domingo, 24 de agosto de 2014

evento na Uff, com filosofia e música: "Viva Cláudio Ulpiano"



VIVA CLÁUDIO ULPIANO
dia 18 de setembro, na Uff

-Lançamento do livro Gilles Deleuze: a Grande Aventura do Pensamento, de Claudio Ulpiano.



Local:
IACS - Instituto de Arte e Comunicação Social / UFF
Sala InterArtes
Rua Lara Vilela, 126 – Ingá - Niterói
(21) 2629-9767/2629-9783
Entrada franca.
A Sala InterArtes tem capacidade para 90 pessoas. Senhas serão distribuídas 1h antes das apresentações. Haverá projeção em  telão para o espaço externo.



14h/16h Mesa 1: "A Aventura do Pensamento"
Participação: Tatiana Roque (Ufrj), Mário Bruno (Uerj) e Leonardo Maia (Ufrj).
                                                
16h/ 18h Mesa 2: "Claudio explicado; Claudio implicado"
Participação: Elton Luiz Leite de Souza (Unirio), Luiz Manoel Lopes (Uece) e Paulo Oneto (Ufrj).

18h30/19h30 Passagem de som

20h – “Canções com sentido: um encontro com Claudio Ulpiano”, talk-show com o músico Paulinho Moska.



Centro de Estudos Cláudio Ulpiano:
http://www.claudioulpiano.org.br/

sábado, 16 de agosto de 2014

o menino e o tesouro

Nenhuma potestade, nem ninguém mais, a não ser um invejoso,
pode comprazer-se com minha impotência e minha desgraça 
ou atribuir à virtude nossas lágrimas, nossos soluços, nosso medo,
e coisas do gênero, que são sinais de um ânimo impotente.
Pelo contrário, quanto maior é a alegria de que somos afetados,
tanto maior é a perfeição a que passamos, isto é,tanto mais participamos 
da natureza divina. 
Espinosa, Ética, Quarta Parte, escólio 2 da proposição 45.

A virtude com a qual o homem livre evita os perigos
revela-se tão grande quanto a virtude com a qual ele os enfrenta.
Espinosa, Ética, Quarta Parte, prop. 69.


Era a primeira vez que o menino iria até minha casa.O encontro, o simples encontro, era o esboço de uma aproximação que ele , nos seus 8 anos de idade ainda, mal entendia o significado. Ele seria, não por escolha sua, meu enteado.Seu pai era completamente diferente de mim: era um homem de negócios, dos altos negócios da selva do capitalismo.Ele morava em um apartamento imenso, tão imenso que dava trabalho, e custava muito, enchê-lo com coisas.Havia muitas coisas lá, todas as novidades do mundo, mas não havia muitos livros, havia apenas os livros que  falam das novidades, novidades estas que amanhã já “serão sucata”, como diria Manoel de Barros.
Do ponto de vista daquilo que o dinheiro pode comprar, não faltava nada a esse garoto. “Ele tinha tudo”, conforme se diz. Mas ele era triste.Contudo,a tristeza e a infância são termos que não combinam.Segundo Espinosa, a pior fase da vida é a infância. Não exatamente por algum problema que lhe seja intrínseco.Na verdade, a infância é a pior fase da vida porque é nela que mais dependemos da qualidade dos adultos que nos cercam. Havia sobre esse menino algumas “verdades”. Diziam que ele não gostava de gente, que era extremamente a-social e que não gostava de ler.Curiosamente, alguns desses aspectos também podiam ser encontrados em alguns dos adultos que lhe eram próximos.
Então, esse menino , não por vontade própria, foi levado até minha casa para me conhecer no cotidiano.Era um encontro apenas entre nós dois.Ressabiado, dando a entender que não queria estar ali, ele entrou pela porta. De imediato, perguntei-lhe se ele queria conhecer o lugar onde eu guardava o meu tesouro.Ele olhou espantado para mim, e sua expressão incrédula , ainda que muda, dizia para mim: “ Como !? Você tem um tesouro?!Você é professor, e meu pai me ensinou que professor é pobre....”.Mas a palavra “tesouro” despertou sua curiosidade, e com o olhar indo em várias direções ele tentava ver onde estava o tal tesouro.
Levei-o até um quarto que eu usava como escritório. Era lá que eu guardava  os livros.Quando ele entrou, disse-lhe: “Aqui está meu tesouro”. Ele olhou em todas as direções e lados, acima e abaixo, deu de ombros e disse: “Cadê!?”. Ele não via os livros. Ou melhor, ele os via, mas estes não existiam para ele como tesouro. E nem podiam, ele era uma criança que ainda estava descobrindo as coisas, e certamente ele ainda não havia feito várias descobertas, inclusive a descoberta dos livros.
Apontei para os livros e disse: “Aqui está meu tesouro...”. Ele olhou incrédulo para os livros. Depois olhou para mim de alto a baixo, e fixou especial atenção na sandália de couro que eu usava, sandália esta que sua avó vivia dizendo, ironicamente, que somente franciscanos sem ambição usam, e certamente tal ironia  deve ter chegado, direta ou indiretamente, ao inocente ouvido dele (porém, mal sabia aquela senhora que tais sandálias de couro também as apreciava os cangaceiros...). Em seus olhos havia a seguinte interrogação: “O que minha mãe viu nesse cara !?”.
Então, sorri-lhe confidencialmente e lhe perguntei baixinho se ele era capaz de guardar um segredo.Já olhando para a porta de saída do escritório, ele disse que sim ,aparentemente apenas para sair logo dali. Contei para o menino que atrás daquelas paredes havia uma caverna secreta.Ao ouvir isso, ele tirou os olhos da porta e olhou para mim. Completei:
-Mas para abrir a passagem que dá para a tal caverna secreta é preciso puxar o livro certo que está na prateleira.
              Ele olhou para mim e, pela primeira vez, vi em seu rosto o esboço de um sorriso, sorriso de criança. “Qual é o livro?”, ele me perguntou. “Descubra!”, fiz o desafio.
                 Ele foi logo num dos livros mais grossos e pesados que viu, que  mal conseguiu tirar do lugar. Que decepção!Nada da passagem ao tesouro se abrir... Ele puxou a  Crítica da Razão Pura, de Kant. Decididamente, esse livro não é porta que leva à imaginação...Depois ele puxou um outro: Discurso do Método, do racionalista  Descartes...e nada de a porta se abrir.Ele puxava os livros e olhava para mim, e ria. Ele sabia que era um jogo, uma brincadeira. Em latim, a palavra que corresponde a “brincadeira”, “jogo” e “sonho” é “ludos”, e é daí que vem “lúdico”. Ele fez uma bagunça, e ficava surpreso por eu não lhe ralhar pela produção daquele caos.Ele ria, gargalhava até.
 De repente, a mãe dele chegou à porta. Ela ficou surpresa com a cena, e parecia não reconhecer o filho, que lhe disse:
 -Mãe, estou procurando uma caverna secreta!...
        Ela olhou para mim e falou:
- Você está zombando do meu filho?
- Não , não estou.Quem deseja educar alguém nunca deve zombar dele, embora possa brincar com ele, mas sempre no paciente esforço para ensinar alguma coisa, e também aprender.
Disse ao menino:
- A caverna secreta existe sim, eu e você sabemos disso; sua mãe também sabe, mas às vezes ela esquece que foi lá que ela me conheceu.O mundo dos adultos às vezes é chato e triste, e eles querem que você fique triste também. E é por isso que eles dizem que a caverna não existe.Nem todos os livros levam à caverna secreta.Mas esse aqui leva...
Puxei então da prateleira uma edição para jovens de um livro que poucos sabem ou imaginam o mundo que está nele, mundo por descobrir. Trata-se do livro Moby-Dick...
Ele pegou o livro com cuidado. Assim que abriu viu os desenhos, as ilustrações coloridas.
- Uma baleia!...
-Sim, essa é Moby-Dick...Tem um homem que vai tentar aprisioná-la, e para esse homem parece que ela é má. Mas ela não é má, ela apenas não quer se deixar domar, ela é livre.E quem não quiser domá-la, quem aceita sua liberdade e vence o medo , ela deixa que suba no dorso dela, e assim fazem viagens extraordinárias...Você vai ver....
Segundo me disse depois a mãe do menino, ele dormiu naquela noite com o livro lhe fazendo companhia.E no dia seguinte  o levou para escola,sob o braço, sem colocá-lo na pasta.
O menino estava protegido, embora a  vida ainda lhe reservará perigos. Mas naquele dia ele se tornou mais um que Moby-Dick deixou subir em seu dorso invencível.


Quem quer vingar as ofensas por um ódio recíproco vive, na verdade,infeliz.
Quem, contrariamente,procura vencer o ódio pelo amor, combate, certamente, 
com alegria e segurança; defende-se facilmente tanto de um quanto de muitos homens; e não precisa , de modo algum, ser socorrido pela sorte.
Por sua vez, aqueles a quem vence , rendem-se felizes, 
não, certamente, por carência, mas por acúmulo de forças.
Espinosa, Ética, Quarta Parte,escólio da proposição 46.


sábado, 9 de agosto de 2014

kairós



Viver é transformar-se dentro da   incompletude.

                      Paul Valéry.


Naquele fim de tarde resolvi ir à cinemateca do MAM ( o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro).O filme que vi na ocasião ainda está muito vivo em minha memória, embora já se tenha passado muitos anos.
O filme começa de imediato, mal as luzes da sala se apagam,  sem créditos ou música. Surge a primeira cena do filme: tendo como moldura um dia ensolarado, dois adolescentes estão sentados em um  banco de praça. Era um rapaz e uma moça. Os dois permaneciam mudos. Ouvimos o vento, escutamos aqui e acolá passarinhos cantando.E mais nada.O tempo passava , nada se alterava: mudos.Houve uma inquietação na sala do cinema, muitos já estavam incomodados com aquele silêncio. Porém, detive minha percepção no rosto dos personagens, e vi que os rostos deles não estavam mudos: eles falavam.O rosto do menino expressava uma decisão que ele queria tomar, mas hesitava, ao passo que o rosto da menina indicava uma espera.Ele queria agir, ela esperava.O tempo também pode se expressar no corpo,E era isso o que acontecia.Pelas suas expressões, percebia-se que o rapaz nutria pela menina um sentimento especial, que a muito custo ele ocultava dentro de si. De repente, ele toma coragem , e a coragem se mostrou como expressão em seu rosto.Algo se acendeu em seu rosto, ficou mais vivo....Mas quando ele abriu a boca para falar, aquela luz retraiu, a vida se escondeu: ao invés de ele falar o que sentia, ele usou a palavra apenas para se esconder. Ele disse à menina algo acerca do tempo, que estava muito bonito. No rosto da menina via-se decepção, mas ela também cedeu ao teatro,dissimulou, e também se escondeu.Eles  passaram a conversar  sobre coisas banais. Contudo,a verdadeira “conversa” se passava ao nível dos gestos incontrolados, nervosos, desconectados e involuntários . Percebe-se que o garoto estava apaixonado pela menina.
 O garoto não se revela para a menina ao seu lado . Logo depois a família do menino muda-se para longe.Eles se separam ,cada um vai viver sua vida , nunca mais se vêem. O tempo passa, ela se casa, tem filhos e netos. É amada e também ama. Sua vida parece ter sido vivida da única maneira possível, como se tudo o que lhe ocorrera já estivesse desde sempre escrito. E, assim, ela se acreditava feliz.
O garoto torna-se homem, também se casa com uma mulher que muito o amou. Na verdade, parece que assistimos a dois filmes em um só, pois cada um dos personagens leva sua vida  sem nunca mais ver ou ter notícia do outro. Aparentemente são felizes e fizeram o que parecia ser  o mais natural. Viviam uma vida normal, comum.
No entanto, ele se torna viúvo. Para minorar um pouco a dor dessa perda, ele resolve fazer uma viagem a Veneza. Sem que ele soubesse, para aí também fora o seu antigo amor ,em viagem de férias.
Então, o inevitável acontece: eles se reencontram , ao acaso,  nas proximidades do canal. Ambos se reconhecem. Logo começam a conversar, e parecia que aquela conversa não havia começado ali, naquele presente. Eles bebem vinho, o tempo parece  revir, e não mais passar. De repente, percebe-se que sob a barba branca e dos cabelos grisalhos aquele garoto indeciso estava ainda vivo no homem velho. Após algum tempo de conversa, ele resolve confessar a ela que durante todos aqueles anos sua mente  não passara um dia sequer sem pensar nela.  E ele faz essa confissão usando como escudo um sorriso , atrás do qual ele tentava esconder  aquele garoto triste que ele jamais deixou de ser. Após ouvi-lo,  a mulher estremece, algo de intenso lhe ocorre, como se ela tivesse dentro de si uma represa que subitamente rachasse pela pressão da água querendo fugir. Para  a imensa surpresa dele, ela também lhe confessa que  sempre o amara durante todo aquele tempo e que sempre pensara nele. O filme então acaba...
Pensa-se: “que filme idiota e banal!”. Porém, quando  todos os créditos passam pela tela e nós já nos preparávamos para sair, o filme novamente retorna à primeira cena, como se o fim reencontrasse o começo, como se o passado fosse  o futuro que de novo retornasse.  Ouve-se a voz do narrador em off, enquanto  a cena se desenrola em câmera lenta[1]. Diz o narrador: “— eu que sempre fui considerado corajoso e firme, e muitas medalhas ganhei por enfrentar, sem medo, os tanques alemães durante a guerra, no entanto não fui capaz de fazer esse pequeno gesto ( aparece então ele abraçando a menina, que lhe retribui com um  sorriso) , se eu tivesse  realizado esse gesto tão simples, não só esse filme não teria existido, como minha vida , que aparentemente foi como deveria ter sido, teria sido, no entanto,  completamente diferente...”.
A vida é composta desses pequenos momentos que são, na verdade, não pontos indivisos  que se sucedem em linha reta rumo a um fim (que acabamos por aceitar que era o fim ao qual desejamos), mas bifurcações nas quais cada instante se abre a duas ou mais direções divergentes . E cada uma dessas direções se abre a futuros completamente diferentes, mas que ainda não são reais: são esboços de nossa vida futura, que apenas vislumbramos obscuramente com a lente do nosso desejo.
 Do nosso futuro depende a nossa ação no presente , pois é a partir do presente que afirmamos o futuro que ainda não somos, mas  para o qual nos impele o nosso desejo de ultrapassar o que acreditamos ser. Descobrimos que aquilo que ainda não somos não espera por se revelar no fim, mas que o criamos a partir do processo, do percurso.
Os gregos diziam existir quatro dimensões do tempo, e não três. Além do presente, do passado e do futuro, eles diziam existir também o kairós. Este termo significa: “momento oportuno”. Qual é o momento oportuno? Não há livro que o ensine, tampouco teoria. E quem passivamente o espera chegar só verá as costas dele, quando ele já estiver indo.O momento oportuno não é um  momento privilegiado, pomposo, em destaque. O momento oportuno só existe se for criado. Quando ele nasce, morre o passado, renasce o futuro.O momento oportuno pode ser  qualquer momento  no qual conseguimos criar uma direção nova para uma estrada que imaginávamos  ir apenas em uma direção: aquela que um roteiro pré-determinava.
O kairós  é cada momento singular do tempo onde duas ou mais direções se bifurcam .E cada direção não nos leva a um ponto que preexista ao movimento de percorrê-la. Pois não é uma direção no espaço (tal como uma estrada), mas no tempo: cada direção  nos leva a um lugar que embora ainda não exista, cabe a nós agirmos para assim fazê-lo chegar ao presente , para ser esse mesmo lugar onde estamos, mas diferente, novo, transformado pelo nosso desejo.

(trecho do livro)




segunda-feira, 4 de agosto de 2014

mínimas









Traçado a giz
deve ser o contorno
de quem amanhã já não será o mesmo.


***
A melhor maneira de ver no escuro
é mantendo a alma acessa.

***

O coração não faz sermões:
ele nos pega pela mão e conduz.

***

Os cabelos brancos, como a altiva neve,
só deviam adornar os altos picos.


***

“Um pássaro empalhado pousado numa árvore morta”,
eis no que se torna a palavra,
quando dita por uma boca que se perdeu da alma.


   
***
A pérola nasce dentro da ostra
porque sua confiança não depende do que lhe está fora.


 ***

Melhor sabe despertar
quem pela manhã abre os olhos
como se fosse pela vez primeira.


 ***

Enquanto lhe estendia a mão direita,
com a esquerda me agarrei onde a morte não alcança,
para assim levantar nós dois.

*** 

Só deve frutificar na boca
a palavra cuja semente na ação se plantou .

***

Estenda a mão como uma corda caída do céu.

***

O sol não tem memória do brilho que ontem fez.

***

O caminho para ir e o caminho para vir
não conhecem os mesmos pés.

***

Quando um amigo lhe abre a casa
somente a entre se na porta deixar toda arma.

*** 

A seda do coração é azul,
e tem o cheiro das maçãs que se embrulham nela.



***
O labirinto mais difícil de se vencer
é aquele que tem no seu centro o que mais desejamos.


***

Uma facada me deu a saudade:
do meu coração sangrou Cartola.

***

No avesso da palavra
pode-se ver qual sentimento cerziu suas tramas .

***

A memória da cor
nunca se esquece do que torna eterno
os dias felizes.

***

Sorrimos nos retratos em agradecimento ao tempo,
que deixou conosco um instante seu ficar.


***

 As ações são obras que se perdem
se nos detemos muito no esboço delas.

***
  
Ao sutil vê quem é amigo das cores.

***

Não guarde palavras em sua alma:
são bagagens que limitam a viagem.

***

Esquecer é aprender a viver de novo.

***

Ao seguirmos os passos do tempo na areia,
o tempo é o mesmo vento que apaga os passos atrás.

***

O melhor conselho é ação que se dá de presente.


 *** 

O que pode a arte,
sente-o o que em nós não é obra ainda.

***

Rabisca-se primeiro no coração, antes de toda palavra,
a lição que em nenhum livro está ainda escrita.

***

É perigoso enterrar o passado no peito, imaginando que assim nos livramos dele:
esta terra é por demais  fértil, muito mais do que supomos.
Basta que a regue um tango, um Cartola ou a voz de Billie Holiday...
e tudo de novo floresce como no dia em que nasceu pela primeira vez.












sábado, 2 de agosto de 2014

manoel de barros e dioniso



(trecho do livro)
Quem consegue dizer como arde,
está em pouco fogo.
Petrarca

No Fedro, Platão nos apresenta uma alegoria que retoma, com roupagem poética, a doutrina das faculdades. Platão se valera da   idéia da carruagem   como modelo para a compreensão da alma humana. A carruagem de Platão compõe-se de três elementos: o cocheiro e dois cavalos. Na carruagem de nossa alma, diz Platão, o cocheiro é a Razão: é esta que tem as rédeas e guia a carruagem para um rumo determinado, ao passo que aos cavalos cabe a obediência à disciplina imposta pela razão-cocheiro. Um dos cavalos, de cor branca, é dócil e receptivo aos comandos da razão: trata-se da Vontade. Mas o outro cavalo, de cor preta, é indisciplinado, convulsivo, rebelde. Quanto mais a razão quer comandá-lo, mais rígida ela precisa ser. Por mais que tente forçá-lo a seguir em linha reta, é sinuosamente, barrocamente, que o cavalo preto insiste em ir. Este cavalo preto é o Desejo. 
Segundo Platão, na carruagem de nossa alma a razão e o desejo, o cocheiro e o cavalo preto, estão sempre em conflito. Este nasce pela impossibilidade que a razão encontra de pôr o desejo na direção dos valores morais que ela visa atingir. A disciplina moral é a rédea da razão, às vezes também seu chicote, mas o desejo não se dobra, resiste, e segue atraído pelas aparências do mundo sensível  .  Seguir o desejo é perder-se, desorientar-se, maldizia Platão.  Mas a alma não pode prescindir desse rebelde cavalo preto, uma vez que é dele que provém a maior parte da energia que a faz mover-se. 

Curiosamente, uma outra imagem da carruagem inspirou Nietzsche. Trata-se da Carruagem de Dioniso, o Deus das Artes. Segundo o mito que cerca este Deus, Dioniso se locomovia em uma carruagem, sendo ele próprio o cocheiro. Mas, ao invés de cavalos, sua carruagem era puxada por panteras. Eram temíveis  feras transportando o deus e mostrando o grande poder de Dioniso para guiar a natureza. A arte não nega ou reprime a natureza  ( como o faz o cocheiro de Platão), mas a põe a seu serviço conforme uma disciplina que não é estrangeira à potência das panteras. Na natureza, as panteras são solitárias e jamais se unem. Porém, sob as mãos da arte, as panteras se tornam forças que se conjugam, que se agenciam, e conduzem a alma por sendas onde a razão não ousa ir.  
Dioniso transforma a agressividade destrutiva e mortífera das pulsões-panteras em potência criativa afirmadora da vida. Dioniso é o próprio desejo que se tornou guia, cocheiro, domador: somente se pode segui-lo com a condição de metamorfosear-se, conjugando  disciplina e inventividade na condução da carruagem . Esta segue para onde não se sabe, pois seu destino é o próprio percurso enquanto este se faz.