quarta-feira, 27 de maio de 2015

a fortaleza em espinosa



A palavra “fortaleza” nos faz imaginar algo cercado por muros espessos e elevados :no alto dos muros sentinelas montam guarda contra invasores e inimigos. Em tais fortalezas os homens guardam tesouros ou bens que querem proteger de usurpadores.
Ao falar das virtudes, Espinosa enfatiza uma delas em especial: a fortaleza.Mas a fortaleza em Espinosa não se constitui de muros ou cercas.Ao contrário, ela possibilita caminhos, agenciamentos.
As virtudes se distinguem das paixões. Estas nascem quando a alma padece.Este padecer pode gerar ódio ou amor, tristeza ou alegria.O padecer gera ódio e tristeza quando imaginamos que algo de exterior nos nega, ou mesmo algo de interior, quando o que nos nega somos nós mesmos.Quando imaginamos que algo nos nega, nasce uma tristeza em nossa alma.Há vários modos de imaginar que algo nos nega:podemos imaginar que ele não reconhece nossas qualidades, ou que as inveja, ou que as quer roubar,ou que as tenta diminuir, zombar, ridicularizar, difamar...Imaginamos que a única maneira que temos de nos proteger de tal destruição que nos ameaça é odiando aquilo que imaginamos nos odiar, é destruindo aquilo que imaginamos querer nos destruir.Ao ódio recebido ou imaginado, devolvemos com ódio efetivo. Pois quando devolvemos o ódio não o fazemos apenas imaginando:o   devolvemos falando mal do outro, pensando mal do outro ou mesmo lhe fazendo mal, direta ou indiretamente.Assim, mesmo que aquele que imaginamos  nos odiar não nos odeie de verdade, reagiremos como se assim o fosse. E o objeto de nosso ódio também poderá nos odiar, e agora de verdade, e não apenas em nossa imaginação.Ou seja, um ódio nascido da imaginação se torna um ódio de verdade, sem que se possa discernir um do outro. Pois quando o ódio nasce da imaginação ele já é uma verdade para aquele que assim imagina e sofre.
A imaginação se caracteriza por tornar presente o que é ausente.Toda imagem que ocupa presentemente a alma depende da imaginação.Quando nos lembramos de algo que aconteceu o fazemos tornando presente à nossa mente uma imagem, e esta imagem presente é mais imaginação do que memória. Mas também quando imaginamos que alguém nos ama ou odeia, assim o fazemos tornando presente uma imagem em nossa mente: a imagem do amor ou do ódio vinculado a determinada pessoa ou coisa.Quando um boxeador golpeia seu adversário ele não o faz movido por ódio, pois ele não vincula à imagem presente em sua mente o sentimento do ódio.
Mas o padecer também pode ser de alegria. Padecemos da alegria quando imaginamos que algo de externo nos ama.Imaginamos que ele nos quer bem, que fala bem de nós, que nos valoriza, que quer nossa amizade, que reconhece nossas qualidades, enfim.Ao imaginarmos que alguém ou algo nos ama, sentimos alegria.E dessa alegria sentida reagimos devolvendo amor.Mas se imaginarmos que aquele a quem damos amor rejeita esse amor que damos, podemos nos sentir diminuídos, negados, e assim novamente nasce o ódio, ódio este nascido do amor.Este ódio será tão grande quanto era o amor ofertado.
Assim , diz Espinosa, embora seja melhor amar do que odiar, o esperar ser amado em troca do amor que damos pode gerar o sentimento contrário do ódio.Tais são as armadilhas do padecer, do reagir.
As virtudes não são um padecer, elas são um agir. Elas não são paixões, elas são ações.Toda virtude é um agir.Padecemos quando aquilo que fazemos se explica mais por outra coisa do que por nós mesmos. Um exemplo: quando está bêbado um homem diz e faz coisas que se explicam mais pela bebida do que por ele mesmo. Passado o efeito de tal padecer, o homem poderá se arrepender do que disse ou fez naquele estado.O que vale para o estado de embriaguez vale para todos os padeceres de que sofremos.Muitos imaginam que somente conseguem fazer coisas sob o efeito da bebida, ou seja, imaginam que ser livre é fazer coisas que depois poderão se arrepender.O agir acontece quando aquilo que fazemos se explica mais por nós mesmos do que por outra coisa.Não que a ação nasça apenas de nós mesmos, de nossa vontade ou ego. Algo que fazemos se explica por nós quando nos tornamos capazes de fazer uma ideia adequada de nós mesmos, daquilo que desejamos.A fortaleza é uma virtude.As paixões têm contrários: o ódio é o contrário do amor, a tristeza é o contrário da alegria, e na vida podemos passar de um afeto contrário a outro, e isto em relação a um mesmo ser :aquele que antes amávamos, hoje odiamos; e aquele que antes odiávamos, hoje amamos. Esse vai e vem da alma de um afeto ao seu contrário chama-se exatamente flutuação ou volubilidade. Mas das virtudes ou ações não há contrário: a não ação não existe.Por exemplo, o mero não beber não cura o viciado do amor à bebida.O que é a alegria? A experiência de que nosso poder de agir aumenta. O que é a tristeza? A experiência de que nosso poder de agir diminui.Desse modo, por detrás de tudo está o nosso poder de agir. Nas paixões, ele flutua ao sabor dos encontros que fazemos, e assim nos torna inconstante.Conquistamos a virtude quando nos assenhoramos não das coisas, mas do nosso poder de agir.E o primeiro poder de agir que devemos nos apoderar para sermos livres é o poder de pensar: o pensar tem como potência ou virtude o compreender.Quanto mais a mente compreende, menos ela padece. E dessa compreensão nasce uma alegria que não é um padecer , mas um agir, alegria esta da qual somos causa: somos causa para nós e para os outros, na medida em que agiremos para auxiliar os outros para conquistarem sua alegria própria, e não invejar a nossa.
A fortaleza é uma virtude ético-clínica.Ela fortalece a alma . É ligando-se à saúde que a alma se fortalece, e não lutando contra a doença.A maior doença é o ódio, não tanto o que se imagina receber quanto aquele que de fato se dá.
A fortaleza possui duas metades: firmeza e generosidade.A firmeza é a fortaleza para conosco. Ser firme consigo não é odiar-se como se fôssemos uma criança irresponsável. Ser firme consigo não é ser para si um sargento ou general, como se fôssemos também um soldado.Ser firme consigo não é odiar-se.Quando busca o sol, a planta é firme consigo.O passarinho somente voa e vence o medo de largar o ninho quando é firme consigo.O viciado somente se liberta do vício quando é firme consigo. Somos nós mesmos que temos que ser firmes conosco, não um carrasco, não um pastor, não um general, e jamais seremos firmes conosco sendo para nós mesmos um pastor, um carrasco ou um general.Ser firme consigo nasce da liberdade para consigo.Ser firme não é ser rígido.Ser firme não é impor-se mandamentos ou cartilhas.Ser firme é vencer em si a flutuação que vai do amor ao ódio, e do ódio ao amor.
A generosidade é a fortaleza compreendida a partir da nossa relação com os outros.A firmeza é a fortaleza relacionada a nós mesmos, a generosidade é a fortaleza referida aos outros.Ser generoso não significa diminuir-se diante dos outros, tampouco aumentar os outros.
As palavras “generoso”, “gerar” e gênese têm uma origem comum. Todas têm relação com a palavra “nascer”.O generoso é aquele que faz nascer algo, o faz nascer por uma partilha, por fazer participar o outro de algo, e não apenas ele.O generoso faz nascer algo comum entre ele e o outro, mesmo que esse algo comum seja a capacidade de errar ou acertar.Ele também se esforça para fazer nascer no outro a capacidade da compreensão, para que assim ambos a partilhem.Assim, o generoso não é exatamente quem dá dinheiro, ou que dá algo na esperança de receber algo em troca. Partilhar não é exatamente emprestar ou dar. Pois ele não dá o que é exclusivamente dele, e é por isso que aquele que partilha também recebe, e é grato àquele que lhe permite ser generoso.Quando o juiz julga a partir da lei, e não segundo o ódio, ele partilha a justiça com o réu, e é generoso com este.Ele destrói no réu apenas aquilo que o diminui.A justiça não é posse exclusiva do juiz . A justiça não é posse, mas partilha.E toda partilha pressupõe um encontro, uma relação.A amizade não é posse de Pedro ou Paulo, mas aquilo que faz nascer Pedro e Paulo como amigos.A generosidade não é um perder ou um ganhar, mas um ser, um agir, um causar.

Segundo Espinosa, a fortaleza se torna mais forte quanto mais compreendemos , quanto mais a mente se torna virtuosa. Todavia, mesmo que não possamos tornar isso efetivo pela força exclusiva da mente, devemos usar ao menos a memória, para assim não nos esquecermos do que preconiza a fortaleza: firmeza para consigo, generosidade para com os outros, e não rigidez para com os outros e benevolência para consigo.


Obs.:
Espinosa é tão singular que tanto os racionalistas quanto os românticos reclamam sua herança.Sozinhos, entregues a eles mesmos, racionalistas e românticos são inimigos mortais: os racionalistas zombam dos românticos dizendo que eles sonham de olhos abertos,ao passo que os românticos acusam os racionalistas de engendrarem teorias insones.
 Os racionalistas usam Espinosa como arma para acuarem os românticos; os românticos se valem de Espinosa como escudo para se protegerem do ceticismo pragmático dos racionalistas. 
Os racionalistas  tomam Espinosa como uma espécie de “homem de gelo”, enquanto  que os românticos o exaltam como o precursor deles , sendo Espinosa, para eles,  a alma mais sensível que já existiu, cuja intuição do absoluto é sol que derrete toda frieza .
Sabe-se que Goethe ficou meses sem sair de casa, tomado que estava pela leitura da Ética : quando enfim saiu, o mundo já não era mais, para ele, o mesmo, pois já não era o mesmo o próprio Goethe:ele entrou em casa como homem da razão que até então era, a folhear com curiosidade acadêmico-erudita a obra do filósofo, e de lá, da casa e de si mesmo,  saiu ele poeta , com outra alma nova a morar em seus olhos.
 Muitos detectam uma inspiração espinosista ( ou  daquilo que Goethe pensa ser Espinosa...) nos célebres versos do poeta alemão: “Por mais longe que a razão nos leve, leva-nos mais longe o coração”.

segunda-feira, 25 de maio de 2015

as rebeldias do poeta



(trecho do livro)

- Rebeldias
Quando adolescente,  Manoel de Barros conhece Oswald de Andrade e faz suas primeiras leituras de Rimbaud. Mais do que simples leituras, foram  verdadeiras experimentações com o verbo o que se estabeleceu nesse contato.  Deriva daí a percepção , que se enraíza em Manoel de Barros,  das estreitas relações entre a arte e uma certa rebeldia da qual só o artista é capaz: a rebeldia contra o clichê. Eis como o  poeta procede: 

Pegar certas palavras já muito usadas, como as velhas  prostitutas, decaídas,sujas de sangue e esterco  pegar essas palavras e arrumá-las  num poema , de forma que adquiram nova virgindade. Salvá-las, assim, da morte por clichê.”( Sobreviver pela palavra, Gramática expositiva do chão, p. 308).
    
     “Salvar as palavras ordinárias” de sua prostituição utilitária, pois a submissão ao clichê faz da palavra uma prostituta. Por isso, crê o poeta,     
                  
  “temos de molecar o idioma para que não morra de clichê”.

E mais: “a grande poesia há de passar virgem por todos os seus estupradores.”    Essa rebeldia também consiste em “perder a inteligência das coisas para vê-las”, prática esta que Manoel de Barros confessa ter colhido em Rimbaud.
“Perder a inteligência”: despir os seres e acontecimentos  das vestes das palavras utilitárias e conceitos universais, para assim ver o que José Gil designa de “imagem-nua”.Esta consiste no que resta dos seres quando retiramos o aparato  conceitual  que a inteligência projeta sobre eles, assim apagando suas respectivas diferenças e singularidades. A “imagem-nua” : experimentação estética do real. 

Libertar a percepção do predomínio da inteligência significa imbuí-la  de uma potência exploratória e inventiva , e assim fazê-la um instrumento do pensamento questionador.  







sábado, 23 de maio de 2015

evento: Festival da Leitura de Florianóplis


CIC receberá programação do Festival da Leitura de Florianópolis

Programação no espaço administrado pela Fundação Catarinense de Cultura ocorrerá de 25 a 29 de maio


Deolhonailha: 12/05/2015 - Postado por: Redação


Foto: Reprodução

De 25 a 29 de maio, o Centro Integrado de Cultura (CIC), espaço De 25 a 29 de maio, (FCC), receberá parte da programação do Festival da Leitura de Florianópolis. O evento reúne diferentes iniciativas, como estações Bom de Ler, oficinas de leitura, saraus de histórias, e a série Bom de Ler Filosofia, Prosa e Poesia. Confira aqui a programação completa. As informações são da Assessoria de Imprensa da FCC. 
 Participam como convidados escritores, artistas e professores que contribuem com suas obras e pensamentos para a formação de uma nova geração de leitores no Brasil e tornaram-se, ao longo do tempo, amigos do Projeto Bom de Ler.
 Entre os convidados estão José Miguel Wisnik, Affonso Romano Sant'anna, José Castilho Marques Neto, Juana Nunes Pereira, Manuel da Costa Pinto, Claudia Pellegrini Drucker, Juliano Garcia Pessanha, Rennã Fedrigo, Zuenir Ventura (autor homenageado), Evandro Affonso Ferreira, Eliane Debus, Selvino Assmann, Rodolfo Joaquim da Luz, Salomão Ribas Júnior, Alice Sant'anna e Elton Luiz Leite de Souza.


curso: filosofia e literatura

Divulgação de curso ( ofereço uma disciplina nesse curso:Manoel de Barros, Deleuze e Espinosa)


quinta-feira, 21 de maio de 2015

manoel de barros: as raízes crianceiras

No poema “Invenção” ( 2010b, p. 151),  o poeta dialoga com um menino que nasceu do seu lápis: "inventei um menino levado da breca para me ser",  diz o poeta, "passarinhos botavam primaveras em suas palavras", "(...) ao fim me falou que ele não fora inventado por esse cara poeta/ porque fui eu que inventei ele" . O "eu” deste último verso não é um  eu lírico, ele  é um sujeito coletivo como lugar da invenção.Ele é o “eu” do menino que o poeta inventou para (re) inventá-lo, empoemá-lo ( 1989), enfim,   para terapeutá-lo ( 1996).Há um elo ,uma distância mínima, um hífen entre o poeta e o menino. Tal distância não é a do julgamento, não é a distância do afastamento; trata-se de uma distância  que possibilita o afeto, o contágio, o ser tocado: é a distância intensiva de quem , como o poeta, "escreve com o corpo" ( 1992, p. 212).
O menino disse ao poeta enquanto o poeta o inventava: sou eu que te invento poeta, enquanto você me inventa. Esse menino, diz o poeta, é “a criança que me escreve” ( 2010b, p.147). O menino que inventa o poeta se torna um intercessor: “A liberdade e a poesia a gente aprende com as crianças"( 2010d, p.469) , como exercício de ser criança (  1999).
A distância mínima que possibilita a  invenção não pode ser medida com régua: ela   é    a origem, a fonte, que está sempre no meio, como espaço de comunhão, de  “imitagem”. Processo semelhante experimentou Clarice: “Às vezes começa-se a brincar de pensar, e eis que inesperadamente o brinquedo é que começa a brincar conosco” (LISPECTOR, 1984, p11). Talvez nosso poeta experimentasse algo parecido quando afirmou: “Nossa linguagem não tem função explicativa, só brincativa” (2011). Entre o menino e o poeta há uma distância mínima onde ocorre um contágio, um afeto , uma transubstanciação (1992, p320), uma epifania, um devir-criança, enfim. Este intervalo não é um espaço vazio, ele é o lugar das “raízes crianceiras” ( 2010b, p 187).

Na natureza  há dois tipos de raízes: as arborescentes e as rizomáticas (DELEUZE E GUATTARI,1980). As primeiras possuem raízes fixas, ao passo que as segundas são constituídas por raízes que se movem, e que fazem da planta um autêntico andarilho, um Andaleço  de espaços lisos de itinerâncias. Filosofias ortodoxas sempre fizeram da árvore um modelo ideal de sistema: raízes fincadas em um solo fixo ( seja este solo a Razão ou Deus), um tronco rígido , a Física, ligando as raízes aos diversos galhos, que são as disciplinas  sustentadas dogmaticamente  pelo tronco.  Descartes, o racionalista, é o exemplo mais célebre de uma filosofia arborescente. Em Deleuze e Guattari, diferentemente, as formações rizomáticas inspiram uma pop’filosofia ( DELEUZE E GUATTARI,1980 ). O rizoma é constituído por  raízes formando uma multitudo, um espaço sem centro, uma anarquia coroada. O rizoma  não é uma semente, um fruto ou uma flor. Ele é uma raiz que brota de si como se fosse uma semente, ele  guarda em si sua continuidade à maneira de um fruto, ele desabrocha  para fora como só faz uma flor.Ele é sua própria semente, fruto e flor, sem deixar de ser raiz.Ele é plenamente raiz, e como tal o rizoma cresce. Enquanto no modelo arborescente as disciplinas são compartimentadas e segmentadas, o rizoma inspira uma produção de conhecimento trans e interdisciplinar.A essência do rizoma é se expandir:  expandir-se como raiz, sem para tal necessitar de semente, fruto ou flor.Os rizomas são plantas sem “existidura de limites” ,tal como a matéria da poesia de  Manoel de Barros. São plantas de conectividade, agenciamento, encontros, afetos. Como em Manoel de Barros, os rizomas são as raízes crianceiras , são as raízes da invenção.


Referências

- Obras de Manoel de Barros consultadas:

Compêndio para uso dos pássaros. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1961.
Gramática expositiva do chão. Rio de Janeiro: Ed. Tordos, 1969.
Arranjos para assobio. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.
O guardador de águas. São Paulo: Art Editora, 1989.
Gramática expositiva do chão — poesia quase toda. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992 ( segunda edição).
Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Record, 1996 .
Livro de pré-coisas. Rio de Janeiro: Record, 1997a.
O livro das ignorãças. Rio de Janeiro: Record, 1997b .
Retrato do artista quando coisa. Rio de Janeiro: Record, 1998.
Exercícios de ser criança. Rio de Janeiro: Salamandra, 1999.
Ensaios fotográficos. Rio de Janeiro: Record, 2000.
Memórias inventadas – a infância. São Paulo: Editora Planeta, 2003.
Concerto a céu aberto para solos de ave. Rio de Janeiro: Record, 2004.
Cantigas por um passarinho à toa. Rio de Janeiro: Record, 2005.
Memórias inventadas – a segunda infância. São Paulo: Editora Planeta, 2006.
Poemas rupestres. Rio de Janeiro: Record, 2007.
Encontros: Manoel de Barros . Rio de Janeiro, Azougue, 2010a (Org. Adalberto Müller).
Memórias inventadas - as infâncias de Manoel de Barros. São Paulo: Planeta, 2010b.
Menino do mato.São Paulo : Leya, 2010c.
Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010d.
Escritos em verbal de ave. São Paulo : Leya, 2011.

Outras referências:

ARNHEIM, Rudolf. Arte e percepção visual: uma psicologia da visão criadora. São Paulo: Pioneira, 2000, 13ª edição.

BARBOSA, Luiz Henrique. Palavras do chão: um olhar sobre a linguagem adâmica  em Manoel de Barros. Belo Horizonte: Fumec/Annablume, 2003.

CAVALCANTI,Ana Símbolo e alegoria – a gênese da concepção de linguagem em Nietzsche. São Paulo: Annablume, 2005

DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Kafka - pour une littérature mineure. Paris:
Minuit, 1975.

_____________. Mille plateaux. Paris: Minuit, 1980.

_____________. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34,1992.

LISPECTOR, Clarice.A Descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira , 1984.

PESSOA, Fernando. O eu profundo e os outros eus.Rio de Janeiro: Nova Fronteira,2006.

RANGEL, Pedro Paulo. Manoel de Barros por Pedro Paulo Rangel.Coleção Poesia Falada, vol. 08.CD.Rio de Janeiro: Luz da Cidade, 2001.

SOUZA, Elton Luiz Leite de. Manoel de Barros: a poética do deslimite. Rio de Janeiro: 7letras/FAPERJ, 2010.







terça-feira, 19 de maio de 2015

manoel de barros: da necessidade de aprender a desaprender




Não sou da informática,
sou da invencionática.

Manoel de Barros


(trecho do livro)

Uma influência especial em Manoel de Barros: Paul Klee. Manoel de Barros se apropria, à sua maneira, da Máquina de Chilrear de Klee, e a faz de ferramenta de sua oficina poética . Este pintor ensinou-lhe a necessidade de "aprender a desaprender" - que define muito bem o que aqui chamaremos de devir-criança, e que tão presente está na obra de Manoel de Barros: “palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria”. Por isso, completa o poeta,

Palavras
Gosto de brincar com elas.
Tenho preguiça de ser sério.

De sua parte, Paul Klee impôs a si mesmo uma espécie de “desaprendizagem”. Embora ele desenhasse de forma precisa e técnica, esta mesma precisão e técnica tornou-se uma fôrma e prisão para as imagens que ele queria exprimir. Uma fôrma/prisão que precisava ser quebrada para que , livres, as imagens pudessem fluir. Então, ele passa a desenhar com a mão esquerda. O artista descobriu-se novamente criança nesta mão: cada desenho era o desenhar de novo nascendo ─ fazendo-se como novidade, experiência e descoberta. Ao desaprender as formas e códigos da mão direita, Paul Klee redescobriu a pintura e a ele mesmo: reencontrou a alegria da criança cujo brincar e inventar é a coisa mais séria e verdadeira. Assim como a arte de Paul Klee,

A poesia tem a função de pregar a prática 
da infância entre os homens.



Paul Klee, Travessuras










sexta-feira, 8 de maio de 2015

o pote (manoel de barros)




A desgrandeza é de Deus.

Manoel de Barros


No poema Aventura o personagem  é um pote que Manoel de Barros  encontra abandonado encostado à natureza. Jogado ali de   barriga vazia para cima, o pote continha apenas , naquele estado de abandono, a presença da ausência do que outrora  o fazia repleto, cheio, desejável;e que o tornava  parte da mesa matinal de quem se alimentara do conteúdo que o pote entesourava. Findo este conteúdo , ficou vazio o pote: sem poder guardar a si mesmo, sem ter outra coisa a ofertar senão o vazio , o pote fora rejeitado, esquecido, abandonado pelos homens e suas utilidades, de tal maneira que apenas a natureza o quis. O pote já não  servia para nada, a não ser para metamorfoses, pois é isto que a natureza produz em tudo aquilo que, ao encostar nela, sofre um contágio, uma comunhão: "depois desse desmanche em natureza, as latas podem até namorar com as borboletas", diz o poeta. 

Houve um intervalo de tempo entre o primeiro encontro do poeta com o pote  e um outro encontro que veio a seguir. Neste intervalo , um passarinho passou voando atoamente  sobre o pote e cuspiu uma semente em seu  ventre vazio. Ali já havia areia e cisco trazidos pelo vento. Houve então um rascunho de coisa nova, um  encantamento , um poema: no ventre do pote milagrou  uma vida, nasceu um pé de rosas que ali desabrochou. "As chuvas e os ventos deram à gravidez do pote forças de parir".E onde antes crescia o vazio, agora crescia o amor: "se a gente não der o amor ele apodrece dentro de nós". E repleto ficou o pote da beleza que se oferta  sem nada pedir em troca.











quinta-feira, 7 de maio de 2015

pop'filosofia

(trecho do livro)


                                          INTRODUÇÃO À FILOSOFIA

                                                     

  
                                                          Serás menos escravo do amanhã,
                                                                              se  te tornares dono do presente.
                                                                         
                                                                                Sêneca

                                  
  
Dar uma definição rápida do que significa a filosofia não é tarefa fácil. Oriunda do grego, a palavra “filosofia”  nasceu da reunião de duas outras palavras: “philo”  e “sophia”. Em português, “philo” significa tanto “amor” como “amizade”. Isso quer dizer que a filosofia não é apenas algo intelectual ou racional, pois ela se nutre também de uma dimensão afetiva, expressa exatamente pelo termo “philo”.
“Sophia”, por sua vez, significa “sabedoria”. Assim, uma definição simples e geral da filosofia seria: “amor ou amizade pela sabedoria”. Visto dessa maneira,o filósofo não é apenas amigo da sabedoria, ele não é apenas um intelectual, ele também é um enamorado, uma vez que ele ama o que o faz ser o que ele é.
“Sophia” não é só teoria, fórmulas, razões.Ela também é Vida, Arte, Poesia.São a essas coisas que o filósofo dedica amor, são a essas coisas que ele se declara:ele  não se declara apenas falando, ele se declara também agindo, fazendo,criando; e faz disso seu modo de vida.
Sophia também pode ser um nome próprio. "Sophia",ou "Sofia", é o belo nome que muitos pais escolhem para chamarem a quem trazem à vida. Todavia,“Teoria” é tão abstrato que alguém vivo não se deixa chamar assim, tampouco  pode ser o nome de alguém “razão” ou “ciência”. Não dá para imaginar alguém se chamando “razão”!(embora muitos imaginam encarná-la e serem donos exclusivos dela...).
Assim, tal como uma pessoa que existe, a sabedoria só atende se for chamada pelo seu nome.Se alguém a chamar apenas de "razão" ou "ciência" ela não atenderá, ela não virará seu rosto para quem assim a chamar,mesmo que grite, mesmo que,com poder,ordene. Mas assim como uma pessoa é mais do que seu nome, a sabedoria é mais do que sabedoria, ela também é generosidade,coragem, modéstia,invenção.São nessas coisas que se pode  reconhecer também  a sabedoria.
Mas que sabedoria é esta? Em primeiro lugar, é preciso não confundir filosofia com ciência. A filosofia não é uma ciência, embora todas as ciências tenham saído dela. A Física, a Biologia, a Matemática, a História, a Medicina, a Economia...todas essas disciplinas nasceram da filosofia. Mas Física, Biologia, Matemática, etc, não são sabedorias, e sim formas de conhecimento.
A principal diferença entre a sabedoria da filosofia e o conhecimento da ciência  repousa no fato de que todo conhecimento científico  pressupõe um objeto. Por exemplo, nosso corpo pode ser objeto de conhecimento da Física, da Biologia, da Química, da Medicina, etc. Cada ciência faz um “recorte” sobre nosso corpo, para assim torná-lo objeto de conhecimento.  Ao fazer isso, a ciência perde de vista o todo, já que  nosso corpo não é apenas uma realidade física, biológica ou química, mas a reunião disso tudo e mais outras coisas. Ao realizarmos esse tipo de afirmação, buscando assim o todo ou a “essência”, entramos sem dúvida na filosofia...Ou melhor,nos damos conta de que nunca podemos sair dela.Pois enquanto a ciência disseca a realidade em partes separadas e estanques, criando assim um conhecimento especializado, a filosofia une e liga cada parte ao todo.Este todo não é um todo fechado à maneira de um círculo. Se o fosse, não seria o todo, mas apenas um conjunto, um  conjunto de coisas. E um conjunto de coisas também pode ser um objeto de estudo da ciência.
Por isso, o que a filosofia evoca e pensa nunca é um todo fechado.  Enfim, enquanto a ciência cria especializações, a filosofia procura por sua vez promover integrações. Integrar não é meramente somar ou adicionar. Integrar é fazer viver cada parte no todo que pode tornar cada parte   mais viva,uma vez que a faz viver ligada,unida,sem perder sua singularidade e diferença.
Durante o século XIX,  no auge do positivismo, muitas dessas ciências citadas não apenas desconsideravam a filosofia, como também afirmavam que ela não possuía nenhuma serventia para a humanidade. Muitas dessas ciências quiseram substituir a filosofia. Foi a época da ideologia cientificista (que Machado de Assis, no livro O Alienista, ironizara tão bem). Imperou nesse período o chamado “reducionismo”[1]. Ou seja, cada ciência achava que o objeto por ela estudado não era uma parte da realidade, mas a realidade inteira. Assim, os químicos achavam que tudo podia ser explicado quimicamente (inclusive os sentimentos humanos). Os biólogos, por sua vez, achavam que todo comportamento humano, inclusive aqueles considerados os mais nobres (como os comportamentos morais e éticos) , nada mais eram do que o efeito de condicionantes biológicos. No direito, por sua vez, esse reducionismo marcou o surgimento do positivismo na França, quando a lei escrita, posta pelo Estado, passou a ser considerada a única fonte de direito, tornando-se depois, o positivismo, uma ideologia. Radicalizando essa visão, Napoleão retirou o ensino de filosofia nas faculdades de direito da França.
Todavia,mais do que fazer de uma parte a verdade do todo,o que tal procedimento positivista fazia era tomar uma parte como um todo à parte.E o mais absurdo nos reservava o século XX, quando uma parte da filosofia,a Lógica, passou a pretender ser a filosofia inteira: tudo aquilo que não era lógico foi considerado palavra vazia sem sentido. Mas talvez não exista nada mais sem sentido do que a loucura, a loucura racional, de uma lógica que queira, enquanto parte, ser o todo... “Uma razão insone engendra monstros”, ensina-nos Shakespeare .
Assim, o retorno da filosofia como um tipo de saber necessário ao médico, ao biólogo, ao economista,ao museólogo, ao profissional do direito, etc, pode ser explicado  a partir da necessidade de esses profissionais integrarem suas atividades em uma perspectiva mais ampla, integrando-as à sociedade, e levando em conta não apenas o conhecimento técnico e especializado, mas também os valores éticos. Enfim, uma visão mais ampla da medicina enriquece a própria medicina e o médico que a exerce; assim como uma visão que integre o direito em uma perspectiva mais ampla do que a mera tecnalidade jurídica, enriquece igualmente o próprio direito e aqueles que se dedicam ao seu estudo e exercício profissional.
Mas se a sabedoria da Filosofia não possui objeto, no sentido em que o conhecimento da ciência o possui, então o que exatamente a Filosofia estuda?
A filosofia enquanto sabedoria espelha intimamente as principais atividades da alma humana.  Esta possui quatro atividades principais: pensarconheceragir e sentir. O conhecer é atividade realizada pela razão ou inteligência ( em seu sentido mais amplo); o agir, por sua vez, é uma atividade exercida pela vontade; enquanto o sentir é uma atividade realizada pela  parte de nossa alma designada como desejo ( ou sensibilidade). Razão, vontade e desejo são faculdades da alma humana. O pensar é uma atividade ou potência exercida pelo pensamento ( em grego,”nous”).Assim, pensar não é a mesma coisa que conhecer. Por exemplo, conhecer o direito é uma atividade que diz respeito à Ciência Jurídica. Mas pensar o direito é uma atividade exercida no âmbito da Filosofia Jurídica. Conhecer a vida é atividade da Biologia,ao passo que pensá-la cabe à Filosofia da Vida.Por isso, o pensar não é atividade de uma faculdade específica,uma vez que ele é uma atividade, um processo, que concerne à alma como um todo.
A parte da filosofia que trata do conhecer chama-se Epistemologia ( ou Teoria do Conhecimento).[2] A epistemologia é a parte da filosofia que interessa principalmente às ciências na medida em que estas procuram refletir sobre os seus métodos e procedimentos. O “objeto” da epistemologia é o próprio conhecer (enquanto atividade das ciências), e não o objeto que cada ciência  isolada estuda. Assim, embora a filosofia também exerça um tipo de conhecimento, este se difere daquele exercido pela ciência.  Enquanto o conhecimento, na ciência, aplica-se a um objeto, o conhecimento que a filosofia realiza se aplica sobre o próprio conhecimento da ciência, estudando principalmente como ele ocorre e quais suas bases.
A Ética e a Moral são as duas disciplinas filosóficas  que se ocupam do agir humano.  Por isso, estas são as disciplinas da filosofia que mais interessam  à Economia, à Política e ao Direito, pois estas três ciências  estão intimamente associadas ao agir humano, ou seja, à vontade enquanto faculdade.
 O sentir é uma atividade da alma humana  estudada por uma disciplina da filosofia intitulada Estética . Alguns desdobram o sentir também em fazer. Em grego, fazer se diz “poiésis”, nascendo assim o termo poética. O fazer da poética não é o mesmo que o agir da ética. Nesta, trata-se do agir humano,ao passo que o fazer da poética concerne ao criar uma obra de arte. E aqui pode nascer uma questão decisiva:se a obra a ser criada é  a própria vida que se leva, surge então uma íntima relação entre a arte e a ética, entre a poesia e como agimos/vivemos,nascendo assim o que Foucault chamava de “estética da existência”, que é, na verdade, uma “poética da existência”. Aqui, não apenas o fazer e o agir se revelam como arte, como também o próprio pensar: este se mostra então como criação e produção de sentido para a vida.
Por tratar das maneiras e capacidades da alma humana de sentir, a Estética interessa principalmente às artes ( pintura, cinema, música, poesia, etc.). Desse modo, através da Estética  a filosofia realiza uma interseção com as artes. É por isso que podemos afirmar que a filosofia não está apenas nos livros de filosofia, mas também nos filmes, nas músicas, nas poesias e nas pinturas ¾ na medida em que essas artes , tocando a nossa sensibilidade, faz-nos também pensar.
 É preciso deixar claro que o pensar, o conhecer, o agir e o sentir não são atividades  estanques. Afinal, para agir, por exemplo, é preciso sentir. Por outro lado, muitos danos podem ocorrer quando agimos sem pensar. E quem pensa sem sentir não pensa verdadeiramente.
Na história da filosofia vemos os filósofos discordarem sobre qual atividade é a mais importante. Os racionalistas, por exemplo,   conferem total supremacia à razão e pouca relevância à sensibilidade. Por este motivo, eles acreditam que somente podemos conhecer algo de verdade se nos afastarmos de nossa sensibilidade.  Por outro lado, há filósofos que   tendem a dar maior importância ao desejo e à sensibilidade,denunciando os excessos da razão.
 Conforme dizia o escritor Balzac, “quando a forma predomina, desaparece o sentimento”. Em nossa alma, a razão é a faculdade mais formal de todas. Daí seu perigo quando se confunde o pensar com o mero conhecer.
Então, através da Epistemologia a filosofia oferece elementos para as ciências compreenderem melhor seus métodos e procedimentos; por intermédio da Moral e da Ética a filosofia  estabelece um diálogo sobretudo com a Política e o Direito , fornecendo elementos críticos para se compreender tais atividades e estabelecer suas finalidades;  pela Estética ( e pela Poética)  a filosofia explora o mesmo território que as artes também exploram: a nossa sensibilidade. Mas de todas as atividades da alma a que mais caracteriza a filosofia é exatamente o pensar. O pensar é a mais importante atividade da filosofia justamente porque  ele não interessa apenas à filosofia, mas a todos enquanto conhecemosagimos e sentimos.  Portanto, sempre que procuramos seja pensar o que sentimos, seja pensar como e porque agimos  ou pensar o que conhecemos,  de imediato começamos a filosofar.
Pensar, enfim, é questionar.  A filosofia é a arte do questionamento.Pensar também é conceber. Conceber é criar. De conceber nasce "conceito": " o que foi concebido, gerado, produzido".Assim, um conceito nunca é achado pronto, ele nunca é ou está dado. Ele também é produzido, inventado. Aqui, poesia e filosofia encontram um rico diálogo, pois "inventar aumenta o mundo"(Manoel de Barros).












[1] “Reducionismo” significa: reduzir a complexidade e heterogeneidade  da realidade a apenas um aspecto, que é utilizado então para explicar tudo.

terça-feira, 5 de maio de 2015

a arte das fugas





Eu pertenço de andar atoamente.

Manoel de Barros


A arte barroca também é a arte das fugas. Bach, o grande mestre barroco,  faleceu praticamente debruçado sobre uma Arte da Fuga que ele desejava produzir, deixando-a inacabada. As fugas se fazem a partir de uma linha que faz variar um tema, produzindo neste um sentido novo. A fuga implica um tema. A fuga é uma composição contrapontística. Fugir é , tanto na arte como na vida, compor-se com outro elemento em fuga, um outro ponto ou voz, de tal modo que é sempre compondo-se que se foge, e nunca isolando-se. Para haver a relação contrapontística, é necessário um tema comum aos elementos em fuga, tema este que os une em suas diferenças.
A fuga é uma repetição do tema expressa nos pontos diferentes em fuga. E todo ponto que foge, o faz em contraponto com outro que expressa o mesmo tema que o primeiro, mas em uma variação que se relaciona assimetricamente com o primeiro. A relação contrapontística da fuga é um agenciamento. É por isso que toda fuga é polifônica: ela possui múltiplas vozes, e cada uma diz o mesmo tema de forma diferente. Somente de forma contrapontística é que uma voz tem o que dizer. Isso a livra de emitir uma mera opinião que a isola ou a põe em choque com outras vozes, sem composição. O amor, a amizade e toda forma de relação somente potencializam aqueles que os vivem, e não os adoecem, quando se tornam temas para fugas que se fazem em ponto e contraponto, em composição.Quem assim vive, sua voz não emite mais uma opinião meramente pessoal ou egóica, uma vez que ela se torna a expressão de um tema que somente de forma polifônica, agenciado, se pode dizer e viver o sentido.
Deleuze e Guattari definem o desejo como linha de fuga .O desejo é contrapontístico, polifônico. O tema a partir do qual o desejo produz sua linha de fuga é sempre a vida. A vida é o tema para fugas polifônicas para aqueles que se afirmam no agenciamento que aumenta ainda mais a potência do desejo e, com ele, a potência da própria vida como tema. A linha da linha de fuga nunca se fecha em um contorno: ao contrário, ela impede que o tema se feche nele mesmo. A fuga não vem de fora do tema, ela lhe é imanente, e constitui o ponto onde o tema se expande, diferenciando-se internamente, aumentando de potência. A fuga não é um mero fugir ou escapar: ela faz fugir o próprio tema, desterritorializando-o em relação a si mesmo.Ao contrário do louco, que cria mundos paralelos, o artista/criador inventa mundos sem paralelo:"Inventar aumenta o mundo", já dizia Manoel.
 Deleuze e Guattari querem dizer que onde há o desejo sempre há uma linha de fuga que faz variar o tema que imaginávamos o mesmo. Assim, o desejo é produção de novas possibilidades para o que imaginávamos nunca poder ser de outra forma, a começar por nós mesmos.
Triste é aquele que quer fugir de si mesmo. E quem a isso quer, não faltam os meios: o prazer alienado e narcísico, os fanatismos religiosos ou de mercado ( ou a combinação de ambos) para isso servem; as anestesias ( químicas , sociais , midiáticas, políticas...) também funcionam para quem quer fugir de si mesmo, bem como as MBA’s em autoconhecimento ,ministradas por seus gurus e mestres bem pagos ; igualmente podem servir para fazer fugir de si mesmo o vender-se em troca das medalhas, dos títulos, das propriedades e bens, dos afetos e favores que fazem a glória de Mefistófeles. Em contraste, a prática de afirmação de si e autêntico autoconhecimento é linha de fuga que amplia e potencializa o que verdadeiramente somos. No autêntico autoconhecimento, somos o tema e a variação do tema, nascendo dessa variação um novo tema.O autoconhecimento, como virtude da alma, da qual nascem a generosidade e a salut, não é meio para obtenção de medalhas ou prêmios, pois a virtude, a virtu, é o próprio prêmio, assim como o verdadeiro prêmio do autêntico músico não se mede por quantos discos ele vende, mas pela potência de variação que ele foi capaz de produzir em um tema ,com o qual ele se liga sem interesse, apenas por afeto e amor à música.E isto que não se pode quantificar com números constitui a verdadeira riqueza.
A fuga sem um tema que com ela fuja é um mero fugir de si mesmo, ao passo que um tema sem uma fuga que o faça variar é como uma identidade rígida, máscara mortuária.Fugir não é se afastar, mas fazer avançar a partir de onde se está. E é sempre em um processo que estamos.Uma coisa é fugir de si mesmo, outra é fazer fugir si mesmo lá mesmo onde estamos, para assim fazermos do nosso existir uma singular expressão do Existir da Natureza em seu infinito variar.Como dizia Espinosa, este variar infinito é o tema que nos deve afetar na produção de nossa linha de fuga.
A lagarta é o tema, ao passo que a borboleta é a fuga.A letra é tema, mas o espírito é fuga. Tema é o prazer, embora fuga seja o desejo. A fuga não é sair para o exterior de um tema, mas fazê-lo variar a partir de um fora que lhe é imanente. Entre a variação e o tema se estabelece uma relação que não é de cópia ou imitação, pois se trata de uma relação assimétrica, na qual a variação, como repetição, produz uma diferença em relação à diferença que constitui o tema. É por isso que uma variação de um tema nasce a partir de uma dramatização espaço-temporal que a torna um acontecimento que nunca acontece duas vezes igual. Disso sabem Coltrane, Charlie Parker, Pixinguinha, Bach, Vivaldi, bem como aqueles que se sentam à mesa de um autêntico partido alto e agenciam suas vozes , singularizando-as, na polifonia contrapontística de uma kizomba. Poli-fonia: múltiplas vozes. E este múltiplo nasce dentro da voz que se singulariza, compondo-se. Somente assim , polifonicamente, uma voz tem realmente o que dizer ou o que cantar.
Cada variação é como um ser novo que nasce e, através dele, é o próprio tema que renasce. Isso vale para o barroco, para o jazz , para o chorinho, para o partido alto e para a própria vida. Os grandes músicos nos mostram que a variação de um tema não é um mero tocar ao acaso, tampouco o reproduzir passivo de um tema. O tema não é uma forma Exata, da qual a variação seria uma inexatidão refém da contingência. O tema e sua variação são as duas metades de um anexato como obra em processo, afirmando a si mesma. Um tema é passível de incontáveis variações. Isto porque um tema possui uma realidade intensiva que não se pode contar ou determinar numericamente. Por isso, um tema é sempre novo a cada variação que o afirma : cada variação afirma a si mesma ao mesmo tempo em que produz a variação do tema.