Eu estava prestes a fazer trinta anos. Na videolocadora perto de casa, vi na prateleira um filme exatamente com o título “Trinta anos esta noite”. Era um filme de Louis Malle, realizado sob inspiração da filosofia existencialista. No original francês, o título é Le feu follet, O fogo fátuo.O fogo fátuo é uma luz fugaz que somente pode ser vista à noite, com a presença da escuridão, pois sob a luz do sol sua presença não é notada. O fogo fátuo costuma ser visto em pântanos ou cemitérios, pois ele surge dos corpos orgânicos já sem vida, mortos. Tal luz quase indistinta do escuro nasce da putrefação daquilo que antes foi vivo.Na idade média, e mesmo depois, os fogos fátuos eram tidos por fantasmas... O filósofo Sartre era a referência para o enredo da película. Trinta anos não é qualquer idade. Nesse período da vida há uma passagem, uma passagem mais difícil e dramática do que todas as passagens que vieram antes. É aos trinta, dizem os existencialistas, que somos de fato apresentados à existência. Antes disso, vivemos a vida como se fosse um filme ou peça na qual somos um personagem cujo papel fora escrito pelos pais, pela sociedade, por Deus ou por outra referência que, inconscientemente ou não, tomamos como modelo e Verdade. Aos trinta, porém, essa peça termina, abruptamente. Ela termina sem um final que dê sentido ao que viera antes. Desaparecem a peça, o roteiro, o diretor, o personagem... Fica apenas , nu, o ator. Diante deste, apenas o Nada, o Nada que ele descobre que é."A existência, diz Sartre, precede a essência". A existência não tem essência. Portanto, não pode ser definida ou conhecida teoricamente, a existência pode apenas ser vivida, sentida, experimentada, enfim, feita. Angustiado, o ator percebe a inautenticidade do mundo em que vivia. Agora,está só diante da folha branca, e essa folha branca, sem pautas, é sua vida a ser vivida. Antes, ele era o personagem de uma peça onde tudo tinha seu lugar e fazia sentido. Agora, ele se sabe um ator cuja vida carente de sentido quer engoli-lo. Porém, se não há mais peça ou personagem, também não pode haver mais o fingimento do ator: o ator tem de desaparecer para que surja, enfim, a autenticidade de um ser a se inventar, a se fazer. Segundo Sartre, essa experiência da liberdade de fazer-se põe-nos face a face com a angústia. Angústia diante de seu próprio Nada.
De certo modo, eu vivia naquele momento uma situação parecida com a que relatava o filme. Minha vida, vida pessoal, profissional, afetiva e política faziam parte de uma peça que acabava. Ao assistir ao filme, beirando eu também os 30, nasceram mais muros do que caminhos. Resumindo: eu não estava bem.
Nessa mesma época, contudo, houve uma noite em que tive um sonho. Sonhei que estava em uma sala de hospital, uma sala de cirurgia. Eu estava deitado em uma maca, com luzes frias sobre mim. Eu seria operado do coração. Estava desesperado, angustiado; pensava que não sairia vivo daquela operação . De repente, a porta se abre, entra o cirurgião. Achei estranha sua aparência: ele vestia o avental branco que todo médico usa, mas aquele era um médico diferente. Ele usava um chapéu de abas largas, como aquele que usava Santos Dumont. Quando vi direito quem era, nasceu-me uma confiança, uma calma, uma fé: pois o médico que me operaria era nada mais nada menos do que o poeta Fernando Pessoa.
Ao me ver sorrindo, ele também sorriu, quando então lhe disse: “somente um poeta para curar um coração que sofre”. Ao vê-lo de perto, notei que seu rosto tinha múltiplas faces :em cada uma delas o olhar de um heterônimo do poeta me olhava de forma diferente. “Qual deles me operaria?”, pensei comigo...
Senti ele abrir meu peito, porém não houve dor, tampouco sangue. Ele enfiou a mão direita para tirar meu coração do peito, mas apenas esta mão, sozinha, não foi suficiente. Somente com as duas mãos ele pôde tirar meu coração e segurá-lo, como se apanhasse o peso de um paralelepípedo. “Seu coração está muito pesado, preciso extirpar o que lhe pesa”. Pensei que o poeta-cirurgião fosse cortar coisas físicas. Não é físico, porém, o peso mais pesado que pode deixar pesada a vida. Difícil descrever o que o poeta extraiu com sua clínica. Não eram coisas tangíveis, pois o coração no qual o poeta agia não era o mesmo que a cardiologia estuda. O poeta tirou de meu coração palavras que ouvi, palavras de ódio dirigidas a mim, ditas por quem também já me disse, outrora, palavras de amor. Estas se foram, mas aquelas entraram mais fundo do que podia sentir e segui-las minha consciência. O poeta também tirou a lembrança daqueles que me decepcionaram, que foram ingratos e ardilosos, os quais pensava já ter esquecido ou mesmo perdoado, mas eles estavam ainda em mim como inimigos a tomarem conta da minha própria casa, no mais íntimo dela. Ele também tirou a crença no Estado e nos partidos políticos. Enfim, o poeta foi extraindo de mim o passado, o passado que ainda estava escondido, lá onde deveria estar apenas o meu desejo de futuro, jovem que eu ainda era. Por fim, a última coisa que o poeta extraiu foi a saudade de um futuro que desejei antes que fenecesse o presente antigo que o planejou.O pior fantasma é o sinistro fogo fátuo que fica após um plano de futuro desfeito, futuro este que brilhava , acreditávamos,mais do que a luz do sol.
Quando o poeta extraiu tudo, ele disse que agora colocaria novamente meu coração em meu peito. Olhei para a mão dele e vi um coração pequenino, como o de uma criança. Com o peito ainda vazio, indaguei-lhe: “ poeta, com esse coração tão pequeno como irei sobreviver?”. O poeta então me disse: “de tudo o que viveu e morreu, tirei tudo. Deixei apenas , da vida, a semente. A arte fez sua parte, a outra parte cabe a você fazer”. No peito vazio de afeto, o poeta pôs de todo afeto a semente. Acordei subitamente, sentindo que não foi apenas daquele sonho que acordei. Não sei ao certo a hora, mas pela janela vi que já nascia a aurora. Quando me movimentei na cama com o desejo de pegar caneta e papel para escrever o que sonhei, senti algo ao meu lado. Era um livro. Lembrei-me então que adormeci lendo-o, e dentro dele entrei, ele que entrara dentro de mim também. O livro se chamava “O eu profundo e os outros eus”, de Fernando Pessoa.
Hoje, nada mais sei senão isso: a “clínica” que Pessoa me fez estando eu a sonhar e dormir, Manoel de Barros me faz estando eu acordado , quando o leio ou quando para outros ouvidos o falo. Lendo Manoel , são outros olhos que abro: não os olhos de quem aos trinta imagina, com angústia, os quarenta; ou que aos quarenta imagina, temendo, os cinquenta; ou que aos cinquenta imagina, com melancolia, os sessenta; ou que , estando vivo e não importando a idade, imagina, desesperado, a morte. A empoética terapêutica manoelina nos faz criar olhos para ir até à infância e voltar. A alegria da infância, sua inocência e “seriedade brincativa”. Nessa infância não há a visão do Nada, mas dos “nadifúndios”, que é a terra poética dos que não precisam de nada, a não ser daquela semente :“poeta é ser que vê semente germinar”, afirma Manoel. Se Pessoa foi meu cardiologista, Manoel é meu, nosso, clínico geral.
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o texto acima é versão modificada do original publicado no livro:
Ouvimos sempre no noticiário: “políticos
se reúnem no Conselho de Ética”. E o povo, indignado, com razão diz : “até com
a ética eles fazem comércio, comprando e vendendo!” . Porém, a palavra “ética”
está mal-empregada nesse caso. O termo adequado é “deontologia”, que significa:
“conjunto de obrigações” que pauta uma
prática profissional, seja ela qual for. “Ética” vem de “ethos”: “caráter” (
enquanto disposição da alma). O correto então seria dizer: “deontologia
parlamentar”. Qualquer grupo , para manter-se coeso, estabelece obrigações de
conduta para os indivíduos que dele fazem parte. Até mesmo facções criminosas,
nas quais o crime é “profissional” , têm
deontologias, às vezes até mesmo escritas, como se fossem um código! Porém, nada
há de ético nessas facções, incluindo as facções parlamentares ( dos “políticos
profissionais”). Assim, quando um
bandido de uma facção fere as “regras” ( ou “regimento”) , é sempre outro
bandido que vai julgá-lo, e não um homem justo e ético, pois homens éticos não fazem parte de facções. Ou seja, ter o poder de julgar segundo regras até bandidos podem
fazê-lo. O que bandidos nunca podem fazer é agir de forma ética. Há políticos
profissionais, juízes profissionais, bandidos profissionais...mas não há éticos
profissionais, pois ninguém pode ser justo ou honesto por profissão, assim como
ninguém pode ser obrigado a ser livre. Da liberdade não há deontologia , o que
pode haver é ontologia ( como prática do
pensar) e poesia , como bases para a ação livre instituidora de novas regras ,
que nos libertem dessas costumeiras regras
a serviços de facções : “poesia
pode ser que seja fazer outro mundo”(Manoel de Barros).
Nietzsche conta mais ou menos a seguinte história:
Imagine que um homem muito moralista ( e ser moralista não
significa a mesma coisa que ser ético) quer julgar sua própria vida, para assim
achar a causa da qual nascem as ações e
pensamentos que ele considera “ruins”. Digamos que ele pudesse examinar sua
vida como se fosse uma fita que ele assistisse de frente para trás, do presente
para o passado, com o poder de “apagar” os acontecimentos que ele julgasse não
terem merecido existir. Ele hoje é um adulto. Então , ele começa por examinar
seus 20 anos e nessa idade vê que ele fizera coisas que não merecia ter feito,
como se embriagar muito, por exemplo. Assim, ele “apaga” de sua existência esse
acontecido. Porém, ele julga que a causa do “mal” está mais atrás ainda. Ele
vai até aos 15 anos, e descobre aí coisas a apagar, como o ter fumado escondido
ou o ter se trancado no banheiro com revistas de mulher nua. Ele apaga essas
coisas que a moral condena. Mas ele julga estar mais atrás a causa do “mal”.
Ele vai então aos 10 anos. Encontra também nessa idade coisas a apagar, como o
ter matado aula para ir ao cinema . Porém, o “mal” parece estar em idade mais
recuada ainda: ele vai aos 5 anos, e mesmo aí acha o que culpar. Talvez, ter
assaltado a geladeira para comer escondido o doce que a mãe proibiu, ou ter
brincado escondido de médico com a vizinha. No entanto , o “mal” parece estar
mais atrás ainda. Ele vai então aos 12 meses de idade, mesmo aí a moral acha o
que condenar, talvez o fato de o menino sujar as calças. Mas o homem prossegue
ainda mais no exame de sua vida, pois crê que a causa do “mal” está mais atrás ainda.
Ele se vê com três meses, e se envergonha em ver-se sugando o seio da mãe, a
isso ele apaga...Ele vai ao 1 mês de vida, mesmo aí ele encontra o que
condenar, talvez o chorar muito ...Mas o “mal” deve estar mais recuado: o homem
se vê com 1 dia de vida, e mesmo aí ele encontra o que condenar e apagar, sabe-se
lá o quê, talvez a nudez do corpo. Ele vai mais atrás ainda: se vê com 10
minutos de vida, com 10 segundos, 9, 8, 7...3, 2,1...ele vai nascer...Ele pode
julgar esse acontecimento como um mal e apagá-lo?
Se ele julgar esse acontecimento como um mal e quiser apagá-lo, não seria esse
homem um ressentido, um doente, um louco? A vida é inocente, é preciso protegê-la
de tais homens, sobretudo quando eles querem ter o poder de educar as crianças ou dominar o governo de nossas cidades e Estados. Se os homens andam mal, a culpa não é da vida.
Um
professor de filosofia nunca deve comportar-se como um “Profeta”, isto é, como
alguém que imaginativamente, passionalmente, anuncia “Verdades” sobre o que
virá, e que apenas ele sabe o que é preciso fazer para essa Verdade advir. Em
geral, os Professores-Filósofos-Profetas exigem “obediência acrítica” ao que ele profetiza como condição de advinda da Verdade
que ele “ensina”. E essa obediência não é para começar quando advir a Verdade
que ele anuncia, ela deve começar agora, já, mesmo que nenhum sinal indique que
advirá o que ele profetiza. Porém, não
há nenhum sinal de autêntica filosofia nesse profetizar: ao contrário, esse profetizar nada mais é do que um adiar
da autêntica filosofia. Os mais
obedientes ao professor-profeta serão recompensados ( com notas, iniciações, estágios...ou ao menos
terão o privilégio de não receberem seu ódio e vingança, pois em geral os
Profetas vivem mais a odiar , paranoicamente, aqueles que não acreditam em suas
profecias-verdades-aulas do que amar os
que o seguem). Sobretudo, o que um professor-profeta mais odeia, é outro
professor-profeta, cujas verdades se detestam, competindo e rivalizando, de tal
modo que o ódio os une.
Tampouco
um professor de filosofia deve querer-se
um “Messias”, aquele que vai “salvar”, que se crê a própria Verdade: somente
ele ensina a filosofia, mais ninguém. Em geral, o professor-Messias cita poucas
fontes além de si próprio: não menciona outros filósofos, não emprega comentadores
ou outros apoios para sua fala. Mesmo que ele não critique ou menospreze outros
filósofos diretamente, a sua fala egoicamente exclusiva , que porta apenas a
ele mesmo, já é um menosprezo da alteridade e diferença . Professores assim não
querem ensinar, querem ser imitados, inclusive no ódio e no zombar de tudo o
que não seja eles. Eles não formam educandos, eles querem discípulos, mesmo que
medíocres.
Um
professor de filosofia deve assemelhar-se a um apóstolo. “Apóstolo” significa: “aquele
que porta uma ideia, e a comunica”. O apóstolo comunica a ideia que já está nele,
ele não anuncia a advinda de uma ideia
em um futuro incerto. Ele também não se diz a própria ideia, ideia exclusiva que
somente ele é. O professor de filosofia deve ser aquele que comunica e afeta a
partir da ideia que o afetou, singularizando-o. Essa ideia não é apenas uma
ideia intelectual ou teórica, essa ideia é a própria vida, a vida como ideia
que torna viva a nossa alma-ideia. Vida esta que não está apenas nele, mas diferencialmente
em todos.
Profetas
ambicionam falar a muitos, quantitativamente; apóstolos falam sempre ao que há
de único em cada um , mesmo se o ouvem muitos. A ideia que não tem apóstolos
vive apenas nos livros, como ideia teórica. E aqueles que falam dela apenas
teoricamente, são mercadores de livros ou fórmulas, não são apóstolos de
ideias. O apóstolo é mais do que um intelecto que fala, pois nele também há
imaginação e poesia. Sem isso, não há pedagogia.
Sobretudo,
nenhum filósofo é um messias. Messias somente o pode ser a ideia que liberta a
vida que há em nós. Assim, todo autêntico filósofo é, em verdade, um apóstolo.
Platão se quis o apóstolo da Forma, Aristóteles o foi da Substância, Descartes
se queria o apóstolo do Ego, enquanto Kant se apresentava como o apóstolo da
Razão Pura...Deleuze se afirmava apóstolo da Diferença, ao passo que Heidegger
se propunha o apóstolo do Ser. Nenhum deles se colocou como profeta, tampouco
como messias. Geralmente, tais pretensões proféticas ou messiânicas são
encontradas naqueles que nada têm de filósofos, embora posem como tal,
sobretudo quando há o holofote da mídia ou quando está em jogo as benesses da
academia...
Na
verdade, o profeta é aquele que afasta a ideia-messias, afastando-a dele
primeiro, talvez por ódio ao pensamento, ao passo que o messias é uma espécie
de apóstolo de si mesmo, talvez por ódio ao pensamento dos outros. Por outro
lado, a ideia autêntica nunca é aquela
que um profeta anuncia , tampouco pode
ela ser posse exclusiva de alguém que se diga filósofo-messias. Que fique claro também que estamos empregando
esses termos conforme uma tipologia filosófica[1], nada tendo a ver com sua
configuração religiosa, embora filósofos que se pretendam profetas ou messias
estão mais a fazer seitas do que escolas.
Mas de
todo o apostolado que constitui a
filosofia, talvez ninguém tenha sido
mais apóstolo de forma mais potente do
que Espinosa, isso porque seu “messias” é a própria Ideia Infinita, o Absolutamente
Infinito, que nos torna apóstolos sobretudo da alegria, e não da angústia ou da
morte. Um autêntico apóstolo não o é apenas enquanto fala, mas sobretudo enquanto
age.
[1]
Esse emprego das noções de “imaginação-profeta” e “imaginação-apóstolo” se
encontra no livro Espinosa e o problema
da expressão, de Gilles Deleuze, que aqui retomamos, ampliando-lhes o
sentido.
Fora da democracia, isto é, fora da divergência argumentada
envolvendo as perspectivas que afirmamos, todo poder se mostra como "teológico-político".
Isso quem ensina é Espinosa. O poder
teológico-político tem uma característica: ele teme a alegria e cultiva a tristeza,
mesmo disfarçada. O “Deus” de tal poder teológico-político nada tem a ver com o
Deus de São Francisco , que também dançava e cantava. Esse “Deus” do poder teológico-político também pode ser um partido, o Mercado
ou apenas a vaidade mesmo. Encontra-se na prefeitura do Rio uma versão desse
tipo de poder ( potesta), que parece querer reviver a caça a Dioniso...O
carnaval é uma das expressões de Dioniso, mas não é a única, e talvez nem seja
a mais forte. A mais forte é a democracia em festa, que há muito não vivemos...
(O triunfo de Dioniso, autor anônimo, século III aC )
"A nuvem somente pode avançar no céu aberto mudando de
forma: apenas assim ela consegue habitar , atravessando, o que não tem
fronteira. Nós habitamos dentro de fronteiras, perdemos o aberto, dizemos apenas
‘eu’. Somos como Estados que mantêm exércitos guardando as fronteiras. Precisamos
nos desarmar desses exércitos , mesmo que além da fronteira estejam desertos,
os quais precisamos atravessar."
Lhasa de Sela (também conhecida como "a cantora nômade")
Quem se aproxima da origem
se renova.
Manoel de Barros
Quando sobem o rio em direção à fonte de onde saíram crianças, após viverem anos e anos em mares longe, os peixes são envolvidos em um estado que é mais do que alegria, quanto mais perto da fonte ficam. Quando à fonte enfim chegam, eles bebem da própria água onde nadam e que lhes envolve, embriagam-se com o meio de sua própria existência, rejubilam-se, como se fossem um recém-nascido a sorver seu primeiro leite, como se fossem um poeta a beber o vinho das Musas. Então, voltam a beber, voltam a beber...e de novo bebem das águas fontanas, sem nunca saciarem essa sede.
Podemos dizer que a poética de Manoel de Barros é uma original “empoética” sem regras ou cânones , uma vez que “empoemar” é um verbo que toda palavra conjuga quando perde seu limite utilitário.“Empoemando”, a palavra adquire a potência de expressar. Através dessa potência, dá-se “um inauguramento de falas” que “insana”o significado habitual , gramatical e ordinário. Mas essa “insanidade”, ou agramaticalidade, produz uma verdadeira saúde : a de uma linguagem que redescobre a natureza extraordinária, singular, do sentido. Graças a essa poiésis da agramaticalidade,a linguagem é redescoberta como fonte de inauguramento de sentidos: “pelos meus textos sou mudado mais do que pelo meu existir”, revela-nos o poeta.
Empoemar as palavras é subverter os clichês e as representações que as fazem “acostumadas”. Essa empoética não possui regra de fabricação, a não ser o retirar das coisas as suas próprias regras: errar o idioma, fazer agramática.O “errar o idioma” não se faz por uma fala pessoal que se equivoca nas regras, mas por intermédio de uma “fala coletiva” que diz um sentido que foge a toda regra, que leva a própria regra a variar.
Empoemar a palavra é torná-la despalavra, verbo-substantivo onde se pode enxergar “o feto dos nomes”. Empoemar é um verbo que toda palavra pode conjugar desde que “abra seu roupão para o poeta”, e o deixe sê-la.
A essência da poética de Manoel de Barros, sua empoética terapêutica, consiste em produzir uma didática da invenção. Esta nos ensina que não apenas o poema, mas a própria Vida somente se explica como um “milagre estético”:
O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de interromper o vôo de um pássaro
botando ponto no final da frase.
("O menino que carregava água na peneira", livro: Exercícios de ser criança)
Espinosa considera uma confusão da imaginação a ideia de que a liberdade
seja uma independência absoluta. Deus não é independente: ele depende de si
para causar sua própria existência. Esta é sua essência: depender de si como
causa eficiente. Os modos, enquanto graus dessa potência absoluta, também se
afirmam livres quando aquilo que fazem ou pensam depende de si para fazê-lo, e
não de outra coisa (entendendo essa outra coisa como um outro modo finito).
O
homem livre, potente, é aquele que depende o mais de si para fazer e pensar o
que lhe é apto. Ao aprenderem uma ideia, os alunos dependem do professor que os
educa. Não é apenas o professor que é ativo: os alunos também devem sê-lo, pois
o aprendizado da ideia depende do aumento da capacidade dos alunos para
compreendê-la.Do contrário, estarão apenas decorando, obedecendo e se anulando.A potência de pensar é imanente a cada aluno: não há como uma
ideia ser plenamente compreendida sem que esta potência seja despertada. Mais
do que passar ideias, o educador é aquele que afeta o aluno para o despertar
desta potência que está nele: quanto mais essa potência está desperta, mais o
aluno depende dele para compreender o que o professor ensinou. Educar não é
tornar o aluno dependente do professor, educar é tornar o aluno dependente o
mais possível de si mesmo e de sua capacidade de pensar e agir.
A existência humana é tal, porém, que
passamos boa parte de nossa vida dependendo dos outros: dos pais, dos
professores, etc.”Boa parte da vida” não significa a vida inteira. Quando nos
apossamos do nosso poder de agir e de pensar, apreendemos nossa vida inteira em
cada parte mínima dela , tornando-a boa, útil, alegre, amorosa, ativa, enfim,
de acordo consigo mesma.
Assim, começamos dependendo dos outros para nos
tornarmos aptos a dependermos de nós mesmos. Depende de nós sobretudo o sermos
nós mesmos, é um absurdo imaginar que isso depende dos outros. Seja lá
como for que se comporte o outro, tal comportamento não pode ser uma causa que
nos torna dependente dela, impedindo que nos tornemos nós mesmos.Enfim, quando conseguimos
nos tornamos nós mesmos, ou a isso nos esforçamos, compreendemos que era apenas
de nós que isso dependia, mesmo quando éramos crianças.Tornar-se si mesmo não
significa, porém, isolar-se como um todo à parte.Ao contrário, o si mesmo que
nos tornamos é um modo, um grau, do Si que é imanente a cada coisa, inclusive
daquelas de que dependíamos antes de compreendermos adequadamente o que depende
de nós mesmos.
Cada ser persevera para continuar na existência. Este perseverar é
exatamente o conatus, que é a Potência
da natureza expressa a partir de uma parte dela, parte esta que pode considerar
a si mesma seja como um todo à parte, o que faz nascer a condição passional, seja como
uma parte integrada a um todo do qual ela afirma também se afirmando, como uma expressão
singular.Neste último caso, o conatus é afirmado em conjunto com outros seres,
e não apenas afirmado em reação aos outros seres.Pois é isto o ego: afirmar-se a partir da negação dos outros. Segundo a psicanálise, o "eu" emerge a partir da negação que ele faz dos pais . Nesse processo, a diferença é vista como uma negação originária:o eu nasce de se negar o outro ( os pais). Mas "quem" faz esse negar na criança? Para a psicanálise, não há ainda um "quem", mas já existe um negar, um negar de outro alguém. Para Espinosa, antes do eu existe o "si". O "si" não é o "eu" ( "ego").O eu nasce da interação imaginativa e imaginária com os outros, isso porque o eu é mais social do que ontológico, o eu não existe sem a fala e a imaginação que a sustenta. Em geral, os que mais acreditam no "eu" são os que mais tagarelam e falam, sobretudo falam de si mesmos. O "si" não é uma negação originária, nenhuma negação pode ser originária. "Neg-ação": "negar uma ação". Toda negação é secundária, primeiro é preciso existir uma ação , mesmo que para ser negada. Afirm-ação: estar firme na ação, estar inteiro, consistente, fazendo da afirmação que se afirma a alegria suprema, a própria existência. O "si" que nos é íntimo é um modo do Si Absoluto que está em tudo.
O "eu" nasce por oposição ou negação imaginativa com a alteridade. O "si" é a afirmação de uma comunidade ontológica enquanto graus potentes e singulares do Si Absoluto, que é Causa de Si. Esse afirmar-se ontologicamente em conjunto é a base filosófica para a compreensão do comum como potencialização, também política e democrática, de si .
Como escrever o nome do filósofo?
Quem já pesquisou minimamente esse tema já se deparou com
justificativas distintas para optar por Espinosa ou Spinoza. Os que
preferem a grafia "Espinosa" pesquisam em fontes mais raras, notadamente vinculadas à
origem portuguesa do filósofo. Os que preferem "Spinoza" não apresentam muitas
fontes, além daquelas consagradas. Por que optamos por Espinosa? Não
pelo sobrenome, mas pelo nome que o sobrenome acompanha. Em hebraico, "Baruch". Espinosa
rompe com esse nome e se rebatiza , filosoficamente, "Benedictus". Com este nome
Espinosa rompe com o nome que lhe pôs a comunidade judaica. Com "Benedictus", Espinosa
se rebatiza na mesma língua de Sêneca e Cícero. No entanto, com o nome "Bento",
português, ele não rompe. Este o acompanha, como o acompanham seu sangue, sua
imaginação e a língua viva de seus pais, e não uma língua morta , erudita, como o latim (Espinosa não falava latim em casa, o latim é uma língua que não conheceu sua fala).
Podemos dizer que Baruch é o nome profético, Bento é o nome apologético,
enquanto Benedictus é o nome crístico, desse “Cristo dos filósofos”, como lhe
chamou Deleuze. Por esse argumento, apenas Espinosa ele mesmo se pode chamar Benedictus, como de fato se chamou, nascendo de novo no nome que ele criou. Nós, seus admiradores, afetados por essa vida filosófica, modestamente o chamamos de Bento, também com amizade e carinho. Benedictus pede a companhia de Spinoza, Bento combina com Espinosa. Ambas as grafias são corretas, embora de perspectivas diferentes. Então, entre o hebraico,
o latino e o português, optamos pelo português, pois "Espinosa" soa mais próximo do som que naturalmente sai de minha boca brasileira.
Titãs Sonhar é acordar-se para dentro. Mário Quintana
Eu simplesmente sinto
com a imaginação.
Não uso o coração. Fernando Pessoa
Filósofo, artista plástico, arquiteto , pensador da linguagem visual ...Bruno Munari é múltiplo, heterogêneo, por formação e questões. Ele consegue falar de coisas múltiplas porque ele é, de corpo e espírito, múltiplo, heterogêneo. Somente os múltiplos, plurais, conseguem ver o heterogêneo e, didaticamente, nos ensinar a também vê-lo e, quem sabe, nos vermos igualmente como parte da heterogeneidade que é a vida, desde a vida social até a vida mental, passando pela vida cósmica, natural e ,também, pela vida multifacetada que é a comunicação.
Nesse caminho, algumas ideias se apresentam e se impõem. São ideias que a academia tem dificuldade de pensar, embora tais ideias estejam tão vivas nos artistas, poetas e conceituadores em geral, movendo fortemente aquele que cria, que experimenta, que pensa, enfim, aquele que não apenas teoriza ou que tão somente faz, mas que pensa o que faz, que faz o que pensa e que, sobretudo, sente o que faz e o que pensa, posto que também acredita, crê, na potência de criar e inventar, com todos os riscos que isso envolve, pois nada mais arriscado do que ousar singularizar-se, construir um estilo.
Esse pensador múltiplo, heterogêneo, exerce a arte das distinções e sutilezas. Pois é isto que é encontrar a essência de algo: estar atento aos pequenos movimentos que alteram uma coisa e a fazem se transformar em outra, seja essa coisa que muda uma ideia, uma cor, um espaço ou uma pessoa. E não há como compreender a mudança sem compreender onde a mudança nasce, onde ela é produzida.
Falar em mudança é evocar quatro termos: fantasia, inventividade, criatividade e imaginação. Não raro, tanto na teoria acadêmica quanto no senso comum há confusão acerca do significado desses termos, que são realmente próximos, porém diferentes. Munari não deseja dar uma resposta definitiva sobre esses temas; ele fabrica e maquina uma perspectiva, uma proposição.
Fantasia envolve o que não existe, e que nunca existirá ou será real, mas que pode ser pensado e “visto” pela imaginação. Nosso pensamento por vezes se torna o útero de seres que só existem nele, que encontram no próprio pensamento seu alimento, sua paisagem, seu mundo. Quanto mais fantasioso é um pensamento, mais o comportamento daquele que o tem tende a ser pouco compositivo, pouco agenciador. Quando a fantasia prepondera de maneira exagerada ou mórbida ,instala-se uma ruptura entre o pensamento que fantasia e o mundo : o próprio pensamento se separa da sua expressão motora associada a uma situação cotidiana. Nesses casos,pode-se evidenciar um isolamento que, por vezes, poderá ser também manifestado de forma violenta ou agressiva, ou então catatônica, melancólica. Não por acaso, de "phantasia" nasce o termo "phantasma"...A produção fantasiosa mais típica é o sonho noturno, aquele que temos de olhos fechados, à noite. Freud chega a dizer que todos nós, durante quase 1/3 do dia, exatamente quando dormimos e sonhamos, durante essas horas somos "loucos", pois a loucura que vemos no chamado “doente mental” é um sonho de olhos abertos. Esta é a característica da fantasia: um sonhar de olhos abertos, mas sem saber que se sonha.Quando está sob o domínio de um forte ciúme , o ciumento fantasia e passa a crer no que fantasia, deixando-se levar pelo que somente existe em seu pensamento. A criança também fantasia haver um monstro debaixo da cama, e isso a fará tremer de medo real, embora não exista o monstro a não ser em sua mente (mas se a criancinha, brincando, finge que ela ou o pai são um monstro, isso não é mais fantasia, isso é criatividade, que é a base da fabulação/criação literária...A criatividade não é um sonho de olhos abertos, mas um abrir os olhos da imaginação para ver diferente o que chamamos de realidade).O sonho é fantasia...Essa fantasia é inacessível ao outro: somente podemos comunicá-la com palavras, depois que acordamos, embora nunca a narrativa verbal consiga alcançar o que foi de fato o sonho. A fantasia nasce dessa pátria inacessível, incognoscível , e que é para as imagens mentais o que o sol é para os dias.Vivemos sob o dia, nascemos para ele e nele vivemos, mas ninguém pode viver lá no sol, diretamente sobre ele.
Inventividade é o que não existe, mas que pode se tornar real do ponto de vista técnico. O automóvel, por exemplo, é uma invenção. Antes de existir como objeto ou coisa, o automóvel nasceu como uma ideia ainda confusa, não ainda individuada e separada de uma névoa espessa que o envolvia dentro do pensamento de seu inventor.Assim como a fantasia, a invenção nasce do pensamento. Porém enquanto a fantasia vive refém do mundo onde nasce ( podendo ela mesma tornar refém dela o pensamento de onde nasceu), a inventividade inventa coisas que logo farão parte do mundo, serão objetos que despertarão o desejo e os valores do mercado, de tal modo que o próprio mundo poderá esquecer ou ignorar que foi do pensamento inventivo que tais coisas nasceram.
Já a criatividade é o que não existe também, mas que pode se tornar real do ponto de vista artístico, simbólico, humano. Por exemplo, um poema, um quadro, uma música, etc., são frutos da criatividade. Onde viviam os girassóis de Van Gogh antes de este os pintar? Viviam nos campos? Se eles existiam em algum lugar, esse lugar não poderia estar separado do ser inteiro de Van Gogh, inclusive de seu corpo, de seu inconsciente. É por isso que os girassóis pintados são também Van Gogh - renascido, reinventado, tornado tinta e durando como sensação materializada em cores. Se Van Gogh não os passasse para as tintas, tais seres de sua fantasia morreriam quando morresse o ser pessoal de Van Gogh, e ninguém os teria conhecido, visto, experimentado...E , dessa maneira, não saberiam que neles também há o mesmo jardim, “Jardim das Delícias”, onde germinam girassóis e outras flores, mesmo que flores do mal, como as que cultivava Baudelaire.
Os frutos da inventividade e da criatividade nascem de uma árvore: o pensamento. Todavia, as raízes dessa árvore não estão fincadas no “Ser”, como pensava Descartes, o racionalista. As raízes dessa árvore estão suspensas, não se agarram a nada, a não ser em si mesma.Aristóteles dizia que Deus é um Pensamento que se Pensa, um Pensamento que é sua própria realidade, uma Realidade Perfeita. Mas esse Pensamento Perfeito, exatamente por sê-lo, somente pode existir fora da matéria, da mudança, do devir e das imperfeições da existência no tempo. Não é esse o pensamento do qual nascem a inventividade e a criatividade. Não se trata do pensamento racional, reflexivo, lógico. Esses aspectos do pensamento se voltam para fora, para a conquista do mundo externo. Mas há uma parte do pensamento que nunca se volta para fora: ele se volta apenas para si mesmo, numa espécie de narcisismo absoluto, como uma ostra na qual muitas vezes as próprias pérolas apodrecem sem ninguém as conhecer, e sem que elas mesmas conheçam a luz do sol (embora esse mesmo mundo interior por vezes tenha um sol tortuoso, fantasmático, como os que brilham em Turner , Munch ou Goya) . Nesse sentido, tal pensamento não é totalmente “do” homem, é um pensamento da vida em seu impulso para afirmar-se. E esse impulso, mais inconsciente do que consciente, precede a prática consciente do conhecimento da chamada "realidade objetiva".
A fantasia permanece enredada nesse mundo, ao passo que a inventividade e a criatividade nascem dele, vindo então para fora, para o mundo, o enriquecendo, mudando, alterando. Inventividade e criatividade também podem se combinar. Por exemplo, a tecnologia de hoje às vezes contribui para aumentar a riqueza criativa do cinema, ao mesmo tempo que muitas obras criativas inspiram inventores na produção de objetos tecnológicos.
Todavia, os homens se esquecem que tudo o que hoje domina a vida, sobretudo os aparatos tecnológicos, nasceram de uma nebulosa inextirpável instalada no coração do homem, que é a fonte de toda invenção.É por isso que tudo aquilo que é fruto da invenção, como a tecnologia de um automóvel ou computador, por exemplo, pode virar um objeto fantasmático da fantasia, de tal modo que o homem procurará nessas coisas uma satisfação alucinatória para questões que são de outra ordem, de ordem afetiva.Assim, o capitalismo vive de usar a invenção e a criatividade para pô-las a serviço da fantasia de um homem cada vez mais pobre de inventividade e, sobretudo, de criatividade, pois estas se tornaram capturadas pelo próprio sistema capitalista, em um circuito que se retro-alimenta, narcisicamente. Aliás, o próprio capitalismo tem sua fantasia: ser o sistema definitivo da sociedade humana, e que nenhum outro sistema poderá suplantar. Enfim, o delírio do capitalismo é se achar a própria natureza.
E a imaginação?Fantasia, inventividade e criatividade são pensamentos indeterminados, não formados ainda. Já a imaginação é uma percepção, uma ação de ver imagens. Ver imagens, e não coisas prontas. Ou melhor, ver a imagem como uma coisa. Quando Da Vinci quis inventar o protótipo do helicóptero, passando a desenhá-lo no papel, tal ser não nasceu no desenho apenas, pois antes de desenhá-lo o inventor já imaginava tal helicóptero sob a forma de uma imagem que sua imaginação via. Antes de criar um poema, a imaginação do poeta vê cada verso através de sua imaginação criativa. O músico também vê a música no sentido de ter um percepto ( o “ver” aqui não é apenas visão restrita aos olhos).O inventor inventa realidades tecnológicas novas, o artista cria sentidos novos para as coisas. O inventor e o criador adquirem a capacidade de ver coisas que ainda não existem, a não ser no próprio pensamento que as concebe.
Mas nem todas essas coisas assim vistas se tornam realidade. A fantasia, por exemplo, nunca pode se tornar real: ela não pode ser inventada ou criada, e é por isso que o risco da fantasia é quando ela se torna mórbida, e aquele que fantasia crê que o imaginado é real, entrando assim no delírio. O delírio mórbido não é, como se imagina, uma exacerbação da imaginação, mas tão somente a sua cegueira, a sua incapacidade de ver a fantasia como fantasia, tomando-a como realidade.O surrealismo não é o delírio restrito a uma subjetividade , mas imaginação que , artisticamente, cria imagens surreais. A fantasia é individual e sempre permanecerá individual. A inventividade e a criatividade nascem de uma subjetividade individual que, através da imaginação, torna coletivas suas produções.Nise da Silveira conseguiu tirar os loucos que ela tratou da fantasia louca que os dominava e os fazia sofrer. Pintando, esculpindo, os loucos começaram a despertar os olhos da imaginação artística, de tal modo que eles se tornaram capazes de diferenciar o que fantasiavam do que pintavam, criando a noção de que o que pintavam era arte, e que o que fantasiavam era uma incapacidade de criar, inventar, viver.Pode haver, e quase sempre há, tristeza e melancolia nas fantasias, dado a expectativa seguida de frustração que as acompanha; mas o que distingue a criatividade é sempre a alegria: alegria espinosista de aumentar o poder de agir, o sentimento de existir.
A imaginação vê o que a inventividade e a criatividade apenas pensam de forma indeterminada, sem ter ainda existência. Assim, pela prática da imaginação inventamos ou criamos, e dessa forma aumentamos o que chamamos de realidade. “Inventar aumenta o mundo”, já dizia o Manoel de Barros.Não existe uma oposição entre realidade, criatividade e invenção, a não ser para aquele que tem a imaginação muito embotada. Mesmo a ciência precisa da inventividade e da criatividade; logo, da imaginação.
Uma exposição, por exemplo, tem frutos da inventividade técnica ( luminotecnia, design, arquitetura, dispositivos tecnológicos, cenografia) e da criatividade poética. Ela é a combinação dessas duas atividades da imaginação orientadas pelo saber-fazer museológico-museográfico.
Assim, criar e inventar não é apenas fantasiar. Contudo, não há como se erradicar da alma humana a fantasia , e nem se deve querer isso.Todas as crianças nascem muito fantasiosas. Entretanto, para elas se tornarem inventivas e criativas são necessárias outras coisas. A fantasia se confunde com a própria liberdade subjetiva da alma. Os inventores e criadores das mais diversas áreas são aqueles que não apenas fantasiam, como fazem os neuróticos que consomem artes meramente escapistas ou clicherosas, ou então os psicóticos fechados em seu mundo, pois suas atividades criativas e inventivas (re)inventam e (re)criam sentidos para o que chamamos de realidade, que nada mais é do que aquilo que fazemos dela. A fantasia às vezes pode se transformar em fuga da realidade, ao passo que a criatividade e a inventividade são práticas de mudar uma realidade, vislumbrar outras, enfim, tornar o impossível possível. Ou ao menos tentar, ousar, propor.
Talvez a maior fantasia, a mais perigosa, seja aquela que , ignorando-se, se toma como a própria realidade em si, como “objetividade ou essência das coisas”, passando a se impor como modelo àquilo que dele se difere, tentando submetê-lo ou destrui-lo. Tal é a fantasia do “Poder”, da “Verdade”, da “Pureza”. Quando isso acontece, tal fantasia poderá se armar com os frutos da inventividade, como as tecnologias. Não nos esqueçamos que “leis” e “livros” também são frutos da tecnologia, ou melhor, são tecnologias jurídicas e intelectuais. Muitas leis e livros se colocam a serviço de fantasias fascistas ou assemelhadas.Contudo, a parte que sempre resiste é a da criatividade. Hitler, em sua fantasia, sonhou ser um grego. Ele empregou a inventividade da tecnologia bélica e arquitetural para construir para si uma Nova Atenas. Mas a criatividade grega não nasce do mármore, e sim do pensamento livre , democrático, poético. Há na criatividade um elemento de resistência que nos livra das fantasias que põem em perigo a pluralidade da realidade. A fantasia mórbida pode escapar de uma subjetividade louca , configurar-se como especulação política, moral ou mesmo religiosa, propagar-se por outras subjetividades com o auxílio de tecnologias e inventividade, também as tornando loucas, mas de uma loucura que se quer “normal”. Quando isso acontece, não será tolerada a criatividade; ou esta , se tolerada, será reduzida ao clichê de si mesma. Por que isso? A inventividade produz apenas coisas; e as coisas , por não possuírem desejo, podem ser empregadas a serviço de uma fantasia mórbida que obtém poder, ao passo que a criatividade inventa ideias, e estas são a saúde do pensamento.Em todo totalitarismo , não importando se político , comportamental ou acadêmico,são sempre os criativos os que sofrerão as maiores consequências.E são sempre eles, e neles, que nascem e perseveram as resistências.
A mentira, por exemplo, lança suas raízes na fantasia, ocultando realidades; já a criatividade produz a ficção como perspectiva sobre uma realidade.Através dessa perspectiva criada,porém, aprendemos sobre a realidade, inclusive acerca da realidade da própria linguagem. E nesse aprendizado aprendemos coisas que a mera razão não sabe... A lição da criatividade é nos tornar criativos, e para isso não existem regras ou cartilhas. Supor que se aprende a ser criativo lendo cartilhas é fantasia de uma pedagogia sem imaginação. É nos tornando criativos que aprendemos, criando, o sentido singular, às vezes estranho, da realidade intangível do próprio pensamento.
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Nota sobre a ideia de fantasia na filosofia
Pensai que tudo o que pode alcançar-se por vias químicas
é acessível por outros caminhos...
...Oh psicodelia.
Deleuze
David Hume, o filósofo empirista, dizia que as ideias nascem das sensações. Não há ideia que não tenha nascido da sensação. Depois, ele precisa seu pensamento e diz: não há oposição entre a ideia e a sensação, pois a ideia nada mais é do que uma sensação enfraquecida, desvitalizada. Mas quando a ideia “entra” em nossa mente ela não penetra em uma casa vazia. Nossa mente não é uma casa vazia. Assim como uma casa pré-determina o percurso que faremos dentro dela em razão dos compartimentos ou cômodos que ela tem, quando a ideia entra em nossa mente ela se submeterá a certas exigências da nossa mente.
Nossa mente não consegue, por sua natureza, lidar com duas coisas: o imprevisível e o caos. E aqui está o problema: a origem das ideias, segundo Hume, é imprevisível, pois vem de algo que existe fora da mente. Então, para controlar essa natureza imprevisível e caótica da ideia, a mente tem uma arma: as regras. É com as regras que a mente luta contra o caos das sensações e com a imprevisibilidade de tudo o que existe fora dela e que ela não tem como dominar, dado que a mente se percebe existindo em um mundo que não depende dela para existir, embora ela precise desse mundo para ser uma mente, apesar de ela não saber o que esse mundo é em si. Para proteger-se do caos, para não ser ela própria um, a mente se arma com regras. Estas não legislam sobre as coisas tais como elas são, elas se aplicam apenas às ideias, que são a existência mesma, porém enfraquecida. Digamos que a ideia não é o corpo que a roupa veste, mas a roupa sem o corpo. Deste ela mantém apenas a forma, o vestígio, a semelhança. As regras da mente apenas valem para o caos que se enfraqueceu e se tornou ideia, mas nunca as regras poderão um dia transformar totalmente o caos em objeto transparente às regras de nossa mente. Todavia, como a existência humana se dá na superfície das coisas, e não na sua profundidade , as regras modelam nosso mundo, e cremos que nosso mundo é “o” mundo.
São três as principais regras que constituem nossa mente, e por meio das quais a mente conformará as ideias: causalidade, identidade, espaço/tempo.Fora da mente não existe causalidade, identidade, espaço e tempo. Porém, essas regras são “vazias”. Para elas ganharem vida, elas precisam ser preenchidas com um conteúdo, esse conteúdo são as ideias. É aqui, e não antes, que surge a percepção. Ter percepção não é a mesma coisa que ter sensações. Estas antecedem aquela. As sensações são as ideias mesmas. A ideia é , ela mesma, uma sensação que se enfraquece e deixa de ser o que ela é para se transformar em outra coisa dentro da mente, quando então a sensação enfraquecida se conforma às exigências de haver regras, causas, identidades, sucessão temporal e contiguidade espacial. Nela mesma, a ideia é a sensação mesma, e esta não é uma coisa.Então, a ideia não é ideia de algo, mas enfraquecimento de algo que se torna então ideia, e como ideia pode entrar em uma mente e ser regrada, tornando-se assim representação de uma coisa, de um objeto.Quando a sensação enfraquecida é “domada” pelas exigências da mente, somente aí nasce o que chamamos de “percepção”: percebemos então uma cadeira, um homem, uma coisa, enfim, percebemos o que julgamos ser “a inquestionável e sacrossanta realidade cotidiana”, que somente os filósofos, os loucos e as crianças teimam em não aceitar como óbvia, natural. Além disso, a ideia que nasce da sensação é sempre ideia singular,simples, ao passo que, submetidas às regras, as ideias simples se unem a outras, formando ideias compostas. “Cadeira”, por exemplo, é uma ideia composta de outras ideias. Tudo o que percebemos , e que chamamos de realidade objetiva, são já ideias compostas, isto é, ideias que se unem a outras segundo a regra da identidade, sobretudo.
Nossa percepção é construída, não é natural. As regras da mente são projetadas para fora como se pertencessem à própria natureza das coisas. As regras da mente não são individuais, e nem apenas biológicas. Segundo Hume, o natural e o social se confundem. O que hoje julgamos natural não o era para os homens de sociedades passadas. E o que hoje julgamos natural não o será para as sociedades que virão. O homem medieval julgava que a bruxa era a causa da peste. Hoje o homem julga que são os germes a causa. Há algo em comum entre o medieval e o homem de hoje: a crença na ideia de causa. Talvez, quem sabe, no futuro se julgue que as doenças têm outras causas, mas ainda assim haverá a crença de que há uma causa. Essas regras valem não apenas para o âmbito do conhecimento, elas valem também para o mundo das práticas.Por exemplo, em toda época, em qualquer sociedade, os homens sempre acharam que a felicidade tem uma causa. Para alguns, a felicidade estava na contemplação do Bem; para outros, na posse de muitas mulheres; há ainda os que dizem que a causa está no acúmulo de bens. A ideia de causa define o que os homens acreditam ser “o normal”.O que caracteriza toda época é que cada época julga ser sua normalidade o normal de todas as épocas.E a época mais terrível é aquela que julga que todas as épocas que a antecederam eram apenas esboços para se chegar a ela, e que ela é a época definitiva, além da qual não haverá nenhuma outra, pois ela é o próprio "fim da história".
O artista, porém, parece escapar do mero domínio das regras da mente, e é por isso que ele é um extemporâneo, alguém que escapa aos determinismos comportamentais de sua época histórica.Mais do que histórico, o artista é um devir. Nunca o artista se contenta com a felicidade dos “normais” de sua época histórica, sobretudo com a felicidade e sucesso daqueles que são considerados os "artistas normais " de sua época, os quais a mídia explora e vende.Ele quer ir além das regras da mente, para assim viver/experimentar o perigoso lugar onde as ideias nascem. Ou melhor, ele quer fazer o caminho contrário ao das ideias. Estas nascem das sensações, elas são as sensações mesmas, porém enfraquecidas, e que se tornam ideias dentro da mente, ou “representações” das coisas que imaginamos perceber fora de nós como "mundo objetivo". O artista desce o caminho , ele o refaz. Primeiramente, ele precisa abandonar a certeza lógica e social das regras. Ele precisa vencer a causa, duvidar das identidades...E não raro esse “vencer” toma ares de perda, de fracasso, de insucesso ( para aqueles que vencem graças às identidades, às causas e aos valores dominantes de dada sociedade). Tampouco o artista é um refém da fantasia que torna a mente paralela ( “esquizo”) à realidade, pois ele vai além da mente socialmente conformada, ele busca o ponto que antecede o enfraquecimento da ideia, pois ele quer a potência, ele quer a vida mais viva, mesmo que para isso lhe faltem ideias.
Ele sai da representação, e segue a ideia em direção ao seu nascimento, ele quer ver onde ela nasce: saindo da casca oca do universal, ele vai ao singular...Retirando a roupa, ele quer ver o corpo nu das coisas.À medida em que ele se aproxima do singular, a sensação vai ganhando força, existência, intensidade....E quando chega nesse ponto, ele faz a mais estranha das descobertas, uma descoberta alucinante, fantástica, que desarma nossa mente lógica e suas regras, tanto as regras lógicas quanto as sociais. O artista descobre que seu caminho de ir para fora da mente é, ao mesmo tempo, uma vereda para se aprofundar ainda mais dentro da mente....E que a origem da ideia é a origem da própria mente.Ou seja, não há origem como ponto inicial , há apenas meio , processo. Somente quando a mente está sob regras, socialmente determinada, é que ela tem a ilusão, ilusão científica e do senso comum, de que existe uma oposição entre a mente e uma realidade pronta que existe fora dela. Contudo, quando o artista explora e se explora, ele descobre que o extremo do mundo externo e o extremo do mundo interno se tocam e embaralham suas fronteiras, formando assim uma terra incógnita.E o que vemos aí? Não vemos mais regras.
Qual o valor das regras? Estabelecer critérios para a combinação ou síntese das ideias. Por exemplo, pela regra da causalidade estabeleço uma conexão entre duas ideias: vejo a ideia de calor, depois percebo a ideia do evaporar, e sintetizo uma ideia com a outra, emitindo um juízo: “o calor é causa da evaporação(efeito)”. Quando vamos a esse ponto obscuro onde mente e matéria são indistintos, as ideias não deixam de se combinar, porém elas se combinam aleatoriamente, sem regras. Tudo se torna possível....Torna-se possível uma pedra falar, uma serpente voar, uma nuvem ter olhos...Segundo Hume, esse é o mundo da fantasia. A fantasia é uma combinatória sem regras. Logo, a mente não tem o poder de controlar e regrar a fantasia.E é isto o caos: não a desordem, mas uma combinatória de elementos sem a menor causalidade, sem a menor identidade, sem antes, durante ou depois, ou sem estar em algum lugar.
Phantasia: phantasma. Na mitologia havia um personagem chamado Phantaso, que era o ser responsável pela produção das imagens do sonho.Da mesma raiz vem o termo “fenômeno”: aquilo que aparece. No sentido filosófico, a diferença entre fantasia e fenômeno está no fato de que o fenômeno aparece para a consciência desperta, ao passo que a fantasia aparece para a consciência adormecida, sonhante. Logo, é a consciência, ou mente, que difere fantasia e fenômenos. Neles mesmos, se retirarmos a relação que eles estabelecem com a consciência, não existe diferença entre fantasia e fenômenos. Para a fenomenologia, por exemplo, fenômeno é tudo aquilo que aparece para a nossa mente como sendo a realidade que percebemos ( é o mundo que o senso comum chama de realidade , enfim, a própria “Matrix”).
O artista vai ao caos e volta, e retorna de olhos vermelhos, pois foi ao sol que ele foi, para assim ver/sentir onde nasce o dia. Ele nos faz pensar/sentir o que não o consegue a mente socialmente regrada: pensar o singular, o acaso, as formas de duração não redutíveis ao tempo, as diferenças que não cabem na forma geral da identidade...