Como nos ensina Espinosa, a
democracia não tem por centro altares, como num templo, e nem é feita de
hierarquias rígidas, à maneira da caserna.
Quando os representantes
do templo e da caserna , extrapolando seus espaços ,
também ambicionam poder político, corre perigo a
democracia ameaçada por intolerâncias, negacionismos
e fanatismos armados com a força bruta do
militarismo a serviço do delírio teológico-político.
A força da democracia não é
bélica, a força da democracia é a das ideias plurais pensadas e
realizadas em conjunto , perseverantemente. E também em conjunto, e
perseverantemente, precisam ser defendidas.
“A virtude com a qual o homem
livre evita os perigos
revela-se tão grande quanto a
virtude com a qual ele os enfrenta”.
Quando alguém cobra dos políticos lisura no trato com a
coisa pública, este alguém está exigindo uma virtude ética: a honestidade. E
Ética é uma disciplina da filosofia.
Quando alguém diz: “O que esse cara fala não tem lógica! ”,
quem assim critica também está reconhecendo a importância da filosofia, pois
Lógica é uma disciplina filosófica.
Quando alguém ,sentindo, expressa: “ Como é bela essa música
!”, igualmente emprega um valor da filosofia , uma vez que o “belo” ( assim
como o “cômico”, o “dramático”, o “sublime”, etc) é uma categoria da Estética,
uma disciplina da filosofia.
Quando alguém fala : “Sou pragmático, odeio teorias”, este
alguém também não escapa da filosofia , pois “Pragmatismo” e “Utilitarismo” são
correntes da filosofia.
E mesmo quando alguém questiona : “para que estudar
filosofia?”, este alguém também está a filosofar, dado que questiona sobre a
Teoria do Conhecimento ( ou Epistemologia), uma disciplina da filosofia.
E aqueles que precisam escrever Monografias, Dissertações de
Mestrado ou Teses de Doutorado, mesmo que cursando “faculdades técnicas” ,
terão que estudar Metodologia Científica, uma disciplina filosófica.
Enfim, é impossível alguém existir e não se colocar em algum
momento questões como: “O que é o tempo?”, “O que é a liberdade?”, “O que é a
vida?”, “Por que existo?...” Não apenas para formular tais perguntas, mas
também para vislumbrar respostas para elas, quem assim indaga igualmente bate à
porta da filosofia , pois essas são questões de uma disciplina da filosofia
chamada “Metafísica”.
A filosofia não está apenas nos livros escritos pelos
filósofos, ela se encontra ainda mais nas situações da vida que nos obrigam a
pensar, já que é impossível viver de forma digna e autêntica sem se deparar com
questões filosóficas.
As crianças são filósofas /questionadoras por natureza, a
mesma natureza de que fala Espinosa. Infelizmente, poderes tolhedores que
cercam as crianças as afastam, com o tempo, dessa natureza questionadora.
Os tir4nos de toda espécie sempre temem o pensar, e fazem o
máximo que podem para impedir que as pessoas, sobretudo os jovens, façam essa
descoberta do pensar , ou se já o descobriram, não o exerçam . Não por acaso,
Platão dizia que o tir4no é o antifilósofo.
Nada mais antifilosófico do que as tais escolas
"cívico-militares" que o governador de São Paulo, capacho de tir4nos,
quer impor como "cicuta" aos jovens .
Antes de estar nos livros, a filosofia está potencialmente
na vida, pois pensar é uma exigência da própria vida , e antídoto contra os
inimigos da educação emancipadora.
Certa vez , perguntaram ao
filósofo Gilles Deleuze por qual razão ele nunca foi filiado a um partido, e
aproveitaram também para indagá-lo acerca do que é ser de
esquerda.
O filósofo deu mais ou menos a
seguinte resposta: antes de ser um posicionamento político-partidário, ser de
esquerda expressa o modo como nos inserimos na existência.
A pessoa de direita parte, antes
de tudo, do seu ego. Ela vive no interior de um círculo no qual estão
seus interesses, suas propriedades ( já possuídas ou apenas desejadas),
suas ambições, suas pretensões, suas opiniões...Mas também ocupam o círculo
estreito do ego seus medos, seus ressentimentos , seus fantasmas, suas feridas
mal curadas...
O homem de direita imagina que
esse círculo estreito é o centro do mundo, de tal modo que tudo o que existe
fora desse círculo, no espaço e no tempo, é para ele só “narrativa”. Daí seu
desprezo pela ciência, pela história, pela sociologia e pela filosofia, e seu
medo paranoico dos outros povos e suas maneiras diferentes de viver, medo esse
traduzido na expressão “globalismo comunista”.
Pode parecer paradoxal, mas
apenas seres que vivem num círculo existencial estreito adaptam-se a existirem
no interior de um rebanho ou massa. Pois rebanho não é um conjunto
heterogêneo de singularidades, rebanho são indivíduos aprisionados a si mesmos
e que se agregam em celas contíguas.
Ser existencialmente de esquerda,
ao contrário, é partir daquilo que Espinosa chama de o Absolutamente Infinito.
A percepção de esquerda se abre ao que não pode ser cercado ou contido, para
que a mente e o coração ligados a tal percepção permaneçam sempre
abertos.
É a partir do infinito aberto que
o ser existencialmente de esquerda compreende que desse infinito
fazem parte o cosmos, o nosso planeta, as outras nações, o nosso país, a
nossa cidade, o nosso bairro , o outro e, enfim, a sua pessoa.
Ser de esquerda é não se colocar
como primeiro ou último numa concorrência, mas como parte singular de
realidades mais amplas e horizontadas (como ensina também Manoel de
Barros).
Ser de esquerda não é apenas
compreender teoricamente isso, mas sobretudo agir a partir dessa percepção. E
dessa percepção podem nascer não apenas ações empáticas, solidárias,
generosas , dignas , justas , corajosas e revolucionárias, pois dessa percepção
também podem nascer poemas, músicas , artes e educação não menos
revolucionárias.
(imagem: os filósofos Deleuze
& Guattari e o livro que escreveram juntos)
Este texto também foi publicado como artigo neste site de professores de filosofia:
Certa
vez, perguntaram ao poeta Manoel de Barros qual foi sua grande influência. Todos imaginavam que
ele mencionaria um poeta, porém Manoel
disse que aprendeu a ser poeta
com um pintor : Miró.
Mas
o poeta não aprendeu com o pintor fórmulas, cartilhas ou tudo aquilo que ,
aprendido de forma obrigatória, depois se torna matéria cobrada em prova. Na
verdade, Manoel diz que aprendeu com Miró a fazer desaprendizagens. Foi assim:
Miró
desenhava de maneiraprecisa e técnica,
porém essa técnica virou uma prisão que impedia o nascimento de um mundo
novoque Miró desejavacriar.
Esse
mundo novo não cabia naforma
“acostumada” que se tornouMiró e
seupintar . Já crescia virtualmente no
pintor uma alma nova, porém faltava um corpo para ela: ao invés de nascer, a
alma nova corria o risco de abortar.
Miró
desistiu da arte, mas a arte não desistiu de Miró. Quando tudo parecia perdido,
certa vezMiró começou a rascunhar com
lápis de cor usandoa mão esquerda, mão
que ele nunca usava . Era um rascunhar “brincativo” que alcançava realidades
ainda não formadas, ignoradas pela mão direita.
A
mão esquerda nada sabia de cânones ou fórmulas de sucesso, como sabia a mão
direita. Nunca a mão esquerda ficou vaidosa por receber elogios; tampouco
segurou, ostentando, prêmios e títulos, como se habituou a segurar a mão
direita.
Se
a mão direita adquirisse a capacidade de falar e alguém lhe perguntasse qual a
opinião dela sobre a mão esquerda,ouviria: “ A mão esquerda é perigosa:quer tirar o poder que conservo, ela ésubversiva!”.
As
duas mãos tinham a mesma idade biológica, mas era a mão esquerda o corpo novo
que a alma nova exigia . Ao começar a desenhar com a mão esquerda, cada desenho
era o desenhar de novo nascendo , fazendo-se como novidade, experiência e
descoberta.
O
poder estabelecido escreve suas cartilhas com a mão direita ; porém a arte de
se reinventar só a pode desenhar um instrumento não domado: a mão esquerda . A
mão direita se liga a uma metade do cérebro apenas , já a mão esquerda se liga
à outra metade do cérebro e ainda ao coração inteiro que, assim como ela,
também está do lado esquerdo.
Deixarei aqui um link para uma revista na qual
acabou de sair um artigo que escrevi sobre o poeta Manoel de Barros. Fiquei feliz, pois
gosto dessa revista, vale a pena conhecê-la:
Revista Alegrar.
O nome e a linha
editorial da revista são inspirados em um afeto fundamental da Ética de Espinosa: a Alegria.
Em Espinosa, “alegria”
não é a mesma coisa que o sentimento que o senso comum chama por esse nome. A alegria espinosista é
uma potencialização da nossa capacidade de pensar, agir e sentir, pois essas
três atividades andam juntas.
A alegria é um
afeto acompanhado do prazer nascido em alguma parte (ou partes) do nosso corpo.
Ou seja, não apenas a alma sente alegria, o corpo também sente. Por exemplo,
quando ouvimos uma música que potencializa o sentir de nossa mente, é porque nosso
ouvido, ao ser tocado pelo som, sente prazer. O prazer é a alegria do corpo.
Quando é nosso
corpo inteiro que sente prazer, um prazer não egoico-hedonista, a alegria se
torna contentamento: não o contentamento em ter algo como proprietário-dono, mas contentamento em ser parte singular da Natureza.
A Natureza em
Espinosa é uma polifonia infinita: é música para ouvir com todo o corpo. Aqueles que a ouvem, como diz o poeta, de contentamento-beatitude
também dançam, sendo taxados de loucos pelos que não têm ouvidos para a escutar
.
Quando é uma
parte do nosso corpo que sente dor, em nossa mente haverá tristeza. E quando é
o corpo todo que dói, a mente é dominada pela melancolia. A melancolia nos
mostra que as dores do corpo nunca são apenas físicas...
Espinosa não
nega ou minimiza a dor, a tristeza e a melancolia. Mas é tarefa da filosofia,
uma tarefa ao mesmo tempo clínica, existencial e política, perseverar para
produzir o máximo possível de prazer, alegria e contentamento, com a máxima
potência que tivermos.
Não é o medo ou
o ódio à doença que nos protege dela, o que nos protege
verdadeiramente da doença é agir tendo como causa o amor à saúde.
A luz não brilha
como efeito da treva, mas por afirmação de si mesma: e quanto mais a luz brilha,
mais ela se torna causa da diminuição da treva.
As tir4nias de
toda espécie fomentam e se aproveitam da dor, da tristeza e da melancolia. Mas o
prazer , a alegria e o contentamento autênticos não nascem da derrota das tir4nias
, pois prazer, alegria e contentamento autênticos não são um
efeito . Ao contrário, o prazer, a alegria e o contentamento autênticos devem
ser causas que nos auxiliem nas lutas
contra as tir4nias.
Espinosa vem sendo estudado por pesquisadores
das mais diversas áreas. Além disso, o interesse por sua obra não para de
crescer, mesmo entre o público não formado em filosofia. Contudo, o contato
direto com a obra de Espinosa dificulta a plena apreensão de seus conteúdos .
Isso se deve à maneira geométrica mediante a qual o filósofo expõe suas ideias.
Nesse sentido, à primeira vista, parece que
Espinosa não teve uma preocupação didática. Mas essa visão se desfaz quando
obtemos uma compreensão mais pormenorizada da obra, tendo como pano de fundo seu
pensamento como um todo. Mesmo o uso da
geometria tem razões didáticas. Embora sejam poucas, pouquíssimas, as
referências de Espinosa à Educação, essas referências valem não pelo seu
aspecto quantitativo, mas pela sua natureza constituinte de oferecer um fundamento e objetivo geral à sua Ética.
É o objetivo principal desta Pesquisa mostrar
que há em Espinosa, virtualmente ou em esboço, a configuração de uma proposta de Educação
que, tendo como base sua Ética, traz
elementos que , a despeito de terem sido formulados há trezentos anos, ainda
trazem uma novidade que merece ser descoberta.
Uma das contribuições mais singulares de
Espinosa à filosofia , sobretudo no âmbito da Teoria do Conhecimento, é afirmar
que o conhecimento não se faz apenas com ideias, o conhecimento também envolve
afetos. Para Espinosa, não apenas as ideias são modos ou maneiras da mente, os afetos igualmente o são ( Ética, Parte 3, Definição
geral dos afetos). Os afetos também envolvem o pensamento: eles são modos
ou maneiras de pensar, um pensar que
sente , uma vez que envolve o corpo ( Ética , Parte 3 , esc. da
proposição 11).
Por essa razão, há uma diferença entre as
ideias e os afetos: enquanto as ideias dizem respeito à mente em seu aspecto
intelectual-cognitivo, os afetos expressam a mente enquanto ânimo ( Ética, Parte 2, axioma 3). O ânimo é a mente enquanto unida
indissociavelmente ao corpo, isto é, à vida. Às vezes, Espinosa se refere ao ânimo
(animus ) como o “coração”. Não
no sentido romântico ou meramente subjetivo, e sim enquanto sede viva dos
afetos. O coração também pensa, porém sentindo.
A coragem, segundo Espinosa, é a presença do
ânimo levando-nos a agir. A covardia e omedo ,ao contrário, sãouma forma
de des-ânimo: enfraquecimento ou despotencialização do nosso ânimo, isto é, de
nossa mente e de nosso corpo. A potencialização do ânimo não se faz apenas com
as ideias, mas também com os afetos.O
ânimo fortalecido não teoriza apenas , ele também sente e age : dá pernas e
braços às ideias . Um ânimo fortalecido é aquele que age pelo fortalecimento de
outros ânimos, de outras mentes e corpos. Esse agir é o fundamento da ética de
Espinosa, de tal modo que o conhecer nada é se não suscitar um agir.
Em Espinosa, “fortaleza” ( fortitudo) não
é apenas uma palavra, é uma virtude, uma das principais de sua filosofia (Ética,
Parte 3, prop. 59, escólio). A fortaleza é a expressão imediata da ação mais característica
da mente que se torna ativa: a compreensão. A fortaleza é a virtude-potência da
mente que compreende. Essa virtude-potência possui dois aspectos
interligados: a firmeza e a generosidade. A firmeza é a fortaleza para consigo
mesmo enquanto agente, ao passo que a generosidade é a fortalezapara com o outro. Reconhece-se uma mente que
compreende, uma mente que filosofa, pelo fato de que ela é fortaleza de ânimo. Na
língua banto, fortitudo é “quilombo”.
O ânimo não se fortalece sozinho, não há um
“cogito” que o possibilita, uma vez que o fortalecimento do ânimo requer o que Espinosa chama de “encontros”,
“bons encontros”. O termo “encontro” é a tradução da palavra latina occursus.
De rica acepção, occursus também pode ser “circuito”. Esse sentido talvez
explique ainda melhor o que é um encontro em Espinosa: o bom encontro cria um
circuito onde energias passam, ideias fluem, afetos são partilhados, ações são
construídas de forma agenciada; já o mau encontro é , literalmente, um
curto-circuito que bloqueia, ameaça , violenta , despotencializa , adoece e
tiraniza, corpo e mente.
Occursus também pode significar “boas-vindas”.
Na Roma Antiga, occursus era um processo que preparava o introitus, a
introdução à cidade, à civitas: do lado de fora dasportas abertas da cidade, o visitante recebia
o occursus, o boas-vindas, para em seguidaser introduzido no convívio da civitas. Um bom encontro constrói um
circuito de boas-vindas. Todo bom encontrorecebe quem nele entra como um espaço de
boas-vindas, sobretudo daquilo que cada um tem de singular e diferente , de tal
modo que um occursus é sempre um boas-vindas à autonomia[1]. O
partejar socrático é um boas-vindas que o encontro filosófico possibilita
àquele que , (auto)conhecendo-se, chega enfim a si mesmo como se fosse um ser
novo.
O mau encontro, ao contrário, é quando a nossa
maneira de ser é mal-vinda : portas fechadas à nossa entrada, seja a entrada ao
conhecimento,seja a entrada à
cidadania, seja a entrada à nossa “cidadela interior”, como dizia Marco
Aurélio, e sem a qual não há o despertar para a filosofia enquanto
autoconhecimento.
Até aqui não empregamos o termo educação. Mas esta
é nossa principal hipótese:todos esses
processos que cartografamos sucintamenteem Espinosa descrevem um processo do qual poderíamos extrair uma
concepção de educação. Afinal,um
processoeducativoé umbom encontroquando ele é prática
de cuidado/boas-vindas ao que no educandoé potência ainda. Um bom encontro é sempre um espaço de agenciamentos,
nunca um monólogo. Um espaço educativo se torna umtopos de boas-vindas quando, por
intermédio dele, o educando também é introduzido ( introitus)à sociedade, ao mundo, à vida, enfim, a ele
mesmo por meioda educação que o faz
descobrir a si próprio. Também para aquele que educa o processo de ensino e
aprendizagem deve ser vivido como um“boas-vindas”, por mais que se tenha vivido inúmeras vezes aquele
encontro na vida. Vista sob essa perspectiva, a educação deve fazer-se como um
circuito que emancipa, como uma pólis sempre renovada.Nesse sentido, a educação é mais do quetransmissão de conhecimento: é construção
deum circuito gerador de um modo de
vida. Nesse circuito, não apenas as têm lugar ideias , também estão implicados
afetos.
[1] Embora não cite
Espinosa , Derrida fundamenta uma “ética da hospitalidade” na prática de
“boas-vindas” em um sentido muito próximo ao que aludimos aqui. Apoiando-se
nessa “ética da hospitalidade”, Fábio Araújo (2006) propõe uma clínica da afetividade calcada na
ideia de “acolhimento” e “amizade”. E segundo Walter Kohan e Maximiliano Durán
(2020), a hospitalidade é um dos princípios de uma “escola filosófica popular”.
Este texto é parte de uma pesquisa sobre Espinosa que desenvolvo na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro/ UNIRIO. A partir de setembro, haverá atividades abertas ao público externo. Para informações: eltonluizleitedesouza@unirio.br
Fiz esta
postagem em 2019, ainda sob o “governo” do inelegível:
Não só o elogio
que recebemos indica que estamos indo na direção certa em nosso trabalho , pois
muitas vezesa censura recebidatambém deve nos encher de satisfação, quando
ela vem dos tolos e néscios.
Como ensina
Nietzsche, mais importante do que aquilo quese diz é quem diz. Há certo tipos de pessoas quea tosca crítica delas a nós deve ser recebidacomo um elogio e nos dar ainda mais força
para avançar .
Fiz essas
considerações acima devido ao seguinte fato: soubemos agora que a poesia de
Manoel de Barros foi censurada e proibida de constar no exame do Enem de 2019,
já sob opoder dos fascistas. E o mais
grave: foi uma censura motivada por questões teológico-políticas.
Como todo tirano
que teme a liberdade de pensamento, dizem que foi opróprio genocida quem deu o parecer final
sobre o que deve ou não constar na prova. Vocês conseguem imaginar o fascista
tentando lerManoel de Barros!? Deve ter
sido algo semelhante ao vampiro diante do alho, ou como o asqueroso ácaro
sendofulminado pela luz do sol...
Essa censura
engrandeceu ainda mais o valor pedagógico ,políticoe libertário do poeta.
Sei que soaparadoxal dizer isso, mas
essa restrição dos fascistas a Manoel deve nos encher de alegria: estamos no
caminho certo.
Ainda mais
porque essa censura é nada frente à obra do poeta, e só revela a
pequeneza,tacanhez e estreiteza
daqueles que o censuraram. Eles são como aquelas obscuras pedras citadas pelo
próprio Manoel, que assim nos dá o exemplo: “Sou água que corre entre pedras:
liberdade caça jeito.”
1.Certa vez, perguntaram ao poeta
Manoel de Barros qual foi sua grande
influência. Todos imaginavam que ele mencionaria um poeta, porém ele disse que aprendeu a fazer poesia com dois pintores:
Klee e Miró.
O poeta aprendeu a fazer “imagens” com
os pintores : imagens construídas com palavras, cuja cores e paisagens são
diretamente pintadas na tela da alma.
Manoel chama essas imagens de “iluminuras”: um
misto de luz com uma realidade ainda escura, tal como a aurora que tem atrás de
si a noite ainda, a noite da qual uma nova manhã se distinguiu , brilhando.
Essa “realidade escura” que participa
da criação poética não é como a treva da ignorância e do obscurantismo, ela é
como o escuro no interior do casulo ou
do útero, onde cresce o embrião de uma vida nova.
Assim, as iluminuras poéticas são
imagens que se lê partejando, como realidade a nascer no poema e em nós,
desabrindo-nos.
2. Miró desenhava de maneiraprecisa e técnica, porém essa técnica virou
uma prisão que impedia o nascimento de um mundo novo que Miró desejavacriar. Esse mundo novo não cabia naforma “acostumada” que se tornouMiró e seupintar . Já crescia virtualmente no pintor a alma nova, porém faltava um
corpo para ela: ao invés de nascer, a alma nova corria o risco de abortar.
Miró desistiu da arte, mas a arte não
desistiu de Miró. Quando tudo parecia perdido, certa vezMiró começou a rascunhar com lápis de cor
usandoa mão esquerda, mão que ele
nunca usava . Era um rascunhar “brincativo” que alcançava realidades ainda não
formadas, ignoradas pela mão direita.
A mão esquerda nada sabia de cânones
ou fórmulas de sucesso, como sabia a mão direita. Nunca a mão esquerda ficou
vaidosa por receber elogios; tampouco segurou, ostentando, prêmios e títulos,
como se habituou a segurar a mão direita.
Se a mão direita adquirisse a
capacidade de falar e alguém lhe perguntasse qual a opinião dela sobre a mão
esquerda,ouviria: “ A mão esquerda é
perigosa:quer tirar o poder que
conservo, ela ésubversiva!”.
As duas mãos tinham a mesma idade
biológica, mas era a mão esquerda o corpo novo que a alma nova exigia . Ao
começar a desenhar com a mão esquerda, cada desenho era o desenhar de novo
nascendo , fazendo-se como novidade, experiência e descoberta.
O poder estabelecido escreve suas
cartilhas com a mão direita ; porém a arte de se reinventar só a pode desenhar
um instrumento não domado: a mão esquerda . A mão direita se liga a uma metade
do cérebro apenas , já a mão esquerda se liga à outra metade do cérebro e ainda
ao coração inteiro que, assim como ela, também está do lado esquerdo.
Estou
realizando algumas conversas com profissionais, educadores , filósofos ,
museólogos , literatos , poetas e artistas em geralque se inspiram na poética de Manoel de
Barros em seus trabalhos.Essas
conversas fazem parte de uma pesquisa (UNIRIO/FAPERJ) que desenvolvo. O nome da
pesquisa é : "Na ponta do meu lápis há apenas nascimento : a empoética de
Manoel de Barros."
"Empoética"
é uma noção criada por Manoel. Da empoética manoelina nascem empoemamentos.
"Empoemar" é um verbo que se conjuga em vários modos e pessoas,
ensejando singulares práticas. O pintor empoema as tintas, o poeta empoema as
palavras, o músico empoema o som, o revolucionário empoema a ação, o doar
empoema as mãos, enfim, a palavra que educa empoema a mente.
Empoemar-se é
mais do que ler ou escrever rimas e versos; empoemar-se é uma intensificação da
vida, na qual o pensar, o agir e o sentir se agenciam, produzindo
horizontamentos, por dentro e por fora, pessoais e sociais.
Na semana
passada, conversei com o museólogo Clóvis Britto ( UNB/UFBA) , que pensa as
exposições museaisa partir da poesia de
Manoel. Em breve, conversarei com duas professoras que empregam Manoel para
ensinar filosofia no ensino médio.
Amanhã, o papo
será menos acadêmico , porém não menos interessante: será com a vencedora de um
concurso de redação sobre o poeta ( o nome do concurso foi: "Um passeio
com Manoel" ). O nome dela é Ennesli Granjeiro, ela atua hoje como atriz.
O concurso foi organizado pela Fundação Manoel de Barros. Já tive a
oportunidade de conversar com ela antes, vale a pena conhecer a história dela.
Ela conta como se empoemou.
Para quem
quiser/puder acompanhar e participar da conversa,deixarei aqui o link para o meet ( será
amanhã, dia 30, das 10h às 11h).
( apresentação que escrevi para o livro
“Palavra Muda”, do poeta Paulo Vasconcelos)
Segundo o poeta Manoel de Barros, poesia não é
apenas verso e rima no papel, poesia éempoemamento: horizontamento da alma. Cada poeta , quando é um poeta de fato, nos
empoema inventando o sentido e o ser do que sejapoesia.
“Palavra é sempre muda”, dizem, “quem
fala é a boca”.Mas Paulo nos ensina que
a própria palavra pode ser muda, para assim expressaro que não consegue dizer a mera bocaque apenas diz palavra.
Paulo inventa um devir-só
repleto de esvaziamento de egos. Devir-só não é a mesma coisa que ser
sozinho. Esse devir-só é o dizer dequem expressa , das coisas mais comuns, o seu incomum único.
Paulo data alguns poemas ao modo
deacontecimentos de um diário. São
poemas com registro de nascimento , dia e hora, dando a ver que poema é
acontecimento unindoo íntimo lírico
aosocial e histórico.
O poeta é um “cristo pagão” que
aceita sua solidão acompanhada de deuses, muitos deuses, os do dia e os da
noite, sobretudo estes, e ainda mais alguns que carecem de nome, mas não de
ser.
Solidão é o dão de quem se dá
(“poesia é coisa de dão”, Manoel de Barros). Paulo escreve como quem se
esvaziapara que nada resista à poesia
que o preenche. Ele se desvencilha do gozo de uma“sozinhez” narcísica, para assim narrar, não
sem dor,as solidões da singularidade ao
mesmo tempo simples e refinada. Em seus versos há perceptos de paisagens
sem homens, feitasde mar , de peixes e
desmesuras aquáticas; há montanhas e suas alturas, mas também há o tecido
urbano, no qual o humano está àprocura
de si mesmo.
Há um fio entre o verso enós. O fio não nasce de um ponto, ele nasce
de um novelo que Paulo desdobra , esvaziando-se . Não é palavra o que ele nos
dá, ele nos dá uma canção que espera o amor voltar para atenuar as dores dessa
“difícil vida danada”,que mesmo assim é
celebrada , sem arrependimentos , sem culpa, com boa vodca.
Um “deus” com “d” minúsculo faz-se
mais humano que o homem, ele aprende o desejo, a saudade, tem pai mortal e lê
cordel. Assim, esse deusnão espera
obediência, apenas que o vejamosincorporando-se “natureza e tempo” , para assim também nos fazer gente,
tempo, lua, saudade não nostálgica.
A palavra muda não é a que ausenta a
palavra, a palavra muda é a conquista de um silêncio completo: diz tudo sem
dizer nada, pois não o diz com o som, o diz apenas com o sentido artesanado.
Segundo o poeta
Manoel de Barros, há na poesia uma didática. Não uma didática para nos ensinar
cartilhas . A didática que a poesia ensina é uma “didática da invenção”.
Ensinar a
inventar e criar para não sucumbirmos à resignação e ao medo , essa é a lição
de tal didática, lição para aprendermos a nos refazermos.
Manoel diz que
aprendeu essa didática não em livros ou com mestres doutores, ele a aprendeu
com um menino: "inventei um menino levado da breca para me ser”. O poeta
inventou um menino para sê-lo: e é o próprio menino inventado que ensina a
Manoel como (re)inventar-se. Esse menino, diz o poeta, é “a criança que me
escreve”.
Essa criança
lúdico-poética não é uma idade , ela é a própria potência da vida em seu
“minadouro” e novidade. Para que não nos domine a “velhez” , o poeta nos
convida para os seus “exercícios de ser criança”.
“Velhez” ,
segundo o poeta, também não é uma idade, “velhez” é uma forma de mentalidade
refém do “mesmal”. O mesmal é a vida reativa, ressentida, resignada, não
importa a idade que se tenha. Às vezes, até mesmopartes da sociedade são tomadas pela velhez,
engendrando assim servidões e tir4nias. O mesmal e sua velhez sãoa antipoesia - no sentido existencial,
político e subversivoque a poesia tem.
Na vida, os
exercícios de ser criança consistem em soltar e dar linha na pipa , atirar com
estilingue nas latas, jogar bola na rua , muitas vezes tendo que driblar a
repressão dos guardas . Os exercícios são as “peraltagens” de que são capazes
as crianças.
É preciso
aprender a fazer essas peraltagens com as palavras, para elas serem para nossa
liberdade o que a linha é para a pipa : para horizontar a mente com linhas de
fuga.
Que nossas
palavras também aprendam a driblar as significações dominantes e seus guardas.
Enfim , inventar com as palavras uma lúdica arma, um simbólico estilingue, uma
arma para fazer viver e não para matar, apontada contra a velhez dos reaças.
Como ensina
também Kierkegaard: “O homem seria metafisicamente grande se a criança fosse
seu mestre”.
Texto publicado no facebook:
Certa vez, quando eu era aluno de filosofia, ouvi uma aula belíssima
do professor Cláudio Ulpiano dizendo que
só há uma condição de resistirmos ao poder, ou não sermos seduzidos por ele, seja ele qual for : permanecendo marginais. Ser marginal é estar na margem: nem
dentro , nem fora.
A margem é como uma membrana: um espaço de comunicação entre
o dentro e o fora. O poder, por sua vez, quer sempre o centro, e é por isso que
ele é centrípeto, monopolizador, e a tudo quer subordinar à sua lógica.
A lógica do poder é a
da “bolha” , do espaço fechado, e por isso teme aberturas, horizontes.
Mas quem se coloca “fora”, num espaço de pretensa “neutralidade”
, com certeza não se compromete, porém perde o poder de agir: constata, critica,
reclama, mas não age.
Tudo tem uma membrana. E é nesse espaço da membrana que é
preciso se colocar se quisermos construir linhas de fuga. Como diz Manoel de
Barros, é na membrana que podemos desabrir algo que está fechado.
Disse isso por conta desse espaço aqui, o facebook. De uns
tempos para cá, eles adotaram a prática de diminuir o alcance das postagens de
todos que não se tornam “produtor de conteúdo” para ele.
Eles fazem uma espécie de chantagem: “se você não quiser ter
suas postagens invisibilizadas e sua página escondida, submeta-se ao nosso
comércio”. Comércio do que exatamente? Comércio de nós mesmos, pois é disso que
se trata: nós somos o produto que eles vendem, comprando-nos antes.
Inclusive, como todo Mefistófeles, eles prometem que se
vendermos nossa alma para eles teremos uma recompensa:
nossas postagens serão “bombadas”, “impulsionadas” e “turbinadas” pelos robôs e
algoritmos deles, não importa o conteúdo ou a qualidade da postagem.
Eu disse NÃO a essa chantagem. Não sou funcionário deles,
não “sou produtor de conteúdo digital” . Os conteúdos que coloco aqui, vêm da
vida real. Não sou “produtor de conteúdo digital” desse Mefistófeles digital, minha
profissão é: professor.
Não tenho o menor interesse que minhas postagens sejam “turbinadas”
por robôs acéfalos. Todos nós que postamos aqui , sobretudo textos, desejamos sim ser lidos e,
se merecermos, recebermos partilhas e comentários, mesmo que discordantes. Escrevemos
para pessoas, são elas que nos interessam e justificam nossa presença aqui, não
robôs.
Nada contra , claro, quem deseja ser “produtor de conteúdo
digital”, mas o que não pode é o face chantagear todos a sê-lo.
É como professor que me
manterei aqui: na margem, na membrana, como marginal. É na margem disso aqui
que podemos, mesmo estando aqui, não cedermos a isso aqui, não sermos
instrumentos deles ( que são cúmplices do “MAGA”), e empregarmos esse espaço aqui contra eles e a
favor de nós, de nossas lutas sociais e políticas por emancipação e por uma
vida mais digna: lá, no mundo real.
___ ___ ___
Como dizia Nietzsche, os homens do poder sempre tentam
passar a ideia de que os valores e a ordem que lhes colocam no lugar onde eles estão, um lugar de privilégios e domínio sobre
os outros seres humanos, esses valores e ordem seriam como
o gelo das geleiras nos picos das montanhas: uma realidade irremovível,
imutável, eterna.
Ante isso, ensinava Nietzsche, a filosofia somente tem serventia
se for como o “vento do degelo”.
Os livros de filosofia costumam dizer que há duas maneiras de adquirir conhecimento: por progressão
e por conversão. A imagem que melhor traduz o conhecimento por
progressão é a de uma escada: aprender se torna um processo de subir degraus.
Começa-se no degrau do primário, passa-se ao degrau do ensino básico, depois
sobe-se ao degrau do ensino médio...até chegar ao degrau da faculdade. Aqui, há ainda os degraus dos períodos, depois o degrau do mestrado, sendo seguido
pelo do doutorado até chegar ao último degrau: o do pós-doc. Contudo, o que
caracteriza o conhecimento por progressão é que ele tem um começo e um fim(o
pós- doc) , assim afirmando a lógica de um suposto “progresso formal-intelectual”
.
O conhecimento por conversão segue outra lógica: não a da escada que
sobe, mas a de uma mudança de caminho, uma guinada, uma virada. Con-versão: “voltar-se
para”. Em Platão, por exemplo, a conversão implica em um voltar-se para cima:
para o Céu onde moram as Ideias. Mas como chegar até lá? Para lá não há degraus
ou escadas. É preciso ter asas. Para Platão, o conhecimento não é um progredir,
e sim um retornar: um voltar-se para a Origem Transcendente.
Inspirando-se nos pré-socráticos, Deleuze afirma que há ainda uma
terceira maneira de adquirir
conhecimento: nem por subida de degraus, nem por ascensão por asas, mas por subversão.
E esse processo não é puramente acadêmico ou intelectual, mas existencial e
vital.
Subverter não é subir degraus e nem alçar às alturas, mas virar de cabeça
para baixo uma ordem de coisas dadas. Subverter é destruir, mas destruir para criar:
“Só podemos destruir/subverter sendo criadores”, afirma Nietzsche. O subversivo faz de suas mãos mais do que
asas: pois nelas, em suas mãos, ele carrega ferramentas para forjar uma
realidade nova, como Espinosa polindo lentes para subverter a visão. Assim, Espinosa
subverteu a imagem do filósofo: fez-se
artesão.
Enquanto a conversão busca um Céu
nas alturas, o subversivo quer a Terra, ele afirma a Terra como o verdadeiro
Céu. A progressão mira o alto de um podium, a conversão almeja o Céu, porém a
subversão constrói o plano horizontal das conexões que ampliam e expandem.
Heráclito, Lucrécio, Espinosa, Nietzsche, Marx, Deleuze...se inscrevem na
linhagem dos subversivos, cada um à sua maneira. Para eles, não se filosofa
para progredir em conhecimento hierárquico ou para fugir da terra, mas para
subverter os poderes que apequenam a vida, fomentam a superstição, exploram o
ser humano e ameaçam o presente e o futuro da terra.
A poeta Carolina de Jesus, por exemplo, subverteu a lógica da ignorância
que jogou livros no lixo: salvando os livros do lixo, Carolina de Jesus
subversivamente produziu riquezas de ideias e afetos que não se compram ou
vendem no “mercado”. No filme Meu amigo Nietzsche, o menino também
salvou a filosofia do lixo, subvertendo assim a pobreza e a exclusão. Arthur
Bispo do Rosário subverteu o lugar de louco no qual o confinaram, e com a arte
subverteu nossa compreensão do que é a lucidez.
Sem dúvida, é fundamental subverter a visão eurocentrada da filosofia, para
assim afirmamos o pensar original que brota das nossas periferias e lugares de
exclusão. Às vezes, para despertamos o filosofar é preciso subverter a lógica acadêmica
da filosofia , e assim unir o pensamento à vida.
O excelente e imperdível novo documentário de
Petra Costa me fez lembrar o livro “Tratado teológico-político” , de Espinosa.
No livro, o filósofo descreve o fenômeno da “credulidade”. No fundo
de toda credulidade vigora o medo. Não o
medo que pode nascer em quem enfrenta reais perigos, mas o medo ressentido que
prostra e cega. O que Espinosa descreveu em palavras, Petra mostrou em som e imagens.
Segundo Espinosa, é o medoo sentimento que melhor define a condição de servo
voluntário.
“Credulidade” não é a mesma coisa
que“fé”. A autêntica fé não negaa ciência, já a credulidade é neg4cionista do
conhecimento.
A fé é movidapelo amor, mas é o ódi0 o combustível da credulidade. A fé busca a
justiça e age em favor dos pobres , a credulidade troca a cruz por arm4s e faz da
religião um vil negócio. A fé almeja alcançar Deus, a credulidade em tudo vê o
“Diabo”.
A credulidade se traveste de religião,
mas é na verdade projeto de poder obscur4ntista:poder teológico-político.
A credulidade é rasa, rasteira: por não
conseguir alcançar a profundidade do sentido que há nos textos sagrados, ela
imaginaque berrando e gritando se fará
ouvirpeloEspírito Santo.
A credulidade é produtora de
fantasia. Essafantasiaretroalimenta a credulidade, criando assim um
mundo paralelo à parte, mas que é visto pela credulidade como“Mundo Verdadeiro”. Não por acaso, a palavra
“Verdade”está sempre na boca delirante
da credulidade.
Fantasia não é a mesma coisa que
criatividade. As crianças nascem fantasiosas, porém nem todas conseguem
desenvolver a criatividade.
Quando a criança, movida pelo medo, imagina
haver um monstro debaixo da cama, o monstroé produto de sua fantasia, embora a criança ignore isso.
Mas se a criança ,ludicamente, cria uma história onde há um
monstro, ou simplesmente desenha um monstro e fabula uma narrativa , a criança
aprende que o monstro é criação de sua mente, de tal modo que, se ela o criou,
também o pode derrotar, criando igualmente o personagem corajosoque enfrentará evencerá o monstro. Criança que assimbrinca aprende a esconjurar o medo. O medo
apequena a mente, já a criatividadefaz
a mentecrescer e se horizontar.
Toda criança nasce fantasiosa, porém
para haver o despertar da criatividade é preciso criar meios socioeducacionais
que potencializem o imaginar pensante nas crianças.
Os tir4nos estão sempre perseguindo
os criativose colocando “monstros”
debaixo da cama dos ignorantes, assim infantilizando, pelo medo,os homens.
Homens infantilizados são incapazes
de se autogovernarem, terminandopor se
submeterem ,pela credulidade,ao poder teológico-político acumpliciado
com tir4nos.
“Comunista”, “vermelho”... são os
“monstros” que o poderteológico-políticocolocou debaixo da cama dos acorrentados à
credulidade , para assim ludibriá-los e
levá-los a crer delirantemente que um
mero ladrão de joias traidor da pátria é um “Messias” que irá salvá-los.
Esse poder teológico-político vem
perdendo força, seu “Messias” só engana hoje incautos incuráveis da
credulidade. Mas é preciso continuarmos atentos .
Esta música de Nelson Cavaquinho é parte da trilha sonora do filme de Petra:
"Pessoas que se enquadram
cegamente no coletivo fazem de si mesmas meros objetos materiais, anulando-se
como sujeitos dotados de motivação própria. Inclui-se ai a postura de tratar os
outros como massa amorfa. Uma democracia não deve apenas funcionar, mas
sobretudo trabalhar o seu conceito, e para isso exige pessoas emancipadas.
Só é possível imaginar a
verdadeira democracia como uma sociedade de emancipados. A única concretização
efetiva da emancipação consiste em que aquelas poucas pessoas interessadas
nesta direção orientem toda a sua energia para que a educação seja uma educação
para a contestação e para a resistência". ( Trecho do livro Educação
e Emancipação, de Theodor Adorno)
Em sua Ética,
Espinosa dá especial importância a uma virtude: a fortaleza. Em latim,
“fortitudo”. Alguns traduzem “fortitudo” como “força do ânimo”. A
palavra “ânimo” expressa a unidade da mente e do corpo quando agem. O “des-ânimo”
é a despotencialização do nosso ânimo, do nosso poder de agir.
“Virtude”
significa “força”. Não a mera força física ou bruta, mas a força potencial .
Originalmente, “virtu” designava a força que nasce de uma fibra , fio ou corda,
quando são tensionados e “vibram”.
Por
exemplo, o violão somente produz música se suas cordas forem vibradas; o arco
só pode lançar suas flechas longe se sua corda for tensionada ; o
próprio coração , ao pulsar, faz suas fibras vibrarem para impulsionarem o
sangue por todo o corpo.
Da mesma
maneira, ideias que fazem pensar levam a mente a vibrar, abrindo-se para o
mundo. Coragem, indignação,
generosidade, solidariedade, empatia, senso de justiça...são virtudes que ,
para virarem ação sobre o mundo, requerem fibra naqueles que as
sentem, para que neles elas vibrem.
Segundo
Espinosa, a fortaleza é o ninho que dá guarida a todas as virtudes e as
protege, como um escudo. Sem fortaleza, não há filosofia, ética, conhecimento,
vida digna. A fortaleza-virtude é força, mas não é violenta; ela tem
potência, porém não é soberba; ela é firme, sem ser rígida.
Uma
fortaleza não precisa de muros ou cercas, e disso a flor
de lótus dá o testemunho: ela desabrocha e persevera sendo ela mesma
a despeito de ao redor dela predominar a lama. A
fortaleza da flor de lótus é a força que lhe é imanente, e que a
lama não turva ou toca. Na sabedoria oriental, a flor de lótus é considerada o
símbolo da sabedoria prática.
Epicteto foi
feito escravo em Roma , como aqui Dandara e Zumbi . A filosofia foi, para
Epicteto, a sua Palmares: quando o poder quer nos agrilhoar (
simbólica ou fisicamente ), são Quilombos que precisamos
edificar, dentro e fora da gente. Não por acaso, na língua banto
“fortaleza” é “quilombo”.
A fortaleza que
protege uma sociedade livre e independente não é feita de muros ou arame
farpado, a fortaleza de uma sociedade soberana é a democracia direta e participativa.
E anteontem foi o dia de nascimento de Mercedes Sosa ( ela faria 90 anos). Letra-poema de Violeta Parra:
Os jornais
surgiram na Europa como espaços críticos e simbólicos da então emergente
burguesi4 . Os jornais nasceram como voz de uma classe contra outra
classe: como voz da burguesi4 contra a m0narquia.
Depois, com os
movimentos operários, surgiram jornais de esquerda como voz dessa nova classe
nascente. Até hoje na Europa, há jornais de esquerda que fazem contraponto aos
jornais (neo)liberais hegemônicos que, tal como no passado, ainda defendem o
interesse de uma determinada classe, ainda que tentem dissimular isso.
No Brasil nunca
houve algo semelhante: aqui, a imprensa foi criação da monarquia, quase como
uma porta-voz dela. Os primeiros jornalistas eram filhos de senhores de
engenho. Nunca tivemos, a não ser isoladamente, uma imprensa que veiculasse outra
voz sem ser a voz da classe dominante. Hoje, os senhores de engenho são
outros...
Um
empresário estadunidense ultrdireitist4 , ferrenho apoiador e financiador de
Trump, recentemente disse com cinismo: “Marx estava certo, o motor da história
é a luta de classes. Só que agora somos nós, os ricos, que
fomentamos a luta e avançamos contra nossos inimigos: os pobres.”
Conforme alguns
colegas já disseram, a imprensa corporativa distorce os fatos ao afirmar que o
governo assumiu o lema “Nós contra eles”, quando na verdade é o inverso que
acontece: “São eles contra nós”. Ao distorcer a realidade, a imprensa corporativa
revela que ela sempre foi a voz desse “eles”, e não do nós.
Quem são “eles”?
“Eles” chagaram aqui nas caravelas; “eles” depois foram os donos dos navios
negreiros; “eles” moravam nas casas-grandes; hoje, a caravela colonialista, o
navio negreiro escravagista e a casa-grande excludente são o “eles” do mercado financeiro
que fazem dos juros aviltantes a nova forma de açoite ( como na imagem pintada
por Banksy que acompanha esta postagem).
“Nós” somos os
trabalhadores, os estudantes, os professores, as mulheres, os indígenas, os
artistas, as minorias, as crianças... E também as florestas, os seres vivos, os rios, o planeta, enfim.
Como ensinava Espinosa,
o “eles” é um pequeno grupo que usa o poder (“potestas”) para se colocar à parte, como um “todo à parte”,
porém sugando a vida de todos para assim manterem seus privilégios usurpad0res ;
o “nós” é a multitudo e sua potência ( “potentia”) no exercício de uma democracia
que não é representativa, mas direta.
Nem sempre a multitudo
dá sinais de vida, às vezes parece que ela está desesperançada, cansada, quase
morta... É a indignação que desperta a multitudo e agencia , como partes
singulares dela, aqueles e aquelas que se unem e agem ante as injustiças.