domingo, 29 de setembro de 2019

- o fazedor de amanhecer


Nietzsche dizia que o filósofo é semelhante ao galo que , no meio da noite cerrada, canta a manhã nova que vem. Enquanto muitos dormem e, de olhos fechados, apenas sonham um novo dia , o filósofo abre os olhos no meio da noite e, sem desesperar de sua solidão, canta com estranha alegria o novo dia antes mesmo que haja dele algum sinal ou clarão.
Hegel achava que o filósofo é como a coruja que vê no escuro. Pois quando se extinguem as certezas do dia claro e tudo escurece deixando todos cegos , é nesse momento que a coruja desperta e se faz guia na escuridão do ocaso.
Deleuze e Cláudio Ulpiano comparam o filósofo ao tordo. Este passarinho canoro canta singularmente diante de dois acontecimentos do dia: quando o sol morre e quando o sol nasce. Ora seu canto é despedida do passado, no fim da tarde, ora é saudação ao futuro, no raiar da aurora. Seu despedir-se do sol que morre não é um lamento, é um agradecimento por ter existido aquele dia, não importando o que nele aconteceu. Seu saudar o sol que nasce não é otimismo ou esperança, é gratidão por haver novo dia , não importando o que nele aconteça: seu canto é luz que também faz amanhecer...Mas o poema que o tordo canta também o põe sob risco: a soturna ave de rapina que o preda  fica à escuta. Apesar disso, o tordo não cala: afirma sua liberdade e canta à vida, como o libertário diante do fascista.

                                                                                                                                             
-link para  vídeo de um trabalho escolar sobre o poema “O fazedor de amanhecer”, de Manoel de Barros.  Realizado por alunos do Colégio Objetivo . Rio Brilhante – MS:

quinta-feira, 26 de setembro de 2019

inventar e criar


DIFERENÇA ENTRE INVENTAR E CRIAR

“Inventar”  se aplica  a coisas. Celular ,  automóvel,  relógio ... existem porque foram inventados. Já o “criar” é uma arte, no sentido bem amplo da palavra. Não só um poema  ou uma música são criados,  pois  também dizemos: “criei um filho”, e não “inventei um filho”; ou “criei um laço de amizade”, e não “inventei um laço de amizade”; ou “criei novas possibilidades para minha vida”, e não “inventei novas possibilidades para minha vida”. Assim falamos porque há uma percepção em nós, ainda que inconsciente, de que existir é criar e criar-se, ao passo que é coisa de rebanho viver  apenas mecanicamente, mesmo que cercado de máquinas tecnológicas .  Um celular , por exemplo, apesar de  fruto da invenção tida por avançada e moderna,  pode ser usado a serviço de uma mentalidade retrógrada ( como vemos nos protofascismos on line). Isto porque a inventividade produz apenas coisas; e as coisas , por não possuírem vida, podem virar instrumento de propagação e poder de  mentalidades mórbidas .  Já a criatividade produz ideias, e estas são  a vida e a saúde de uma sociedade que cria a si própria , aberta e pluralmente. O mero inventar nos faz digitadores, telespectadores, consumidores, enfim, apertadores de botão e teclas de coisas ; já a criatividade nos impele a sermos  pintores, poetas, escultores, enfim, atores de nossa própria  vida, pessoal e coletiva. É sobretudo essa potência criativa imanente , pluri e multicolorida, o alvo  deste  Estado-Pastor que  quer reduzir  tudo ao preto e branco, azul ou rosa . Em todo totalitarismo , não importa se político , comportamental ou acadêmico, são sempre os criativos os que sofrerão as maiores consequências. E são sempre deles, e neles, que nascem e perseveram as resistências. 

  

domingo, 22 de setembro de 2019

barbárie...


O filósofo Espinosa dizia , não sem dor, que   "A infância é a pior época da vida". Mas Espinosa não quis atribuir à infância em si algum mal. Ele quis  dizer que é quando somos   crianças que  mais dependemos  da qualidade dos adultos e da sociedade que nos cercam. São os adultos, com suas ignorâncias e superstições, com seus medos e intolerâncias,  com seus ódios e violências, que tornam difícil o fato de  ser criança.  Se os adultos buscassem mais a liberdade do que a escravidão, se eles cultivassem mais a compreensão do que a ignorância,nada haveria de melhor  do que ser criança diante de adultos assim. Existir , aprender e  crescer seriam , em todos os sentidos, uma alegria. Mas nunca foi tão difícil ser criança do que nessas épocas que correm. O Estado protofascista quer instrumentalizar  a infância e a juventude em escolas militares, para assim lhes pôr uniformes por dentro e  por fora  , armando suas mãos e mentes com armas . Enquanto isso ,  nas comunidades pobres, o mesmo Estado protofascista,  armado de fuzil e preconceito,   tira a vida de crianças enquanto elas estão indo para a escola , vindo  dela ou mesmo quando estão em sala de aula.

(Ágatha, 8 anos, a mais nova vítima da violência armada que já atingiu 16 crianças no Rio neste ano.Menina morreu na noite de sexta, com um tiro nas costas, quando estava dentro de uma kombi no Complexo do Alemão, zona norte da cidade)

https://brasil.elpais.com/brasil/2019/09/21/politica/1569099826_106579.html

sábado, 21 de setembro de 2019

as raízes da primavera


Segundo a mitologia, Hades é o deus que habita a região  escura muito abaixo da superfície da terra. Nesse lugar nenhuma luz entra . Certa vez, porém, Hades ouviu risos vindo da superfície. Ele subiu e viu Perséfone... Ela estava com sua mãe , a deusa Ceres. De “ceres” vem “cereal”, pois Ceres é a divindade do plantio e colheita dos cereais. Ceres é filha de Cronos, o Tempo, com Cibele, a deusa da fertilidade. E foi em sua neta Perséfone que a fertilidade de Cibele  se tornou uma força criativa semelhante àquela que vemos no artista, pois  Perséfone é a deusa cuja arte é fazer nascer flores. Perséfone  mata outra fome diferente daquela que Ceres mata: Perséfone mata a fome de beleza, de poesia e de cores. Hades se apaixonou  pelas flores e quis levá-las para enfeitar sua noite eterna. Naquele ser entrevado brotou um desejo por cores. Ele raptou então Perséfone para fazê-la morar lá embaixo . Porém, naquele mundo carente de luz  , de Perséfone nasciam  somente os caules com espinhos, sem as rosas.  Enquanto isso,  sentindo a falta de Perséfone, Ceres ficou deserta e o grão não mais germinou. Havia  fome de pão e beleza, de pão e poesia, e ninguém sabia qual das duas fomes doía mais: a primeira esvaziava o estômago,  a segunda secava o coração. Zeus interveio e foi feito então um acordo. Durante certo tempo do ano Perséfone viveria lá embaixo. E foi assim que nasceu   o inverno. Até que vem o ansiado tempo em que Perséfone sobe e enche de vida a terra :  tudo recomeça , renovado. Hoje, a treva não está somente lá embaixo,  treva pior  nos ameaça aqui em cima.  Apesar disso, nada detém  Perséfone: depois de amanhã  começa a  primavera, tempo em que Perséfone chega para florir de vida  a terra.

“O céu da teoria é cinza;
mas sempre verdejante é a árvore da vida” (Goethe)                                         

- imagem: “Roots” ( “raízes”), de Frida Kahlo.



e hoje, dia 21, é dia da árvore:

quinta-feira, 19 de setembro de 2019

marias do brasil


Naquele dia, o hall  da Uerj estava repleto de estudantes sentados  no chão formando uma roda, uma “ágora”. A gente estava ali para assistir ao  Teatro do Oprimido. Augusto Boal , seu criador, foi ao centro da roda e explicou  o tema da peça : uma preconceituosa   elitista   tinha um filho  dependente de drogas, porém ela desconhecia o fato. Isso gerará uma situação onde haverá um opressor e um oprimido. Boal se retira , a peça começa.
A primeira cena  mostra o filho entrando escondido  no quarto da mãe para surrupiar um relógio caro para trocá-lo por drogas. Ao se dar  conta do furto,  a mulher  grita: “Maria!” . Mal a trabalhadora  doméstica entra,  já a fere um grito: “Cadê meu relógio!?”Por ter feito faculdade, a patroa não se equivocava nas regras da gramática. Inclusive, essa destreza com as palavras  fazia delas armas a serviço do preconceito e do ódio . No auge da violência simbólica,  entra o Boal e diz: “parem a cena!”, e pergunta  à plateia : “alguém quer tomar o lugar do oprimido para  tentar vencer o opressor?” Uma estudante de psicologia levantou a mão, foi até  ao Boal  e pegou a vassoura da personagem ( era o elemento cênico a simbolizar o oprimido). Como não havia roteiro, a estudante poderia interromper o fluxo verbal da opressora quando quisesse. Porém, a atriz-patroa, extremamente hábil e agressiva, pôs abaixo com facilidade as táticas psicológicas da estudante.  A aluna pediu para  sair. Outro estudante levantou o braço ,  um estudante de direito.  Boal passou-lhe a vassoura , recomeçou a peça. O garoto argumentava bem , era confiante. Mas ele tinha um ponto fraco: comportava-se  mais como um advogado, não como a vítima de fato. Ele não sabia o que era ser mulher, pobre, negra, explorada...Também não resistiu... Ninguém mais levantava a mão, fez-se um silêncio. Pensei comigo: “Será que a teoria nada pode contra a ignorância armada com palavras? Mas ou a filosofia é uma arma para a gente lutar contra isso ou então não é nada...”
Mas enquanto tomava coragem para  ir ao palco  olhei  para trás e vi, na entrada do banheiro feminino, a faxineira de verdade da Uerj espreitando tudo.  Ela estava “invisível” a todos.  Quando  o Boal perguntou se deixaríamos a opressão vencer,   a faxineira  tomou coragem e gritou: “eu vou enfrentar ela!”, e  foi atravessando de vassoura na mão por entre os alunos . O Boal a recebeu com um sorriso, perguntando o nome dela.  “Maria da Anunciação ”, respondeu nervosa.  Boal deu-lhe a vassoura da personagem  e  Maria passou ao Boal a vassoura que era seu ganha pão. E as vassouras, a da arte e a da vida, eram exatamente iguais! Quando a peça recomeçou, a patroa retomou seus protofascismos. Contudo ,Maria não se curvou, tampouco entrou em disputas dialéticas. Ela segurou firme a vassoura , seu “ganha pão”,  e fez dela também seu instrumento de  indignação:  Maria saiu dando vassouradas na opressora preconceituosa... E batia de verdade! Foi preciso toda a equipe para segurá-la,  Maria era forte, muito forte.... Explicaram para ela que era tudo de mentira.Maria respondeu: “Mentira!? É que isso não acontece com vocês!”. Aos poucos ela foi se acalmando, pediu água com açúcar, já sorria. Todo mundo sorria. E de vassoura na mão voltou Maria  para seu trabalho  passando  sorrindo diante da gente como uma professora que acaba de dar  uma excelente aula.

( imagem partilhada da página do facebook Marias Do Brasil, grupo de teatro composto por empregadas domésticas)



O texto acima , que narra experiência que  tive quando era estudante de filosofia, é parte de uma fala que fiz  no   "Seminário: Museologia, Pensamento Decolonial, Outras Modernidades Possíveis”,  belo evento  organizado pelos professores Vladimir Sybilla e Mário Chagas , com a participação da professora Juliana Siqueira . 



sexta-feira, 13 de setembro de 2019

a academia, o liceu e os jardins


Há três modelos de educação: a Academia, o Liceu e os Jardins. Foi Platão quem inventou a Academia. Na porta da Academia Platão afixou a seguinte placa: “Só pode entrar  aqui quem for geômetra”. Assim, na Academia de Platão  somente eram ensinadas coisas  exatas: fórmulas, dogmas, gramáticas . Os poetas  eram proibidos de entrar lá. Já  o Liceu é obra de Aristóteles. Este queria mostrar que há ordem não apenas na matemática, a ordem também existe na própria  natureza. Para provar isso, Aristóteles  recolhia flores de uma  mesma espécie e dizia: “apesar de cada indivíduo ser diferente, todos nasceram de um mesmo molde : tudo o que existe se explica por uma Identidade-Padrão". Quando um aluno mais curioso ia explorar o mundo e  aparecia com uma flor diferente, uma  flor única e rara, Aristóteles mandava jogar a flor fora, alegando que a diferença é um erro da natureza que nos afasta da Razão. Foi Epicuro que aprendeu a fazer dos jardins salas de aula:    como espaço aberto à   natureza multivariada. E as flores  diferentes que a  Razão homogeneizante  desprezava ,  Epicuro as acolhia em seu jardim, as plantava e regava.  Ao invés de tabuada e gramática, cantos e cores; no lugar de moral e cívica, ética e artes .  Não apenas a alma  dizia “presente” na hora da chamada, também  dizia “presente” o corpo, com a vida intensificada. A ideia de “jardim” sobreviveu ao tempo e às perseguições ,  e sua semente ainda vive  nos nossos  “jardins de infância”.  Havia  algo da infância nos jardins de Epicuro, como (re)invenção de um  devir-criança , feito a “não velhez” do poeta Manoel de Barros . Hoje, a academia se tornou sinônimo de universidade, isso é fato. Os fascistas querem que  nela se ensinem apenas cartilhas e tabuadas, ordens exatas que adestrem para o “mercado”. A universidade é  composta de bibliotecas ,  laboratórios , refeitórios, isto é, coisas físicas,  e mais os educadores, funcionários  e estudantes, a sua parte viva.  Quando todos se unem para proteger e  intensificar essa vida, mostrando ao povo  que o saber ali produzido também faz parte de sua vida,  a universidade então sai dos muros da academia, ganha praças e ruas, e se torna novamente Jardim de Epicuro: conhecimento que potencializa a vida.

(foto partilhada da página A UFF pela Democracia. Este rapaz da foto se chama Elcimar Moreira da Silva , ele é estudante de Física da UFF)  
                                                                                                                                     

terça-feira, 10 de setembro de 2019

tramas


Quem deseja tecer deve partir de uma “urdidura”. Não importa se são tecidos , textos, ideias ,  ações ou utopia  que desejamos tecer: é sempre de uma urdidura que se parte. “Urdidura”  vem de “ordo”, “ordem”. Como ensina Espinosa em sua Ética: em tudo há “ordo”, mas “ordo” não é tudo.  Toda urdidura é feita de fios dispostos retamente, como um destino, e disso já sabiam as mitológicas Moiras, que urdiam o destino dos homens. Mas apenas uma urdidura não forma um tecido de vida: é preciso a “trama”. A trama nasce de um fio que passa transversalmente pela urdidura: a trama acrescenta ao férreo destino a invenção de fugas, de “linhas de fuga” e “rizomas” . As árvores possuem raízes urdidas fixamente no espaço, raízes que as tornam imóveis; já os rizomas são plantas  de horizontamentos  e conectividade : suas raízes são tramas-agenciamentos bordando novas paisagem .
Toda urdidura é sempre igual: reta  e determinada. Porém, há múltiplas formas de se fiar uma trama. Não há trama sem uma urdidura , isso é certo; porém não existe   tecido , de pano ou social, sem a invenção de tramas. Da “Moira Social” que o urdiu louco, Arthur Bispo do Rosário reencontrou sua transversal, e assim tramou sua lucidez como fuga da  normalidade  reta dos que pensam igual. Embora toda trama parta de uma urdidura, nenhuma urdidura pode determinar que trama se inventará a partir dela.
Gramática é urdidura, poesia é trama; cartilha   é urdidura, pensar é trama; família é urdidura, amor é trama; Estado é urdidura, sociedade é trama; código jurídico é urdidura, justiça é trama; sistema político é urdidura, democracia é trama.

(este texto é parte de uma fala que farei no evento Nós Utópicos: lugares e [re] existências VI Seminário de Pesquisa em Artes, Cultura e Linguagens  PPG ACL | IAD | UFJF -Universidade Federal de Juiz de Fora)



segunda-feira, 9 de setembro de 2019

evento unirio



Seminário Museologia, Pensamento Decolonial, Outras Modernidades Possíveis.
                       
Evento integrante do II Encontro Território, Museus e Sociedade.

Na próxima segunda-feira, dia 16 de setembro, no Auditório Tércio Parcitti (CCET- UNIRIO). Não é preciso inscrição prévia.

Programação:

MESA 1 – 9h às 12h
Panorama do pensamento decolonial: trajetórias, perspectivas e desafios

Adilson Florentino da Silva (Dpt. Ensino do Teatro-UNIRIO)
Fabrício Pereira da Silva (Dpt. Estudos Políticos-UNIRIO)
Keila Grinberg (Dpt. História-UNIRIO)
Mediação: Leonardo Villela de Castro (Decano do CCHS)

MESA 2 – 14h às 17h
Museologia e museus em perspectiva decolonial

Marcele Regina Nogueira Pereira (UNIR)
Bruno Brulon Soares (Depm-UNIRIO)
Marcia Regina Romeiro Chuva (Dpt.História-UNIRIO)
Mediação: Ivan Coelho de Sá (Diretor da Escola de Museologia)

MESA 3 – 18 às 21h
Museologia, museus, outras modernidades possíveis

Elton  Luiz Leite de Souza (Depm-UNIRIO)
Juliana Maria de Siqueira (Sec. Municipal de Cultura-Campinas/SP)
Vladimir Sibylla Pires (Depm-UNIRIO)
Mediação: Mario de Souza Chagas (Depm-UNIRIO | MR-Ibram) — com Mario De Souza Chagas, Érika Thies, Lívia Daniele, Elton Luiz Leite de Souza, Juliana Siqueira, Christian Queiroz, Márcia Chuva, Bruno Brulon e Keila Grinberg.


sábado, 7 de setembro de 2019

sofia & ariadne


A filosofia grega atendia por um nome : “Sofia” (“Sabedoria”). Não se deve confundir “Sofia” com “Razão”. Em grego, a palavra “Razão” é masculina e tinha  em Zeus um dos seus símbolos. Porém Zeus  não era a Sabedoria: esta nasceu dele como sua filha ou obra. Sofia é filha de Zeus com Métis. Os romanos traduziram “Métis” por “Prudência”. Porém a palavra “prudência”  não traduz  a riqueza semântica  da “Métis” original  grega. Pois “Métis” também é a deusa das “habilidades”. Não habilidade meramente   técnica, mas habilidade no sentido de produzir em nós um querer, uma consistência,  uma perseverança, um agir. À Métis também está associada a ideia de “saúde” enquanto cuidado consigo e com os outros. A palavra “caute” , base da Ética de Espinosa, provém dessa noção de métis enquanto medicina  do corpo e da mente. Uma das características de “Métis” é que ela era capaz de metamorfoses, de devires. Então, Zeus, o deus da razão, buscou na metamorfose de Métis uma nova saúde , uma saúde unindo pensamento e ação. De certo modo, a razão buscou sua saúde para além dela mesma, como se a simples razão fosse , sozinha, doença. Mesmo a razão precisa aprender habilidades que a pura razão não ensina. As habilidades de Métis são artes que unem o pensar ao agir. E foi desse agenciamento mais afetivo do que teórico , mais artístico e poético do que acadêmico, que nasceu Atena, Sofia. Os teóricos da razão  inspiram-se em Zeus, mas os pensadores são enamorados e apaixonados por Sofia: e por essa paixão não apenas pensam, como também agem e criam.
Segundo Nietzsche, a filosofia contemporânea atende por outro nome, um nome feminino  também : “Ariadne”. Ariadne significa “aranha”, pois Ariadne é tecedora de fios, fios que ela tira de seu próprio ventre, como a “linha de fuga” ensinada por Deleuze . Os gregos inventaram a democracia  e admiravam  o cosmos, a natureza. Hoje, ao contrário, as mesmas forças reativas que negam a democracia também destroem a natureza. Ariadne simboliza a necessidade de um fio que nos agencie . Um fio de Ariadne também  nasce das mãos que se unem na luta contra a barbárie.

“Eu não vou sucumbir                                                                                                                         
Eu não vou sucumbir
Avisa na hora que tremer o chão
Amiga, é agora, segura a minha mão”.

( LIBERTAÇÃO/ Elza Soares)




                                                                                                                                                  



quinta-feira, 5 de setembro de 2019

nise & espinosa


Nise da Silveira cita o filósofo Bachelard quando este dizia que nossa saúde mental , ou a falta dela, depende mais do que fazemos com nossas mãos do que daquilo que teorizamos com nossa mente . Talvez por isso, depois de filosofar, Espinosa se dedicava a polir lentes, como um simples artesão; Wittgenstein largava os livros para ir plantar flores, feito um jardineiro; Deleuze costumava desenhar entre as aulas, nisto se assemelhando a um cartógrafo; Heidegger curava suas angústias existenciais se fazendo carpinteiro;   Plotino deixava seus profundos estudos metafísicos para ir alimentar com as próprias mãos crianças órfãs, como se fosse um cozinheiro; após escrever  poemas, Manoel de Barros oferecia as mãos em concha para que nelas os passarinhos fizessem um ninho.
Sobretudo para aqueles cujo pensamento ousa ir muito longe em busca de terras novas, para ele não se perder, é bom mantê-lo unido a mãos que tocam, transformam ou cuidam da realidade próxima, mãos que nada têm a ver com a “mão invisível” e pragmática do mercado e sua lógica de apenas contar dinheiro, sem se importar eticamente de onde ele veio. Somente mãos que cuidam ,alimentam ou transformam podem ser a afetiva âncora do pensamento no aqui e agora, sem fazê-lo perder o horizonte aberto para o qual sempre decola .
                                                                                                              
(imagem: “Cartas a Spinoza”, maravilhoso livro de Nise da Silveira, criadora do Museu de Imagens do Inconsciente)







quarta-feira, 4 de setembro de 2019

o xará...


Quando eu estava para nascer, meu pai chegou em casa e disse para a minha mãe, todo empolgado: “Já sei qual será o nome do nosso primeiro filho!” Minha mãe apenas pôs a mão na cintura e perguntou, reticente: “Qual nome?” E meu pai respondeu: “Amarildo!”. Minha mãe desaprovou usando  apenas a expressão de seu rosto, meu pai riu amarelo e nem insistiu...Nada contra o nome “Amarildo”, mas meu pai , que era fã de futebol, escolheu esse nome em razão de um jogador muito famoso à época. Até que minha mãe, procurando por um nome,  leu em um livro o nome “Elton”. O tal livro assim explicava a origem do nome: “Havia na mitologia céltica uma cidade mítica chamada ‘Ella’. Essa cidade tinha por característica o respeito irrestrito à igualdade e dignidade de seus cidadãos. Assim, ‘Elton’, dizia o livro, significa: aquele que veio de Ella”. Confesso que gostava da origem do meu nome. Mas fiquei honrado mesmo quando descobri, na adolescência, que havia um grande poeta popular, parceiro de Cartola, que também se chamava “Elton” : o  Elton Medeiros. E mais feliz ainda com o nome fiquei quando descobri que meu xará  também era parceiro e amigo de Paulinho da Viola. Hoje faleceu meu xará. Para Ella retorna seu  morador poeta, mas ele nos deixa sua poesia   para nos inspirar na luta por  uma Ella também aqui.