domingo, 26 de maio de 2019

os jardins de epicuro


Há três modelos de educação: a Academia, o Liceu e os Jardins. Foi Platão quem inventou a Academia. Na porta da Academia Platão afixou a seguinte placa: “Só pode entrar  aqui quem for geômetra”. Assim, na Academia de Platão  somente eram ensinadas coisas  exatas: fórmulas, dogmas, gramáticas . Os poetas  eram proibidos de entrar lá. Já  o Liceu é obra de Aristóteles. Este queria mostrar que há ordem não apenas na matemática, a ordem também existe na própria  natureza. Para provar isso, Aristóteles  recolhia flores de uma  mesma espécie e dizia: “apesar de cada indivíduo ser diferente, todos nasceram de um mesmo molde : tudo o que existe se explica por uma Identidade-Padrão". Quando um aluno mais curioso ia explorar o mundo e  aparecia com uma flor diferente, uma  flor única e rara, Aristóteles mandava jogar a flor fora, alegando que a diferença é um erro da natureza que nos afasta da Razão. Foi Epicuro que aprendeu a fazer dos jardins salas de aula:    como espaço aberto à   natureza multivariada. E as flores  diferentes que a  Razão homogeneizante  desprezava ,  Epicuro as acolhia em seu jardim, as plantava e regava.  Ao invés de tabuada e gramática, cantos e cores. No lugar de moral e cívica, ética e artes .  Não apenas a alma  dizia “presente” na hora da chamada, também  dizia “presente” o corpo, com a vida intensificada. A ideia de “jardim” sobreviveu ao tempo e às perseguições ,  e sua semente ainda vive  nos nossos  “jardins de infância”.  Havia  algo da infância nos jardins de Epicuro, como (re)invenção de um  devir-criança , feito a “não velhez” do poeta Manoel de Barros . Hoje, a academia se tornou sinônimo de universidade, isso é fato. Os fascistas querem que  nela se ensinem apenas cartilhas e tabuadas, ordens exatas que adestrem para o “mercado”. A universidade é  composta de bibliotecas ,  laboratórios , refeitórios, isto é, coisas físicas,  e mais os educadores e estudantes, a sua parte viva.  Quando educadores e estudantes se unem para proteger e  intensificar essa vida, mostrando ao povo  que o saber ali produzido também faz parte de sua vida,  a universidade então sai dos muros da academia, ganha praças e ruas, e se torna novamente Jardim de Epicuro: conhecimento unido à vida.





quinta-feira, 23 de maio de 2019

as infâncias do poeta


Quando o poeta Manoel de Barros fez 80 anos, um editor lhe pediu três memórias: da infância, da vida adulta e , principalmente, da velhice. Passado algum tempo, o poeta enviou o primeiro livro: “Memórias da primeira infância”. Meses depois, outro livro o poeta enviou: “Memórias da segunda infância”. Mais um tempo depois, o poeta fez nascer  outro livro: “Memórias da terceira infância”. E não enviou mais nada... Até que o editor criou coragem e perguntou: "Manoel, cadê a memória da vida adulta e da velhice?" O poeta respondeu mais ou menos o seguinte: "só tive infância. A velhez nunca me pegou. A velhez não é uma idade, a velhez é quando os dias vividos se tornam um peso, não importando a idade que se tenha,  e se teme pelo amanhã com medo de não se suportar seu peso. Eu nunca carreguei peso: sempre fui andarilho . A única coisa que carrego é meu chapéu. Eu moro debaixo dele, e sobre meu chapéu  mora um casal de pardais  que nele  fez um ninho. Há ovos no ninho sendo chocados, como dentro de mim dias novos”.





quarta-feira, 22 de maio de 2019

artigo : manoel, o clínico


( trecho do artigo)

A poesia de Manoel de Barros é mais do que uma poética, ela é uma empoética. Sua terapia literária enseja uma terapêutica da linguagem e de nós mesmos, empoemando-nos. Empoemar-se é estender o poético para além dos meros versos, e é isso que faz Manoel em sua obra, incluindo entrevistas, cartas e mesmo seus desenhos. São esses os componentes de sua Oficina de Transfazer Natureza, para assim inventar comportamento.

link para o artigo completo:





os dois manoeis





link para artigo:

                                                               

(trecho)

                                             MANOEL E O MENINO                                                    
                                                              
( por Elton Luiz Leite de Souza[1])



O homem seria metafisicamente grande
se a criança fosse seu mestre.
Kierkegaard [2]


O fundo da arte, com efeito, é uma espécie de alegria,
sendo mesmo este o propósito da arte.  Não, não há criação triste.
Gilles Deleuze




Os dois manoeis
                      
Eu sou dois seres.
O primeiro fruto do amor de João e Alice.
O segundo é letral.
                                                     (...)
O primeiro está aqui de unha, roupa, chapéu e vaidade.
O segundo está aqui em letras, sílabas, vaidades e frases.
E aceitamos que você empregue o seu amor em nós.[3]


O poeta se diz “dois seres”. O primeiro “é fruto do amor de João e Alice”, seus pais. O segundo tem uma natureza “brincativa”[4], ele é “letral”. Sua poesia nos mostra que o Manoel-letral , que sempre nos recebe generosamente em seus versos, não é menos vivo que o Manoel que há pouco nos deixou, o filho de Seo João e Dona Alice. Talvez   a saudade que sentimos deste último possa ser minorada pelo encontro com o Manoel que vive sem distância com seus versos, e nestes vive cada vez mais vivo, sempre mais novo, extemporâneo: “Na ponta do meu lápis há apenas nascimento”[5].
O “letral” não é apenas letra morta, sintática: “nossas palavras se ajuntavam uma na outra por amor e não por sintaxe”[6]O “letral” é o devir-poético conquistado por Manoel: “a palavra abriu o roupão para mim, ela quer que eu a seja”[7].  
O primeiro Manoel faria 100 anos em 2016, se vivo estivesse. O segundo Manoel, o letral, quantos anos tem? Quantos anos faz? Talvez não se possa medir sua existência em anos. O Manoel-letral é só nascimento, invenção, como possibilidade poética de renascimento através de nós, que nos reinventamos também através dele. Sempre múltiplo, já descoberto e ainda por descobrir: como “afloramento de falas”[8].
Muitos desejam conquistar títulos, fama, prêmios, fardões. Manoel desejou tão somente se tornar totalmente letral: “pelos meus textos sou mudado mais do que pelo meu existir”[9]. O autêntico devir-letral nunca é solitário ou sozinho. Manoel se torna letral para nos tornar também. Ser letral é ler, na letra, mais do que a letra. É se deixar ler também por ela, buscando outras relações na existência que não sejam apenas aquelas governadas pela sintaxe econômica, utilitária, academicista.
A imagem do primeiro Manoel fixou-se no velhinho sorridente e simpático, cuja vida findou aos 97 anos. Quanto ao Manoel-letral, que imagem fazer dele? Difícil fixar uma.... Cada pessoa que o lê pode formar a sua imagem desse Manoel-letral, pura virtualidade que vive no sentido que o poeta inventou. De minha parte, o Manoel-letral é um menino: "inventei um menino levado da breca para me ser”[10]. Esse menino, afirma o poeta, é  “a criança que me escreve”.  O tal menino disse ao poeta enquanto o poeta o inventava: “sou eu que te invento poeta, enquanto você me inventa”.
 É esse devir-menino que vejo também no velhinho que sorri brincativo nas fotos e capas de livros. “Não, não há criação triste”[11].“Tristeza”, aqui, deve ser entendida no sentido de Espinosa. As paixões tristes diminuem nossa potência de existir, já as paixões alegres aumentam nossa potência de existir. É sempre a existência o critério para distinguir tristeza e alegria. O Manoel que viveu 97 anos certamente experimentou tristezas, como todos nós. Mas o Manoel-letral não é fruto daquelas tristezas, e mesmo estas são transfiguradas pela criação poética, e se tornam poesia, isto é, canto da palavra: “Sei também a linguagem dos pássaros – é só cantar”[12]. Pela alegria que a criação é, o Manoel-letral conquistou mais do que muitos anos de vida, ele conquistou a eternidade do seu devir-menino :

O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de interromper o voo de um pássaro
botando ponto no final da frase.[13]




[1] Filósofo, professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e autor do livro Manoel de Barros: a poética do deslimite ( Rio de Janeiro, Faperj/7letras, 2010).
[2] Epígrafe escolhida por Manoel de Barros na Primeira Parte do livro Menino do mato.                                 
[3]Poemas rupestres, p. 45.
[4] “Nossa linguagem não tinha função explicativa, mas só brincativa” (versos do livro/poema Escritos em verbal de ave).
[5] Encontros: Manoel de Barros, p. 135.
[6] Menino do mato, p. 11.
[7] Livro sobre nada, p. 70
[8] “Uma didática da invenção”, Livro das ignorãças, p., 7.
[9] “Biografia do orvalho”, Retrato do artista quando coisa, p. 81.
[10] Poema “Invenção”, Memórias inventadas - as infâncias de Manoel de Barros. São Paulo: Planeta, 2010.
[11] Gilles Deleuze, A ilha deserta , p. 174.
[12] Poema “Línguas”, Ensaios fotográficos.
[13] Poema "O menino que carregava água na peneira”, Exercícios de ser criança.

terça-feira, 21 de maio de 2019

o zero e o um


A zeroidade é o plano de imanência do pensamento.
Deleuze

Quando eu era bem criança, antes mesmo de saber ler e escrever , fiz uma rica descoberta que não cabe  no  que ensinam cartilhas e tabuadas: aprendi que se podia brincar também com o pensamento. Foi assim: após aprender a contar de zero a dez, descobri que o zero nem sempre é zero, isto é , nada. Ele é nada quando é visto sozinho, isolado, como se fosse um ego ensimesmado. Mas se engana quem acha que o zero é só isso. Pois quando o zero é colocado para fazer companhia ao 1, e este aceita a companhia do zero, o 1 vira 10. Como pode o zero fazer o mero 1 se tornar dez “uns”, isto é, dez unidades dele mesmo? E essa interrogação levava a outras: colocando dois zeros , o 1 cresce ainda mais, sem deixar de ser 1, mas ao mesmo tempo já não sendo : ele se torna 100! Colocando mais um zero, nasce o 1.000! Descobri então que o zero não é um “nada”, a não ser que se o reduza a isso. Mas se a gente  coloca o zero  na companhia de outro número dele diferente, do encontro  nascem outros números, como se dentro dele existissem potencialidades que a gente só conhece quando ele “desabre” ( “desabrir”  é  prática que nos ensina  o poeta Manoel de Barros) . O  zero precisa do 1 para se saber mais do que zero. É a diferença, o outro, que o enriquece. Quando o zero  conhece a si próprio, ele vê então o que ele é de verdade:  não um nada , mas um “ovo”, uma realidade cheia de potencialidades.  Depois de fazer  essa descoberta, ainda bem criança, sempre que alguém perguntava minha idade eu respondia: “Tenho mais de 1.000 anos!”, e os adultos riam achando que eu não sabia contar os anos. Mas na verdade eu  queria dizer , brincando, que o pensar  faz a alma aumentar em mil seu tamanho. Depois aprendi com poetas e filósofos libertários que o pensar só é autêntico quando faz a gente agir para sair do ovo . E quanto mais gente sair ( mil, milhares, milhões...) , mas difícil fica para o poder nos  reduzir  a nada.

( imagem: livros como escudos, lápis como  lanças. Foto compartilhada da página A Casa de Vidro) 




sábado, 18 de maio de 2019

os mitos também fazem pensar


O movimento em defesa da educação foi um alento, em todos os sentidos. Foi inspirador ver os estudantes com cartazes e livros  nas mãos como bandeiras. Mas vi  um cartaz que gostaria de “corrigir”,   com todo cuidado e carinho  . O cartaz dizia : “O conhecimento destrói  mitos”, numa alusão aos simpatizantes do bozo que o chamam de "mito". No passado , porém, essa mesma frase foi empregada pelos  positivistas dogmáticos com a intenção de  desqualificarem  a mitologia e  a poesia, pois eles consideravam a poesia uma forma de “mito”, uma mera “fantasia”  deturpadora da “realidade verdadeira” , acessível apenas à ciência exata . Contra a poesia e os mitos, os positivistas pregavam  “Ordem e Progresso”. Então, de minha parte, acho mais educativo distinguir, no seio dos mitos, quais de fato representam o bozo (ao invés de criticar os mitos como um todo). O bozo nada tem de Zeus, Hermes,  Eros ou Dioniso ,  mas ele lembra muito  os "Ciclopes" , que eram seres de um olho só na testa simbolizando “estreiteza de visão”. Os Ciclopes eram inimigos de Zeus, o deus da ética e da justiça, e de Eros, o deus do amor.  Outro mito que parece simbolizar o bozo são as “Eríneas”, deusas do ódio e da vingança. Foram elas que despedaçaram “Orfeu”, o poeta que cantava a vida e a arte. As Eríneas despedaçaram Orfeu  pelo seguinte motivo: quando Eurídice morreu, o poeta Orfeu parou de cantar. Eurídice era o par de Orfeu. Para os gregos, “Eurídice” também é um dos nomes da alma, assim como “Psiquê” e “Pneuma”. Então, as Eríneas queriam que Orfeu esquecesse a alma e servisse à destruição, cantando assim a guerra , o ódio e a vingança, para espalhar tais vilezas  pelo mundo. Como Orfeu se recusou a usar sua arte para servir à barbárie, as Eríneas o despedaçaram ( tal como as Eríneas de hoje que despedaçaram a placa de rua com o nome da Marielle...).  Mas as Eríneas não conseguiram vencer  totalmente  o poeta , pois seu filho de nome “Museu”, poeta como o pai, recolheu os fragmentos  que Orfeu se tornou e os reuniu novamente, fazendo surgir assim a primeira exposição do mundo, na qual  Orfeu reencontrou sua alma-Eurídice renascida, expressa em sua  arte. Por  mais que a barbárie tente, ela nunca vai vencer  totalmente os que cantam a vida, enquanto cultivarmos ouvidos para escutá-los . Os mitos também promovem a  educação e o conhecimento, além de serem o capítulo inicial da própria filosofia.



quinta-feira, 16 de maio de 2019

evento



Informações gerais:

Local: Espaço da Bibliomaison, Médiathèque da Maison de France
Av. Presidente Antonio Carlos 58, Centro, RJ, 11º andar.
Data: 30 de maio (quinta-feira)
Horário: das 19:00 às 20:30h (podendo se estender até 21h)

sábado, 11 de maio de 2019

a praça e a rua


Os gregos inventaram a “ágora” , a praça pública, como espaço-símbolo  da democracia.  “Ágora”  vem de “agon” : “conflito”  ou “disputa”. Na ágora aconteciam disputas  travadas com palavras.  Os romanos, por sua vez,  inventaram as ruas. Não como espaço político,  mas como meio de travessia   para além dos muros das cidades:  as ruas atravessavam  espaços livres e  não povoados. Impérios  e cidades desaparecem destruídos por guerras ou catástrofes: com eles, desaparecem também as praças. Mas as ruas que atravessam campos e espaços abertos nunca desaparecem totalmente : se ninguém mais passa por elas, as ruas se integram à natureza , tornando-se trilhas em esboço que somente os andarilhos nômades sabem achar. 
A Revolução Francesa se inspirou no ideário da praça como espaço de poder a se contrapor aos templos da intolerância religiosa  e aos castelos dos senhores feudais. Surgem então os “parlamentos”: lugar onde se “parla”.  Radicalizando ainda mais a ideia de democracia, Espinosa dizia que mais importante do que a praça é a rua   como espaço comum onde a multitudo se move e age.  “Multitudo” é mais do que a mera “multidão” ou “massa” : multitudo é o agir   instituinte de uma multiplicidade ativa. A multitudo nunca cabe totalmente no espaço centrípeto das praças, pois somente no espaço centrífugo das ruas cabe o existir em movimento da multiplicidade política, cuja potência excede o poder de governos e Estados: enquanto a  força destes é a da mera polícia,   a potência da multitudo é o desejo comum por justiça, igualdade , liberdade  , democracia, vida. Da praça nasceu o parlamento para se opor aos templos e castelos. Mas quando o próprio parlamento se torna sucursal do templo teológico-político e de   mentalidades medievais encasteladas, somente as ruas podem nos restituir a liberdade que nos roubaram as urnas algemadas.  As praças simbolizam o centro das cidades, porém as ruas  são rizomas que alcançam também as margens, conectando aqueles a quem o poder centralizador exclui e marginaliza.



terça-feira, 7 de maio de 2019

a aula


Anos atrás,  um professor que trabalhava na mesma faculdade onde eu lecionava, uma faculdade de direito, me perguntou se eu aceitaria dar aula de filosofia para seus dois filhos, um de 10 anos e outro ainda mais jovem. Aceitei. O curso era para durar 1 mês, acabou durando 1 ano. O mais velho se chamava Alexandre, carinhosamente rebatizado Xandinho. Certo dia , ele e o irmãozinho estavam brigados. Aproveitei para dizer ao Xandinho:  “você sabia que ‘Alexandre’ significa ‘protetor da humanidade?’”. Ao ouvir isso, ele  olhou  para o irmãozinho  e, sem dizer nada,  o abraçou com cuidado . Naqueles encontros, eu “ia até à infância e voltava”, como diz Manoel de Barros, e aquele que ia não era o mesmo que retornava. E o que voltava vinha de lápis de cor na mão, e aprendia que as ideias que valem a pena ensinar  se deixam desenhar  com lápis de cor. Algumas ideias eu ensinava falando, outras eu desenhava para eles colorirem:  a forma era minha, mas as cores eram eles que escolhiam para pintar, com as mãos livres . E eles coloriam sempre multicoloridamente, nunca em   preto e branco.
Perto do fim do ano, houve um feriadão. Toda a família desse professor viajou para Londres, incluindo os dois meninos. No retorno, assim que entrei no apartamento, o pai pediu para o Xandinho  me narrar o que aconteceu em Londres, mas o  menino saiu correndo, como se tivesse feito uma arte, uma “peraltagem”,  diria Manoel de Barros . Eles foram ver, entre outras coisas, a cerimônia na qual a Rainha  da Inglaterra passa à frente do público, e todos se ajoelham em reverência, olhos no chão. Então , o pai  mesmo me contou o que aconteceu: quando a Rainha , cheia de pompa e ouro, passou diante deles, todos se ajoelharam diante de seu poder, exceto o Xandinho. Ele ficou em pé, de braços cruzados, firme, olhando diretamente para a Rainha, que virou a cabeça para olhar , espantada,  o pequeno insubmisso. Quando a mãe indagou ao menino porque ele não se ajoelhou como todo mundo, ele respondeu : “Não ajoelho diante de quem é igual a mim”. Ao ouvir isso, a mãe disse ao pai: “acho que já está na hora de nosso filho parar de ter aulas de filosofia...”. Nesse mesmo dia em que ouvi o relato, dei minha última aula aos garotos. No fim, o menino da peraltagem  me perguntou: “Vai ter prova?”. Respondi: “Não , você já está aprovado. Com dez.”





sábado, 4 de maio de 2019

4 de maio

Meu caro 4 de maio,
já posso te chamar de amigo?
Creio que já o somos,
 e não desde agora.
Não demora chega  o dia 5,
sei que você já precisa ir embora.
Agradeço-lhe como me acordou hoje:
com a mesma novidade de quando nasci,
apesar de já serem muitos os dias de aniversário.
Amo  rever-te,
saiba disso, amigo raro.
Espero te ver de novo,
no próximo ano,
logo ao abrir de maio.
Desejo ainda muito te receber,
sei lá ainda por quantos encontros.
Não te peço nada,
nem te faço promessa.
Nunca olho para suas mãos quando chega,
nelas não indago por presentes .
O que gosto é de apertar a mão da gente,
e mais uma linha na palma escrever, sem pressa.
Sou muito grato pelo seu retorno ,
que seja sempre assim o seu chegar: novo. 
Contigo aprendo a perdoar  o que passou,
reabrindo  no peito o horizonte  que sou.
Já reparou: tudo se enfeita de azul para te ver chegar,
 e mesmo o sol egocêntrico esquece seus dezembros,
para em plácida luz nos aquecer  e renovar.

Meu amigo 4 de maio,
sei que te escondes nessa data,
qual máscara a cobrir teu verdadeiro rosto, o tempo.
Não cobro teu retorno,
tudo farei para merecê-lo,
seja qual for minha idade.
Leve minha eterna gratidão a teu pai,
cujo nome é eternidade.






DE PÉ


Quando na manhã  me levanto,
pelos meus olhos acorda outro            
diferente daquele que ontem se foi  deitar.
Fui dormir árvore,
desperto broto,
de novo a vida a germinar.

Levanto-me como se levanta Espinosa
em cada página de sua obra:
sem lamentar o que foi,
sem temer o que será,
bem-dizendo o que é.
Feito a vida em seu  esforço,
pronta a começar de novo, 
pondo-se de pé.

a arraia



No poema “Agroval”, Manoel de Barros narra o que faz uma imensa  arraia quando as águas do pantanal secam e põem a vida em perigo: a arraia abre suas grandes asas  e pousa no barro, retendo parte da água abaixo de si. No espaço entre seu abdômen e o chão úmido  o coração do pantanal  é transplantado para perseverar  ainda  vivo. Generosa, a arraia deixa tudo o que  corre perigo  vir morar sob suas asas, fazendo delas abrigo. Migram  não apenas bichos, instalam-se  também sementes  de futuras flores e frutos, de tal modo que debaixo da arraia tudo o que vive acha um  útero. Sob a proteção de tal Gaia, a vida continua, resiste, fortalece-se; acontecem agenciamentos, contágios, enamoramentos da vida por ela mesma, una e múltipla. Até mesmo uma festa se esboça, feito uma  kizomba a celebrar a vida salva pela Vida. Pois quando as águas do pantanal  vão secando , aumenta a lama e vai sumindo o oxigênio.  Os predadores   sorrateiros lucram com a desolação  e   ficam à espreita para predar a vida que sufoca . Mas a arraia é resistente: quando o oxigênio falta às águas, a arraia aprende a sorvê-lo do ar para  partilhá-lo com os que procuraram teto sob suas asas. Aconteça o que aconteça, nunca a arraia  se entrega ou desabraça. Quando as águas novamente  caem do céu e  a vida pode recomeçar, a arraia levanta as asas e  parteja  os seres que salvou do perigo.





quinta-feira, 2 de maio de 2019

jardins de maio


Para quem no inverno acreditou nas sementes já quase  mortas,
e ainda as dividiu com quem não as tinha;          
e  na primavera as plantou no ventre das horas,
cuidando para que não as sufocasse a erva daninha.
                                                                  
Para quem no verão não festejou antes do momento,
colhendo verde o que ainda precisava de tempo.

Chegou  o outono, maio já não é só promessa :
com alegria e gratidão,
colha o que nasceu do grão ,
sem pressa.











quarta-feira, 1 de maio de 2019

a aula...


Tempos atrás, para comemorar o Dia dos Trabalhadores, o Teatro do Oprimido fez uma apresentação na Uerj. O hall  estava cheio, com estudantes de várias áreas  sentados no chão formando uma roda, uma “ágora”. O Teatro do Oprimido abolia palco e roteiro, acontecendo  o mais próximo possível da realidade concreta. Augusto Boal , seu criador, foi ao centro da roda e explicou  o tema da peça : uma preconceituosa   elitista   cujo filho era dependente de drogas, porém ela desconhecia o fato. Isso gerará uma situação onde haverá um opressor e um oprimido. Boal se retira , a peça começa.
A cena que abre a peça mostra o filho entrando escondido  no quarto da mãe para surrupiar um relógio caro para trocá-lo por drogas. Ao se dar  conta do furto,  a mulher  chama pela empregada . Mal a trabalhadora  entra,  já a fere um grito: “Cadê meu relógio!?”, sendo acusada de ladra. Por ter feito faculdade, a patroa não se equivocava nas regras da gramática. Inclusive, essa destreza com as palavras  tornava a opressora mais cruel no emprego delas  como arma. No auge do preconceito,  entra o Boal e diz: “parem a cena!”. Ele se dirige então à plateia e pergunta  se alguém quer tomar o lugar do oprimido para  tentar vencer o opressor. Uma estudante de psicologia levantou a mão, foi até  ao Boal  e pegou a vassoura da personagem ( era o elemento cênico a simbolizar o oprimido). Como não havia roteiro, a estudante poderia interromper o fluxo verbal da opressora quando quisesse. Porém, a atriz-patroa, extremamente hábil e agressiva, pôs abaixo com facilidade as táticas psicológicas da estudante.  A aluna pediu para  sair. Outro estudante levantou o braço ,  um estudante de direito.  Boal passou-lhe a vassoura , recomeçou a peça. O garoto argumentava bem , era confiante. Mas ele tinha um ponto fraco: comportava-se  mais como um advogado, não como a vítima de fato. Também não resistiu... Ninguém mais levantava a mão, fez-se um silêncio.
Então me virei para trás e vi, na entrada do banheiro feminino, a faxineira de verdade da Uerj espreitando tudo.  Ela estava “invisível” a todos.  Quando  o Boal perguntou se deixaríamos a opressão vencer,   a faxineira  tomou coragem e gritou: “eu vou enfrentar ela!”, e  foi atravessando de vassoura na mão por entre os alunos . O Boal a recebeu com um sorriso, perguntando o nome dela.  “Maria da Anunciação ”, respondeu nervosa.  Boal deu-lhe a vassoura da personagem  e  Maria passou ao Boal a vassoura que era seu ganha pão. E as vassouras, a da arte e a da vida, eram exatamente iguais! Quando a peça recomeçou, a patroa retomou seus fascismos. Contudo ,Maria não se curvou, tampouco entrou em disputas dialéticas. Ela segurou firme a vassoura , seu “ganha pão”,  e fez dela também seu instrumento de  indignação:  Maria saiu dando vassouradas na opressora preconceituosa... E batia de verdade! Foi preciso toda a equipe para segurá-la,  Maria era forte, muito forte.... Explicaram para ela que era tudo de mentira.Maria respondeu: “Mentira!? É que isso não acontece com vocês!”. Aos poucos ela foi se acalmando, pediu água com açúcar, já sorria. Todo mundo sorria. E de vassoura na mão voltou Maria  para seu trabalho  passando  sorrindo diante da gente como uma professora que acaba de dar  uma excelente aula.