Assim diz o filósofo Sêneca:
quando um amigo nos empresta um bem que
lhe pertence permitindo que o usemos, na hora de devolvê-lo geralmente
prestamos conta ao amigo de como usamos o bem que ele, generosamente, nos
emprestou.
Ficamos felizes quando mostramos ao amigo que o bem foi usado com cuidados,
como se nosso fosse . Enfim, se nutrimos verdadeira amizade pelo amigo, ficamos
gratos e devolvemos o bem com um sorriso
nos lábios, sem apegos egoicos .
Mas quem se apega injustamente ao bem que lhe foi emprestado por um amigo e, ingratamente , se apodera como
se fosse o dono , quem assim procede na verdade usurpa, faz mal uso do bem
recebido, e verá o amigo como inimigo
: viverá atormentado com a possibilidade
de que o dono verdadeiro do bem um dia
bata à porta e venha buscar o que de fato lhe pertence.
Sêneca argumenta que há um bem que
nos foi emprestado de maneira
semelhante, bem esse que é o mais valioso entre tudo aquilo que estimamos ser
um bem. Esse bem que recebemos é o tempo.
O tempo é o bem dos bens, expressão primeira
da vida. Não somos os donos ou proprietários desse bem, dele somente podemos
exercer usufruto = “usar o fruto”.
O bom uso do fruto não é devorá-lo
para matar apenas a fome imediata, e
pior ainda é deixar os frutos
apodrecerem no pé, ignorados...
Usa bem o fruto quem também o planta para que dele frutifique a árvore de amanhã,
plena de novos frutos a serem colhidos. Quem sabe plantar da vida os frutos, igualmente se frutifica
nos frutos que nascerão.
Quem nos deu o fruto-tempo foi a
Natureza, a mesma de que fala Espinosa. Um dia, teremos que devolver esse bem.
E provará que soube ter vivido , não importando
quantos anos tenha sido ou o que na sua vida tenha acontecido , aquele que
devolver esse bem como um amigo , grato por poder ter desfrutado da melhor maneira o bem recebido.
Sêneca chama de “Amor Fati” a esse
desfrutar do fruto-tempo que alimenta tudo o que vive. Ao contrário, ódio,
rancor , ressentimento, ignorância...são frutos apodrecidos que envenenam a
vida, a própria e a dos outros.
“Desfrutar” significa : “abrir o fruto para saborear”. Não por acaso, a palavra
sabedoria é prima da palavra “sabor”. Pois o saber é potência de criar o gosto que aprecie os frutos que a vida oferece
para colhermos e partilharmos.
Porém, como ensina Nietzsche, não basta o
fruto estar maduro para nós , é preciso que , primeiro, o nosso gosto também
esteja maduro para o fruto . É o (auto)conhecimento emancipador que potencializa e matura nosso gosto para o saber e seu sabor
libertário.
Desejo às amigas e amigos que a
árvore do tempo nos ofereça em 2023 frutos que
possamos desfrutar com o gosto partilhado da amizade, da educação, da democracia , da saúde, da justiça e da poesia.
“Aprender dá-me sobretudo prazer porque me torna apto a ensinar! E nada, por muito elevado e proveitoso que seja, alguma vez me deleitará se guardar apenas para mim o seu conhecimento. Se a sabedoria só me for concedida na condição de a guardar para mim, sem a compartilhar, então rejeitá-la-ei: nenhum bem há cuja posse não partilhada dê satisfação.” ( Sêneca , “Cartas a Lucílio” / trecho da Carta 6 ; o trecho que interpreto no texto da postagem é da Carta 1).