Naquele dia, o hall da Uerj estava repleto de estudantes sentados
no chão formando uma roda, uma “ágora”. A
gente estava ali para assistir ao Teatro
do Oprimido. Augusto Boal , seu criador, foi ao centro da roda e explicou o tema da peça : uma preconceituosa elitista
tinha um filho dependente de
drogas, porém ela desconhecia o fato. Isso gerará uma situação onde haverá um
opressor e um oprimido. Boal se retira , a peça começa.
A primeira cena mostra o filho entrando escondido no quarto da mãe para surrupiar um relógio
caro para trocá-lo por drogas. Ao se dar
conta do furto, a mulher grita: “Maria!” . Mal a trabalhadora doméstica entra, já a fere um grito: “Cadê meu relógio!?”Por
ter feito faculdade, a patroa não se equivocava nas regras da gramática.
Inclusive, essa destreza com as palavras
fazia delas armas a serviço do preconceito e do ódio . No auge da
violência simbólica, entra o Boal e diz:
“parem a cena!”, e pergunta à plateia : “alguém
quer tomar o lugar do oprimido para
tentar vencer o opressor?” Uma estudante de psicologia levantou a mão,
foi até ao Boal e pegou a vassoura da personagem ( era o
elemento cênico a simbolizar o oprimido). Como não havia roteiro, a estudante
poderia interromper o fluxo verbal da opressora quando quisesse. Porém, a
atriz-patroa, extremamente hábil e agressiva, pôs abaixo com facilidade as
táticas psicológicas da estudante. A
aluna pediu para sair. Outro estudante
levantou o braço , um estudante de
direito. Boal passou-lhe a vassoura ,
recomeçou a peça. O garoto argumentava bem , era confiante. Mas ele tinha um
ponto fraco: comportava-se mais como um
advogado, não como a vítima de fato. Ele não sabia o que era ser mulher, pobre,
negra, explorada...Também não resistiu... Ninguém mais levantava a mão, fez-se
um silêncio. Pensei comigo: “Será que a teoria nada pode contra a ignorância
armada com palavras? Mas ou a filosofia é uma arma para a gente lutar contra
isso ou então não é nada...”
Mas enquanto tomava coragem para ir ao palco olhei
para trás e vi, na entrada do banheiro feminino, a faxineira de verdade
da Uerj espreitando tudo. Ela estava
“invisível” a todos. Quando o Boal perguntou se deixaríamos a opressão
vencer, a faxineira tomou coragem e gritou: “eu vou enfrentar
ela!”, e foi atravessando de vassoura na
mão por entre os alunos . O Boal a recebeu com um sorriso, perguntando o nome
dela. “Maria da Anunciação ”, respondeu
nervosa. Boal deu-lhe a vassoura da personagem e
Maria passou ao Boal a vassoura que era seu ganha pão. E as vassouras, a
da arte e a da vida, eram exatamente iguais! Quando a peça recomeçou, a patroa
retomou seus protofascismos. Contudo ,Maria não se curvou, tampouco entrou em
disputas dialéticas. Ela segurou firme a vassoura , seu “ganha pão”, e fez dela também seu instrumento de indignação:
Maria saiu dando vassouradas na opressora preconceituosa... E batia de
verdade! Foi preciso toda a equipe para segurá-la, Maria era forte, muito forte.... Explicaram
para ela que era tudo de mentira.Maria respondeu: “Mentira!? É que isso não
acontece com vocês!”. Aos poucos ela foi se acalmando, pediu água com açúcar,
já sorria. Todo mundo sorria. E de vassoura na mão voltou Maria para seu trabalho passando
sorrindo diante da gente como uma professora que acaba de dar uma excelente aula.
( imagem partilhada da página do facebook Marias Do Brasil, grupo de teatro composto por empregadas domésticas)
O texto acima , que narra experiência que tive quando era estudante de filosofia, é parte de uma fala que fiz no "Seminário: Museologia, Pensamento Decolonial, Outras Modernidades Possíveis”, belo evento organizado pelos professores Vladimir Sybilla e Mário Chagas , com a participação da professora Juliana Siqueira .