O que é hoje velho,não foi um dia novo: sempre foi velho. E o que é verdadeiramente novo nunca fica velho: o novo é o tempo por vir. Deleuze O que é verdadeiramente novo nunca vira sucata. Manoel de Barros
Arrumar a casa.
Limpar a poeira acumulada, para que as cores sufocadas respirem em nova aparição.
Cuidar dos suportes físicos, para que eles sejam a imagem externa da integridade do nosso espírito.
Lustrar os vidros, para que nesta transparência nosso pensamento se possa ver.
Reorganizar as distâncias entre as coisas, para que o espaço não seja um vazio, e para que a presença dos objetos não impeça o deambular de nossa percepção.
Praticar o desapego daquilo cujo tempo passou, para que a luz do dia toque de novo os olhos do nosso desejo: e que este seja como uma aurora a raiar.
Fazer tudo ao som da música, cantando junto, para que na mente também se opere a faxina.
Depois de tudo revitalizado, alegrar que sejamos nossa primeira visita.
*** *** Entre um segundo e outro do dia, unindo-os para a cotidiana travessia, é aí que se vive o verdadeiro ano novo: em nossas mãos, enquanto avançamos, ao invés de champanhe ou fogos, a água, o pão e o sonho. *** ***
Certa vez, quando perguntado sobre sua poética, Manoel de Barros respondeu:
Penso que nasci com o olho divinatório, que é o que chamam de dom. É assim que Sófocles, no Édipo Rei, chamou. Ele disse que o artista nasce com esse olho divinatório. E que esse olho deve ser completado com outro olho, que é o olho do conhecimento. E completou que a arte é feita da reunião desses dois olhos. Isto seja: que a arte é o terceiro olho. Eu andei lendo os poetas, os filósofos, ouvindo os músicos, vendo os Picassos para ganhar o olho do conhecimento. Acho que a construção de minha poesia, que é uma construção meio caipira e meio erudita é fruto desse terceiro olho e mais de uma disfunção lírica. Essa disfunção vem do grande fastio que tenho pela palavra acostumada.
“Olho divinatório”: olho de transver as coisas, desformar a natureza. Assim, a poética de Manoel de Barros é inseparável de uma percepção. Esta não é um “fazimento cerebral”, mas um instrumento de incorporação. Incorporar as coisas é sê-las, é mimetizá-las como um camaleão.
O olho de transver é uma “visão fontana” na qual o mundo, renovado em seu inacabamento , renasce e jorra em sua eterna novidade:
Tudo que os livros me ensinassem
os espinheiros já me ensinaram.
Tudo que nos livros eu aprendesse nas fontes eu aprendera.
O filme Filhos da Esperança (Children
of Men, 2006) , de Alfonso Cuarón , passa-se em 2027 e é determinado por um
acontecimento sem precedentes: há 18 anos , desde 2009, não nascia um único
ser humano. Todas as mulheres do mundo, da África à Ásia, da Oceania à Europa,
e de todas as Américas, tornaram-se inférteis. Por conta disso, não havia mais
futuro: encurtando-se mais e mais, o horizonte enfim chegaria à praia, e nada
para se ver ao longe haveria.
Enfim, a infertilidade generalizada das mulheres anunciava que a humanidade
teria fim. Não havia mais crianças já de algum tempo. Em breve, não haveria
mais adolescentes. Depois, inexistiria a juventude. Estranha ideia: geralmente
associamos a noção de extinção a seres de um passado muito remoto. Porém, um
dinossauro se tornava, no filme, a juventude ( e não haveria, no futuro, nem
mesmo arqueólogos para descobrirem que um dia existira a juventude...). Na
continuidade das extinções, seria a vez dos adultos desaparecerem, restando
apenas os idosos :mais do que nunca, de novo crianças ( aliás , um dos
personagens mais “jovens” do filme é, por sinal, o mais idoso, e é representado
pelo ator Michael Caine ; a juventude de tal personagem se expressa sobretudo
através da sua preferência musical pelo rock, sendo a música o último registro
no qual a juventude, como “fóssil”, ainda sobrevive ) .
O filme mostra escolas vazias, museus às moscas, obras de arte que hoje valem
milhões sendo encontradas jogadas na rua. Ainda existiam os livros, mas não
existia mais a leitura. Ninguém mais escrevia, ninguém mais lia; não havia mais
professor e aluno, expectativas e projetos. Restavam apenas seres humanos
lutando para permanecerem humanos. Quando desaparecem o pintor, o professor, o
aluno , o escritor, o educador, etc., corre perigo o próprio humano, que é decerto
a base, mas que tão frágil se mostra diante do assalto do seu contrário, o
inumano, a barbárie ,a violência. E é essa a atmosfera do filme: uma guerra
constante de todos contra todos.
Não obstante o fato de quase todas as
instituições terem desaparecido, permanecia , no entanto, uma. Somos levados a
crer que a existência dessa instituição nada teria a ver com o futuro e com o
humano. Essa instituição é o Estado. Embora não houvesse mais justiça, havia o
Estado. Apesar de não existirem mais faculdades de Direito, existia o Estado. E
o seu braço armado, a polícia, estava mais atarefado do que nunca. Como prender
alguém visando a sua ressocialização se a própria sociedade já estava condenada
à pena de morte? Não se prendia, matava-se. Assim, tornava-se uma assertiva
incontestável, e não por questões metafísicas ou religiosas, mas políticas, a
opinião de que a morte era a única certeza.
A abolição do futuro apagava, ao mesmo
tempo, a lembrança do passado, e tornava o presente uma enlouquecida estrada
cujo ponto de chegada e ponto de partida se encontrariam no meio dela,
abolindo-a e a tudo que sobre ela caminhou e deixou rastro.
Outro fato chama a atenção no filme: havia aqueles que se contrapunham ao poder
do Estado, e se valiam de armas para realizarem seus intentos. Eles se diziam “
a resistência”. Mas frágeis eram as idéias que justificavam o uso daquelas
armas. Obscuros eram também seus propósitos.Examinando bem suas posições,
parecia que era o uso das armas que justificava ter idéias, fossem estas quais fossem,
o que acabava sendo o mesmo que atestar que as idéias já não mais existiam,
tampouco a fronteira, que é já uma idéia, que separa , e distingue, a esquerda
da direita, os progressistas dos conservadores, a revolução do terror.
Contudo, no meio do filme acontece algo de extraordinário e imprevisto.
Afinal, o extraordinário não seria extraordinário se não fosse imprevisto. Nada
de mais ordinário que a previsibilidade ( o que nos permite concluir o quanto
que a ciência, com o seu ideal de previsibilidade, nisto dando o braço ao
cálculo financeiro, pactua com a ordinariedade). Uma refugiada extremamente
jovem, negra, pobre, muito pobre, aparece grávida. O sagrado fizera novamente
uma esquiva aos homens, e reaparecera não no ventre de uma mulher poderosa,
tampouco no altar de um templo, mas no ventre de uma marginalizada. Eis o
sentido do sagrado: ele é marginal, no sentido de estar à margem de tudo o que
o homem põe no centro. E quase sempre o homem põe no centro o poder, e em torno
deste passa a gravitar. Mas o sagrado também é poder, e revela que a margem
está por toda parte.
Quando os homens que se consideram da resistência descobrem a grávida, resolvem
se apropriar dela ,e passam a calcular a vantagem que poderiam tirar do
fato.Ventila-se inclusive a idéia de matá-la, pois vislumbravam nisso uma
vantagem política. Porém, um personagem um tanto cético e resignado até então,
chamado Theo (representado pelo ator Clive Owen) , sente-se tomado por um
impulso involuntário para proteger a menina grávida. Aos poucos, movido por
essa exigência, sua índole vai mudando. Vê-se que ele passa a acreditar em
algo. Esta crença muda seu rosto, seus gestos, suas percepções, sem que
ele entenda exatamente por que. Não que ele se torne outro. Ao contrário, era
como se ele, conforme dizia Espinosa, se tornasse ele mesmo. Desconfiando dos
homens da resistência, Theo resolve fugir com a grávida, e passa a ser
perseguido após descobrir que tanto ele quanto ela seriam mortos.
Uma das cenas mais fortes do filme , apresentada em um plano-sequência
admirável, acontece quando os dois personagens tentam se esconder em um prédio
em ruínas abarrotado de refugiados. Na verdade, eram três os personagens, uma
vez que o bebê acabara de nascer momentos antes. Diante do prédio, um exército
atirava sem parar contra os que estavam lá dentro escondidos, pois entre estes
se encontravam também os líderes da resistência, que por sua vez tentavam
capturar Theo e sua protegida. Até mesmo um tanque disparava contra a
construção, fazendo voarem destroços por toda parte e deixando o ar saturado
por uma poeira cinza. O barulho era ensurdecedor. De repente, como se fosse um
indignado e são protesto contra toda aquela loucura, um chorinho de nada começa
a ser ouvido. Era o chorinho do bebê enrolado nos trapos que a mãe improvisara
como manta. Pouco a pouco, os refugiados, pondo a própria vida em risco, saem
de seus esconderijos e esticam a cabeça para se certificarem de onde vinha
aquele chorinho. Um soldado ouve o choro e cala a arma. Faz sinal para que um
outro também escute e lhe imite. Resguardando-se como que para obedecerem a um
imperativo mais forte do que a ordem de comando , cada soldado guardou a arma,
até mesmo o tanque não mais atirava. Só se ouvia o chorinho como expressão do
poder da vida, que ali fazia calar o poder da morte. Os três passam por entre
os soldados. Alguns se ajoelham, outros choram, muitos sorriem...Passa diante
deles não um rei ou um príncipe, mas uma simples criança humana , tão singular
em sua natureza universal: une vie, uma simples vida, como
dizia Deleuze.
Passava por eles a fonte sem a qual
todo valor seca, aquilo sem o qual não há instituição que sobreviva, nem teoria
que mereça sair da boca humana. Sem o devido cuidado e valorização dessa fonte,
o quadro vira só tinta, a música se torna apenas som, o poema se converte tão
somente em letra no papel e o tempo se torna apenas contagem que avança para o
fim.
No mito grego, um segundo estômago fora
colocado em Pandora, a primeira mulher, como algo destituído de utilidade: esse
segundo estômago seria tão somente um buraco excedente, que obrigaria o homem a
muito esforço para preenchê-lo, ao mesmo tempo que dotaria a mulher de uma
insatisfação crônica. Contudo, nesse segundo estômago deu-se o milagre
estético, vingou um poema:ele se tornou o útero.
Como diz Deleuze, todo órgão se explica
por uma função que ele cumpre.O funcionalismo, como império das utilidades,
preside não apenas o mundo orgânico, como também o mundo econômico, tecnológico
, acadêmico e mesmo o mundo cultural.Segundo a visão funcionalista, utilitária,
tudo existe para cumprir uma função: a função do cérebro, enquanto órgão, é
fazer teorias ( teses, monografias, ciências...); a função dos olhos, enquanto
órgão, é ver o "mundo objetivo"; a função de uma mesa é servir de
apoio para o almoço ou a janta... Mas a criação, pela qual algo novo nasce,
afirma Deleuze, nada tem a ver com o exercício da função de um órgão.A criação
vem de um corpo ainda "sem órgaõs": ela vem de uma parte do corpo sem
função utilitária ou pragmática. É como uma graça,
uma espontaneidade que não se explica pelas programações e metas
do mundo funcional, que é sempre "focado", ávido por
resultados.
O corpo sem órgãos não
é outro corpo, mas nosso corpo mesmo quando o libertamos de existir à maneira
de uma empresa ou fábrica, e o experimentamos-vivemos como um laboratório ou
oficina: como "Uma Oficina de Transfazer Natureza", nas palavras de
Manoel de Barros.O segundo estômago de Pandora se transfez: reinventou-se
útero. O futuro não é gerado por nenhum dos
órgãos constituídos do presente, seja esse “órgão” a ciência, o capital ou o
Estado. O que esses órgãos fazem é construir um arremedo de futuro em razão de
seus interesses presentes. Mas a linguagem da graça não a pode entender todo
aquele que apenas crê no resultado a serviço de um interesse. Esses órgãos põem o futuro em risco, e nada
põe tanto o futuro em risco do que um presente sem futuro. O futuro somente
pode nascer onde existam as subversões a este mundo presidido pelos órgãos e
suas funções, pelos órgãos e suas metas, pelos órgãos e seus “focos”.
Sem dúvida, sentar-se à mesa para
almoçar ou jantar , ou nela realizar “reunião
de negócios”, dá uma razão de ser funcional, utilitária,à mesa. E a essa razão ninguém questiona...A
não ser aqueles que sentem a necessidade de subir sobre a mesa, subvertendo a lógica das utilidades, fazendo da mesa um palco; e, dançando, nela servem outros
alimentos; dançando, justificam a sublevação pela instauração de outra
realidade que, pelo afeto, falam por aqueles que os almoços&negócios excluem.
Dizer que cada
um tem sua opinião, e que isso traduziria a essência da democracia, equivaleria
a aceitar que, no campo da política, cada político tivesse seu próprio
partido.Mas se cada político tivesse seu próprio partido, apenas em favor de si
mesmo cada político agiria ( o congresso brasileiro, contando já com mais de 30
partidos, parece caminhar para isso...). Este agir de cada um a favor de si
mesmo nada tem a ver, em essência, com a ideia de anarquia. A questão é: uma
ideia não é uma opinião.
As pessoas devem
buscar as idéias, não as meras opiniões.É fácil ter uma opinião:basta
julgar,diminuir,aumentar,etiquetar,dissimular,subestimar,superestimar,cobiçar,lisonjear,rivalizar,pretender...
enfim, ignorar( mas sem saber que se ignora).Sem esforço, muitos emprestam suas
almas para que nelas viva um ou mais desses verbos.
Oscar Wilde
dizia que "a vitória da opinião da maioria muitas vezes nada mais é do que
a vitória da facção mais numerosa".Ter uma ideia, porém, exige esforço.
Exige autonomia conjugada com o afeto pelo comum. Exige também coragem: coragem
para não se subordinar às opiniões dominantes , que também são modos de vida
estandartizados , tristes e impotentes, que querem se propagar através de nós.
Ter uma idéia não é ter uma opinião: mostrar essa distinção consiste no maior
valor que a educação, como prática libertária, pode ter.
Maquiavel
inaugura a política moderna ao afirmar a seguinte opinião : "os fins
justificam os meios". Entre povos mais sábios, porém, professa-se esta
justa ideia :"se o homem que não convém empregar os bons meios, os bons
meios não convirão"( Confúcio).Os "fins" pertencem à esfera da
opinião, ao passo que o homem que convém aos outros e a si age sempre de acordo
com as ideias. Estas são sempre meios, jamais fins. É por isso que a ação de
uma ideia é sempre imediata: seus efeitos (políticos, clínicos,
pedagógicos,enfim, existenciais) nunca podem ser vividos apenas em um futuro incerto,
prometido, como reza toda esperança, religiosa ou política.Uma ideia não é uma
estátua pronta , tampouco a beleza ideal que se toma como modelo para a sua
produção. Como meio, ferramenta, a ideia é como o martelo e o cinzel, bem como
a força, a sensibilidade e o desejo do escultor que, antes de tudo, esculpe a
si mesmo.
Uma perspectiva
sobre uma idéia não é uma idéia, é tão somente uma perspectiva sobre uma idéia.
É a idéia que justifica a existência de um partido político. É a idéia que é
uma perspectiva sobre a realidade, não a opinião.As próprias idéias são
perspectivas sobre uma realidade que, por ser processo, não pode ser encerrada
em uma opinião fixa.As facções nunca têm perspectivas, elas têm "A
Verdade". E por esta Verdade ferem e matam , corrompem e são
corrompidas.Elas estão sempre em “guerra civil” contra a Verdade de outra
facção. Como em toda guerra, há os mercenários que leiloam suas competências à
facção que pode pagar mais.
As idéias,
contudo, formam um conjunto aberto, plural, sem hierarquia, onde reina a
autêntica democracia.Nesta, a verdade existe como perspectiva sobre a vida,
cujo valor se mede pelo quanto que ela favorece a própria vida.A mera defesa da
opinião , sem o esforço para alcançar a perspectiva que uma idéia é, equivale,
no plano político partidário, à conduta condenável de quem usurpa o comum para
fazer prevalecer seus interesses pessoais .A essência da democracia são as
idéias, assim como o são da própria vida.
Com as duas mãos para trás, andando lentamente, o homem de meia-idade só pensava em uma coisa: no próximo passo a dar, o qual ele dava de forma hesitante. De repente, passa correndo por ele uma criança, sem nada nos pés, sem nada nas mãos, sem nada no estômago. Correndo atrás dela, o policial, o assistente social, o padre, o psicólogo, as balas de revólver. Dentro do homem escondeu-se aquela criança, entrando-lhe pela porta da sensibilidade apenas entreaberta: a criança se apossa , desfaz o laço e o nó das mãos às costas, e delas cai o passado que o homem segurava como uma pedra.