A palavra “fortaleza” nos faz imaginar algo cercado por muros espessos e
elevados :no alto dos muros sentinelas montam guarda contra invasores e
inimigos. Em tais fortalezas os homens guardam tesouros ou bens que querem
proteger de usurpadores.
Ao falar das virtudes, Espinosa enfatiza uma delas em especial: a
fortaleza.Mas a fortaleza em Espinosa não se constitui de muros ou cercas.Ao
contrário, ela possibilita caminhos, agenciamentos.
As virtudes se distinguem das paixões. Estas nascem quando a alma
padece.Este padecer pode gerar ódio ou amor, tristeza ou alegria.O padecer gera
ódio e tristeza quando imaginamos que algo de exterior nos nega, ou mesmo algo
de interior, quando o que nos nega somos nós mesmos.Quando imaginamos que algo
nos nega, nasce uma tristeza em nossa alma.Há vários modos de imaginar que algo
nos nega:podemos imaginar que ele não reconhece nossas qualidades, ou que as
inveja, ou que as quer roubar,ou que as tenta diminuir, zombar, ridicularizar,
difamar...Imaginamos que a única maneira que temos de nos proteger de tal
destruição que nos ameaça é odiando aquilo que imaginamos nos odiar, é
destruindo aquilo que imaginamos querer nos destruir.Ao ódio recebido ou
imaginado, devolvemos com ódio efetivo. Pois quando devolvemos o ódio não o
fazemos apenas imaginando:o devolvemos falando mal do outro, pensando mal
do outro ou mesmo lhe fazendo mal, direta ou indiretamente.Assim, mesmo que
aquele que imaginamos nos odiar não nos
odeie de verdade, reagiremos como se assim o fosse. E o objeto de nosso ódio
também poderá nos odiar, e agora de verdade, e não apenas em nossa imaginação.Ou
seja, um ódio nascido da imaginação se torna um ódio de verdade, sem que se
possa discernir um do outro. Pois quando o ódio nasce da imaginação ele já é
uma verdade para aquele que assim imagina e sofre.
A imaginação se caracteriza por tornar presente o que é ausente.Toda
imagem que ocupa presentemente a alma depende da imaginação.Quando nos
lembramos de algo que aconteceu o fazemos tornando presente à nossa mente uma
imagem, e esta imagem presente é mais imaginação do que memória. Mas também quando
imaginamos que alguém nos ama ou odeia, assim o fazemos tornando presente uma
imagem em nossa mente: a imagem do amor ou do ódio vinculado a determinada
pessoa ou coisa.Quando um boxeador golpeia seu adversário ele não o faz movido
por ódio, pois ele não vincula à imagem presente em sua mente o sentimento do
ódio.
Mas o padecer também pode ser de alegria. Padecemos da alegria quando
imaginamos que algo de externo nos ama.Imaginamos que ele nos quer bem, que
fala bem de nós, que nos valoriza, que quer nossa amizade, que reconhece nossas
qualidades, enfim.Ao imaginarmos que alguém ou algo nos ama, sentimos alegria.E
dessa alegria sentida reagimos devolvendo amor.Mas se imaginarmos que aquele a
quem damos amor rejeita esse amor que damos, podemos nos sentir diminuídos,
negados, e assim novamente nasce o ódio, ódio este nascido do amor.Este ódio
será tão grande quanto era o amor ofertado.
Assim , diz Espinosa, embora seja melhor amar do que odiar, o esperar ser
amado em troca do amor que damos pode gerar o sentimento contrário do ódio.Tais
são as armadilhas do padecer, do reagir.
As virtudes não são um padecer, elas são um agir. Elas não são paixões,
elas são ações.Toda virtude é um agir.Padecemos quando aquilo que fazemos se
explica mais por outra coisa do que por nós mesmos. Um exemplo: quando está
bêbado um homem diz e faz coisas que se explicam mais pela bebida do que por
ele mesmo. Passado o efeito de tal padecer, o homem poderá se arrepender do que
disse ou fez naquele estado.O que vale para o estado de embriaguez vale para
todos os padeceres de que sofremos.Muitos imaginam que somente conseguem fazer
coisas sob o efeito da bebida, ou seja, imaginam que ser livre é fazer coisas
que depois poderão se arrepender.O agir acontece quando aquilo que fazemos se
explica mais por nós mesmos do que por outra coisa.Não que a ação nasça apenas
de nós mesmos, de nossa vontade ou ego. Algo que fazemos se explica por nós
quando nos tornamos capazes de fazer uma ideia adequada de nós mesmos, daquilo
que desejamos.A fortaleza é uma virtude.As paixões têm contrários: o ódio é o
contrário do amor, a tristeza é o contrário da alegria, e na vida podemos
passar de um afeto contrário a outro, e isto em relação a um mesmo ser :aquele
que antes amávamos, hoje odiamos; e aquele que antes odiávamos, hoje amamos.
Esse vai e vem da alma de um afeto ao seu contrário chama-se exatamente
flutuação ou volubilidade. Mas das virtudes ou ações não há contrário: a não
ação não existe.Por exemplo, o mero não beber não cura o viciado do amor à bebida.O
que é a alegria? A experiência de que nosso poder de agir aumenta. O que é a
tristeza? A experiência de que nosso poder de agir diminui.Desse modo, por
detrás de tudo está o nosso poder de agir. Nas paixões, ele flutua ao sabor dos
encontros que fazemos, e assim nos torna inconstante.Conquistamos a virtude
quando nos assenhoramos não das coisas, mas do nosso poder de agir.E o primeiro
poder de agir que devemos nos apoderar para sermos livres é o poder de pensar:
o pensar tem como potência ou virtude o compreender.Quanto mais a mente compreende,
menos ela padece. E dessa compreensão nasce uma alegria que não é um padecer ,
mas um agir, alegria esta da qual somos causa: somos causa para nós e para os
outros, na medida em que agiremos para auxiliar os outros para conquistarem sua
alegria própria, e não invejar a nossa.
A fortaleza é uma virtude ético-clínica.Ela fortalece a alma . É
ligando-se à saúde que a alma se fortalece, e não lutando contra a doença.A
maior doença é o ódio, não tanto o que se imagina receber quanto aquele que de
fato se dá.
A fortaleza possui duas metades: firmeza e generosidade.A firmeza é a
fortaleza para conosco. Ser firme consigo não é odiar-se como se fôssemos uma
criança irresponsável. Ser firme consigo não é ser para si um sargento ou
general, como se fôssemos também um soldado.Ser firme consigo não é
odiar-se.Quando busca o sol, a planta é firme consigo.O passarinho somente voa
e vence o medo de largar o ninho quando é firme consigo.O viciado somente se
liberta do vício quando é firme consigo. Somos nós mesmos que temos que ser
firmes conosco, não um carrasco, não um pastor, não um general, e jamais
seremos firmes conosco sendo para nós mesmos um pastor, um carrasco ou um
general.Ser firme consigo nasce da liberdade para consigo.Ser firme não é ser
rígido.Ser firme não é impor-se mandamentos ou cartilhas.Ser firme é vencer em
si a flutuação que vai do amor ao ódio, e do ódio ao amor.
A generosidade é a fortaleza compreendida a partir da nossa relação com
os outros.A firmeza é a fortaleza relacionada a nós mesmos, a generosidade é a
fortaleza referida aos outros.Ser generoso não significa diminuir-se diante dos
outros, tampouco aumentar os outros.
As palavras “generoso”, “gerar” e gênese têm uma origem comum. Todas têm
relação com a palavra “nascer”.O generoso é aquele que faz nascer algo, o faz
nascer por uma partilha, por fazer participar o outro de algo, e não apenas
ele.O generoso faz nascer algo comum entre ele e o outro, mesmo que esse algo
comum seja a capacidade de errar ou acertar.Ele também se esforça para fazer
nascer no outro a capacidade da compreensão, para que assim ambos a
partilhem.Assim, o generoso não é exatamente quem dá dinheiro, ou que dá algo
na esperança de receber algo em troca. Partilhar não é exatamente emprestar ou
dar. Pois ele não dá o que é exclusivamente dele, e é por isso que aquele que
partilha também recebe, e é grato àquele que lhe permite ser generoso.Quando o
juiz julga a partir da lei, e não segundo o ódio, ele partilha a justiça com o
réu, e é generoso com este.Ele destrói no réu apenas aquilo que o diminui.A
justiça não é posse exclusiva do juiz . A justiça não é posse, mas partilha.E
toda partilha pressupõe um encontro, uma relação.A amizade não é posse de Pedro
ou Paulo, mas aquilo que faz nascer Pedro e Paulo como amigos.A generosidade
não é um perder ou um ganhar, mas um ser, um agir, um causar.
Segundo Espinosa, a fortaleza se torna mais forte quanto mais
compreendemos , quanto mais a mente se torna virtuosa. Todavia, mesmo que não
possamos tornar isso efetivo pela força exclusiva da mente, devemos usar ao
menos a memória, para assim não nos esquecermos do que preconiza a fortaleza:
firmeza para consigo, generosidade para com os outros, e não rigidez para com
os outros e benevolência para consigo.
Obs.:
Espinosa é tão singular que tanto os racionalistas quanto os
românticos reclamam sua herança.Sozinhos, entregues a eles mesmos, racionalistas e românticos são inimigos mortais: os racionalistas zombam dos românticos dizendo que eles sonham de olhos abertos,ao passo que os românticos acusam os racionalistas de engendrarem teorias insones.
Os racionalistas usam Espinosa como arma para acuarem os românticos; os românticos se valem de Espinosa como escudo para se protegerem do ceticismo pragmático dos racionalistas.
Os racionalistas tomam Espinosa como uma espécie de
“homem de gelo”, enquanto que os românticos o exaltam como o precursor deles , sendo Espinosa, para eles, a alma mais sensível
que já existiu, cuja intuição do absoluto é sol que derrete toda frieza .
Sabe-se que Goethe ficou meses sem sair de casa, tomado que
estava pela leitura da Ética : quando
enfim saiu, o mundo já não era mais, para ele, o mesmo, pois já não era o mesmo o próprio Goethe:ele entrou em casa como homem da razão que até então era, a folhear com curiosidade acadêmico-erudita a obra do filósofo, e de lá, da casa e de si mesmo, saiu ele poeta , com outra alma nova a morar em seus olhos.
Muitos detectam uma
inspiração espinosista ( ou daquilo que
Goethe pensa ser Espinosa...) nos célebres versos do poeta alemão: “Por mais
longe que a razão nos leve, leva-nos mais longe o coração”.