Tem sido comum
ouvir em sala de aula opiniõescomo
esta: “Professor, não quero saber deHomero, Hesíodo, Platão, Aristóteles, Kant...são todos Europeus!” De
minha parte, aceitoa afirmação e
compreendo por qual razão ela é formulada.
Porém, tentando
horizontar a questão, argumento com cuidado e compreensão: “Mas a Europa também
tem sua periferia...Lucrécio, Diógenes, Diotima, Heráclito, Safo, Espinosa,
Nietzsche, Bakunin ,Marx ,
Deleuze...estão na periferia da Europa, eles estão nas margens!”
Eles são
periféricos não no sentido literal-geográfico , eles são pensadores-poetas
periféricos pelas ideias que pensaram e produziram, muitas vezes sob ameaças e
imensas perseguições, ideias essas que, se bem apresentadas e explicadas em
sala de aula , podem dialogar com as periferias literais da América Latina e da
África, e com elas lutarem a mesma luta.
Por exemplo, uma
das ideias principais da Ética de Espinosa é a noção de “fortaleza”. Em latim,
“fortitudo”. Na língua banto, “fortaleza” é “quilombo”. Não por acaso há essa
coincidência de ideias, pois Espinosa e Zumbi , cada um à sua maneira, criam
espaços de resistência ante toda forma de poder centralizado e excludente ,
seja na Europa , seja aqui.
Nós mesmos temos
periferias em nós, periferias para além da centralidade ensimesmada do ego: e é
nessa periferia de nós mesmos que encontramos o Outro , ele também habitante de
uma periferia intersubjetiva e transversal.
Sem dúvida, em sua maior parte, a filosofia europeia é falocrática, misógina e autocentrada. Em razão
disso, é mais do que necessário pensarmos a partir de outras referências
também, sobretudo as africanas e ameríndias. Descobrir outras lógicas, outras metafísicas,
outras formas de produzir e viver o conhecimento. Porém, conforme argumentamos,
há na própria filosofia possiblidades de
pensares heterodoxos, críticos e criativos que podem dialogar ,
transversalmente,com temáticas
ameríndias e africanas. Creio que é mais filosófico descobrir e apresentar
essas possibilidades de diálogo, em vez de colocar uma etiqueta generalizadora
sobre a filosofia e afastar os jovens dela, antes mesmo que eles possam
descobri-la.
É preciso encontrar um espaço transversal entre as periferias e margens,
pois é neste lugar “horizontado”, como diria Manoel de Barros, que o pensar
pode encontrar novos temas, novas questões, e ser uma ferramenta de mudança .
“Horizontar”
é um verbo-acontecimento criado pelo poeta Manoel de Barros. “Horizontar” é
perspectivar, colocar horizontes nas ideias, para assim não deixá-las se
fecharem em “verdades enrijecidas e dogmáticas”.
Como ensina
opensador-poeta Manoel de Barros: “Os
Outros: o melhor de mim sou Eles.”
( na imagem, um
encontro de periféricos: Manoel-Heráclito).
O poeta Manoel de Barros dizia que “Quem se aproxima da Origem se
renova”. A Origem não está no passado que passou, a Origem é onde estão os “minadouros”.
Mais do que um poeta, Eduardo Maia é um cartógrafo cujo mapa cerzido em
palavras nos deixa ver uma Minas enquanto minadouro de lembranças, de pensares,
de questionamentos, de devires-criança:
Que recurso restaurará a vida estancada daquele menino
que brincava
debaixo da locomotiva a vapor
durante a parada
na estação?
(Versos do poema Vallão, p. 15)
Perto dos minadouros “as tardes são infinitas” (tomo a liberdade aqui de
parafrasear verso do poema Brincar na rua). São tardes que nunca terminam,
acolhidas que estão no poema.
Pois poeta é não apenas quem escreve rimas e versos, poeta é sobretudo
aquele que produz em nós um olhar para ver, expresso em palavras, o que vai
além das palavras, de tal modo que o próprio ver se torna minadouro.
O filósofo Gilles Deleuze chamava de “perceptos” a essas visões que a
palavra literária/poética tem o dom de produzir. Com artesania notável, Eduardo
Maia emprega as palavras para criar perceptos de Minas, de tal modo que
essa Minas fabulada por ele “nos põe asas” (aqui, parafraseio o verso que abre
o poema Santos Dumont).
Nesse devir-criança brincativo que Eduardo ao mesmo tempo narra e
inventa, até um “Manuelzinho” vem ser seu parceiro de peraltagens com as
palavras:
E ficava criança.
Criando.
Inventando.
(Versos do poema Imprima-se a lenda!, pág. 31)
De mapas precisam aqueles que ousam travessias. Não só travessias no
espaço, sobretudo travessias no tempo. Não o tempo do relógio, e sim aquele que
dura como alma das coisas, das paisagens e das pessoas. Para travessias assim,
como essa que nos abre Eduardo, “A felicidade não está nem na chegada, nem na partida”
(Versos do poema Travessia, pág. 40). A felicidade, ensina o poeta,
“está no caminhar” (parafraseio verso do poema Travessia).
Se na Primeira Parte de seu livro Eduardo Maia é um cartógrafo, na
Segunda Parte ele canta com sua lira. Como Eduardo mesmo escreve, ele se
empoema “Ensimesmado” (tomei de empréstimo o verbo “empoemar” de Manoel de
Barros, e tenho certeza de que o Eduardo aprova essa minha aproximação dele com
Manoel). Eduardo se ensimesma não em torno do ego, mas tornando-se “íntimo” da
palavra (ver poema Íntimo, pág. 55).
Afinal, não devemos esquecer que “lírico” provém de “lira”, o instrumento
tocado por Orfeu, o poeta originário. “Lira” também era o nome dos sulcos
cavados na terra, na Mãe-Terra, nos quais eram lançadas as sementes.
A lírica de Eduardo está umbilicalmente ligada à Minas, seu território
poético para desterritorializações singulares e horizontadoras. E é nesse sulco
que sua palavra-semente germina “polifonicamente” (ver poema Polifonia, pág.
105) e, “chovendo linguagem” (poema No inverno, pág. 71), faz-se “fonte”
(poema Blake, pág. 76) de uma água preciosa, como aquelas que brotam das
montanhas de Minas.
[1]
Por Elton Luiz Leite de Souza. Filósofo, professor da Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro e Pesquisador da obra do poeta Manoel de Barros.
Uma das principais virtudes da ética de Espinosa é a “fortaleza” . Em
latim, “fortitudo”. Alguns traduzem "fortitudo" como
"força de ânimo" ou “força da vida” ("ânimo" vem de
"ânima" = "unidade vital da alma e do corpo").
Tal força não se expressa apenas em termos de músculo. O contrário do
ânimo não é a morte ou a doença, mas o des-ânimo. O oposto da vida não é a
morte, e sim a vida enfraquecida em seu ânimo.
A fortaleza-virtude tem força, mas
não é violenta; ela tem potência, porém não é soberba; ela é firme, sem ser
rígida.
Na sabedoria oriental considera-se a flor de lótus o símbolo da
fortaleza: ela não tem muros a cercando , porém a lama não a contamina ou
turva. Apesar da sujeira em torno, a flor de lótus ensina a como perseverar
sendo ela mesma. Ela ensina com sua existência, sem precisar de sermões ou teorias
acadêmicas.
Esta é a lição maior da flor de lótus: termos a força e perseverança para agirmos eticamente em defesa da dignidade
, mesmo cercados de lama.
A flor de lótus simboliza a mente que pensa unida ao corpo que age , por
mais hostis que sejam as circunstâncias . Como ensina o sábio-poeta Manoel de
Barros: “Sei de todas as espurcícias do mundo, mas do que gosto mesmo é de
circo.”
Curiosamente,
Espinosa , Zumbi dos Palmares e Dandara foram contemporâneos, viveram na mesma
época histórica. Espinosa nasceu em 1632; Zumbi, em 1655; Dandara, em 1654.
Eles foram irmãos em espírito na
afirmação da liberdade, e foram igualmente perseguidos pelos poderes que vivem
de promover a servidão e a ignorância. Não por acaso, na língua banto, “fortaleza”
é “quilombo”.
Hoje me lembrei de uma
belíssima aula do professor e filósofo Cláudio Ulpiano na qual ele narrava algo
extraordinário que fazia não um poeta , um educador ou um pensador , mas
a reunião de um poeta, de um educador e de um pensador num único ser
alado e canoro: o passarinho tordo.
Quando vem o fim da tarde, esse
poeta da natureza sobe ao galho mais elevado de sua árvore e canta para o sol
que lhe dera um dia. É um canto de resistência e afirmação da vida,
um canto de “Amor Fati”, seja o que for que tenha acontecido naquele
dia.
Quando o sol se põe , na borda do
céu perto do horizonte tudo fica colorido de púrpura. O púrpura nasce da
composição da cor azul, a cor dos “celestamentos” (
diria Manoel de Barros) , com o vermelho, cor do sangue ( não
enquanto este é derramado na violênci4 e b4rbárie, mas quando corre nas veias e
irriga o corpo de oxigênio e vida ).
É um canto belo e potente, porém
misterioso : os biólogos não conseguem explicar por qual razão o tordo canta
esse canto. Como um poema, o canto não
tem finalidade utilitária, porém desperta
finalidades mais elevadas; feito uma aula de filosofia, o canto nada serve aos
que só se interessam por “fórmulas” e “tabuadas” , uma vez que ele faz pensar para além das ideias limitadas.
Além disso, quando o tordo assim
canta, ele corre riscos. Pois soturnas aves de rapina ficam à
espreita para predar o tordo-pensador-artista. Mesmo
correndo riscos, o tordo não se cala e , cantando, se horizonta ao
céu-púrpura aberto e ilimitado. E quem o ouve, se horizonta também.
E
a lição maior do que Cláudio nos dizia , também a encontrei depois sob a
forma de versos , quando Manoel de Barros escrevia: “Inventar uma tarde a
partir de um tordo”. Inventar uma tarde púrpura e horizontada, uma “linha de
fuga”, sobretudo quando a treva nos
circunda.
Hoje, 14 de novembro, é o dia de
nascimento de Cláudio Ulpiano . Tive a alegria de ter sido seu aluno . Este
texto é uma pequena homenagem a Cláudio, cujas aulas
são verdadeiros cantos de tordo que horizontam caminhos.
Como ensinava Cláudio: “Só a boa
metáfora pode dar ao estilo uma espécie de eternidade.”
Muito obrigado
aos professores Écio Pisetta, Marcos Aurélio Marques ( um dos organizadores do
evento) , Nilton dos Anjos , Mário Bruno , Tatiana Motta Lima, Valéria Arruda (
do Museu-Casa Quintal Manoel de Barros)e Yanna Karlla , que participaram presencialmente do evento; e mais a participação online do professor
Renato Suttana , da Raylla Mirela ( Gestora e Mediadora do Museu-Casa Quintal
Manoel de Barros ) e do Bosco Martins ( a quem agradeço especialmente também a
divulgação do evento e generosidade) .
Fico imensamente
agradecido também a Savana Godoy , pela ajuda na organização e programação
visual , e aos alunos de Iniciação Científica Maria Fernanda Duarte e Henrique
Borges, que também participaram do evento.
Enfim, agradeço
de coraçãoa cada aluna, aluno, amiga e
amigo que , presencial ou virtualmente, acompanharam o evento.
Como ensinaManoel :"Os Outros : o melhor de mim sou Eles."
Professores Écio Pisetta, Elton Luiz, Marcos Aurélio, Nilton dos Anjos, Mário Bruno, Valéria Arruda ( do Museu-Casa Quintal Manoel de Barros) e Yanna Karlla. De maneira online, participaram ainda do evento: Raylla Mirela ( Gestora e Mediadora do Museu-Casa Quintal Manoel de Barros ), Bosco Martins e Renato Suttana.
Henrique Borges e Maria Fernanda Duarte ( discentes de Iniciação Científica do Projeto de Pesquisa sobre Manoel de Barros)
“Na
ponta do meu lápis tem apenas nascimento” é um verso do poeta Manoel de Barros.
Muitos sentidos podem ser extraídos desse verso riquíssimo.Exatamente por isso, convidamos outros
pesquisadores e professores para, juntos, pensarmos o sentido desse nascimento
que deve estar na ponta do lápis daquele que ensina, afeta, enfim, educa.
O evento acontece no dia 11 de novembro, no
Auditório Paulo Freire, em dois horários: a primeira mesa acontece das 14h às
17h30; a segunda, das 19h às 21h30.
A
mesa da tarde tem por título um verso de Manoel: Oficina de Transfazer
Natureza. Participam desta mesa: Tatiana Motta Lima, professora e
pesquisadora da Escola de Teatro da UNIRIO ; Écio Pisetta, docentena graduação dos cursos de filosofia da
UNIRIO e no Mestrado Profissional em Ensino de Filosofia (núcleo UNIRIO);
Renato Suttana : professor da Faculdade de Letras e no Programa de
Pós-Graduação em Letras da UFGD; Yanna Karlla :pesquisadora na área de Literatura e professora na Universidade Federal
do Pampa; e Marcos Aurélio Marques :Pós-Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Tecnologias da
Inteligência/ PUC /SP.
A
mesa da noite se intitula: Poesia pode ser que seja fazer outro mundo,
igualmente um verso de Manoel de Barros. Compõem a mesa: Raylla Mirela :
Gestora e Mediadora do Museu Casa-Quintal Manoel de Barros ; Bosco
Martins : autor do livro Diálogos do ócio ( finalista do Prêmio Jabuti);
Nilton dos Anjos : professor e Diretor da Faculdade de Filosofia da UNIRIO,
docente no Mestrado Profissional em Ensino de Filosofia ( núcleo UNIRIO);Mário
Bruno : poeta , filósofo e professor do Programa de Pós-Graduação em Literatura
da UERJ; e Elton Luiz Leite de Souza : pesquisador da obra do poeta Manoel de
Barros , docente no DEPM/UNIRIOe no
Mestrado Profissional em Ensino de Filosofia ( Núcleo UNIRIO).
Organizadores
do evento: Elton Luiz Leite de Souza ( e autor deste texto de Apresentação),
Marcos Aurélio Marques e Savana Godoy. O evento será presencial e online,
oferecendo certificado de participação.
Para
acompanhar de forma online, seguem os links:
Mesa
da tarde: https://meet.google.com/gcp-uxsz-tvb
Mesa
da noite: https://meet.google.com/fhe-bpuh-fzz
Uma letra diz
mais sozinha ou agenciada à outra, formando uma sílaba? Uma letra diz mais
sozinha ou numa sílaba que faz parte de uma palavra? E em qual tipo de palavra
as letras agenciadas teriam mais a dizer: na palavra mentirosa ou na palavra
autêntica? Na palavra que xinga ou na palavra que canta? Na palavra que sai da
boca de um milic0 que grita ordens ou na
palavra que nasce da boca de um educador que desperta autonomias?
Se uma letra
fosse como o ego de um egoísta, talvez ela imaginasse que é o indivíduo isolado
que tem primazia, tal como prega um neoliberal individualista. Porém louca
seria a letra que julgasse dizer mais sozinha do que fazendo parte de uma
sílaba, na vida de uma palavra, no coração de uma frase , dando existência a um
livro.
Pois é na
imanência de um livro, como parte de seu plural sentido, que uma letra de fato
pode ampliar-se e expressar a si mesma naquilo que expressa o livro, desde que
o livro não seja apenas letras mortas no papel , mas expressão de um dizer vivo
cujo sentido seja aberto às interpretações criativas que lhe acrescentem novas
e plurais perspectivas, como Obra Aberta.
“Minhas palavras
não se ajuntam por sintaxe, mas por afeto.”(Manoel de Barros)
“A palavra abriu
o roupão para mim : ela quer que eu a seja.” ( Manoel de Barros)
“A poesia está
guardada nas palavras, é tudo o que sei.” ( Manoel de Barros)
(Imagem: estive recentemente
visitando o Museu-Casa Quintal Manoel de Barros e tirei esta foto. Lá pude
constatar uma verdade, uma verdade poética sempre dita pelo poeta: que o
quintal dele é maior do que o mundo. Não maior em termos físicos, mas na
capacidade de horizontar a mente e o coração, transmutando-os em Obra
Aberta. A expressão “Obra Aberta” é do
filósofo Umberto Eco . Uma sociedade plural e democrática também deve ser uma “Obra
Aberta”, como antídoto a toda forma de f@scism0 e aut0ritarism0)
As ciências
humanas ensinam que o ser humano nasceu de um processo: a sublimação. O ser
humano é, ao mesmo tempo, o criador desse processo e o seu produto. A arte, a
cultura e a civilização são resultados desse ato de sublimar.
A palavra
“sublimação” não significa repressão daquilo que em nós é animal e instintivo,
pois em “sublimação” está presente a ideia de “sublime”, um afeto nascido da
ampliação ou potencialização do nosso pensamento agenciado à sensibilidade . Na
física, “sublimar” designa a passagem de uma substância de um estado sólido,
pesado, para um estado gasoso ou fluido.
Assim, sublimar
é transmutar uma energia, ampliá-la, encontrando para ela novos meios, canais e
objetos. A cultura humana é um processo de transmutação de uma energia animal,
instintiva, pulsional. Na natureza, essa energia faz-se instinto que, por intermédio
dos órgãos do corpo, busca satisfazer-se imediata e diretamente . A cultura
nasce da sublimação-potencialização dessa energia , para assim criar para ela
novos objetos, objetos simbólicos.
“Potência” e
“energia” não são termos sinônimos. A potência é uma transmutação da energia,
para assim fazê-la força criadora. Transmutar é fazer nascer, de uma realidade
dada, uma realidade nova (tal como a borboleta que se transmuta da lagarta).
A potência se
aumenta transmutando-se no produto que ela cria. A energia pulsional é uma
expressão das mesmas leis que regem e determinam o mundo físico; porém a
potência vital é criação de novos sentidos para a vida, por intermédio de
ideias, cultura e arte.
Mas a sublimação
tem seus inimigos, que são os mesmos inimigos da cultura, da arte e da ciência.
O inimigo da sublimação não é o instinto ou a pulsão, o inimigo da sublimação é
a barbárie. “Barbárie” significa “aviltamento”, no sentido de “tornar baixo”,
“vil”. A barbárie torna o homem baixo e vil , apequenando-o.
A lógica da
barbárie é a da guerra. Guerra não no sentido de meio de luta contra as
tiranias e injustiças, mas guerra como um fim nela mesma, a guerra vil como
instrumento da necr0polític4.
Enquanto a
sublimação é o esforço vital para vencer as tiranias, a barbárie faz da tirania
o seu Deus teológico-político. A barbárie não faz política, ela faz guerra
contra a política; a barbárie não promove cultura, e sim guerra contra a
cultura. A guerra deles é a guerra suja: com uma das mãos seguram armas , com a
outra celulares para bombardearem fake news , como o bolsonarista governador do
Rio Cláudio Castro e suas vilezas.
( imagem: em
protesto contra a violência , uma moradora de uma comunidade pobre do Rio
planta flores no buraco das balas...)
“Cada ser vivo existe dentro de seu mundo próprio” . Esse enunciado é do etólogo Jacob von Uexküll. O mundo próprio de um ser vivo não se explica apenas por propriedades físicas ou geográficas. O mundo próprio de um passarinho, por exemplo, inclui o território que ele deseja constituir, e este território já existe no desejo que o deseja, antes de o passarinho o constituir de fato como porção de espaço e parte da floresta. O mundo próprio é dele tanto quanto ele é do mundo próprio. Sem um mundo próprio a habitar seu desejo , um passarinho definha, para de cantar e nem mesmo pode voar, a não ser para fugir dos passarinhos que já possuem um mundo próprio. Não basta ter o mundo próprio como forma em rascunho a viver dentro do desejo que o vislumbra, é preciso também coragem e afirmação para efetuar um mundo próprio , pois efetuar um mundo próprio é efetuar a si mesmo, compondo-se com o espaço, conquistando para si um horizonte. Pois somente este, e não cercas (físicas ou simbólicas), deve ser o englobante de nosso chão.Somente a partir de um mundo próprio podemos nos horizontar. Do contrário, teremos apenas um discurso escapista, de fuga do mundo, niilista.
O mundo próprio não é um círculo ou bolha, pois essas imagens são portadoras de limites. Sabemos o que é um círculo porque o vemos de fora e o distinguimos de outras figuras geométricas, como o triângulo ou o quadrado. O círculo possui limites além dos quais a geometria não acaba, vez que ela se expressa ainda na existência de outras figuras. Mas o mundo próprio de um ser vivo é tal que , para ele, não existe outra coisa.
O mundo próprio de um ser vivo é feito de limiares: ele é um horizonte que sempre recua, além do qual um ser vivo não pode ultrapassar , pois marca os limites de seu conhecimento. Não se trata de um idealismo ou subjetivismo, dado que no mundo próprio há um mundo : o mundo próprio é um mundo, ele é o mundo dentro do qual encontramos um mundo subjetivo e objetivo, um dentro e um fora, um ser que percebe e um ser percebido. O mundo próprio vai em duas direções: para dentro e para fora, e é sempre no meio que ele se encontra mais vivo, como relação. Os extremos de um mundo próprio são indetermináveis, deslimitados, dado que coincidem, em um dos extremos , com o intangível mundo psíquico e , de outro, com um horizonte sempre aberto. O mundo próprio existe fora de um aparato psíquico, e o engloba. Ao mesmo tempo, o mundo próprio não existe sem um aparato psíquico que o apreenda como a existência de um fora.
Vejamos o caso de um carrapato, um simples carrapato. Como todo ser vivo, ele vive em um mundo próprio. Seus aparatos sensórios são voltados para fora. Eles buscam signos. O aparato sensório do carrapato torna determinados acontecimentos signos para ele. Esses acontecimentos o afetam. É por intermédio desses afetos que o carrapato forma ideias do mundo que o cerca, para assim agir sobre ele. O mundo próprio é o horizonte do poder de agir de um ser vivo.
Conforme nos ensinava Cláudio Ulpiano em suas belíssimas aulas ( http://claudioulpiano.org.br/), o carrapato possui três afetos. Seu mundo gira em torno desses três afetos. Parecem poucos? Mas o mundo do avarento gira em torno de apenas um afeto: sua avareza; o mundo do pretensioso gravita ao redor de apenas um afeto: a pretensão.... Poucos afetos governam a vida dos homens. Pois bem, o carrapato possui três afetos: pela luz solar, pelo odor do suor de um mamífero e pelo calor do sangue . O carrapato é cego. Ou melhor, “cegueira” é uma noção que só tem sentido em um mundo próprio no qual os seres tenham visão. No mundo próprio do carrapato a visão não tem sentido, não existe. Nenhum carrapato conhece o que é a visão. Logo, nenhum carrapato sente que lhe falta o que não existe para ele. A falta não faz parte de um mundo próprio. Somente quando perdemos nosso mundo próprio, ou quando este se fragiliza, somente assim é que a "falta" vem nos assombrar...
O afeto pela luz solar conduz o carrapato a buscar sempre subir. Ele escala o que puder escalar, sobretudo paredes e árvores. Ele escala seguindo a orientação da verticalidade. Ele sobe e espera. Ele espera que o objeto de seu segundo afeto se lhe apresente. Um carrapato é capaz de ficar anos à espera. Enquanto espera, ele entra em um estado que para nós se assemelharia à morte. Seu metabolismo se aproxima de zero. Tudo nele quase cessa de se mover. O único fio que o liga à vida é seu mundo próprio virtualmente envolvido em seus afetos, na profundeza da noite de sua vida psíquica.
É o odor do suor de um animal que se aproxima que ressuscita o carrapato daquela morte mimetizada. O odor do mamífero se anuncia como a boa nova advinda do horizonte de seu mundo próprio. O carrapato esperava sem esperanças, pois há um quê de dúvida em toda esperança , ao passo que no carrapato a espera era sem hesitações ou dúvidas acerca da vinda do esperado: essa vinda não era especulada , ela era virtualmente sentida na certeza instintiva de uma força que desconhece derrota antecipada. Sem ter olhos, o carrapato sabe da presença de um mamífero pelo odor de seu suor, sentido a dezenas de metros. Quando o mamífero passa, alheio ao desejo vivo que despertou, o carrapato se solta no ar, e cai sobre o objeto de sua paciente espera. Sem possuir olhos, ele sabe as distâncias, as velocidades e o espaço que o separa do objeto de seu querer. Ao cair sobre a pele do mamífero, o carrapato se finca, se instala, tudo nele já sabe o que fazer. Ele sente o fluxo de sangue quente a correr abaixo da pele do animal. Ele então perfura, se enfurna e se rejubila com a parte líquida de outro ser. Após sorver o correspondente a três vezes o seu peso, o carrapato se solta, repleto, intumescido de vida. Nada mais existe para ele na floresta imensa. Os pássaros, as flores, os regatos, o céu....nada disso para ele existe. Nada disso para ele é objetivo, nada disso constitui “objeto para sua percepção”. Como um místico unido ao objeto de seu êxtase, o carrapato já pode morrer, e morre.
O que vale para o carrapato vale igualmente para todos os seres, inclusive o homem. Neste, porém, o mundo próprio pode ser ampliado ao infinito pela linguagem, desde que não seja a linguagem utilitária dos homens-carrapatos.... É o afeto que determina a amplitude de um mundo próprio, não o intelecto ou meras posses. O tamanho do mundo próprio de um homem tem a amplitude de seus afetos : se é o infinito que o afeta, e do infinito não pode haver posse, tal será a amplitude de seu mundo próprio. O infinito não é um continente vazio e distante que se contempla em silêncio; o infinito é ele e tudo aquilo que nele vive, por mais ínfimo que seja. O mundo próprio do poeta é um deslimite nascido de sua transfiguração : “O poeta diz eu-te-amo a todas as coisas (Manoel de Barros).”
Há dois sentidos
para a palavra “nada”. O primeiro deles vem de “nihil.” Essa palavra é a origem
de niilismo. Além de “nihil” significar “nada”, nihil também significa “nulo”.
No Direito, por exemplo , usa-se a expressão latina “nihil” para designar atos
que são juridicamente nulos.
Nesse último sentido, niilismo
não é um culto ao “Nada” ou ao “Nirvana”, niilismo é um comportamento que é
nulo, sem autenticidade. Por exemplo, o inelegível vivia evocando a ideia de “Verdade”, porém
essa ideia de “Verdade” na boca dele é nula , pois anula a própria ideia
autêntica de verdade.
A “Verdade” dele
não é uma mentira, é uma “nulidade”: enquanto a mentira se explica no âmbito da
linguagem, a nulidade é mais grave, uma vez que ela expressa uma estreiteza
existencial.
Muitos
espertalhões evocam a palavra “Deus” como cabo eleitoral deles. Embora falem em
Deus para combater o “ateísm0 c0munist4”, esse Deus deles, porém, anula a
própria ideia do que se espera que seja Deus: esses espertalhões anulam a ideia
de Deus muito mais do que a negação feita pelos ateus.
O autêntico anarquismo
nega a necessidade de partidos, mas não nega a política; já o PSL e os partidos
do “centrão” são nulos de ideias políticas. Uma coisa é negar uma realidade,
outra bem diferente é tornar nula uma realidade pela inautenticidade com a qual
ela é usada.
Mas há outro
sentido para a palavra “nada”, originado do latim “nata” ( raiz de “natal”:
“lugar onde se nasce”). Esse sentido talvez explique por que Manoel afirma que
sua poesia vem de suas “natências” ou “nadifúndios”, enquanto riqueza de vida
para nos proteger das nulidades niilistas.
O saber que
apreende esses “nadifúndios” chama-se: ignorãça. Ignorãça não é ignorar o nome
das coisas, ignorãça é saber de coisas que ainda não têm nome : “As coisas que
ainda não têm nome são mais ditas pelas crianças”, diz o poeta. Uma caneta de
ouro nas mãos de um niilista, mesmo que ele tenha poder e dinheiro, escreve só
pobreza. Já o simples lápis do poeta retira do nada de suas natências a sua
riqueza.
O poeta põe
nascimento em seu lápis para que a gente, ao lê-lo, de vida se enriqueça:
“Na ponta do meu
lápis tem apenas nascimento.” (Manoel de Barros)
“Não há arte que
não seja uma liberação de uma força de vida. Não há arte da morte.” (Deleuze)
Os alunos da pesquisa sobre Manoel de Barros que coordeno ganharam um prêmio pela apresentação que fizeram na Semana de Iniciação Científica da universidade . Fiquei muito feliz por eles , a Maria Fernanda Duarte e o Henrique Borges. Eu e o professor Marcos Aurélio Marques estamos organizando para o dia 11 de novembro um evento em homenagem a Manoel que é um desdobramento da pesquisa. O evento e a pesquisa têm por título um dos versos de Manoel de que mais gosto: "Na ponta do meu lápis há apenas nascimento".
Tempos atrás, numa bela manhã de outubro, vi passar um senhor bem idoso,
porém firme e altivo. Vê-lo fez reviver
dentro de mim uma palavra que há muito
eu não dizia. Foi a “potência-alegria”
de que fala Espinosa o que senti ao saber
que tal palavra ainda em mim vivia , à espera de reencontrar aquele a quem ela designa e
nomeia.
Essa palavra não estava escrita no meu cérebro
onde se acumulam teorias, elaestava
guardada em meu coração ,lugar do Afeto,junto à lembrança dos seres que conheci e que me tornaram o que sou.
Foi então do coração que a palavra
veio subindo, já com pleno sentido, embora ainda sem se vestir com o som.
Quando ela chegou à minha boca, tornou-se voz e chamou: “Mestre!”.Aquele senhor era um queridoprofessor que tive há muito tempo.
Coincidentemente, o Dia dos Professores estava próximo...
Ele me reconheceu , sorriu e estendeu
a mão paramim, encontrandoa minha que já lhe estava estendidadesde a primeira aula dele que assisti .Não sei ao certo quanto tempo conversamos, o
durar do afeto não o mede relógios.
Quando nos despedimos, fiquei parado
vendo-o ir, e pensei: “Será que ele sabe o quanto foi importante em minha
vida?”
Antes de ele ir, olheiseu rosto e tive a impressão de que ele
também estava arecordar-se do mestre
que teve e que o inspirou a ser mestre, e por isso ele entendia minha gratidão.
E esse outro mestre do mestre, se vivo estiver, também deve estar se lembrando,
hoje,daquele que o fez mestre: “O
aprender vem antes do ensinar”, lembra-nos Deleuze.
O autêntico professor gosta de
ensinar porque, antes, amou aprender com aquele que lhe ensinoulições que nãoestão apenasem livros, mas também nas ações.
Creioque nos tornamos professores quando o mestre que nos fez mestre não
viveapenas fora, ele passa a viverdentro da gente, e com ele continuamos a
aprender , mesmoenquanto ensinamos.
Por isso, hoje também é dia de cada
professor se lembrar daquele do qual foi aluno no aprendizado do mundo e de si
mesmo. Pois essas lições são o conteúdo vivo de toda aula que, crítica e
criativamente, renova o sentido emancipador , singular e coletivo, da educação.
Assim,apenassob certa perspectiva aquele meu antigo mestre se afastava de mim,sob outra perspectiva ele nunca de mim saiudesde que , com suas aulas, em minha vida
entrou , passando a viver na companhia deoutros queridosmestres que
igualmente entraramem mim e me tornaram
o que sou : aquerida Professora Nadir (
minha primeira professora de filosofia e quem me libertou), oinesquecível Cláudio Ulpiano, o generoso Luiz
Alfredo Garcia-Roza , o grande Gerd Bornheim e o sábioJunito Brandão : “O melhor de mim sou
Eles.”(Manoel de Barros)
Um abraço às professoras e
professores porseu dia!
( imagem: o professor Deleuze na
companhia de alunas e alunos)
No poema “Achadouros”,
Manoel de Barros nos fala de uma sábia contadora de histórias que ele conheceu
quando criança. A sábia ensinava haver “achadouros” em Corumbá.
No sentido literal, os
“achadouros” eram buracos que os holandeses cavaram antes de fugirem do Brasil
séculos atrás.
Com o ouro surrupiado do
rico subsolo de nossa ancestral Pindorama, os holandeses fabricaram moedas nas
quais estamparam a coroa holandesa. Depois eles esconderam essas moedas de ouro
nos tais buracos abertos no fundo de quintais, para que não ficassem com elas
os colonizadores da coroa portuguesa, seus rivais.
Durante muito tempo em
Corumbá, movidos pelo desejo de encontrar tais tesouros, os homens escavaram
quintais para ver se ali achavam o ouro rapinado pelos colonizadores.
Mas o poeta compreendeu
que a sábia falava também de outros “achadouros”, enquanto espaços a descobrir que
guardavam diferentes tesouros.
Seguindo a lição da
sábia, o poeta aprendeu a descobrir “achadouros” onde estão guardadas
riquezasque não vêm da usurpação do
homem sobre o outro, riquezas que são, para a vida digna, verdadeiramente
preciosas: escavando a palavra, o poeta acha nela sentidos novos não
colonizados; escavando em si mesmo, o poeta acha horizontamentos libertários
que partilha com os outros.
Com sua arte que faz
pensar, sentir e desperta, o poeta “desabre” nossos habituais olhos que o leem para
que em nós achemos, quem sabe, olhares novos.
E toda essa riqueza que o poeta acha, e generosamente partilha
conosco, vem da potência transbordante de vida que, empoemando-o, guardou-se
dentro do poeta como tesouro, cujo valor não se mede em moeda, capital ou ouro.
“Na ponta do meu lápis tem apenas nascimento” é um verso de Manoel.
Esse verso pode ser interpretado de muitas maneiras . O lápis expressa o
veículo de expressão do poeta, o instrumento que une sua mente e corpo. Na
ponta do lápis do poeta nascem ideias que fazem nascer também ideias em quem o
lê. Esse ato de dar nascimento a realidades que potencializam a vida pode ser
um antídoto à necropolítica, e é por
isso que esse verso também é, em sua essência, político.
Em breve, colocarei a programação completa do evento.
Segundo a mitologia, Hades é a divindade que habita a região
trevosa muito abaixo da superfície da terra. Nesse lugar nenhuma luz
entra.
Certa vez, porém, Hades ouviu uma voz cheia de vida vindo da
superfície. Ele subiu e viu que era Perséfone cantando... Ela estava com sua
mãe , a deusa Ceres. De “ceres” vem “cereal”, pois Ceres é a divindade do
plantio e colheita dos cereais.
Ceres , por sua vez, é filha de Cibele, a
divindade da fertilidade. Cibele é o Feminino Ancestral ( os povos
originários da América a chamam de Pachamama).
E foi em sua neta Perséfone que a fertilidade de Cibele se tornou
uma força criativa semelhante àquela que vemos no artista, pois Perséfone é a
divindade cuja arte é fazer nascer flores: múltiplas e heterogêneas,
flores de todas as cores.
Perséfone mata outra fome diferente daquela que Ceres mata: Perséfone
mata a fome de arte, de poesia e de criatividade.
Hades se apaixonou pelas flores e quis levá-las para enfeitar sua noite
eterna. Foi uma imensa surpresa, ninguém imaginava que pudesse
nascer no taciturno Hades um desejo por cores.
Num ato condenável, Hades raptou então Perséfone para fazê-la morar lá
embaixo . Porém, naquele mundo carente de luz , de Perséfone nasciam rosas só
com espinhos , sem as pétalas, flores da dor que elas eram.
Enquanto isso, sentindo a falta de Perséfone, Ceres ficou deserta : o
grão não mais germinava nela. Havia agora fome de pão e de beleza, de pão e de
poesia, e ninguém sabia qual das duas fomes doía mais: a primeira esvaziava o
estômago, a segunda ao coração secava.
A pedido de Ceres, Zeus interveio e foi feito então um acordo. Durante
parte do ano Perséfone viveria lá embaixo com Hades : sua ausência entre nós
recebeu o nome de inverno.
Até que vem o ansiado tempo em que Perséfone sobe de volta e
enche de vida a terra : tudo recomeça , renovado.
Hoje, as sombras não reinam somente lá
embaixo, mentalidades sombrias piores nos
ameaçam aqui em cima . Apesar disso, nada detém Perséfone
e sua primavera, tempo em
que Perséfone chega para florir de vida a terra.
“O céu da teoria é cinza;
mas sempre verdejante é a árvore da vida.”
(Goethe)
“Eram os passarinhos que colocavam
primaveras nas palavras.”
(Manoel de Barros)
( imagem:“O abraço amoroso de Pachamama”/Frida Kahlo)
Muito se fala,
com razão, das flores. Girassóis, crisântemos, margaridas...Essas e outras
flores já foram homenageadas em poemas , músicas e pinturas.
Flores também
são empregadas como símbolos: o lírio é símbolo da pureza e Iluminação; a rosa
vermelha, das revoluções igualitárias.
Com a chegada da
primavera, essas flores são ainda mais lembradas...
Mas pouco se
fala das flores que o cacto também sabe produzir. Considero essa omissão uma
injustiça com esse artista da resistência. Na dele, sem chamar a atenção ou
fazer propaganda de si, o cacto é capaz de atos que expressam rara beleza e
simbolizam generosidade.
Assim age esse
perseverante e resistente poeta da natureza : o cacto é a planta que possui a
maior raiz. Em alguns cactos, a extensão de sua raiz chega a nove ou dez vezes
o tamanho do corpo do cacto que vemos à superfície do chão!
Quem mede o
cacto apenas pela sua parte visível, e pensa que a parte que vê é todo o ser do
cacto, por certo ignora o que o cacto é capaz de fazer. O cacto cria imensas
raízes para sondar o subsolo , não se deixando vencer pela aridez que o cerca.
As raízes do
cacto tateiam procurando veios d’água metros abaixo da paisagem seca. Ele
persevera procurando no coração da Mãe-Terra a água que o Céu lhe nega.
Quando encontra
a água, o cacto anuncia sua descoberta brotando flores: em pleno árido , ele
inaugura uma primavera. Então, ele sorve o líquido e se intumesce, de água
fresca ficando grávido. Basta um pequeno furo para a água jorrar matando a sede
dos necessitados.
Foram os cactos
do sertão nordestino que, no passado, não deixaram morrer de sede a rebeldia de
Lampião e seu cangaço ; e a flor que Maria Bonita punha no cabelo também
floresceu de um cacto : o mandacaru, símbolo da força do povo nordestino.
O cacto
mandacaru expressa a resistência da vida, uma resistência que também se faz com
poesia e beleza, apesar da aridez que a cerca. O mandacaru matou a sede de
Lampião e deixou a Maria ainda mais Bonita.
Como ensina o
grande poeta nordestino: “Quando não pode ser cristal, a poesia vale pelo que
tem de cacto.”(João Cabral de Melo Neto)
(imagem: os
cactos-poemas de João Cabral / o mandacaru e sua flor)