Ensinar a inventar e criar para não sucumbirmos à resignação e ao medo , essa é a lição de tal didática, lição para aprendermos a nos refazermos. Manoel diz que aprendeu essa didática não em livros , ele a aprendeu com um menino: "inventei um menino levado da breca para me ser”. O poeta inventou um menino para sê-lo: e é o próprio menino inventado que ensina a Manoel como (re)inventar-se. Esse menino, diz o poeta, é “a criança que me escreve”. Essa criança lúdico-poética não é uma idade , ela é a própria potência da vida em seu “minadouro” e novidade. Para que não nos domine a “velhez” , o poeta nos convida para os seus “exercícios de ser criança”. “Velhez” , segundo o poeta, também não é uma idade, “velhez” é uma forma de mentalidade refém do “mesmal”. Na vida, os exercícios de ser criança consistem em soltar e dar linha na pipa , atirar com estilingue nas latas, jogar bola na rua , muitas vezes tendo que driblar a repressão dos guardas . Os exercícios são as “peraltagens” de que são capazes as crianças. É preciso aprender a fazer essas peraltagens com as palavras, para elas serem para nossa liberdade o que a linha é para a pipa: linha de fuga. Que nossas palavras também aprendam a driblar as significações dominantes e seus guardas. Enfim , inventar com as palavras uma lúdica arma, um simbólico estilingue, uma arma para fazer viver e não para matar, apontada contra a velhez dos reaças.

“O homem seria metafisicamente grande se a criança fosse seu mestre. ” (Kierkegaard)




- trecho do poema de Manoel: