sexta-feira, 19 de junho de 2020

da utilidade da arte para a vida


Na vida cotidiana, a imaginação sempre precisa de signos ou sinais externos  que confirmem a verdade do que ela apenas imagina. Por exemplo, amo alguém para o qual ainda não me declarei, ao mesmo tempo que imagino que ela talvez também me ame. Para confirmar essa imaginação, para que ela não seja apenas fantasia mas verdade, vivo a expectativa, velada ou explícita, de que o objeto amado dê sinais que confirmem o amor que imagino, se esse amor imaginado   será de fato amor, quando correspondido, ou  apenas dor, se rejeitado. Tais signos podem  ser um sorriso, um olhar , coisas assim. Porém, a imaginação nas relações humanas domina tanto, que mesmo quem é casado há anos não escapa de esperar sinais ou signos do ser amado. E mesmo quando esses são dados, parecem não ser o suficiente, quando se é  inseguro ou ciumento. Como as relações imaginativas são sempre espelhadas, aquele que amo está sempre a esperar que eu dê sinais de que também o amo, o que pode gerar cobranças. O mesmo vale nas situações que envolvem o ódio: quando odiamos  algo, sempre buscamos nesse objeto do ódio sinais ou signos que justifiquem nosso ódio. Por outro lado, quando imaginamos que alguém nos odeia, mesmo que seja apenas uma imaginação nossa ,  dificilmente escapamos de imaginar que esse ódio dela por nós  é de fato  real:  acabamos por odiar  ou agir como se de fato tal alguém nos odiasse. No amor , esperamos sinais objetivos e externos de que a pessoa nos ama, para assim amá-la; no ódio, ao contrário, às vezes nem esperamos a confirmação objetiva de que a pessoa de fato nos odeia: já agimos, ou reagimos, e também a odiamos. 
Este é o aspecto reativo da imaginação nas relações afetivas presentes no nosso cotidiano: ela, a imaginação,  espera um sinal externo que confirme o que imaginamos. Porém, quase sempre a imaginação “alucina” esse sinal externo: se ela é demasiadamente insegura, imaginará que o olhar que recebe da pessoa de quem gosta em segredo é, na verdade, um olhar de desprezo, quando na verdade é de amor; os convencidos ou narcísicos, ao contrário, sempre alucinam que os sinais de desprezo que recebem são, na verdade, sinais de inveja. Isso acontece com a imaginação porque ela não é  a parte nossa capaz de conhecer de fato o  mundo externo. Contudo, na nossa relação com a realidade que nos cerca é sempre ela que faz a mediação, não raro projetando sobre a realidade , como se fosse verdade, aquilo que está apenas em nossa imaginação. 
Para vencer isso, diz Espinosa, é preciso formar uma ideia adequada das coisas. Ideia não é a mesma coisa que “imagem”. É por isso que conhecer de fato uma realidade, seja uma coisa ou pessoa, requer mais do que as imagens que formamos dela. Quem em nós forma as imagens é a imaginação, ao passo que as ideias são produzidas em nós pela compreensão. Quando compreendemos algo, já não mais apenas o imaginamos. A imaginação depende de signos ou sinais externos que confirmem a veracidade do que ela imagina, já a compreensão depende apenas dela mesma , de sua potência interna: e é dela, e não da imaginação, que nasce a autêntica autoconfiança.
Mesmo na arte a imaginação depende também de signos externos. Aqui, porém, os signos não são externos no sentido de algo objetivo, pois é a própria imaginação que cria os signos por intermédio dos quais irá expressar-se. Na vida cotidiana, a imaginação pode alucinar e criar autoenganos, ao passo que na arte a imaginação cria um real que expressa variados  tipos de realidade: realidade do sonho, realidade do desejo, realidade da própria imaginação. Ou seja, a realidade da arte é inventada ou criada, sem que isso seja um delírio ou alucinação, mas uma forma de conhecimento de realidades não conceituais. Na vida cotidiana, a imaginação pode se deixar tomar por “delírios mórbidos”, já na arte a imaginação se torna ato de pensar por imagens: ela cria “delírios ônticos”, como na ´poesia de Manoel de Barros.  Na arte, o ato de imaginar cria signos para o amor , para o ódio e para todos os outros afetos, seja na tinta do quadro, no som da música ou no corpo do ator,  de tal modo que, pela arte, conseguimos compreender esses afetos que tanto podem gerar sofrimento e incompreensão na realidade cotidiana. Compreendê-los não para fugir deles ou reprimi-los, mas para vivê-los em sua  verdade:no caso do amor, não esperar apenas recebê-lo,  mas também saber ofertá-lo e partilhá-lo; no caso do ódio, não deixar que ele nos cegue.



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