O Deus de Espinosa é um muito, nunca um pouco. Uma parte do muito é sempre muito, desde que se saiba ver o valor do pouco.Deus é muito porque ele precisa de pouco: pois ser muito é depender de pouco para se ser o que se é.Deus é muito porque ele depende apenas de si para ser o que é: cada parte dele é muito porque depende apenas de si para ser expressão dele.
Quando o muito é verdadeiramente muito,uma parte dele nunca é pouca,mesmo que seja a mais simples. O muito não é feito do mero somatório de poucos.O muito autêntico não pode ser medido por números ou quantidades. Mas se saber parte do muito requer muito, sobretudo requer o muito de coisas que não se pode comprar, ou herdar, ou furtar.É um muito de potência, é um muito de se deixar afetar. Quem vive como parte desse muito é sempre livre, pois inexiste prisão que possa contê-lo, seja a prisão feita de concreto ou aquela mais sutil,mas não menos tolhedora: a cela das opiniões e verdades prontas, sejam as verdades seculares ou aquelas mais midiáticas, das quais a cada dia o sistema lança um modelo novo.
O muito da Natureza não é um muito que possa ser diminuído ou aumentado, pois é um muito infinito ( e se o infinito pudesse ainda ser aumentado, não seria infinito, e se pudesse ser diminuído, deixaria de ser infinito). O muito de Deus é o muito da generosidade, da criatividade, da produtividade. O muito não se conquista por acúmulo de coisas poucas. O autêntico muito é ser muitos, é expressar-se de muitas maneiras, e estar inteiro, íntegro, em cada maneira, seja diante do Rei ou do simples mendigo.
Ser muito não é ser muito de uma coisa só, como o oceano que é muito apenas de água, ou o banco que tem muito apenas de moeda. Ser muito é ser composto de coisas heterogêneas, de coisas raras.O muito de Deus é que cada coisa, por menor que seja, é um muito para ele, e ele não a despreza, pois essa coisa também é ele.Deus é único,singular. Se ele fosse dois, não seria Deus. E este é seu muito: ser raro. Cada parte dele só se sabe muito se aprender a ver sua raridade,bem como a raridade das coisas que são tomadas como meramente comuns.
O muito não pode ser cercado, tampouco possui um centro. O muito não tem verso ou reverso, ele não é par ou ímpar, sim ou não. Ele está sempre no meio e é meio que leva a ele mesmo: ele é o caminho, o caminhar e aonde chegar.E quem por ele caminha nunca se perde, tampouco chega a um fim.
O oposto do muito de Deus não é o nada, pois o muito não tem oposto ou contrário.O nada pode ser um muito de coisa nenhuma, como o castelo imenso no qual morreu o milionário Cidadão Kane. No mito, o Rei Midas cobiçou um muito de ouro, esquecendo que o valor do ouro está em ele ser raro, como é raro um bom coração, um coração de ouro.
O muito de Deus não é alcançável por um acúmulo de saberes. Pois só há um saber, e este é raro e múltiplo.O muito é múltiplo, heterogêneo, plural , e ao mesmo tempo raro, singular. O muito não é o excesso, pois o excesso é o oposto do pouco, e o muito de Deus não tem oposto.
O muito de Deus não é um conteúdo que somente aprenderíamos aumentando a nossa inteligência ( tal como uma piscina que é aumentada para receber um volume imenso de água).O muito de Deus é um conteúdo que dá consistência, que intensifica, e não algo que vem preencher um vazio.Vazia pode se tornar a inteligência quando reduz tudo a objetos, quantidades, cálculos,mensurações...
O muito de Deus consiste na autêntica riqueza que se possui sem precisar acumular, que se usufrui sem ser pelo comprar , gastar e consumir. Segundo Espinosa, essa riqueza quem mais a teve foi Cristo.Depois a tem as crianças, sobretudo as que acabam de nascer ( não importando se tem 1 dia de vida, 30, 40 ou 70 anos, quando então tal riqueza se vive como um re-nascer, um re-generar).
E pode ganhar essa riqueza quem perde tudo.E mais pobre dela pode ser quem muitas coisas tem.
(São Francisco, desenho feito por Manoel de Barros)
"Considerei
os afetos humanos, tais como o amor, o ódio, a cólera, a inveja, a glória, a
misericórdia e outras comoções do ânimo não como vícios da natureza humana, mas
como propriedades que lhe pertencem, assim como o calor, o frio, as tempestades
e trovoadas pertencem à natureza da atmosfera e que, embora incômodos, são
contudo necessários, têm causas certas pelas quais nos esforçamos de entender
sua natureza." (Espinosa)
De repente, o céu fica escuro, tenso. Nuvens espessas mal
conseguem guardar o ódio que lhes está dentro. O céu imenso se torna pequeno
para elas.
As nuvens estão carregadas de fúria incontida: elas querem
briga, vingança, ferida; uma quer destruir a outra, que só por existir e ser
outra já é inimiga.
Quando se chocam, soltam faíscas, e retumbam ofensas que ensurdecem
a terra.
Ao fim, todas choram a mágoa líquida, e são os homens aqui
debaixo, crianças da terra, que sofrem a consequência da celeste briga.
Depois de muito chorarem, o ódio já não as incha. O vento
lhes passa por dentro, mais calmas as nuvens respiram.
E os pensamentos que nutriam se vão desfazendo, pois era
apenas isso aquele chumbo: pensamento de ódio recíproco.
Elas vão ficando transparentes, leves vão se abrindo, se
reconciliando com o infinito. E quando a alma de si mesmo se apossa, é como o azul
aberto que ela se mostra, perdoando tudo.
Entre
os tupinambás que aqui viviam , antes de os colonizadores nos invadirem, quando um guerreiro morria muita dor era sentida por todos. Mas era necessário ainda um último ritual a fazer. O corpo
do guerreiro era preparado como se ele fosse para uma guerra, e o colocavam deitado em uma canoa para ser lançada ao mar.
Os
tupinambás foram povos guerreiros que nunca aceitaram ser escravizados, nem no
corpo, tampouco na alma. Eram fieis à sua terra, bem como às suas divindades.
De todas as práticas trazidas pelo homem branco, havia uma a qual o homem
branco mais se dedicava com afinco , rogando até mesmo aos céus a ajuda no
sucesso desse intento. Trata-se do afã por acumular coisas, sobretudo coisas
materiais. Os tupinambás nunca entenderam esse credo materialista e interesseiro: era esse desejo rasteiro que mais os punha em guarda contra o homem branco, nele não confiando.Para a sociedade tupinambá, o valor de um
homem estava em dividir o que é seu. Eles só aceitavam como chefe aquele que maior capacidade
tinha em se desapegar. Os tupinambás não faziam guerra para ampliar posses ou
fazer escravos. Eles guerreavam quando sentiam sua liberdade em risco, e
preferiam a morte a viverem sem honra.
A
morte para eles não era o fim. Não havia exatamente fim ou morte. O que
chamamos de morte era a última prova, especialmente para os chefes e
guerreiros, isto é, para aqueles que viveram sendo reconhecidos pelos outros
como homens valentes, corajosos, generosos, amigos, sábios.Para eles, a vida tinha dois lados. Eles desejavam
viver do lado de lá exatamente como viviam aqui. E era o modo como viviam aqui que atestava se eles mereciam viver lá.
Então,
quando o guerreiro morria, pintavam seu corpo com as tintas extraídas do
jenipapo. Colocavam junto ao corpo suas armas , bem como a flauta feita do
fêmur oco do inimigo vencido, pois muitos guerreiros enfrentavam seus
inimigos futuros ajudados pelos inimigos passados, transformados agora na flauta que anunciava, sob a forma de música, o erro que cometeram ao enfrentarem tal guerreiro-músico.
Ao
fim então da tarde punham a canoa ao mar e a empurravam em direção ao horizonte. Os
tupinambás não acreditavam na separação entre mar e céu. O azul de ambos
confirmava suas crenças: lá no horizonte se encontrava uma fronteira .
Guardando essa fronteira estava o Grande Ancestral. Se o guerreiro na canoa
fora um convencido, um dissimulado, um enganador que a todos iludiu com esperta
lábia, disso saberia o Guardião, que não deixaria o dissimulado fazer a
travessia ao mar do céu. Mas se o guerreiro de fato o fora , e não apenas aparentara o ser, o Guardião o deixava entrar para no céu ser eterna estrela.
No
dia seguinte ao ritual, os tupinambás corriam à praia para ver se as ondas cuspiram uma estrela do mar. Se achassem uma, choravam envergonhados por
terem sido enganados por tal imitação de homem virtuoso. Mas se não achassem
essa estrela sem luz, na noite daquele dia faziam uma alegre festa, pois mais um
guerreiro valoroso estava brilhando como
estrela viva a protegê-los dos maus.
"Poesia pode ser que seja fazer outro mundo" é um verso do próprio Manoel. Mil sentidos podem ser extraídos daí...Arrisco um:quando Manoel de Barros afirma que “poesia pode ser que seja fazer outro mundo”, a ênfase está no “fazer”*, no produzir, e não no mundo enquanto produto ou coisa pronta, tangível, reconhecível, etiquetável, prestes a virar propriedade de um dono. Sempre haverá mundo para a poesia fazer,poesia é sempre prática de fazer outros mundos, mundos políticos, psíquicos, semióticos, desejantes, enfim, mundos por fazer, sempre múltiplos. É desse fazer que o poeta deseja ser o dono, não do mundo : "quem inventa é dono daquilo que inventa, quem descreve não é dono daquilo que descreve", diz o poeta.
(*"poesia" provém de um verbo grego que significa exatamente "fazer")
- uma
homenagem ao centenário do poeta Manoel de Barros -
PROGRAMAÇÃO
-Abertura:
dia 25 de outubro, auditório Paulo Freire - Unirio/Urca.
1ª
mesa, às 10h: “Manoel de Barros: uma
didática da invenção”.
Participantes:
Paulo Vasconcelos (escritor), Salgado Maranhão (poeta, Prêmio Jabuti 1999),
Samarone Marinho (poeta e geógrafo, autor do livro: Manoel ama lembrar, Editora 7letras), Luiz Henrique Barbosa (prof.
e pesquisador, autor do livro: Palavras
do chão: um olhar sobre a linguagem adâmica em Manoel de Barros).
2ª
mesa, às 15h: “Poesia é sabedoria que
não vem em tomos”.
Participantes: Mário Bruno (filósofo, prof. da
Uerj e da Uff), Alessandro Sales (filósofo, prof. da Unirio), Paulo Oneto
(filósofo e prof. da Ufrj), Elton Luiz Leite de Souza (filósofo, prof. da
Unirio, autor do livro: Manoel de Barros:
a poética do deslimite, Editora 7letras).
- Dia
26 de outubro
3º
mesa, às 10h: “É preciso transver o mundo”.
Participantes:
Ieda Tucherman (prof.ª da Escola de Comunicação/Ufrj), Antônio Jardim
(tricolor, compositor, filósofo, prof. da Uerj e Ufrj), José Mauro
(antropólogo, museólogo, prof. da Unirio).Mediador: Elton Luiz Leite de Souza.
Encerrando o evento, às 15h, exibição do filme
Língua de brincar, do cineasta Gabraz
Sanna e Lúcia Castello Branco. Após a exibição, um bate-papo com o cineasta.
A filosofia transformada em livros deixou de instigar os homens.
O que nela existe de insólito, de quase insuportável,
se escondeu na vida decente dos sistemas.
Merleau-Ponty
Dia dos professores é ocasião para nos lembrarmos dos mestres que tivemos,
sobretudo aqueles que nos marcaram de forma mais direta, vital, apaixonada.
Nesse sentido, talvez o professor mais decisivo em nossas vidas tenha sido o
primeiro. Não o primeiro que nos alfabetizou na gramática, mas aquele que nos
despertou para a atividade de pensar , para
as “agramáticas” ( diriam Manoel e Deleuze).No meu caso, aquele que me
despertou para a filosofia, que me
despertou para mim mesmo.
Eu
não tinha mais que 11 ou 12 anos. Vivíamos ainda sob a ditadura militar.O
colégio era excelente, bons professores, mas eu sentia que faltava algo.
Aprendíamos regras, normas, padrões,
sintaxes. Os professores que tínhamos
eram excelentes no ensino de tais coisas, que julgávamos ser as únicas coisas
que mereciam ser conhecidas. Eram coisas
“úteis” que nos ajudariam a sermos inteligentes, passar em concursos para o
banco do brasil ou nos tornarmos oficiais das forças armadas, assim diziam
nossos pais. Um mundo somente se revela limitado quando vem algo de fora dele.
Enquanto vivemos em seus limites, não os vemos como limites. Podemos até imaginar, para nos resignarmos , que tais limites são virtudes, ou então uma espécie de roteiro do tipo "as coisas são assim mesmo desde que Deus as fez, e nada pode ser diferente".
Um
dia apareceu uma nova professora de Língua e Literatura. Esta era uma matéria que muitos julgavam “menor”, desimportante, se
comparada com o português e suas regras. Língua e Literatura não se propunha a
ensinar regras. Seu objetivo era outro, mais difuso, indeterminado, aberto...O
objetivo da disciplina era nos fazer exercer a prática de interpretar. Esta
atividade nada tem a ver com decorar regras, tampouco repetir o que o professor
dizia. Interpretar não se faz sem autonomia . Decorar, reproduzir, todos
conhecíamos o que era, embora não soubéssemos bem qual o motivo de se decorar
ou reproduzir....Porém, não sabíamos muito bem o que era interpretar, mas sentíamos
que era algo que nos remetia para além dos livros e cartilhas.
Lembro
agora com nitidez o rosto da professora: ela não tinha mais que 30 anos. Ela era muito diferente dos
outros professores, no vestir, no olhar, no tratar. Ela não usava saia, usava
jeans! Não calçava sapatos, calçava tênis!
Contudo,infelizmente,
não havia muita empatia da turma com ela. Nós entendíamos, ainda que sem
refletir, que um professor “bom” era aquele que “passava” um conteúdo. Ele
devia ser respeitado, até mesmo temido, pois sendo temido a gente podia se
vingar dele pelas costas, zombando de seus defeitos físicos. Mas aquela
professora a gente não sabia muito bem que afeto nutrir por ela. Com ela a
gente era livre. E a gente não entendia muito bem o que era aquilo: ser livre .
Não
eram poucos os alunos que se aproveitavam da liberdade que ela dava para assim se
vingarem, na pessoa dela, do ódio que nutriam pelos outros professores mais
autoritários, diante dos quais , no entanto, praticavam obediência servil. Creio
que não estávamos preparados para aquela professora , nem ela soube nos
preparar para vencer nosso despreparo em sermos livres.
Ela
que me perdoe, pois não lembro o nome dela. Gostaria muito de lembrar, porém
não consigo. O que me lembro bem , o que me marcou para toda a vida, foi o
livro que ela adotou. Foi este livro que verdadeiramente me despertou. Ele me
despertou como nunca antes eu fora.
O
livro consistia quase que totalmente de “textos” a serem interpretados. Não
havia questões de múltipla escolha. As perguntas eram feitas para que nós
respondêssemos à mão. Soube anos depois que o nome disso é “dissertar”. E aqui
vem o principal: os textos a serem interpretados não eram em prosa, eles eram “poesia”.
A professora de português já nos havia feito ler, de forma obrigatória, os poetas
clássicos brasileiros. Confesso que li sem muito me afetar. Parecia-me algo
distante, que existia apenas em livros, como palavras de gente morta.
Não
eram assim os “poemas” do livro da professora nova. Eles eram muito diferentes.
Eram estranhos, é verdade; mas era uma estranheza que parecia vir não apenas
das palavras no papel, tal “estranheza” parecia morar também dentro de mim. Que
lugar era aquele para o qual os poemas me levavam? Esse lugar podia ser tudo,
menos um cemitério de gente morta.
Era
meados da década de 70 . Pouco tempo antes, aconteceram os Festivais da Canção.
O livro em questão apresentava como “poesia” a ser interpretada as letras das
músicas de tais festivais. Estes festivais foram o último respiro da
democracia, um respiro artístico, antes de a ditadura asfixiar tudo. Sem
dúvida, propor aquele livro foi um risco, uma ousadia, uma resistência.
Eu
nunca ouvira tais músicas, pois era muito pequeno quando os festivais
aconteceram, tampouco meus pais os acompanharam em casa, pois tais músicas não
faziam parte do universo musical deles. Enfim, antes de ouvir as músicas, li as
letras. E as li como poesia.
Foi
assim que ouvi falar pela primeira vez de Chico Buarque, Caetano Veloso, Geraldo
Vandré, Edu Lobo... A primeira vez que li “Janelas abertas nº 2”, de Caetano,
dentro de minha cabeça houve um “click”. Quando levantei os olhos do poema e
olhei para a sala, tudo estava diferente, a começar pela professora, pois agora
entendia o que ela queria, porém desentendendo
tudo o que antes eu imaginava que era estudo e teoria. E aquela sala, que eu
julgava tão grande, agora me parecia muito pequena para o tamanho das coisas
que os poemas descreviam. Mas não era um tamanho de importância, era um tamanho
de coisas incabíveis em tudo o que tem forma, limite, grade.
Quando
terminei de ler “Construção”, de Chico Buarque, eu já não era mais o mesmo. Não sabia o que aquelas
palavras diziam, mas como elas me diziam! Foi ali que eu nasci. Com 12 anos, parido não pelo conceito vazio e abstrato, mas pela pop'filosofia.
Ao tentar interpretar o que os poemas diziam,
era a mim mesmo que eu interpretava, disto sei agora. Daquelas músicas eu soube
antes as letras, e não imaginava que havia, para as letras, uma música. De mim
mesmo, desde então, tenho apenas a
música, cuja letra é sempre aquela que escreverei amanhã, inventando-a.
Minha
querida professora cujo nome é o nome de todos os que despertam e educam: não
há palavra que possa agradecer por você me ter dado um amanhã. Talvez seja por
isso que eu não consigo lembrar seu nome, pois memória é passado, e você ,
educação, é futuro, construção de futuro.
- uma
homenagem ao centenário do poeta Manoel de Barros -
PROGRAMAÇÃO
-Abertura:
dia 25 de outubro, auditório Paulo Freire - Unirio/Urca.
1ª
mesa, às 10h: “Manoel de Barros: uma
didática da invenção”.
Participantes:
Mário Chagas (poeta e museólogo, prof. da Unirio), Salgado Maranhão (poeta,
Prêmio Jabuti 1999), Samarone Marinho (poeta e geógrafo, autor do livro: Manoel ama lembrar, Editora 7letras),
Luiz Henrique Barbosa (prof. e pesquisador, autor do livro: Palavras do chão: um olhar sobre a linguagem
adâmica em Manoel de Barros).
2ª mesa, às 15h: “Poesia é sabedoria que não vem em tomos”.
Participantes: Mário Bruno (filósofo, prof. da
Uerj e da Uff), Alessandro Sales (filósofo, prof. da Unirio), Paulo Oneto (filósofo
e prof. da Ufrj), Elton Luiz Leite de Souza (filósofo, prof. da Unirio, autor
do livro: Manoel de Barros: a poética do
deslimite, Editora 7letras).
-
Dia 26 de outubro
3º
mesa, às 10h: “É preciso transver o mundo”.
Participantes:
Ieda Tucherman (prof.ª da Escola de Comunicação/Ufrj), Paulo Vasconcelos (escritor,
professor, pesquisador e jornalista), Antônio Jardim (tricolor, compositor,
filósofo, prof. da Uerj e Ufrj), José Mauro (antropólogo, museólogo, prof. da
Unirio).
Encerrando o evento, às 15h, exibição do filme
Língua de brincar, do cineasta Gabraz
Sanna e Lúcia Castello Branco. Após a exibição, um bate-papo com o cineasta.
Mediadora: Renata Duarte ( do Centro de Estudos Cláudio Ulpiano)
Para entender nós temos dois caminhos: o da sensibilidade
que é o entendimento do corpo; e o da inteligência que é
o entendimento do espírito.
Eu escrevo com o corpo.
Poesia não é para compreender, mas para
Incorporar.
Manoel de Barros
(trecho do livro)
Mais do que um poeta, Manoel de Barros é um pensador, um pensador brasileiro. Certamente, um dos mais originais. Ele faz com as palavras o que Gláuber Rocha fizera com as imagens, pondo-as em “Transe”. O Transe é o deslimite transposto ao mundo das imagens.
Empregamos aqui “brasileiro” no sentido mais genuíno e rico que esta palavra pode ter , pois ser brasileiro é ser , em essência, “mestiço”. Não nos referimos,claro, a uma mestiçagem baseada em cores de pele, mas na mistura singular de almas heterogêneas que fazem nascer em uma única alma a capacidade de falar e sentir por muitas.Só a mestiçagem de almas pode dar nascimento a um estilo ao mesmo tempo singular e plural , poético e filosófico , autóctone e estrangeiro .
A importância de uma coisa não se mede com fita métrica
nem com balanças nem barômetros etc.
A importância de uma coisa há que ser medida
pelo encantamento que a coisa produza em nós.
Manoel de Barros
Em grego, “Eurídice” não é apenas um nome próprio, o nome de uma pessoa. Na “Sabedoria dos Mistérios”, Eurídice é um dos nomes da alma. É um paradoxo a união dos termos “sabedoria” e “mistério”. A filosofia acadêmica separou esses termos, os fez inimigos. Sabedoria, propala o acadêmico, é o que desfaz todo mistério. A razão é loquaz e calculadora. É discursando teoricamente , ou matematizando quantitativamente, que a razão crê vencer o mistério.
“Mistério” e “místico” têm uma raiz comum: “mys”, que significa “fechar a boca”. Não se trata apenas de fazer silêncio. Os estoicos diziam que é mais fácil fechar a boca para que nela não entre alimento ou bebida em excesso do que fechá-la para impedir que por ela saia a palavra incauta. Espinosa ensinava, por sua vez, que muitos reis sabem controlar, mandando, em legiões; porém , não são poucos os reis que perdem seus reinos por não saberem mandar nas palavras que saem de suas bocas...
“Mys” significa fechar a boca que apenas tagarela, que tão somente emite opinião. O místico fecha essa boca reativa, para assim desejar abrir outra boca . Esta boca , que não é apenas a do corpo, usará também as palavras, mas não dirá apenas palavras no que dirá. Os místicos também fecham aquela boca prosaica para que a boca que canta possa cantar.
Orfeu é o iniciador desse canto místico, expressão cantada da Sabedoria advinda dos Mistérios. Pitágoras, um certo Platão, Plotino, Nicolau de Cusa, Giordano Bruno e, em muitos aspectos, Espinosa, todos esses poetas do absoluto encontram em Orfeu aquele que lhes abriu o caminho , ao vencer a morte, estando vivo.O Saber dos Mistérios não vem de livros: somente o aprende quem soube o que é a morte, sem ter morrido. E dela retorna, mais vivo. O simbolismo de Orfeu repousa na concepção "hermética" ( relativa a Hermes) acerca da morte e renascimento de Dioniso. Ao verDionisoser despedaçado pelos Ciclopes, que eram
divindades violentas, ruins, ciumentas, invejosas, maledicentes, vingativas... enfim, "más", Zeus lança um raio . Antes que os corpos de Dioniso e os Ciclopes fossem
totalmente incinerados, Hermes, o deus mensageiro, retira o coração de Dioniso
e o guarda, mantendo-o vivo. Das cinzas dos corpos de Dioniso e os Ciclopes misturadas nasceram então os homens. O homem é pó, cinza, naquilo que tem de igual aos Ciclopes. O homem vence essa condição quando faz de seu coração o mensageiro de suas mensagens, sejam em palavras ou ações.E é dessa parte que foi salva, e salva,que vem a poesia que Orfeu comunica, cantando.
Orfeu cantava porque queria dessa forma expressar seu afeto por Eurídice: esta era, ao mesmo tempo, aquela para quem o poeta cantava e o próprio canto. Quem ouvia Orfeu cantar achava em si mesmo sua própria Eurídice, pois ela está em tudo em que uma alma desperte, mesmo na planta, mesmo na fera. É para a alma que se canta, e é tendo uma que se pode cantar, despertando-a nos outros.
Quando Eurídice , morta, vai ao Hades, Orfeu para de cantar. Mas o poeta não se resigna: ele resolve ir até onde nunca foram antes os homens, tampouco os deuses olímpicos. Ele decide ir ao Hades, ao Inferno. O poeta tem a coragem de ir à morte buscar sua vida que aquela aprisionou.
Diferentemente do “rio de Heráclito”, que não tem começo ou fim, e nele se entra apenas pelo meio, pelo fluxo,pelas margens, o rio que leva ao Hades nasce aqui, no tempo, e morre às portas do Hades: ele tem apenas um sentido, sempre vai e nunca volta.
Quando chega ao Hades, o poeta vê que nesse lugar há apenas uma noite absoluta. Nesse lugar escuro sua Eurídice vivia como sombra. O escuro nada tem de mistério. Mistério quem tem é a palavra que canta . Não é a morte o mistério, o mistério é a vida.
Então, em meio àquele escuro, o poeta começa a cantar. Ninguém sabe ao certo o que Orfeu cantava. Talvez o poeta cantasse o que os autênticos poetas sempre cantam, de tal modo que é ouvindo um Cartola ou um Noel que podemos , através deles, ouvir o que cantava Orfeu.
É cantando, e não chorando ou lamentando, que o poeta reencontra Eurídice, sua alma. Se lágrimas ou dor existem no poeta, são lágrimas e dor choradas e sentidas também pelas palavras, de tal modo que mesmos tais afetos o poeta transforma em canto.
Hades, o deus daquele lugar, concede então ao poeta o direito de levar Eurídice de volta. Hades somente disse uma coisa, que não era bem uma ordem, era um sábio conselho: “você vai à frente, Eurídice irá imediatamente atrás de você. Não se vire para olhar para Eurídice enquanto não estiverem totalmente fora daqui.”
O poeta então começou seu retorno ao mundo dos vivos, com sua alma atrás de si. No entanto, inseguro e querendo conferir se Eurídice estava de fato ali, o poeta olha para trás....Ele soube então que Eurídice ali estava, porém a alma sucumbiu a esse saber que queria objetificá-la. Ela se objetifica, vira coisa palpável: uma estátua de sal que, no entanto, se desmorona.
Um salto para o Hades (Tampa de tumba, Itália meridional, 480 a. C.)
Tudo que obtemos mediante uma arte, e não por herança ou aquisição, tal realidade existe apenas por conta de uma graça, de uma espontaneidade, que depende mais de nós mesmos do que das coisas externas. Assim, tais realidades lúdico-poéticas, que é onde vive a alma, logo desaparecem e morrem se quisermos provar sua existência por objetificantes aferições.
Há um conto russo no qual o amante, ainda deitado na cama pela manhã, vê a amada sentada diante da penteadeira penteando-se e cantarolando baixinho uma canção . Ela apenas se olha, não se julga ou se mede , tampouco se compara a alguém que não esteja ali, que lhe fosse mais bela ou mais feliz. Ela está plenamente ali, naqueles gestos daquele corpo, não sendo apenas um corpo, porém. O amante fica paralisado contemplando, como se estivesse diante de uma obra de arte a qual nada mais faltasse - em cores, formas, vida.A amada se percebe intensamente olhada, vira-se e, assustada, pergunta: “O que foi!?”, parando de fazer o que inocentemente fazia.Parecia que o amante havia enlouquecido, olhando-a. De certo modo , não deixa de ser loucura, uma "loucura sã" , ver no ínfimo cotidiano o extraordinário sem parâmetro, que é sempre único, uno, e nunca se separa de si mesmo; e que só se oferece como revelação súbita, que dá o que pensar, embora não seja intelectual apenas. Ele então com o mais vivo desejo lhe pede, como se quisesse o bis de uma obra-prima:
-Repete o que você estava fazendo!...
-Mas o que eu estava fazendo!?
-Você estava se penteando, se olhando, cantarolando...
-Era assim que eu estava fazendo?, tenta a amada repetir o que acontecera.
-Não, não é assim que era..., diz o amante, saudoso do que foi sem que disso houvesse memória.
Por mais que a amada tentasse, ela não conseguia repetir , de forma programada, o que fizera de forma espontânea, na unidade viva de seu corpo e espírito. Ela vivera a vida sem estar separada da vida...É a consciência que separa a vida da vida, sendo que a vida que se separa perde o sentido da vida, pois este sentido não é consciente.
O amante percebeu então que experimentara o que os religiosos chamam de “graça”, uma espontaneidade que não se explica por outra coisa senão por si mesma, como uma dádiva idêntica à própria existência que vivemos, sem que haja uma separação ou hiato entre o que vivemos e o que sentimos e pensamos. A graça acontece não quando a gente quer, não podemos exigir que recebamos o que somente podemos receber por dádiva e graça. E aquilo que assim recebemos sempre se parece com nada, se o compararmos com tudo o que até então pensávamos ser a realidade.
Não é pelo querer que se alcança esse estado. O querer nos afasta dele. Quando vemos a presença da graça, quando somos sua presença, achamos o que dizer cantarolando, como o fizeram Orfeu, Noel, Cartola.
Manoel de Barros Sonhar é acordar-se para dentro. Mário Quintana
(Do albatroz, as asas;
do sabiá, o canto;
do pardal, o andar em bando)
O pássaro possuidor de maiores asas é o albatroz. A envergadura das asas do albatroz pode alcançar três metros, sendo inúmeras vezes maior do que o restante do corpo do pássaro.
O albatroz necessita de asas gigantes porque ele é o único ser que aceita o desafio do oceano. “Venha cobrir-me se tiver coragem!”, assim desafia o oceano a todo vivente. O oceano é o horizonte em todas as direções. As asas do albatroz são proporcionais ao tamanho do seu risco: horas voando, mesmo dias, sem poder pousar. Os pássaros de asas menores não ousam se aventurar muito distante da costa, seu território conhecido. A costa é objeto de tratados, mapas, cartilhas, ciência e opinião. Quando muito longe vão, os pássaros de asas menores assim o fazem indo de ilha em ilha, de conhecido a conhecido. Mas não o albatroz: este parte sem contar com ilha, porto ou qualquer outro lugar de parada. Ele vai aonde não alcança a vista. Ele conta apenas com suas asas, assim como Van Gogh contava apenas com suas tintas. O albatroz pode ficar dias voando, mais de uma semana. Ele consegue assim voar porque a vida lhe inventou uma estratégia: enquanto voa, metade de seu cérebro parece adormecer, metade fica desperta.Depois, a parte acordada fecha os olhos e vai sonhar, enquanto que a parte que sonhava , agora renovada, desperta para ver. E nesta nova visão renovada o mundo também se renova. O que pode nascer quando o sonho e a realidade, ao invés de se negarem, se somam, se agenciam? No albatroz-poeta, a parte desperta olha a realidade adiante, a realidade objetiva, ao passo que a parte que sonha vê outra realidade não menos viva.E talvez seja essa parte lúdica a que de fato conduz todos os que "voam fora da asa": "acordando para dentro", ousam transver o que lhes está fora, para que as asas físicas se metamorfoseiem em asas de um Daimon , o ser das necessárias travessias.
Sem o desafio do oceano, suas asas não teriam crescido. Mas não é por já ter grandes asas que o albatroz criou coragem e enfrentou o desconhecido. Ao contrário, foi o próprio desconhecido que, no albatroz, se fez asas e ímpeto: como um artista que não imita prévios modelos, o desconhecido criou tanto o albatroz quanto o oceano, e, na sua dessemelhança, os fez um para o outro. O albatroz é o desconhecido que atrai a si mesmo, sobre si mesmo plana, e vence o peso da gravidade, por todos conhecido. O voo do albatroz é a liberdade em exercício: desterritorialização absoluta que se faz sem cartilha.
Porém, no meio do oceano, por vezes o albatroz avista um navio. Ele recolhe então as asas e pousa sobre o convés deste solo imprevisto. No convés daquele cotidiano, a marujada está entregue aos afazeres utilitários: um lava o piso, outro ajeita a vela. Fazem o que fazem sem pensar porque o fazem : reclamam a má sorte, e xingam baixinho quem lhes dá ordens, enquanto sonham com o rum, a ilha do tesouro e pelo dia em que terão poder e acumularão ouro. Quando o albatroz começa a andar sobre o piso, a marujada cai na gargalhada. Zomba a marujada do andar desengonçado que o pássaro executa. Isso acontece devido às asas gigantes do pássaro, que só então revelam o peso que o pássaro, sem o vento, mal consegue carregar. Em meio aos homens, anda o albatroz sem jeito, inábil para agir no mundo rasteiro.O albatroz não cabe nele mesmo: no rasteiro do chão, sua liberdade parece, ali, inútil peso.
Mas logo o pássaro recupera sua força, pondo-se pronto ao esforço para vencer a si mesmo: subitamente, o pássaro de novo abre as asas, descobre no invisível uma escada, e sobe por ela como um nobre em direção ao altar onde será coroado. Sereno, mas firme, no céu ele voa: para além de si ele abre a vida que não cabe nele. No convés, a marujada cala a gargalhada e, em silêncio, eleva seus olhos muito além de proa e popa, leme e mastro: graças ao pássaro, a marujada por um instante se esquece de tudo, e voa no pensamento também.
Eleva-se o albatroz tão alto, que não o alcançam pedras,flechas ou mísseis.Tampouco o atinge a opinião dos homens : as mesmas asas que no limite do chão impedem-no de andar como todo mundo anda, no céu ilimitado elas são sua prova de nobreza, de coragem , de paixão. E quem ergue os olhos do chão avista em seu voo um libertário exemplo.