Nenhuma potestade, nem ninguém mais, a não ser um invejoso,
pode comprazer-se com minha impotência e minha desgraça
ou atribuir à virtude nossas lágrimas, nossos soluços, nosso medo,
e coisas do gênero, que são sinais de um ânimo impotente.
Pelo contrário, quanto maior é a alegria de que somos afetados,
tanto maior é a perfeição a que passamos, isto é,tanto mais participamos
da natureza divina.
Espinosa, Ética, Quarta Parte, escólio 2 da proposição 45.
A virtude com a qual o homem livre evita os perigos
revela-se tão grande quanto a virtude com a qual ele os enfrenta.
Espinosa, Ética, Quarta Parte, prop. 69.
Era
a primeira vez que o menino iria até minha casa.O encontro, o simples encontro,
era o esboço de uma aproximação que ele , nos seus 8 anos de idade ainda, mal
entendia o significado. Ele seria, não por escolha sua, meu enteado.Seu pai era
completamente diferente de mim: era um homem de negócios, dos altos negócios da
selva do capitalismo.Ele morava em um apartamento imenso, tão imenso que dava
trabalho, e custava muito, enchê-lo com coisas.Havia muitas coisas lá, todas as
novidades do mundo, mas não havia muitos livros, havia apenas os livros que falam das
novidades, novidades estas que amanhã já “serão sucata”, como diria Manoel de Barros.
Do
ponto de vista daquilo que o dinheiro pode comprar, não faltava nada a esse
garoto. “Ele tinha tudo”, conforme se diz. Mas ele era triste.Contudo,a
tristeza e a infância são termos que não combinam.Segundo Espinosa, a pior fase
da vida é a infância. Não exatamente por algum problema que lhe seja
intrínseco.Na verdade, a infância é a pior fase da vida porque é nela que mais
dependemos da qualidade dos adultos que nos cercam. Havia sobre esse menino
algumas “verdades”. Diziam que ele não gostava de gente, que era extremamente a-social
e que não gostava de ler.Curiosamente, alguns desses aspectos também podiam
ser encontrados em alguns dos adultos que lhe eram próximos.
Então,
esse menino , não por vontade própria, foi levado até minha casa para me
conhecer no cotidiano.Era um encontro apenas entre nós dois.Ressabiado, dando a
entender que não queria estar ali, ele entrou pela porta. De imediato,
perguntei-lhe se ele queria conhecer o lugar onde eu guardava o meu tesouro.Ele
olhou espantado para mim, e sua expressão incrédula , ainda que muda, dizia para
mim: “ Como !? Você tem um tesouro?!Você é professor, e meu pai me ensinou que
professor é pobre....”.Mas a palavra “tesouro” despertou sua curiosidade, e com
o olhar indo em várias direções ele tentava ver onde estava o tal tesouro.
Levei-o
até um quarto que eu usava como escritório. Era lá que eu guardava os livros.Quando ele entrou, disse-lhe: “Aqui
está meu tesouro”. Ele olhou em todas as direções e lados, acima e abaixo, deu
de ombros e disse: “Cadê!?”. Ele não via os livros. Ou melhor, ele os via, mas
estes não existiam para ele como tesouro. E nem podiam, ele era uma criança que
ainda estava descobrindo as coisas, e certamente ele ainda não havia feito
várias descobertas, inclusive a descoberta dos livros.
Apontei
para os livros e disse: “Aqui está meu tesouro...”. Ele olhou incrédulo para os
livros. Depois olhou para mim de alto a baixo, e fixou especial atenção na
sandália de couro que eu usava, sandália esta que sua avó vivia dizendo,
ironicamente, que somente franciscanos sem ambição usam, e certamente tal ironia deve
ter chegado, direta ou indiretamente, ao inocente ouvido dele (porém, mal sabia aquela senhora que tais sandálias de couro também as apreciava os cangaceiros...). Em seus olhos havia a seguinte interrogação: “O que minha mãe
viu nesse cara !?”.
Então,
sorri-lhe confidencialmente e lhe perguntei baixinho se ele era capaz de
guardar um segredo.Já olhando para a porta de saída do escritório, ele disse
que sim ,aparentemente apenas para sair logo dali. Contei para o menino que
atrás daquelas paredes havia uma caverna secreta.Ao ouvir isso, ele tirou os
olhos da porta e olhou para mim. Completei:
-Mas
para abrir a passagem que dá para a tal caverna secreta é preciso puxar o livro
certo que está na prateleira.
Ele olhou para mim e, pela primeira
vez, vi em seu rosto o esboço de um sorriso, sorriso de criança. “Qual é o
livro?”, ele me perguntou. “Descubra!”, fiz o desafio.
Ele foi logo num dos livros
mais grossos e pesados que viu, que mal
conseguiu tirar do lugar. Que decepção!Nada da passagem ao tesouro se abrir...
Ele puxou a Crítica da Razão Pura, de Kant. Decididamente, esse livro não é
porta que leva à imaginação...Depois ele puxou um outro: Discurso do Método, do racionalista Descartes...e nada de a porta se abrir.Ele
puxava os livros e olhava para mim, e ria. Ele sabia que era um jogo, uma
brincadeira. Em latim, a palavra que corresponde a “brincadeira”, “jogo” e “sonho”
é “ludos”, e é daí que vem “lúdico”. Ele fez uma bagunça, e ficava surpreso por
eu não lhe ralhar pela produção daquele caos.Ele ria, gargalhava até.
De repente, a mãe dele chegou à porta. Ela ficou surpresa com a cena, e
parecia não reconhecer o filho, que lhe disse:
-Mãe, estou procurando uma caverna secreta!...
Ela
olhou para mim e falou:
-
Você está zombando do meu filho?
-
Não , não estou.Quem deseja educar alguém nunca deve zombar dele, embora possa brincar com
ele, mas sempre no paciente esforço para ensinar alguma coisa, e também aprender.
Disse
ao menino:
-
A caverna secreta existe sim, eu e você sabemos disso; sua mãe também sabe, mas
às vezes ela esquece que foi lá que ela me conheceu.O mundo dos adultos às
vezes é chato e triste, e eles querem que você fique triste também. E é por
isso que eles dizem que a caverna não existe.Nem todos os livros levam à
caverna secreta.Mas esse aqui leva...
Puxei
então da prateleira uma edição para jovens de um livro que poucos sabem ou
imaginam o mundo que está nele, mundo por descobrir. Trata-se do livro Moby-Dick...
Ele
pegou o livro com cuidado. Assim que abriu viu os desenhos, as ilustrações
coloridas.
-
Uma baleia!...
-Sim,
essa é Moby-Dick...Tem um homem que vai tentar aprisioná-la, e para esse homem
parece que ela é má. Mas ela não é má, ela apenas não quer se deixar domar, ela
é livre.E quem não quiser domá-la, quem aceita sua liberdade e vence o medo , ela deixa que
suba no dorso dela, e assim fazem viagens extraordinárias...Você vai ver....
Segundo
me disse depois a mãe do menino, ele dormiu naquela noite com o livro lhe fazendo companhia.E no dia seguinte o
levou para escola,sob o braço, sem colocá-lo na pasta.
O menino estava protegido, embora a vida ainda lhe reservará perigos. Mas naquele dia ele se tornou mais um que Moby-Dick deixou subir em seu dorso invencível.
Quem quer vingar as ofensas por um ódio recíproco vive, na verdade,infeliz.
Quem, contrariamente,procura vencer o ódio pelo amor, combate, certamente,
com alegria e segurança; defende-se facilmente tanto de um quanto de muitos homens; e não precisa , de modo algum, ser socorrido pela sorte.
Por sua vez, aqueles a quem vence , rendem-se felizes,
não, certamente, por carência, mas por acúmulo de forças.
Espinosa, Ética, Quarta Parte,escólio da proposição 46.