“Achava que a
partir de ser inseto
o homem
poderia entender melhor a metafísica.”
“O meu nada
não é o Néant de Sartre,
meu nada é o
dos nadifúndios.”
Manoel de
Barros
A metafísica é a
disciplina mais nobre da filosofia. Ela é a mais digna. Se a filosofia fosse um
farol a iluminar a noite, a metafísica
seria o facho de luz que se irradia em sua amplitude: do ponto do qual a luz
parte até onde ela alcança, e também o meio, o caminho assim iluminado, caminho
este que não existia antes de o facho o mostrar e fazer: não como estrada
calçada de pedras, mas caminho feito apenas de sentido. Se a filosofia fosse
uma flor, a metafísica seria o seu aroma que se desprende na abertura do
desabrochar. Se fosse uma criança a filosofia , a metafísica seria o seu
brincar, pois mesmo no brincar há um aprender: um brincar de aprender, um
aprender de brincar. Se a filosofia fosse um pássaro, a metafísica seria o seu
voo. Alguns filósofos voam como corujas, sempre à noite; outros voam em bando,
como os pardais. E há ainda os que voam como o albatroz: sobre o oceano
infinito, onde o pousar é idêntico ao morrer. Se a filosofia fosse um
telescópio, a metafísica seria a lente e a paisagem nunca vista que a lente
alcança e deixa ver.
A palavra metafísica é
composta de duas outras palavras que se agenciaram: meta e physis. Erradamente
se traduz “meta” por “além”. Isso pode levar a imaginar que a busca pela
metafísica seria como uma viagem de desterro, um ir para longe, para o alto e
distante. Às vezes perguntamos a alguém:
“qual é sua meta?” . Isso pode significar: “o que você quer alcançar? O que
você deseja?” .Se alguém perguntasse à semente qual é sua meta, ela responderia
devindo árvore, uma árvore que dê frutos e sementes. Se alguém indagasse às
letras qual é sua meta, talvez elas respondessem: minha meta é ser palavra poética
no papel ou na boca de alguém que canta. É pouco provável que letras tivessem
como meta tornarem-se palavras mentirosas, que negassem a si mesmas, privadas
de dignidade.
Assim, meta não é o que
está além no sentido de algo a ser alcançado. “Meta” também é um movimento de
alcançar o que precisa ser criado. Meta-físico não é o que está além do físico
, como o céu está além do chão. O meta é o que dá sentido ao físico, o
organiza, o faz ter uma forma, um aspecto, um querer. Uma realidade metafísica
não é uma realidade distante e além, ela é uma realidade diferente da realidade
física, e não está além ou aquém desta, mas junto, embora diferente.
Toda realidade metafísica
é incorpórea. Porém, nem tudo o que é imaterial é metafísico. Por exemplo,
posso imaginar que estou a correr em uma praia, embora eu esteja na verdade aqui
sentado no sofá de casa. Essa imagem ou fantasia não existe por si mesma, ela
existe em minha mente apenas. Ela não tem autonomia. Essa imaginação pode ser
apenas o efeito de meu enfado de estar em casa. Tal fantasiar existe apenas
enquanto realidade psicológica. As realidades psicológicas existem em razão das
vivências de um ego. É sempre o ego , ou algo que sobre ele age, que explica o
surgir de uma imagem ou imaginação. O mesmo aconteceria se eu , ao invés de
imaginar , me lembrasse da ocasião em que estive em uma praia e corri sobre sua
areia. Coisa diferente, no entanto, é se indagar acerca do que é o eu, ou do
que é a imaginação ou do que é a mente. Para tais coisas, seria preciso formar
ideias. E ainda mais: indagar acerca do que é uma ideia! A metafísica não se
encerra nos produtos da mente, ela indaga acerca do que é a mente e também
sobre o que existe fora dela.
A metafísica conheceu ou
conhece duas maneiras de se expressar. A primeira delas se confunde com sua
origem grega, ao passo que a outra nasce e traduz a posição moderna, mais
próxima de nós no tempo. Entre os gregos, a metafísica nascia de uma
experiência. Não a experiência com algo já visto, mas experiência com algo que
põe no limite todo ver. Não era uma experiência meramente teórica ou
conceitual. O motor dessa experiência era um afeto: a admiração ou o espanto.
Não o espanto ou admiração diante de um fenômeno natural ou fato grandioso ,
tampouco espanto ou admiração diante de um prédio enorme ou um artefato técnico
feito pelo homem. O espanto era em relação à existência. Não exatamente com a própria existência daquele que se admira ou com a existência de algo externo que se vê ou percebe. O
espanto e admiração eram em relação à existência inteira, toda, imensurável,
infinita, absoluta. Era uma admiração por aquilo que não se podia abarcar, com
o olho ou com o pensamento, mas que estimulava o olho e o pensamento, mais do que
as cores , para aquele, e mais do que teorias, para este. Esse espanto ou
admiração eram afetos afirmativos, expansivos, confiantes, que faziam a vida
própria transbordar , vencer limites e ir além (“meta”).
Seguindo essa linha,
Espinosa afirma que todos os homens são capazes desses afetos filosóficos. Nos
homens em geral, porém, tais afetos dependem das circunstâncias e acontecem
esporadicamente, pois logo os homens retornam ao mundo de seus afazeres
utilitários, ao passo que no filósofo tais afetos não dependem das
circunstâncias, e são buscados pelo filósofo mais do que qualquer coisa do
mundo utilitário. A filosofia é o esforço para tornar tais afetos mais
constantes no sentir da alma. Sobre o infinito não podemos agir, é ele que age
sobre nós, fazendo-nos compreender ser parte singular dele.
Essa admiração pelo
infinito vinha sem aviso, sem preparação
ou estudos em livros. Ela nascia de um certo desapego ao habitual e familiar,
para que o grego pudesse se familiarizar
com o mais estranho e inaudito. Era uma espécie de acordar de um sono, sono
este ao qual a doxa chama de realidade. Esse
despertar não se fazia apenas com o espírito, pois dele também participava o
corpo, através de um olhar que se metamorfoseava em uma visão fontana, diria o poeta. Era o inaugurar do ver no ato mesmo
de ver, e isso depois de tanto olhar sem ver. Nesse olhar o conhecimento e a
poesia ainda estavam unidos no mesmo jorro indistinto da vida , e esta convidava o pensamento a ser o seu destino, livremente.
Enquanto a metafísica
grega se apoiava no ponto de exclamação, será o ponto de interrogação a motivação da
metafísica moderna. A metafísica moderna pode ser expressa em uma pergunta: “por
que existe o ser e não, antes, o nada?”. A metafísica moderna introduz algo
impensável para o grego: o nada. Quando Parmênides, por exemplo, fala em não-ser, este não é o "nada", e sim ignorância do Ser.Se fôssemos rastrear a ideia do nada e ver onde ela surge, não encontraríamos exatamente um nascimento (como pode o nada nascer!?), e sim um processo de ocaso e morte: morte e ocaso do espírito grego. Essa palavra surge como a última palavra de um espírito moribundo, na boca de um dos derradeiros filósofos pagãos, no qual já não mais vivia , de há muito, o vigor pré-socrático: o neoplatônico Damáscio. De forma demasiadamente obscura, é Damáscio que dá nome a esse inominável.O nada somente é pensado quando já não está mais vivo o espírito grego. Por isso, é na boca de um de seus últimos filósofos que tal ideia é dita, para depois vir o silêncio. A metafísica moderna, por sua vez, pensa o ser confrontando-o com o nada. Para fazer isso, a
metafísica moderna põe um limite ao ser, limite este que não vem do ser, mas do
impensável nada.
Enquanto no mundo grego a
metafísica constituiu o acabamento ou fundamentação das ciências, no mundo
moderno haverá radical cisão entre a ciência e a metafísica. A ciência moderna
se debruça sobre fatos ou fenômenos: ela não indaga sobre o ser, ela procede
mediante recortes que lhe darão seus respectivos objetos. Assim, a física não
estuda o ser, mas os objetos físicos. A química não estuda o ser, e sim os
objetos químicos. Para um cientista, pensar o nada é loucura...além de perda de
tempo. E mais perda de tempo ainda é pensar o Ser...
O mundo grego desconheceu
o que é isso: o nada. Enquanto as crianças de Heráclito brincavam, elas apenas
pensavam e viviam o brincar, e por isso brincavam, inocentemente, sem pensar no
que é o não brincar. A metafísica moderna pensa o brincar limitado pelo não
brincar: por isso, quem apenas brinca, sem pensar no não brincar enquanto
brinca, não está de fato brincando. Mas quem brinca pensando no não brincar
enquanto brinca, logo perde o sentido do brincar, angustia-se, faz do brincar/viver
algo impossível . Como diz Sartre, o nada o infestará...
Segundo Heidegger, a
ciência é um esquecimento do ser, ela se inscreve ainda dentro da história da metafísica, mas como
seu epílogo, como o lugar de um esquecimento daquilo que tornou o humano
humano: a indagação ,sem fins utilitários, acerca do sentido da existência. Para
Heidegger, está vedado para nós para todo sempre aquilo que os gregos
experimentaram e chamaram de existência. Não sabemos mais o que é isso, ficamos
apenas com a letra e nos fugiu o espírito.
Segundo ainda Heidegger,
é equivocado supor que aquela experiência grega sobrevive , hoje, na
experiência religiosa. Esse equívoco quem o comete é a visão cientificista e
materialista do mundo. Para tal visão, a experiência metafísica se confundiria
com a experiência religiosa ou espiritualista. Sem embargo, a ciência considera
loucura as realidades nas quais a
religião e a fé acreditam. E muitos religiosos, sobretudo os místicos, aceitam
essa designação de bom grado e definem a fé religiosa como uma forma de
loucura, quando examinada à luz fria da razão cientificista.
Para Heidegger, contudo,
mais louca ainda é a filosofia, pois a loucura da religião a ciência ainda aceita
e designa. Porém, a loucura da filosofia a ciência não compreende e jamais
compreenderá, pois a loucura da filosofia, segundo Heidegger, é querer fazer o
conhecimento se lembrar que aquilo que ele conhece é a expressão do
incognoscível. E que este incognoscível não é o mesmo objeto da teologia, já
que o objeto da teologia é Deus, e este tem um nome, uma essência, ao passo que,
hoje, “Ser” é o nome que designa o lugar de um vazio, algo que o homem
ocidental se esqueceu, e que talvez apenas os poetas se lembrem, ao brincarem
com o Sentido.
Na visão de Heidegger, o Ser é e
sempre será incognoscível, embora venha dele todo objeto de conhecimento que a
ciência conhece e estuda, procede do Ser incognoscível toda histórica
cognoscibilidade.
“Por que existe o Ser e
não apenas o nada?” Se pudéssemos responder a isso, teríamos que “conhecer” não
apenas o Ser, mas também o nada, e as razões que os fazem diferentes, e ainda porque o nada é nada...Porém, algo em nós sabe dessa diferença; sabe-a, contudo sem a conhecer. Sem essa diferença, nem se poderia falar ou ser. Essa
é a loucura da existência quando se quer pensá-la: dela não há e nunca haverá
uma resposta, tampouco já houve. Ela é tão somente uma questão, um problema,
que nunca se esgotará nas respostas filosóficas. A filosofia ouve o “chamado”
da questão e se deixa afetar por ele, ao passo que a ciência nem tem como responder tal
questão, pois a ciência não tem olhos e
nem ouvidos para tal indagação.
O "outro" de um ente é outro ente, não é o Ser. Por outro lado, o "outro" do Ser é o nada.A ciência se ocupa com os entes. Árvore, homem, molécula, sol...tudo isso é ente. A palavra ente deriva do latim ens , cujo significado é "sendo". Os entes são, sendo. O Ser é. Entre todos os entes, apenas um se sabe sendo, pois sabe que pode não ser, pois nem sempre foi, e nem sempre será. Esse ente é o homem. O homem é o ente cujo ser está sempre em questão, sempre a determinar . É através do homem que o Ser se coloca como questão. Não o homem enquanto este apenas conhece e faz ciência, ou mesmo reza, mas o homem na medida em que existe, pois para o homem fazer ciência é preciso que ele, antes , exista. Tudo isso, repetimos, é aduzido por Heidegger , é ele quem formula o problema. Assim, o homem é o único ente que se sabe sendo, ele é o único ente que se sabe temporalidade, pois ele se sabe finito. Saber-se finito não se sabe apenas vivendo, saber-se finito se sabe sabendo-se ser-para-a-morte. Por isso, é no homem , e somente para este e neste,que o outro do Ser, o nada, se torna uma questão posta ao mesmo tempo que a questão do Ser. E é o homem também que nega o Ser, ao reduzi-lo ao mundo dos entes, ao mundo das coisas. É isso que faz a ciência, bem como o senso comum.Contudo, é a si mesmo que o homem também acaba coisificando, quando coisifica o Ser.
Na metafísica moderna,
portanto, o afeto não é primeiro, ele se segue de um pensamento ou "cogito". De um
pensamento que interroga e se interroga, para assim se deparar não com muros ou
cercas, mas com o nada. Por isso, o afeto típico da metafísica moderna é a
angústia.