domingo, 26 de outubro de 2025

vida e mundo próprio



“Cada ser vivo existe dentro de seu mundo próprio” . Esse enunciado é do etólogo Jacob  von Uexküll. O mundo próprio de um ser vivo não se explica apenas por propriedades físicas ou geográficas. O mundo próprio de um passarinho, por exemplo, inclui o território que ele deseja constituir, e este território já existe no desejo que o deseja, antes de o passarinho o constituir de fato como porção de espaço e parte da floresta. O mundo próprio é dele tanto quanto ele é do mundo próprio. Sem um mundo próprio a habitar seu desejo , um passarinho definha, para de cantar e nem mesmo pode voar, a não ser para fugir dos passarinhos que já possuem um mundo próprio. Não basta ter o mundo próprio como forma em rascunho a viver dentro do desejo que o vislumbra, é preciso também coragem e afirmação para efetuar um mundo próprio , pois efetuar um mundo próprio é efetuar a si mesmo, compondo-se com o espaço, conquistando  para si um horizonte. Pois somente este, e não cercas (físicas ou simbólicas), deve ser o englobante de nosso chão.Somente a partir de um mundo próprio podemos nos horizontar. Do contrário, teremos apenas um discurso escapista, de fuga do mundo, niilista.
O mundo próprio não é um círculo ou bolha, pois essas imagens são portadoras de limites. Sabemos o que é um círculo porque o vemos de fora e o distinguimos de outras figuras geométricas, como o triângulo ou o quadrado.  O círculo possui limites além dos quais a geometria não acaba, vez que ela se expressa ainda na existência de outras figuras. Mas o mundo próprio de um ser vivo é tal que , para ele, não existe outra coisa.
O mundo próprio de um ser vivo é feito de limiares: ele é um horizonte que sempre recua, além do qual um ser vivo não pode ultrapassar , pois marca os limites de seu conhecimento. Não se trata de um idealismo  ou subjetivismo, dado que no mundo próprio  há um mundo : o mundo próprio é um mundo, ele é  o mundo dentro do qual encontramos um mundo subjetivo e objetivo, um dentro e um fora, um ser que percebe e um ser percebido. O mundo próprio vai em duas direções: para dentro e para fora, e é sempre no meio que ele se encontra mais vivo, como relação. Os extremos de um mundo próprio são indetermináveis, deslimitados, dado que coincidem, em um dos extremos , com o intangível mundo psíquico e , de outro, com um horizonte sempre aberto. O mundo próprio existe fora de um aparato psíquico, e o engloba. Ao mesmo tempo, o mundo próprio não existe sem um aparato psíquico  que o apreenda como a existência de um fora.
Vejamos o caso de um carrapato, um simples carrapato. Como todo ser vivo, ele vive em um mundo próprio. Seus aparatos sensórios são voltados para fora. Eles buscam signos. O aparato sensório do carrapato   torna determinados acontecimentos signos para ele. Esses acontecimentos  o afetam. É por intermédio desses afetos que o carrapato forma ideias do mundo que o cerca, para assim agir sobre ele. O mundo próprio é o horizonte do poder de agir de um ser vivo.
Conforme nos ensinava Cláudio Ulpiano em suas  belíssimas  aulas ( http://claudioulpiano.org.br/), o carrapato possui três afetos. Seu mundo gira em torno desses três afetos. Parecem poucos? Mas o mundo do avarento gira em torno de apenas um afeto: sua avareza; o mundo do pretensioso gravita ao redor de apenas um afeto: a pretensão.... Poucos afetos governam a vida dos homens. Pois bem, o carrapato possui três afetos: pela luz solar, pelo odor do suor de um mamífero e pelo calor do sangue . O carrapato é cego. Ou melhor, “cegueira” é uma noção que só tem sentido em um mundo próprio no qual os seres tenham visão. No mundo próprio do carrapato  a visão não tem sentido, não existe. Nenhum carrapato conhece o que é a visão. Logo, nenhum carrapato sente que lhe falta o que não existe para ele. A falta não faz parte de um mundo próprio.  Somente quando perdemos nosso mundo próprio, ou quando este se fragiliza, somente assim  é que a "falta" vem nos assombrar...
O afeto pela luz solar conduz o carrapato a buscar sempre subir. Ele escala o que puder escalar, sobretudo paredes e árvores. Ele escala seguindo a orientação da verticalidade. Ele sobe e espera. Ele espera que o objeto de seu segundo afeto se lhe apresente. Um carrapato é capaz de ficar anos à espera. Enquanto espera, ele entra em um estado que para nós se assemelharia à morte. Seu metabolismo se aproxima de zero. Tudo nele quase cessa de se mover. O único fio que o liga à vida é seu mundo próprio virtualmente envolvido em seus afetos, na profundeza da noite de sua vida psíquica.
É o odor do suor de um  animal que se aproxima que  ressuscita o carrapato daquela morte mimetizada. O odor do mamífero se anuncia como a boa nova advinda do horizonte de seu mundo próprio. O carrapato esperava sem esperanças, pois há um quê de dúvida em toda esperança , ao passo que no carrapato a espera era sem  hesitações ou dúvidas  acerca da vinda do esperado: essa vinda não era especulada , ela era virtualmente sentida na certeza instintiva de uma força que desconhece derrota antecipada. Sem ter olhos, o carrapato sabe da presença de um mamífero pelo odor de seu suor, sentido a dezenas de metros. Quando o mamífero passa, alheio ao desejo vivo que despertou, o carrapato se solta no ar, e cai sobre o objeto de sua paciente  espera. Sem possuir olhos, ele sabe as distâncias, as velocidades e o espaço que o separa do objeto de seu querer. Ao cair sobre a pele do mamífero, o carrapato se finca, se instala, tudo nele já sabe o que fazer.  Ele sente o fluxo de sangue quente  a correr abaixo da pele do animal. Ele então perfura, se enfurna e se rejubila com a parte líquida de outro ser. Após sorver o correspondente a três vezes o seu peso, o carrapato se solta, repleto, intumescido de vida. Nada mais existe para ele na floresta imensa.  Os pássaros, as flores, os regatos, o céu....nada disso para ele existe. Nada disso para ele é objetivo, nada disso constitui “objeto  para sua percepção”. Como um místico unido ao objeto de seu êxtase, o carrapato já pode morrer, e morre.
O que vale para o carrapato vale igualmente para todos os seres, inclusive o homem. Neste, porém, o mundo próprio pode ser ampliado ao infinito pela linguagem, desde que não seja a linguagem utilitária dos homens-carrapatos.... É o afeto que determina a amplitude de um mundo próprio, não o intelecto ou meras posses. O tamanho do mundo próprio de um homem tem  a amplitude de seus afetos : se é o infinito que o afeta, e do infinito não pode haver posse, tal será a amplitude de seu mundo próprio. O infinito não é um continente  vazio e distante que se contempla em silêncio; o infinito  é ele e tudo aquilo que nele vive, por mais ínfimo que seja. O mundo próprio do poeta é um deslimite nascido de sua transfiguração : “O poeta diz eu-te-amo a todas as coisas (Manoel de Barros).”







sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Manoel de Barros: os "nadifúndios" do poeta

 

Há dois sentidos para a palavra “nada”. O primeiro deles vem de “nihil.” Essa palavra é a origem de niilismo. Além de “nihil” significar “nada”, nihil também significa “nulo”. No Direito, por exemplo , usa-se a expressão latina “nihil” para designar atos que são juridicamente nulos.

Nesse último sentido, niilismo não é um culto ao “Nada” ou ao “Nirvana”, niilismo é um comportamento que é nulo, sem autenticidade. Por exemplo, o inelegível  vivia evocando a ideia de “Verdade”, porém essa ideia de “Verdade” na boca dele é nula , pois anula a própria ideia autêntica de verdade.

A “Verdade” dele não é uma mentira, é uma “nulidade”: enquanto a mentira se explica no âmbito da linguagem, a nulidade é mais grave, uma vez que ela expressa uma estreiteza existencial.

Muitos espertalhões evocam a palavra “Deus” como cabo eleitoral deles. Embora falem em Deus para combater o “ateísm0 c0munist4”, esse Deus deles, porém, anula a própria ideia do que se espera que seja Deus: esses espertalhões anulam a ideia de Deus muito mais do que a negação feita pelos ateus.

O autêntico anarquismo nega a necessidade de partidos, mas não nega a política; já o PSL e os partidos do “centrão” são nulos de ideias políticas. Uma coisa é negar uma realidade, outra bem diferente é tornar nula uma realidade pela inautenticidade com a qual ela é usada.

Mas há outro sentido para a palavra “nada”, originado do latim “nata” ( raiz de “natal”: “lugar onde se nasce”). Esse sentido talvez explique por que Manoel afirma que sua poesia vem de suas “natências” ou “nadifúndios”, enquanto riqueza de vida para nos proteger das  nulidades  niilistas.

O saber que apreende esses “nadifúndios” chama-se: ignorãça. Ignorãça não é ignorar o nome das coisas, ignorãça é saber de coisas que ainda não têm nome : “As coisas que ainda não têm nome são mais ditas pelas crianças”, diz o poeta. Uma caneta de ouro nas mãos de um niilista, mesmo que ele tenha poder e dinheiro, escreve só pobreza. Já o simples lápis do poeta retira do nada de suas natências a sua riqueza.

O poeta põe nascimento em seu lápis para que a gente, ao lê-lo, de vida se enriqueça:

“Na ponta do meu lápis tem apenas nascimento.” (Manoel de Barros)

“Não há arte que não seja uma liberação de uma força de vida. Não há arte da morte.” (Deleuze)





Os alunos da pesquisa sobre Manoel de Barros que coordeno ganharam um prêmio pela apresentação que fizeram na Semana de Iniciação Científica da universidade . Fiquei muito feliz por eles , a Maria Fernanda Duarte e o Henrique Borges. Eu e o professor Marcos Aurélio Marques estamos organizando para o dia 11 de novembro um evento em homenagem a Manoel que é um desdobramento da pesquisa. O evento e a pesquisa têm por título um dos versos de Manoel de que mais gosto: "Na ponta do meu lápis há apenas nascimento".






quarta-feira, 15 de outubro de 2025

Ao Dia das Professoras e Professores

 

Tempos atrás, numa bela manhã  de outubro, vi passar um senhor bem idoso, porém firme e altivo.  Vê-lo fez reviver dentro de mim uma palavra que há muito  eu não  dizia. Foi a “potência-alegria” de que fala Espinosa o que senti ao saber   que tal palavra  ainda em mim  vivia , à espera  de reencontrar aquele a quem ela designa e nomeia.

 Essa palavra não estava escrita no meu cérebro onde se acumulam teorias, ela  estava guardada em meu coração ,lugar do Afeto,  junto à lembrança dos seres que conheci e que me tornaram o que sou.

Foi então do coração que a palavra veio subindo, já com pleno sentido, embora ainda sem se vestir com o som. Quando ela chegou à minha boca, tornou-se voz e chamou: “Mestre!”.  Aquele senhor era um querido  professor que tive há muito tempo. Coincidentemente, o Dia dos Professores estava próximo...

Ele me reconheceu , sorriu e estendeu a mão para  mim, encontrando  a minha que já lhe estava estendida  desde a primeira aula dele que assisti .  Não sei ao certo quanto tempo conversamos, o durar do afeto não o mede relógios.

Quando nos despedimos, fiquei parado vendo-o ir, e pensei: “Será que ele sabe o quanto foi importante em minha vida?”

Antes de ele ir, olhei  seu rosto e tive a impressão de que ele também estava a   recordar-se do mestre que teve e que o inspirou a ser mestre, e por isso ele entendia minha gratidão. E esse outro mestre do mestre, se vivo estiver, também deve estar se lembrando, hoje,  daquele que o fez mestre: “O aprender vem antes do ensinar”, lembra-nos Deleuze.

O autêntico professor gosta de ensinar porque, antes, amou aprender com aquele que lhe ensinou  lições que não  estão apenas  em livros, mas também nas ações.

Creio  que nos tornamos professores quando o mestre que nos fez mestre não vive  apenas fora, ele passa a viver  dentro da gente, e com ele continuamos a aprender , mesmo  enquanto ensinamos.

Por isso, hoje também é dia de cada professor se lembrar daquele do qual foi aluno no aprendizado do mundo e de si mesmo. Pois essas lições são o conteúdo vivo de toda aula que, crítica e criativamente, renova o sentido emancipador , singular e coletivo, da educação.

Assim,  apenas  sob certa perspectiva aquele meu antigo mestre se afastava de mim,  sob outra perspectiva ele nunca de mim saiu  desde que , com suas aulas, em minha vida entrou , passando a viver na companhia de  outros queridos  mestres que igualmente entraram  em mim e me tornaram o que sou : a  querida Professora Nadir ( minha primeira professora de filosofia e quem me libertou), o  inesquecível Cláudio Ulpiano, o generoso Luiz Alfredo Garcia-Roza , o grande Gerd Bornheim e o sábio   Junito Brandão : “O melhor de mim sou Eles.”(Manoel de Barros)

Um abraço às professoras e professores por  seu dia!

 

( imagem: o professor Deleuze na companhia de alunas e alunos)





sábado, 11 de outubro de 2025

Evento / Manoel de Barros

 

No poema “Achadouros”, Manoel de Barros nos fala de uma sábia contadora de histórias que ele conheceu quando criança. A sábia ensinava haver “achadouros” em Corumbá.

No sentido literal, os “achadouros” eram buracos que os holandeses cavaram antes de fugirem do Brasil séculos atrás.

Com o ouro surrupiado do rico subsolo de nossa ancestral Pindorama, os holandeses fabricaram moedas nas quais estamparam a coroa holandesa. Depois eles esconderam essas moedas de ouro nos tais buracos abertos no fundo de quintais, para que não ficassem com elas os colonizadores da coroa portuguesa, seus rivais.

Durante muito tempo em Corumbá, movidos pelo desejo de encontrar tais tesouros, os homens escavaram quintais para ver se ali achavam o ouro rapinado pelos colonizadores.

Mas o poeta compreendeu que a sábia falava também de outros “achadouros”, enquanto espaços a descobrir que guardavam diferentes tesouros.

Seguindo a lição da sábia, o poeta aprendeu a descobrir “achadouros” onde estão guardadas riquezas    que não vêm da usurpação do homem sobre o outro, riquezas que são, para a vida digna, verdadeiramente preciosas: escavando a palavra, o poeta acha nela sentidos novos não colonizados; escavando em si mesmo, o poeta acha horizontamentos libertários que partilha com os outros.  

Com sua arte que faz pensar, sentir e desperta, o poeta “desabre” nossos habituais olhos que o leem para que em nós achemos, quem sabe, olhares novos.

E toda essa riqueza   que o poeta acha, e generosamente partilha conosco, vem da potência transbordante de vida que, empoemando-o, guardou-se dentro do poeta como tesouro, cujo valor não se mede em moeda, capital ou ouro.

 



“Na ponta do meu lápis tem apenas nascimento” é um verso de Manoel. Esse verso pode ser interpretado de muitas maneiras . O lápis expressa o veículo de expressão do poeta, o instrumento que une sua mente e corpo. Na ponta do lápis do poeta nascem ideias que fazem nascer também ideias em quem o lê. Esse ato de dar nascimento a realidades que potencializam a vida pode ser um  antídoto à necropolítica, e é por isso que esse verso também é, em sua essência, político. 


Em breve, colocarei a programação completa do evento.




quinta-feira, 2 de outubro de 2025

Perséfone/Pachamama

 

Segundo a mitologia, Hades é a divindade  que habita a região trevosa  muito abaixo da superfície da terra. Nesse lugar nenhuma luz entra.

Certa vez, porém, Hades ouviu uma voz cheia de vida vindo  da superfície. Ele subiu e viu que era Perséfone cantando... Ela estava com sua mãe , a deusa Ceres. De “ceres” vem “cereal”, pois Ceres é a divindade do plantio e colheita dos cereais.

 Ceres , por sua vez, é filha de  Cibele, a divindade  da fertilidade. Cibele é o Feminino Ancestral ( os povos originários da América a chamam de Pachamama).

 E foi em sua neta Perséfone que a fertilidade de Cibele se tornou uma força criativa semelhante àquela que vemos no artista, pois Perséfone é a divindade  cuja arte é fazer nascer flores: múltiplas e heterogêneas, flores de todas as cores.

Perséfone mata outra fome diferente daquela que Ceres mata: Perséfone mata a fome de arte, de poesia e de criatividade.

Hades se apaixonou pelas flores e quis levá-las para enfeitar sua noite eterna. Foi uma imensa surpresa,  ninguém imaginava que pudesse nascer no taciturno  Hades um desejo por cores.

Num ato condenável, Hades raptou então Perséfone para fazê-la morar lá embaixo . Porém, naquele mundo carente de luz , de Perséfone nasciam rosas só com espinhos , sem as pétalas, flores da dor que elas eram.

Enquanto isso, sentindo a falta de Perséfone, Ceres ficou deserta : o grão não mais germinava nela. Havia agora fome de pão e de beleza, de pão e de poesia, e ninguém sabia qual das duas fomes doía mais: a primeira esvaziava o estômago, a segunda ao coração secava. 

A pedido de Ceres, Zeus interveio e foi feito então um acordo. Durante parte do ano Perséfone viveria lá embaixo com Hades : sua ausência entre nós recebeu o nome de inverno.

Até que vem o ansiado tempo em que Perséfone sobe de volta  e enche de vida a terra :  tudo recomeça , renovado.

Hoje, as sombras não reinam  somente lá embaixo,  mentalidades sombrias  piores  nos ameaçam aqui em cima .  Apesar disso, nada detém  Perséfone e sua    primavera, tempo em que Perséfone chega para florir de vida  a terra.

 

 

 “O céu da teoria é cinza;

mas sempre verdejante é a árvore da vida.” 

(Goethe)

 

 “Eram os passarinhos que colocavam

primaveras nas palavras.” 

(Manoel de Barros)


 

( imagem:“O abraço amoroso de Pachamama”/Frida Kahlo)






sexta-feira, 26 de setembro de 2025

O cacto e sua primavera

 

Muito se fala, com razão, das flores. Girassóis, crisântemos, margaridas...Essas e outras flores já foram homenageadas em poemas , músicas e pinturas.

Flores também são empregadas como símbolos: o lírio é símbolo da pureza e Iluminação; a rosa vermelha, das revoluções igualitárias.

Com a chegada da primavera, essas flores são ainda mais lembradas...

Mas pouco se fala das flores que o cacto também sabe produzir. Considero essa omissão uma injustiça com esse artista da resistência. Na dele, sem chamar a atenção ou fazer propaganda de si, o cacto é capaz de atos que expressam rara beleza e simbolizam generosidade.

Assim age esse perseverante e resistente poeta da natureza : o cacto é a planta que possui a maior raiz. Em alguns cactos, a extensão de sua raiz chega a nove ou dez vezes o tamanho do corpo do cacto que vemos à superfície do chão!

Quem mede o cacto apenas pela sua parte visível, e pensa que a parte que vê é todo o ser do cacto, por certo ignora o que o cacto é capaz de fazer. O cacto cria imensas raízes para sondar o subsolo , não se deixando vencer pela aridez que o cerca.

As raízes do cacto tateiam procurando veios d’água metros abaixo da paisagem seca. Ele persevera procurando no coração da Mãe-Terra a água que o Céu lhe nega.

Quando encontra a água, o cacto anuncia sua descoberta brotando flores: em pleno árido , ele inaugura uma primavera. Então, ele sorve o líquido e se intumesce, de água fresca ficando grávido. Basta um pequeno furo para a água jorrar matando a sede dos necessitados.

Foram os cactos do sertão nordestino que, no passado, não deixaram morrer de sede a rebeldia de Lampião e seu cangaço ; e a flor que Maria Bonita punha no cabelo também floresceu de um cacto : o mandacaru, símbolo da força do povo nordestino.

O cacto mandacaru expressa a resistência da vida, uma resistência que também se faz com poesia e beleza, apesar da aridez que a cerca. O mandacaru matou a sede de Lampião e deixou a Maria ainda mais Bonita.

Como ensina o grande poeta nordestino: “Quando não pode ser cristal, a poesia vale pelo que tem de cacto.”(João Cabral de Melo Neto)


(imagem: os cactos-poemas de João Cabral / o mandacaru e sua flor)






 

sábado, 20 de setembro de 2025

@semanistia / @pecdabandidagemnão

 

Em suas obras políticas, Espinosa critica a ideia de liberdade como “independência”. Para ele, ao contrário, toda liberdade autêntica é sempre a construção e afirmação de algum tipo de relação da qual  dependemos  para sermos livres.

Pois nada é livre vivendo à parte, toda liberdade é uma forma de relação ou agenciamento. Ser livre não é não depender de nada, ser livre é depender, antes de tudo , de nós mesmos para sermos livres, uma vez que a primeira das relações fundamentais é a relação consigo mesmo.

Um povo livre  não é aquele que se coloca à margem do mundo e em guerra com todos. Um povo livre é aquele que mais depende de si mesmo para governar a si mesmo.

Um povo que sabe que depende de si mesmo para construir sua liberdade nunca imagina que sua liberdade dependerá do Mercado, da Religião , do Patrão, da Mídia, do Capital... e muito menos da Casa-grande.

Quem  governa um povo livre é ele mesmo, pois um povo livre é aquele que mais depende de si mesmo para construir sua história.

Um povo livre  não é aquele que imagina  que houve uma data histórica no passado onde ocorreu sua suposta “independência’. Um povo livre é aquele que a cada vez cria a compreensão, aqui e agora, de que depende de si a construção de sua liberdade, para assim afastar milicos aproveitadores que se imaginam “donos da Independência”.

O governo mais favorável à luta do povo não é aquele que se coloca “acima do povo”, como um “pai” ou “padrasto”.

Um governo autoritário teológico-político de pretensos  “ungidos” sempre teme um povo esclarecido e autodeterminado.

O governo mais favorável à liberdade do povo é aquele que,   vindo do próprio povo, age para que o  povo mesmo compreenda que é ele que governa ao escolher os governantes. E que depende antes de tudo dele, do próprio povo em sua heterogeneidade,  escolher quem o auxiliará a depender cada vez mais de si mesmo na construção histórica de seu destino.

Um povo que depende cada vez mais de si para ser e construir a si mesmo é um povo que se educa, que cria sua arte, sua memória e seu futuro.

Não existe “Independência do Brasil” como se fosse um fato consumado. O que existe é a necessidade de construção da nossa liberdade coletiva com a compreensão de que depende de nós mesmos construirmos a nossa soberania, e que isso requer decisão, perseverança e coragem.

E melhor ainda se pudermos fazer isso cantando juntos, com Gil, Chico e Caetano.







 



sábado, 13 de setembro de 2025

evento: Deleuze - 100 anos.

 

Bom dia, estou participando desse evento organizado pelos professores Mário Bruno ( UERJ) e Leonardo Machado ( UFRJ) .


Um texto que escrevi sobre Deleuze:

Em seu comentário ao livro “A besta humana”, de Zola,   Deleuze aborda alguns  comportamentos hediond0s , de ontem e de hoje, identificáveis à  “besta”.

A besta não é um animal determinado da zoologia. A besta é uma espécie de “fundo indeterminado” propagador de (auto)destruição e m0rte, uma espécie de “buraco negro” que suga e extingue toda forma de luz.

Os instintos  protegem os animais  desse “fundo indeterminado”. Nenhum animal é capaz de cometer ato hediondo ou b4rbárie inexplicável, pois todos os seus comportamentos são explicáveis pelos instintos.

 A ferocidade do leão, por exemplo, não é maldade ou crueldade, mas um comportamento explicável por sua natureza de leão. Conhecendo essa natureza, podemos agir para evitarmos que essa ferocidade nos vitime.

No homem, o instinto não tem força suficiente  para protegê-lo desse fundo indeterminado . Tampouco pode a inteligência, sozinha, vencer esse “buraco negro”, o ninho onde dorme a besta.

Pois a inteligência , com suas teorias e invenções tecnológicas, é voltada para o domínio do mundo externo, de tal modo que a besta sempre se esconde às suas costas, como uma sombra.

Pode acontecer de a besta se servir dos frutos da inteligência e usá-los como  doenti4s armas suas : “mísseis  inteligentes”, por exemplo,  são a inteligência a serviço da besta e sua necrop0lític4 de extermínio que não poupa nem crianças...

Quando a besta toma a mente e a boca do homem, nasce então a “besteira” como  antieducação e anticonhecimento.  A besteira é a besta empregando a palavra para destruir o próprio universo simbólico.

Para quem sabe ouvir, crianças nunca dizem besteiras; somente os adultos que são uma besta  podem dizer besteiras que tortur4m os ouvidos do espírito .

 A besta pode até mesmo se servir da religião, tal como no f4natismo teológico-político  armado de int0lerânci4.

Quando a besta toma o homem, este se torna um ser irreconhecível , virando um bicho imprevisível que nem  a natureza  explica mais...                                                                                                                                                                                            

Na mitologia, a “Besta” era representada pelo Minotauro: metade touro, metade homem.  A besta morava num lúgubre labirinto que prendia a todos e parecia não ter saída.

Mas a bestialidade do Minotauro, sua “sede de sangue”,  não vinha do touro, que é herbívoro. A bestialidade vinha da  parte humana  acéfala e doenti4 ,  que usava a seu serviço a força bruta do touro  .

Além da inteligência, a  vida criou o pensamento. O pensar redireciona e amplia a inteligência , tornando-a   também  (cons)ciência planetária propagadora de ideias e afetos emancipadores.

Quando aceso, o pensar é luz que resiste ao buraco negro, iluminando  por dentro e por fora,  brotando da mesma energia que os instintos da vida, potencializando-se  pelo cultivo social  da empatia que agencia , da cooperação que congrega  e da indignação que une os que lutam contra as tirani4s.




 






 


Voz de Deleuze lendo um texto de Nietzsche intitulado "O andarilho". Esse texto de Nietzsche me lembrou o seguinte verso de Manoel : "O andarilho abastece de pernas as distâncias".




sábado, 6 de setembro de 2025

sem anistia/Brasil soberano

 

Como nos ensina Espinosa, a  democracia não tem por centro altares, como num templo, e nem é feita de  hierarquias rígidas, à maneira da caserna.

Quando os representantes do  templo  e da caserna , extrapolando seus espaços , também ambicionam  poder político, corre perigo  a democracia ameaçada por intolerâncias, negacionismos e  fanatismos  armados com a força  bruta do militarismo a serviço do delírio teológico-político.

A força da democracia não é bélica, a força da democracia  é a das ideias plurais pensadas e realizadas em conjunto , perseverantemente. E também em conjunto, e perseverantemente, precisam ser defendidas.

 

 

“A virtude com a qual o homem livre evita os perigos

revela-se tão grande quanto a virtude com a qual ele os enfrenta”.

( Espinosa, Ética, Quarta Parte, proposição  69)


"Poesia pode ser que seja fazer outro mundo."

(Manoel de Barros)







sábado, 30 de agosto de 2025

Filosofia

 

Quando alguém cobra dos políticos lisura no trato com a coisa pública, este alguém está exigindo uma virtude ética: a honestidade. E Ética é uma disciplina da filosofia.

Quando alguém diz: “O que esse cara fala não tem lógica! ”, quem assim critica também está reconhecendo a importância da filosofia, pois Lógica é uma disciplina filosófica.

Quando alguém ,sentindo, expressa: “ Como é bela essa música !”, igualmente emprega um valor da filosofia , uma vez que o “belo” ( assim como o “cômico”, o “dramático”, o “sublime”, etc) é uma categoria da Estética, uma disciplina da filosofia.

Quando alguém fala : “Sou pragmático, odeio teorias”, este alguém também não escapa da filosofia , pois “Pragmatismo” e “Utilitarismo” são correntes da filosofia.

E mesmo quando alguém questiona : “para que estudar filosofia?”, este alguém também está a filosofar, dado que questiona sobre a Teoria do Conhecimento ( ou Epistemologia), uma disciplina da filosofia.

E aqueles que precisam escrever Monografias, Dissertações de Mestrado ou Teses de Doutorado, mesmo que cursando “faculdades técnicas” , terão que estudar Metodologia Científica, uma disciplina filosófica.

Enfim, é impossível alguém existir e não se colocar em algum momento questões como: “O que é o tempo?”, “O que é a liberdade?”, “O que é a vida?”, “Por que existo?...” Não apenas para formular tais perguntas, mas também para vislumbrar respostas para elas, quem assim indaga igualmente bate à porta da filosofia , pois essas são questões de uma disciplina da filosofia chamada “Metafísica”.

A filosofia não está apenas nos livros escritos pelos filósofos, ela se encontra ainda mais nas situações da vida que nos obrigam a pensar, já que é impossível viver de forma digna e autêntica sem se deparar com questões filosóficas.

As crianças são filósofas /questionadoras por natureza, a mesma natureza de que fala Espinosa. Infelizmente, poderes tolhedores que cercam as crianças as afastam, com o tempo, dessa natureza questionadora.

Os tir4nos de toda espécie sempre temem o pensar, e fazem o máximo que podem para impedir que as pessoas, sobretudo os jovens, façam essa descoberta do pensar , ou se já o descobriram, não o exerçam . Não por acaso, Platão dizia que o tir4no é o antifilósofo.

Nada mais antifilosófico do que as tais escolas "cívico-militares" que o governador de São Paulo, capacho de tir4nos, quer impor como "cicuta" aos jovens .

Antes de estar nos livros, a filosofia está potencialmente na vida, pois pensar é uma exigência da própria vida , e antídoto contra os inimigos da educação emancipadora.







terça-feira, 26 de agosto de 2025

Artes e o ensino da filosofia

 


 Estarei participando, como mediador, do VI Encontro Nacional do Mestrado Profissional em Filosofia.

Área temática: Artes e o Ensino da Filosofia / dia 27/08, tarde e noite.

Maiores informações em:


https://eventos.galoa.com.br/enprof-filo-2025/page/6355-home




quinta-feira, 21 de agosto de 2025

O que é ser de esquerda ( Deleuze)

 

Certa vez , perguntaram ao filósofo Gilles Deleuze por qual razão ele nunca foi filiado a um partido, e aproveitaram  também para  indagá-lo  acerca do que é ser de esquerda.

O filósofo deu mais ou menos a seguinte resposta: antes de ser um posicionamento político-partidário, ser de esquerda expressa o modo como nos inserimos na existência.

A pessoa de direita parte, antes de tudo, do seu ego. Ela  vive no interior de um círculo no qual estão seus interesses, suas propriedades ( já  possuídas ou apenas desejadas), suas ambições, suas pretensões, suas opiniões...Mas também ocupam o círculo estreito do ego seus medos, seus ressentimentos , seus fantasmas, suas feridas mal curadas...

O homem de direita imagina que esse círculo estreito é o centro do mundo, de tal modo que tudo o que existe fora desse círculo, no espaço e no tempo, é para ele só “narrativa”. Daí seu desprezo pela ciência, pela história, pela sociologia e pela filosofia, e seu medo paranoico dos outros povos e suas maneiras diferentes de viver, medo esse traduzido na expressão “globalismo comunista”.

Pode parecer paradoxal, mas apenas seres que vivem num círculo existencial estreito adaptam-se a existirem  no interior de um rebanho ou massa. Pois rebanho não é um conjunto heterogêneo de singularidades, rebanho são indivíduos aprisionados a si mesmos e que se agregam em celas contíguas.

Ser existencialmente de esquerda, ao contrário, é partir daquilo que Espinosa chama de o Absolutamente Infinito. A percepção de esquerda se abre ao que não pode ser cercado ou contido, para   que a mente e o coração ligados a tal percepção permaneçam sempre abertos.

É a partir do infinito aberto que o ser existencialmente de esquerda  compreende que desse infinito  fazem parte o cosmos, o nosso planeta, as outras nações, o nosso país, a nossa cidade, o nosso bairro , o outro e, enfim, a sua pessoa.

Ser de esquerda é não se colocar como primeiro ou último numa concorrência, mas como parte singular  de realidades mais amplas e horizontadas (como ensina também  Manoel de Barros).

Ser de esquerda não é apenas compreender teoricamente isso, mas sobretudo agir a partir dessa percepção. E dessa percepção podem nascer  não apenas ações empáticas, solidárias, generosas , dignas , justas , corajosas e revolucionárias, pois dessa percepção também podem nascer poemas, músicas , artes e educação não menos revolucionárias.

 

(imagem: os filósofos Deleuze & Guattari e o livro que escreveram juntos)



 

Este texto também foi publicado como artigo neste site de professores de filosofia:

https://www.aproffib.com.br/post/esquerda-e-direita

 







domingo, 10 de agosto de 2025

Manoel & Miró

Certa vez, perguntaram ao poeta Manoel de Barros qual foi  sua grande influência. Todos imaginavam que ele mencionaria um poeta, porém Manoel  disse  que aprendeu a ser poeta com um  pintor :  Miró.

Mas o poeta não aprendeu com o pintor fórmulas, cartilhas ou tudo aquilo que , aprendido de forma obrigatória, depois se torna matéria cobrada em prova. Na verdade, Manoel diz que aprendeu com Miró a fazer desaprendizagens. Foi assim:

Miró desenhava de maneira  precisa e técnica, porém essa técnica virou uma prisão que impedia o nascimento de um mundo novo  que Miró desejava  criar.

Esse mundo novo não cabia na  forma “acostumada” que se tornou  Miró e seu  pintar . Já crescia virtualmente no pintor uma alma nova, porém faltava um corpo para ela: ao invés de nascer, a alma nova corria o risco de abortar.

Miró desistiu da arte, mas a arte não desistiu de Miró. Quando tudo parecia perdido, certa vez  Miró começou a rascunhar com lápis de cor usando   a mão esquerda, mão que ele nunca usava . Era um rascunhar “brincativo” que alcançava realidades ainda não formadas, ignoradas pela mão direita.

A mão esquerda nada sabia de cânones ou fórmulas de sucesso, como sabia a mão direita. Nunca a mão esquerda ficou vaidosa por receber elogios; tampouco segurou, ostentando, prêmios e títulos, como se habituou a segurar a mão direita  .

Se a mão direita adquirisse a capacidade de falar e alguém lhe perguntasse qual a opinião dela sobre a mão esquerda,  ouviria: “ A mão esquerda é perigosa:  quer tirar o poder que conservo, ela é  subversiva!”.

As duas mãos tinham a mesma idade biológica, mas era a mão esquerda o corpo novo que a alma nova exigia . Ao começar a desenhar com a mão esquerda, cada desenho era o desenhar de novo nascendo , fazendo-se como novidade, experiência e descoberta.

O poder estabelecido escreve suas cartilhas com a mão direita ; porém a arte de se reinventar só a pode desenhar um instrumento não domado: a mão esquerda . A mão direita se liga a uma metade do cérebro apenas , já a mão esquerda se liga à outra metade do cérebro e ainda ao coração inteiro que, assim como ela, também está do lado esquerdo.






 

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Artigo sobre Manoel de Barros / Revista Alegrar

 

Deixarei aqui um link para uma revista na qual acabou de sair um artigo que escrevi sobre o poeta Manoel de Barros. Fiquei feliz, pois gosto  dessa revista, vale a pena conhecê-la: Revista Alegrar.

O nome e a linha editorial da revista são inspirados em um afeto fundamental da Ética de  Espinosa: a Alegria.

Em Espinosa, “alegria” não é a mesma coisa que o sentimento que o senso comum  chama por esse nome. A alegria espinosista é uma potencialização da nossa capacidade de pensar, agir e sentir, pois essas três atividades andam juntas.

A alegria é um afeto acompanhado do prazer nascido em alguma parte (ou partes) do nosso corpo. Ou seja, não apenas a alma sente alegria, o corpo também sente. Por exemplo, quando ouvimos uma música que potencializa o sentir de nossa mente, é porque nosso ouvido, ao ser tocado pelo som, sente prazer. O prazer é a alegria do corpo.

Quando é nosso corpo inteiro que sente prazer, um prazer não egoico-hedonista, a alegria se torna contentamento: não o contentamento em ter algo como  proprietário-dono, mas contentamento em ser  parte singular da Natureza.

A Natureza em Espinosa é uma polifonia infinita: é música para ouvir  com todo o corpo.  Aqueles que a ouvem, como diz o poeta, de contentamento-beatitude também dançam, sendo taxados de loucos pelos que não têm ouvidos para a escutar .

Quando é uma parte do nosso corpo que sente dor, em nossa mente haverá tristeza. E quando é o corpo todo que dói, a mente é dominada pela melancolia. A melancolia nos mostra que as dores do corpo nunca são apenas físicas...

Espinosa não nega ou minimiza a dor, a tristeza e a melancolia. Mas é tarefa da filosofia, uma tarefa ao mesmo tempo clínica, existencial e política, perseverar para produzir o máximo possível de prazer, alegria e contentamento, com a máxima potência que tivermos.

Não é o medo ou o ódio à   doença que nos protege dela, o que nos protege verdadeiramente da doença é agir tendo como causa o amor à saúde.

A luz não brilha como efeito da treva, mas por afirmação de si mesma: e quanto mais a luz brilha, mais ela se torna causa da diminuição da treva.  




 https://alegrar.com.br/


As tir4nias de toda espécie fomentam e se aproveitam da dor, da tristeza e da melancolia. Mas o prazer , a alegria e o contentamento autênticos não nascem da derrota das tir4nias , pois prazer, alegria e contentamento autênticos não são   um efeito . Ao contrário, o prazer, a alegria e o contentamento autênticos devem ser  causas que nos auxiliem nas lutas contra as tir4nias. 



 


quinta-feira, 31 de julho de 2025

Espinosa educador: Conceitos, Afetos & Práticas

 

Espinosa vem sendo estudado por pesquisadores das mais diversas áreas. Além disso, o interesse por sua obra não para de crescer, mesmo entre o público não formado em filosofia. Contudo, o contato direto com a obra de Espinosa dificulta a plena apreensão de seus conteúdos . Isso se deve à maneira geométrica mediante a qual o filósofo expõe suas ideias.

Nesse sentido, à primeira vista, parece que Espinosa não teve uma preocupação didática. Mas essa visão se desfaz quando obtemos uma compreensão mais pormenorizada da obra, tendo como pano de fundo seu pensamento  como um todo. Mesmo o uso da geometria tem razões didáticas. Embora sejam poucas, pouquíssimas, as referências de Espinosa à Educação, essas referências valem não pelo seu aspecto quantitativo, mas pela sua natureza constituinte de oferecer  um fundamento e objetivo geral à sua Ética.

É o objetivo principal desta Pesquisa mostrar que há em Espinosa, virtualmente ou em esboço,  a configuração de uma proposta de Educação que, tendo como base sua Ética,  traz elementos que , a despeito de terem sido formulados há trezentos anos, ainda trazem uma novidade que merece ser descoberta. 


Uma das contribuições mais singulares de Espinosa à filosofia , sobretudo no âmbito da Teoria do Conhecimento, é afirmar que o conhecimento não se faz apenas com ideias, o conhecimento também envolve afetos. Para Espinosa, não apenas as ideias são modos ou  maneiras da mente, os afetos igualmente  o são ( Ética, Parte 3, Definição geral dos afetos). Os afetos também envolvem o pensamento: eles são modos ou maneiras de pensar, um pensar que  sente , uma vez que envolve o corpo ( Ética , Parte 3 , esc. da proposição 11).

Por essa razão, há uma diferença entre as ideias e os afetos: enquanto as ideias dizem respeito à mente em seu aspecto intelectual-cognitivo, os afetos expressam a mente enquanto ânimo ( Ética, Parte 2, axioma 3). O ânimo é a mente enquanto unida indissociavelmente ao corpo, isto é, à vida. Às vezes, Espinosa se refere ao ânimo  (animus ) como o “coração”. Não no sentido romântico ou meramente subjetivo, e sim enquanto sede viva dos afetos. O coração também pensa, porém sentindo.

A coragem, segundo Espinosa, é a presença do ânimo levando-nos a agir. A covardia e o  medo ,ao contrário, são  uma forma de des-ânimo: enfraquecimento ou despotencialização do nosso ânimo, isto é, de nossa mente e de nosso corpo. A potencialização do ânimo não se faz apenas com as ideias, mas também com os afetos.  O ânimo fortalecido não teoriza apenas , ele também sente e age : dá pernas e braços às ideias . Um ânimo fortalecido é aquele que age pelo fortalecimento de outros ânimos, de outras mentes e corpos. Esse agir é o fundamento da ética de Espinosa, de tal modo que o conhecer nada é se não suscitar um agir. 

Em Espinosa, “fortaleza” ( fortitudo) não é apenas uma palavra, é uma virtude, uma das principais de sua filosofia ( Ética, Parte 3, prop. 59, escólio). A fortaleza é a expressão imediata da ação mais característica da mente que se torna ativa: a compreensão. A fortaleza é a virtude-potência da mente que compreende. Essa virtude-potência possui dois aspectos interligados: a firmeza e a generosidade. A firmeza é a fortaleza para consigo mesmo enquanto agente, ao passo que a generosidade é a fortaleza  para com o outro. Reconhece-se uma mente que compreende, uma mente que filosofa, pelo fato de que ela é fortaleza de ânimo. Na língua banto, fortitudo é “quilombo”.

O ânimo não se fortalece sozinho, não há um “cogito” que o possibilita, uma vez que o fortalecimento do ânimo  requer o que Espinosa chama de “encontros”, “bons encontros”. O termo “encontro” é a tradução da palavra latina occursus. De rica acepção, occursus também pode ser “circuito”. Esse sentido talvez explique ainda melhor o que é um encontro em Espinosa: o bom encontro cria um circuito onde energias passam, ideias fluem, afetos são partilhados, ações são construídas de forma agenciada; já o mau encontro é , literalmente, um curto-circuito que bloqueia, ameaça , violenta , despotencializa , adoece e tiraniza, corpo e mente.

Occursus também pode significar “boas-vindas”. Na Roma Antiga, occursus era um processo que preparava o introitus, a introdução à cidade, à civitas: do lado de fora das  portas abertas da cidade, o visitante recebia o occursus, o boas-vindas, para em seguida  ser introduzido no convívio da civitas. Um bom encontro constrói um circuito de boas-vindas  . Todo bom encontro  recebe quem nele entra como um espaço de boas-vindas, sobretudo daquilo que cada um tem de singular e diferente , de tal modo que um occursus é sempre um boas-vindas à autonomia[1]. O partejar socrático é um boas-vindas que o encontro filosófico possibilita àquele que , (auto)conhecendo-se, chega enfim a si mesmo como se fosse um ser novo.

O mau encontro, ao contrário, é quando a nossa maneira de ser é mal-vinda : portas fechadas à nossa entrada, seja a entrada ao conhecimento,  seja a entrada à cidadania, seja a entrada à nossa “cidadela interior”, como dizia Marco Aurélio, e sem a qual não há o despertar para a filosofia enquanto autoconhecimento.

Até aqui não empregamos o termo educação. Mas esta é nossa principal hipótese:  todos esses processos que cartografamos sucintamente  em Espinosa descrevem um processo do qual poderíamos extrair uma concepção de educação. Afinal,  um processo  educativo  é um  bom encontro  quando ele é prática de cuidado/boas-vindas ao que no educando  é potência ainda. Um bom encontro é sempre um espaço de agenciamentos, nunca um monólogo. Um espaço educativo se torna um  topos de boas-vindas quando, por intermédio dele, o educando também é introduzido ( introitus)   à sociedade, ao mundo, à vida, enfim, a ele mesmo por meio  da educação que o faz descobrir a si próprio. Também para aquele que educa o processo de ensino e aprendizagem deve ser vivido como um  “boas-vindas”, por mais que se tenha vivido inúmeras vezes aquele encontro na vida. Vista sob essa perspectiva, a educação deve fazer-se como um circuito que emancipa, como uma pólis sempre renovada.  Nesse sentido, a educação é mais do que  transmissão de conhecimento: é construção de  um circuito gerador de um modo de vida. Nesse circuito, não apenas as têm lugar ideias , também estão implicados afetos.



[1] Embora não cite Espinosa , Derrida fundamenta uma “ética da hospitalidade” na prática de “boas-vindas” em um sentido muito próximo ao que aludimos aqui. Apoiando-se nessa “ética da hospitalidade”, Fábio Araújo (2006)  propõe uma clínica da afetividade calcada na ideia de “acolhimento” e “amizade”. E segundo Walter Kohan e Maximiliano Durán (2020), a hospitalidade é um dos princípios de uma “escola filosófica popular”.


Este texto é parte de uma pesquisa sobre Espinosa que desenvolvo na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro/ UNIRIO. A partir de setembro, haverá atividades abertas  ao público externo. Para informações: eltonluizleitedesouza@unirio.br