domingo, 30 de janeiro de 2022

conversações filo-poéticas

 

O filósofo Deleuze ensina que pensar é prática que se faz em conversação. Essa palavra vem de  “con-versa”, cuja raiz é o termo “verso”. O sentido original de “verso” é : “voltar-se para”.

Assim, “verso” significa algo que não existe sozinho, pois está umbilicalmente ligado a outra coisa, tal como o verso de uma página ou o verso de uma moeda, cujo existir  implica a existência do outro lado delas,  seu  anverso .

 No poema, a palavra se torna verso porque seu anverso é a sensibilidade que pensa e sente. Verso é palavra  que nunca existe  sozinha  , pois ela é  o corpo cujo anverso  é o sentido que uma alma sentiu ,  pensou e  expressou por intermédio dela. Lendo ou escrevendo , quem poetiza conversa consigo, com os outros, com a língua, com o cosmos...

Palavra que é verso nunca é apenas palavra: ela é o lado visível cujo anverso devemos encontrar dentro de nós, em nossa sensibilidade intensificada. Por isso, o sentido de um verso nunca está apenas nele mesmo, seu sentido  está também em nós que o lemos, lendo-nos.

Con-versar é : “voltar-se para o outro.” O outro em sua diferença como parte do sentido que construímos agenciados, cada um sendo verso e anverso do outro. Conversar não é só saber falar, também  é saber escutar, sobretudo os silêncios.

A  conversação interna, sem a qual não há autoconhecimento, é prática de devirmos outro, para assim sermos, ao mesmo tempo, a página na qual se escreve e autor que escreve na página, sempre procurando escrever um sentido novo.

Em toda conversação se concorda ou discorda das ideias apresentadas , pois  a conversação argumentada é a base não só da educação emancipadora ,  ela também o é  da convivência democrática.

“Concórdia” e “discórdia” têm por raiz a palavra “córdis”: “coração” ( no sentido amplo da palavra). Assim, concordar é manter nosso coração, enquanto sede do Afeto, unido a uma ideia que partilhamos com o outro. Discordar, ao contrário, é retirar nosso coração de junto de uma ideia que outra pessoa defende.

Discordar não é a mesma coisa que odiar. O ódio é mera destruição, ao passo que a discórdia nasce quando separamos   nosso coração da ideia que outra pessoa professa, sem que isso signifique destruição ou agressão ao coração do outro.

Já o  ódio é a vontade reativa de destruir não só as ideias  , mas sobretudo o coração do outro enquanto núcleo  de sua existência.

Os autênticos amigos não só concordam, eles também  sabem discordar sem ferir o coração do outro.

Nas relações pessoais e sociais não autoritárias ou monologais, não só a concórdia  tem sua razão de ser, também o tem a discórdia.

Não há aprendizado do conviver democrático  apenas concordando  sem nunca discordar, pois na convivência não tóxica das diferenças pode haver discórdias, sem que disso nasçam ódios.


"Sobretudo o verso é o que pode lançar mundos no mundo."(Caetano Veloso)







sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Lucrécio, a alma e o espírito

 

O poeta-filósofo Lucrécio faz uma distinção entre alma (anima) e espírito( animus). A alma percorre todo o corpo , ela é o princípio vital; já o espírito é o responsável pelos pensamentos e pelos afetos, estando  localizado no peito.

O espírito está no peito porque, segundo Lucrécio,  não podemos separar o pensamento e o afeto: tudo o que a gente pensa tem seu afeto correspondente, e todo afeto sentido gera pensamentos.

Com isso, Lucrécio critica os racionalistas gregos que, separando pensamento e afeto, tornaram a filosofia uma prática abstrata de ideias supostamente localizadas apenas na cabeça.

Para Lucrécio, não só a poesia está no peito, também está a filosofia, ambas perto do coração.  

Poesia e filosofia, as duas metades do espírito,  existem para intensificar, pensando e sentindo, o fluxo vital da alma que circula por todo o corpo e com ele forma uma unidade, um concílio.

 

( o livro de Clarice é uma sugestão de leitura, pois poucos chegaram tão perto desse pensar originário mencionado por Lucrécio, um pensar que também se sente, na dor ou na alegria, quanto Clarice)












quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Mefistófeles e seus discípulos...

 

Mefistófeles: “-Vim cobrar aquilo que, por contrato, você me prometeu dar em troca dos meus favores."

Fausto :  “- Mas o que lhe prometi? Assinei sem ler...”

Mefistófeles:  “- Fique tranquilo, quero apenas uma parte de sua alma: quero seu caráter. Você poderá  ficar com seu ego : sei como soprar   dentro dele  para inflá-lo. Também vou lhe ensinar a como usar as palavras para fazer suas mentiras parecerem  ‘Verdade’. Sou o Pai ardiloso das ‘fake news’.  Vou lhe ensinar essas e outras artimanhas, mas seu caráter será meu...”

Fausto: “- Serei então um ‘sem caráter’?”

Mefistófeles: “- Por que o espanto? Sabe aquele banqueiro rico  que explora muitos e os tem na  mão? Pois é ele que está nas minhas mãos e ainda as beija  em agradecimento pelos meus préstimos . Sabe aquele ex-juiz que posa de moralista ? Esse sonso  nunca dava  uma sentença sem me consultar, ele também é meu. Sabe aquele religioso que prega dentro de um imenso  templo de ouro  e  diz se ajoelhar diante de Deus? Mentira, é diante de mim que ele se ajoelha. E esses políticos que se elegem usando o nome de Deus , Pátria e Família são os que mais servem a mim. O Centrão eu comprei a lote, pois no Brasil o presidente é um empregado meu, comprei deputados e senadores por intermédio desse comprado. Por que você resiste? Por que insistir com esse heroísmo ético !? Abandona a filosofia e a ciência que eu  farei de você o 'Oráculo' e 'Guru' de muitos que lhe dirão 'amém'  em tudo, como dizem a um discípulo meu chamado ‘Olavo’ ( cujo luto decretado pelo genocida  por sua morte é , na verdade, uma homenagem a mim, verdadeiro Mestre de todos os negacionistas-terraplanistas). Comigo você ficará rico, terá fama e poder....Desde que seu caráter seja meu.”

Fausto: “- Mas e Margarida? Não quero perdê-la, estamos noivos...”

Mefistófeles: “- Vou comprá-la agora!”

Mefistófeles encontra então Margarida e oferece tudo o que pode oferecer para assediá-la. De Margarida  ele ouve apenas uma palavra , porém dita com firmeza: “NÃO”.

Derrotado, com o rabo entre as pernas , foi-se embora o mercador de almas...

(na mitologia germânica, “Margarida” é um dos nomes da “Alma”, assim como “Psiquê” em grego. “Mephisto” é um filme que mostra como o nazismo ascendeu na Alemanha comprando/seduzindo  mídias, parlamentos, mercados , igrejas e partes  tolamente  crédulas  do povo. “Mephisto”,ou “Mefistófeles”, é um dos nomes do Diabo ).




terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Lucrécio e os dois choros

 

Ontem à noite eu conversava com um amigo que está muito triste, recluso em casa e dentro de si mesmo, assim ficando por   pensar nas “espurcícias do mundo”, conforme diz o poeta Manoel de Barros.

Solidário a ele, tentei confortar o amigo, embora eu mesmo às vezes também precise me confortar por ter os mesmos pensamentos acerca do Brasil e  dos homens.

Hoje bem cedinho eu estava lendo o poeta-filósofo Lucrécio. Parece até que ele havia ouvido minha conversa com meu amigo e , solidário, nos oferecia uma resposta sob a forma de filosofia em versos, como se fosse mão estendida. Lucrécio diz mais ou menos o seguinte:

“Não há aurora que se siga à noite, nem noite que se siga à aurora, sem que escutemos, ao mesmo tempo, o choro da criança que nasce para a novidade do mundo e o choro triste  de alguém  que  parece desistir do mundo. Os dois choros, o da alegria e o da tristeza, soam juntos . Se o choro da tristeza nos parece soar  mais forte , é preciso partejar também  em nós ouvidos que ouçam o choro das coisas que nascem.  Quem apenas tem ouvidos para ouvir o choro da tristeza, torna-se surdo às coisas que nascem; mas naquele que são partejados  ouvidos para ouvir as coisas que nascem, nascem igualmente  palavras e ações para lutar não contra os tristes, mas contra as causas da tristeza.”

Segundo Lucrécio, filosofar e poetar nada são se não forem, antes de tudo, o partejar de ouvidos que ouçam o choro de tudo o que nasce,  e que , por ter nascido, requer a perseverança constante de nossos cuidados.











"Quando as lágrimas são de tristeza,
elas caem como chuva de uma tempestade;
quando as lágrimas são de alegria,
elas revivificam como as gotas  matinais dos orvalhos."
(Lucrécio).

domingo, 23 de janeiro de 2022

pequena homenagem à grande Elza

 

Uma das melhores aulas de minha vida recebi nas ruas de Ouro Preto. Ao sair para conhecer a famosa cidade histórica, fui abordado  por um guri de uns 12 ou 13 anos.  Ele vestia um sapato que já calçara muitos outros pés antes dos pés dele; e sua calça , também muito usada, estava amarrada com barbante na cintura. Mas quando olhei no rosto dele, vi a riqueza de um sorriso que expressava uma alegria que vinha do lugar onde a vida resiste, tal como a alegria de que fala Espinosa  .

Havia nele uma dignidade na postura e maneira de falar, bem como uma confiança em si mesmo nascida de uma força que vinha de seu sangue, da luta de seus ancestrais. Pensei que ele me pediria algo, mas na verdade ele queria me oferecer.

O guri  se oferecia para ser meu "intercessor" no conhecimento da cidade  de Ouro Preto. Enfim, ele se oferecia para ser meu professor no conhecimento daquele patrimônio histórico. “Intercessor” significa: “aquele que cria intercessões, abrindo os conjuntos fechados”. O intercessor nos desabre e horizonta , diria o poeta Manoel de Barros.

Ao olhá-lo , me veio à mente Chico Buarque e sua música "Meu Guri" , interpretada por Elza Soares. A letra de Chico fala mais do que de um guri, fala de uma situação social excludente que rouba dos guris o direito ao futuro. A voz de Elza é canto de Gaia, voz da Terra-Mãe que chora a dor da injustiça que violenta seus filhos . Ouvindo-a, revejo o guri de Ouro Preto caminhando ao meu lado, um pouquinho à frente, feliz por me ensinar. Quem ama o que faz sente alegria, a potência-alegria de que nos fala Espinosa. Com certeza, esse guri faria a Elza-Gaia sorrir , assim como me fez.

Eu, “Professor Doutor”, aceitei ser aluno do guri. Por meio da fala e explicações dele , a cidade deixava de ser histórica: ela vivia , entrava em devir. Houve um momento em que olhei para o menino e vi o libertário Zumbi dos Palmares; noutro momento, ele parecia o poeta Cartola. Ali, o bisavô do menino foi escravo. Mas em seu bisneto o bisavô se libertava no conhecimento que produz outra história : um devir-memória dos acontecimentos que a História Oficial não conta.

O guri entrou numa mina abandonada e me mostrou onde ficava o ouro que agora adornava o trono onde estava sentado o Papa; ele adentrou numa igreja , subiu ao altar e abriu os braços em cruz, e o Cristo nele eu vi, com a cor e a face do menino-Zumbi.

Por fim, ele me levou à torre bem alta de uma igreja. De lá, ele me apontou sua simples casa: o morro onde o guri morava parecia o Morro de Mangueira... Sobre a majestosa colina, seu casebre estava mais alto e perto do céu do que todas as torres das igrejas.



















sábado, 22 de janeiro de 2022

sem terra, com poesia

 

Um dos meus versos preferidos  de Manoel de Barros é aquele no qual ele diz: “Poesia pode ser que seja fazer outro mundo”. O coração desse verso é a palavra “fazer”. Não por acaso, o sentido original de poesia é “fazer” ( “poiésis”).

Infelizmente, nem sempre é ensinada nas escolas e academias essa relação   umbilical e imanente entre “poesia” e “fazer”. Isso se deve  a duas questões que estão interligadas: 1- certa visão romantizada da poesia; 2- uma concepção  estreita do “fazer”, identificando-o  com  o mero   utilitarismo   “objetivista” e “mercadológico” que se diz “neutro politicamente” , e que só crê ter  valor aquilo no qual se pode pôr um preço.

Porém, não há prática “neutra”, toda prática é política: por isso, sempre são úteis  aos piores poderes as práticas que se dizem “apolíticas”.

Desse utilitarismo rasteiro, inclusive,  nasce uma ideologia tecnicista  que, de mãos dadas com os negacionistas da política, estão sempre ameaçando com suas cicutas a vida pensante que ainda lhes resiste nas escolas e academias.

Mas poesia é prática não só de criar versos, ela também é ação de produzir novos modos de vida. E todo modo de vida pressupõe uma terra. Não há modo de vida concreto que se construa esperando por outra vida no   “Céu”, pois todo  modo  de vida pede uma terra aqui e agora para ser ocupada ,  vivida e cultivada, para dela ser extraído  não só o pão que alimenta o corpo, mas igualmente  o pão que alimenta o espírito.

“Companheiro” vem de “com-panis”: "aquele com quem dividimos o pão ( panis)". Tornam-se companheiros aqueles que aprendem a dividir os "dois pães": o pão que vem do trigo cultivado na terra e o  pão que nasce do afeto partilhado nas lutas coletivas por dignidade, arte e educação . Esse último pão cresce e se multiplica quanto mais nele pomos o fermento da consciência social crítica , ativa e solidária.

Como mostra o belo livro “Sem terra com poesia”, a luta pela terra também se faz com poesia. Não há como fazer outro mundo, outro mundo em todos os sentidos, mundos sociais e subjetivos, sem compreendermos  que a poesia autêntica é sempre construção de mundos: mundos que sejam, antes de tudo,  uma  terra plural sem cercas , uma terra horizontada.







curso de extensão/filosofia moderna

 


segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

os poetas da tribo

 


a poesia originária

 Em sua Poética, Aristóteles define a poesia como “imitação”: a poesia imita a vida. Logo, segundo ele, a poesia não é a vida, pois o que faz da poesia poesia, isto é, arte-ficção, é que ela não é a vida. Somente a filosofia, argumenta Aristóteles , pode conhecer e pensar a  vida. O poeta imita a vida por intermédio de imagens, ao passo que o filósofo pensa-conhece  a vida por meio de conceitos.

Mas acontece algo curioso e que dá o que pensar nessa referida obra de Aristóteles. Quando ele se refere aos pré-socráticos, Aristóteles reconhece que eles escrevem em versos, porém os  versos dos pré-socráticos não são poesia, seus versos não são como os de Hesíodo ou Homero.

Os versos dos pré-socráticos não são imitação da vida, eles querem pensar a vida, mas sem empregar os conceitos. Ou melhor, nos pré-socráticos a imagem e o conceito caminham umbilicados .

Porém, Aristóteles não  considera os pré-socráticos poetas ou filósofos , ele os chama de “fisiólogos”: algo acima do poeta, contudo abaixo do filósofo.

"Fisiólogo" vem de "physis": a "natureza" enquanto potência inesgotável que fontaneja. O fisiólogo é aquele que fia e tece a palavra que desdobra o sentido que brota na e da natureza. 

Não por acaso, Nietzsche, Deleuze e Heidegger retornam aos pré-socráticos para renovarem a filosofia  desfazendo a opinião aristotélica de que a filosofia está acima da vida. Esse colocar-se acima da vida é, na verdade, um negar a vida, o corpo e a existência.

Nos pré-socráticos, portanto, há poesia. Mas não é poesia enquanto forma literária. A poesia dos pré-socráticos é um “poetar originário”: experiência  singular nascida da indiscernibilidade  entre a arte e a vida.

A poesia dos pré-socráticos não imita a vida: ela é a vida pensando a si mesma, sentindo-se. Vida que é, ao mesmo tempo, a realidade primeira  a ser pensada e os meios expressivos desse pensar uno, porém  aberto e afirmativo do  existir múltiplo.






sábado, 15 de janeiro de 2022

Espinosa: "Ninguém sabe tudo o que pode um corpo"

 

Segundo Espinosa, quanto mais o corpo e a sensibilidade são  afetados de muitas e diversas maneiras, mas a mente enriquece sua compreensão da realidade, nascendo igualmente nela  um pensar diverso e múltiplo.

Corpo, afeto e sensibilidade não atrapalham ou diminuem o pensar da mente; ao contrário, corpo, afeto e sensibilidade potencializam o pensar da mente fazendo despertar nela, igualmente, ouvidos, tato, gosto e olhos para compreender a vida concretamente.

É por seguir essa lição de Espinosa que sempre coloco imagens e música acompanhando os textos que posto aqui para as amigas , amigos, alunos e ex-alunos.

Há sentidos que música e imagem expressam melhor do que a palavra escrita, e toda palavra escrita diz mais do que mera palavra quando o que ela diz também podem dizer , de formas diferentes, a música e a imagem, tanto a imagem da pintura como a imagem-movimento do cinema.

Quando apenas a mente aprende, fica só a teoria; quando é apenas o corpo, nada há senão  técnica.

Mas quando mente e corpo aprendem juntos e em “concílio”, como diz o poeta-filósofo Lucrécio,   compreendemos então que pensar, sentir  e agir são inseparáveis , como também são inseparáveis a ética, a  estética, a política e a educação, quando  libertárias.

Quando mente e corpo participam juntos de um aprendizado, o que se aprende não é apenas  teorizado ou reproduzido mecanicamente, e sim vivido e partilhado.

Espinosa assim ensina: “Ninguém sabe tudo o que pode um corpo”, isto é, ninguém sabe tudo o que pode a potência de um  corpo e sua capacidade de resistir,  agir, perseverar.

Ninguém sabe tudo o que pode um corpo até que o corpo , agindo , nos ensina a  criar. E quando a mente agencia seu pensar com o corpo, também a mente ninguém sabe tudo o que ela , pensando, é capaz de criar.

O corpo de que fala Espinosa não é apenas  o nosso corpo individual com seus braços e pernas; o que ele diz também se aplica ao  corpo da palavra( cuja   alma é a ideia que faz pensar), ao corpo do  som ( cuja alma é a música que afeta) , ao corpo das tintas (cuja alma é um ver que potencializa nossos olhos) , enfim, o que ele ensina também se aplica ao corpo social ( cuja alma é a resistência democrática pela vida coletiva digna).

 

“Poesia é para escrever  com o corpo.”(Manoel de Barros)

 

(Imagem: “Espinosa”, cuja  paleta  é multicor)




-Este filme de Wim Wenders sobre Pina nos faz compreender aquele ensinamento de Espinosa: “Ninguém sabe tudo o que pode o corpo”:



sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Lucrécio e a Vênus-Natura

 O poeta-filósofo Lucrécio inicia seu poema evocando Vênus.  Na mitologia, Vênus é , ao mesmo tempo, aquela que guarda a semente de tudo o que nasce e a terra na qual as sementes são lançadas, de tal modo que Vênus  também vive e floresce nas sementes que nela são plantadas.

 Os átomos não são pedras inertes, eles são a semente de tudo. Pois tudo o que existe vem de uma semente: nenhum  existente pode nascer do nada, ou ao nada retornar. 

“Do nada  nada vem”, afirma Lucrécio. O nada não faz parte da  natureza, tampouco pode  negá-la ou limitá-la. Pois como poderia o nada, sendo nada, impor limites ao que é? 

A morte desfaz a composição de um ser, mas ela não destroi  os átomos : eles se tornam  novas sementes para outras vidas nascerem. 

O nada é uma projeção feita pela  mente  supersticiosa sobre a natureza. O nada é a sombra que o medo e a ignorância lançam sobre a  existência.  Fanatismos religiosos, niilismos, necropolíticas...são formas com as quais a mente ignorante tenta negar  a natureza. 

Além dos átomos-sementes, Lucrécio também nos fala do vazio. O vazio não é o nada, pois o vazio não é negação da realidade. Ao contrário , é graças ao vazio que os átomos podem mover-se. 

O vazio não é apenas algo exterior aos átomos, pois nos corpos compostos também há vazio. Quando o fogo aquece a água, o fogo penetra na água porque na água  há vazio, de tal modo que a água aquecida é fogo e água existindo juntos, graças ao vazio de que a água também é feita. O ar entra dentro de nós  e enche  nossos pulmões de vida porque somos feitos também de vazio. O vazio não se opõe à vida, pois a vida é feita de átomos-sementes e vazio. 

A  Vênus-Natureza não é apenas a  semente, ela também é o vazio sem o qual as sementes não germinam (tal como o vazio do útero , sem o qual não pode brotar e crescer a vida nova que a esse mesmo vazio vem preencher).

Lucrécio também ensina que há duas Vênus. A primeira delas é apenas “mito”, isto é, delírio  antropomórfico projetado na natureza. A Vênus-mito sente raiva, faz intrigas, tem inveja e se vinga, tal como fez  contra Psiquê, por não aceitar que essa fosse amada por Eros, o Amor. 

Essa Vênus-mito não é a Vênus que Lucrécio evoca. A Vênus de Lucrécio é poético-filosófica : ela é a própria potência inesgotável da natureza. Ela não é só o corpo, ela é corpo , alma, semente, terra e vazio. Ela é o amor que ama, unindo-os, alma e corpo em concílio.

A Vênus do Lucrécio-Semeador não é mito que nega a natureza, ela é Potência Germinativa que afirma a variedade e pluralidade das infinitas sementes da natureza, cujo germinar ela parteja . 

E nada , nem mesmo a ignorância dos homens  detém seu semear ,  por mais que tentem.


(Imagem: "O semeador"/ Van Gogh)










quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

acalântis

 

Segundo a mitologia , Acalântis era uma jovem que desafiou as Musas , deusas das artes. O desafio não foi por mera vaidade  ou pretensão.  Acalântis não as desafiou xingando ou ameaçando, ela as desafiou cantando.

Toda criação artística potente  é um desafio que o artista lança à arte e a si mesmo, para assim reinventar  arte e vida, pois  nada de novo se cria sem desafios.

As obras de Van Gogh são um desafio lançado à pintura ; os solos de sax de John Coltrane são um desafio lançado à música; os versos de Manoel de Barros são um desafio lançado à poesia.

Com sua arte, o artista desafia a matéria e o espírito a  se amar para  serem um único ser na obra que nasce, como um ser vivo.

Essa união singular entre  corpo e espírito para formarem um único ser vivo, seja gente ou obra de arte ,   o poeta-filósofo Lucrécio chamava de “concílio”. 

Acalântis cantava estando feliz ou triste, amando ou desgostando, fosse primavera ou inverno. E quem a ouvia era acalantado: aumentando a  alegria , diminuindo a dor.

Embora deusas das artes, as Musas se surpreenderam com a arte de cantar de Acalântis.  Além da beleza, havia também calor no canto de Acalântis, como se dentro dela brilhasse  um sol.

Então , para que o canto de Acalântis ganhasse  asas e pudesse ir longe,  as Musas  transformaram Acalântis em um passarinho canoro: o pintassilgo, conhecido como “o passarinho cujo canto acalanta”.

“Acalantar” significa :  contagiar com calor, com vida. O pintassilgo acalanta não só aos ouvidos com seu  canto , ele  acalanta também o ser  inteiro  de quem sabe achar no canto um ninho.

A arte não é só  canto de alegria , ela  também pode ser  clínica e nos auxiliar a curar   a   dor , tanto as físicas quanto as psíquicas.

 O pintor acalanta com suas cores, a cantora acalanta com sua voz ,   o poeta acalanta com suas palavras-assobio : para que não morramos do frio desses dias sombrios.

Para quem as sabe ver , ouvir e sentir, cor , voz e palavra também são ninhos.

 

“Os raminhos com que arrumo as escoras do meu ninho

são mais firmes do que as paredes dos grandes prédios do mundo.” (Manoel de Barros)

 

 (  bem cedinho, todo dia sou acordado pelo canto de  um bem-te-vi . Ele  fez ninho numa árvore perto de minha janela. Mal nasce o dia, o bem-te-vi já está  cantando . Nem mesmo um carcará imenso que ronda por aqui mete medo no bem-te-vi. Ao ouvi-lo cantando, pensei: “Hoje chove, chove, chove...Mesmo assim ele persevera com sua arte.” Fui  à janela : assim que o vi , ele voou atravessando a fina chuva e pousou no galho mais alto.  Ele então cantou e  apareceu outro bem-te-vi , ambos dividindo o mesmo galho. Olharam para o horizonte, tomaram coragem  e para lá voaram... Foram eles que me lembraram hoje  “Acalântis” )



















domingo, 9 de janeiro de 2022

Manoel, Espinosa & Lucrécio

 

O maior sábio da Grécia não foi Sócrates, Platão ou Aristóteles. O maior sábio foi Tirésias. Ele não se tornou sábio competindo para ser o “Dono da Verdade”  ou querendo ter opinião acerca de  tudo. Tirésias se tornou sábio   a partir de algo que ele viu e viveu .

Assim  aconteceu : atrás da casa de Tirésias passava um rio. Do rio vinha a água que ele bebia e o alimento que pescava. Até que um dia Tirésias se fez uma pergunta: “De onde vem esse rio? Onde fica seu minadouro?”.

Tirésias resolveu então  ir contra a corrente no esforço para achar a nascente. Somente  indo contra a corrente  se pode achar  nascentes, de rio ou de ideias . A fonte nunca vive no “acostumado” , no “mesmal”.

Não demorou para alcançar  partes onde o rio, embora o mesmo, já não lhe era conhecido : viu em suas margens flores que nunca tinha visto, ouviu passarinhos dos quais não sabia o nome. 

Enquanto prosseguia, não via trilhas ou pegadas. Sentindo-se correndo riscos, Tirésias   hesitou, quase abortando sua “linha de fuga”. Até que ele olhou à frente e viu alguém a se banhar na fonte da qual o rio nascia. Era Atena, a deusa da sabedoria. Ela estava nua...

A  sabedoria precisa às vezes se banhar  em fluxos  para reinventar-se nova. Nas academias  , a sabedoria se veste de  teorias. Ela nunca se mostra nua   nesses lugares. Quem a conhece apenas  vestida pode  até se tornar  um teórico , mas nunca será  um pensador-poeta que sabe  chamar Atena  pelo seu verdadeiro nome: Sofia.

Tirésias então percebeu que ao se despir das teorias é como poesia que a sabedoria se mostra a quem  teve que se perder  para achá-la.

A   autêntica sabedoria  é fonte que renova a si mesma  para que em nós  não seque a vida.

                                                                                                                                                

“A palavra abriu o roupão para mim:

ela quer que eu a seja.” (Manoel de Barros )

 

“A filosofia deve ser ensinada  junto com a poesia, para assim agirmos como o médico cuidadoso  que , visando melhor  curar seu paciente, mistura   o remédio amargo junto com o mel.” (Lucrécio)

 

( Quando Espinosa morreu,  religiosos  fanáticos invadiram o lugar onde o filósofo morava em busca dos muitos “livros perigosos” que, segundo eles, Espinosa teria escrito  com o “Diabo”. Eles queriam tacar fogo nesses livros. Porém, no quarto modesto do filósofo, alugado na casa de uma família simples, os intolerantes  encontraram poucos livros. Um deles estava aberto sobre a mesinha de estudos de Espinosa, era o livro “Sobre a natureza das coisas”, do poeta-filósofo Lucrécio. Do livro saiu uma luz potente, luz do conhecimento  libertário, que pôs para correr os obscurantistas  ignorantes...)




Acabou de ser lançada  esta edição bilíngue . Na   Apresentação do livro, intitulada “Ver com Lucrécio”, Brooke Holmes escreve: “[Lucrécio] ataca o cerne da política do medo que está por trás dos nacionalismos racializados e dos fascismos genocidas.” E no Prefácio  (“Lucrécio, nosso contemporâneo”), Thomas Nail afirma: “voltamos a Lucrécio hoje (...) como se ele fosse um sopro de vida nova na vanguarda do século XXI.”



Quando Lucrécio nos ensina sobre os átomos, ele compreende essa realidade primeira de forma muito diferente do mero mecanicismo. Para Lucrécio, o que explica os átomos não é eles serem unidades mínimas da matéria, como se fossem indivíduos ou egos isolados. Para falar dos átomos, Lucrécio emprega as expressões "corpos generativos", isto é, corpos que têm a potência para gerar, e "sementes das coisas", pois os átomos não são pedras , eles são sementes. Na mitologia, a protetora das sementes, para que essas nunca sequem ou percam sua fertilidade, essa protetora é Vênus, uma das manifestações do Feminino Ancestral. Quando começa o poema, Lucrécio pede o auxílio a Vênus, para que essa, dando-lhe as mãos, o auxilie a percorrer os caminhos infinitos da Natureza, sem se perder, e para "na imensidão viajar em espírito e mente" ( verso 74 do poema). Assim, de mãos dadas com Vênus seguem Epicuro,  Lucrécio, Espinosa... oferecendo a mão libertária deles também para nós.

Para Lucrécio, e esse é o primeiro dos Princípios da Natureza, algo real não pode ter vindo do nada, pois do nada nada vem. O nada não tem dimensão real, o nada é a projeção do medo que nasce da mente que não compreende.

Assim, tudo o que é real vem de uma semente, e a própria mente se torna uma semente, uma semente da qual germinam ideias, quando compreende a natureza e a si mesma, pois não há como a mente compreender a natureza sem compreender, ao  mesmo tempo ,a si mesma.

Além dessas sementes das coisas, Lucrécio também nos fala do vazio e do clinâmen. Sementes-átomos, vazio e clinâmen: eis os princípios dos quais tudo nasce.

O vazio não é a mesma coisa que o “nada”. O nada se opõe ao ser, ao passo que o vazio é co-presente ao ser , aos átomos-sementes. É no vazio que os átomos-sementes se movem. 

Ao se moverem , os átomos são capazes de pequenos “desvios”. Esses desvios são mudanças na direção sem que nada da direção antiga possa explicar. Nesses desvios de trajetória, o átomo-semente desabrocha nova direção , encontrando-se com outro átomo-semente que se movia num trajeto diferente, de tal modo que esse desvio produz um corpo composto cujo movimentos passam a ser comuns e coordenados. Todos os corpos compostos têm na sua origem um desvio originário, e não um plano prévio ou cartilha .

Os átomos são como sementes, o vazio é o terreno no qual os átomos-sementes são lançadas, ao passo que o desvio-clinâmen é o germinar da semente da qual aflora toda  vida complexa e múltipla que nossos olhos veem e nossa sensibilidade toca, ao ser também tocada pela Natureza-Vênus, ao mesmo tempo Natura Naturante e Natura Naturada.

 

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O livro de Lucrécio foi escrito em versos, ao mesmo tempo filosofia e poesia. Na forma, o livro lembra a "Odisseia", de Homero. Mas na odisseia filosófica de Lucrécio o personagem não é Ulisses, e sim Epicuro, o filósofo atomista que ensinava em jardins. Sempre me lembro de Epicuro quando ouço o verso de Caetano :"Os átomos todos dançam🎵..."







segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

a arruda, o girassol , a rosa e o agenciamento

 

Algumas pessoas me perguntam no facebook por qual motivo  coloco sempre a folhinha verde🍀 , o girassol 🌻, as mãos enlaçadas ( infelizmente, o blog não possui esse símbolo) e uma rosa vermelha 🌹 em minhas respostas às amigas e amigos quando, gentilmente, comentam em minhas postagens .

A folhinha verde simboliza, para mim, a “arruda”: para pedir proteção e sorte aos que não se resignam e agem . Poesia e filosofia também podem ser   arruda para a  proteção e clínica  da nossa  mente.

O girassol ,por sua vez,  simboliza Van Gogh  e o poeta Manoel de Barros : “Um girassol se apropriou de Deus: foi em Van Gogh” , diz um verso do poeta. O girassol como  fé inabalável na criação e na arte , apesar de tudo que nos ameaça.

As mãos enlaçadas simbolizam a necessidade de fazermos agenciamentos e criarmos elos .

Já a rosa simboliza para mim a intenção  de Espinosa ao colocar  a imagem de uma rosa para ilustrar seu livro intitulado “Ética”. Abaixo da rosa Espinosa escreveu a palavra latina “caute”, que significa “cuidado”. “Cuidado” não no sentido de medo ou receio, e sim enquanto ação de cuidar, proteger  e potencializar  tudo o que é digno e libertário.

 Tudo aquilo que é frágil necessita de cuidado. “Frágil” não é o mesmo que “fraco”. Frágil é toda realidade que guarda em si uma virtualidade ou potencialidade a desabrochar . Essa virtualidade é uma “reserva de futuro”.

A criança é frágil nesse sentido; frágeis também são as ideias que ensinam, ideias que trazem potencialidade  dentro. Fraco, ao contrário , é tudo aquilo que precisa de armas e força bruta para se impor.

As ideias são frágeis, porém fraca é a mente ignorante de ideias. Frágil é tudo aquilo que, para existir ,  precisa ser criado e mantido com perseverança e cuidado; fraco é o que só possui o poder da destruição.  

Sobretudo nesses dias em que as mentalidades doentias da política agravam  as tragédias sociais e sanitárias, que em 2022 não nos faltem proteção , saúde, agenciamentos , força e arte.

 

 

“As intensidades do girassol são forças do tempo.” ( Cláudio Ulpiano)

 

( Também gosto muito deste   “Girassol” , de Klimt: é um girassol feminino , que parece proteger, com cuidado, as muitas flores que, em plurais cores,  florescem em sua base).




 

domingo, 2 de janeiro de 2022

do "sertão" do Oriente Médio ao sertão do Nordeste...

 

Esta montagem grotesca está sendo propagada em meios obscurantistas  como panfleto  para a  “campanha eleitoral” de 2022. Como “cabo eleitoral teológico-político”, vê-se  um “Jesus ariano”, loiro e de olhos claros,  como se estivesse  de mãos dadas com o genocida.

A esquerda, os humanistas, os educadores , as feministas, as minorias, os indígenas, os pretos e pobres que se inspiram em  Dandara e Zumbi, os trabalhadores que se reconhecem como trabalhadores ( e desconfiam do termo “colaborador” )...todos esses seriam “comunistas” :   seguidores do “Demônio”.

A Bíblia não descreve como teria sido Jesus fisicamente. Segundo a teologia cristã, Cristo  assumiu a forma humana. Porém,  por qual razão Cristo escolheria assumir aparência ariana se  ele nasceu   no  mestiço Oriente Médio?

Além disso,  se ele queria   falar como um irmão aos marginalizados e explorados, não fazia sentido Cristo  tomar a forma física com o mesmo tom de pele clara dos imperadores romanos.  Cristo tinha que ter o mesmo tom de pele dos povos perseguidos e explorados, inclusive explorados pelas autoridades religiosas de Israel.

Sabe-se que , àquela época, o povo judeu era semelhante ao que hoje é o povo árabe. O povo judeu foi “embranquecendo” devido às muitas diásporas que , ao longo da história, os espalharam até às terras dos povos eslavos, francos e germânicos.

O “Jesus ariano loiro de olho azul”, que tanto agrada à mentalidade casagrandista,  nasceu por exigência dos reis de origem germânica, que exigiam ver em Jesus um espelho deles.

Quando Maria e José fugiram para o Egito, com o menino Jesus no colo, assim o fizeram porque sabiam que não lhes seria difícil se passarem como membros do povo egípcio , isto é, um povo africano.

Escavações  feitas recentemente na terra onde Jesus nasceu   encontraram restos mortais  de seres humanos contemporâneos seus. Presume-se que Cristo, ao assumir a forma humana, tomou a aparência de um ser humano semelhante aos seus “conterrâneos”.

Programas de computador conseguiram  recriar como teriam sido os judeus daquela época. Eles não eram altos, deviam ter a média de altura do típico nordestino do Piauí, Pernambuco ou Ceará, sendo a cor da pele também semelhante, pele exposta ao sol por gerações.

 A Bíblia não descreve Jesus, porém relata que o homem do povo daquela época usava barba e cabelos curtos, ambos pretos e crespos .

Então,  o judeu daquela época, do qual Cristo tomou a aparência, não era alto, tinha cabelos e barba curtos ( crespos  e  pretos)    e pele semelhante à do  povo que vive  sob o nosso  ensolarado  céu do  Nordeste brasileiro.

Ou seja, se Maria e José vivessem  hoje no Brasil e fossem perseguidos pelo Herodes-miliciano, e Jesus fosse ainda uma criança  precisando ser protegida, eles não iriam para Santa Catarina ou Paraná, eles iriam para o sertão nordestino.


“O conhecimento nos ensina que nenhum terror dura para sempre. E o mesmo conhecimento também nos ensina que quanto mais os seres humanos que agem pela justiça e dignidade  fortalecerem seus vínculos de amizade  , mais breve será a duração  do terror.”( Epicuro)





sábado, 1 de janeiro de 2022

a poesia originária

 

Em sua Poética, Aristóteles define a poesia como “imitação”: a poesia imita a vida. Logo, segundo ele, a poesia não é a vida, pois o que faz da poesia poesia, isto é, arte, é que ela não é a vida. Somente a filosofia, argumenta Aristóteles , pode conhecer e pensar a  vida. O poeta imita a vida por intermédio de imagens, ao passo que o filósofo pensa a vida por meio de conceitos.

Mas acontece algo curioso e que dá o que pensar nessa referida obra de Aristóteles. Quando ele se refere aos pré-socráticos, Aristóteles reconhece que eles escrevem em versos, porém os  versos dos pré-socráticos não são poesia, seus versos não são como os de Hesíodo ou Homero.

Os versos dos pré-socráticos não são imitação da vida, eles querem pensar a vida, mas sem empregar os conceitos. Ou melhor, nos pré-socráticos a imagem e o conceito caminham umbilicados .

Porém, Aristóteles não  considera os pré-socráticos poetas ou filósofos , ele os chama de “fisiólogos”: algo acima do poeta, contudo abaixo do filósofo.

Não por acaso, Nietzsche, Deleuze e Heidegger retornam aos pré-socráticos para renovarem a filosofia desfazendo a opinião aristotélica de que a filosofia está acima da vida. Esse colocar-se acima da vida é, na verdade, um negar a vida, o corpo e a existência.

Nos pré-socráticos, portanto, há poesia. Mas não é poesia enquanto forma literária. A poesia dos pré-socráticos é um “poetar originário”: experiência  singular nascida da indiscernibilidade  entre a arte e a vida.

A poesia dos pré-socráticos não imita a vida: ela é a vida pensando a si mesma, sentindo-se. Vida que é, ao mesmo tempo, a realidade primeira  a ser pensada e os meios expressivos desse pensar uno, porém  aberto e afirmativo do  existir múltiplo.