segunda-feira, 29 de março de 2010

as duas paisagens




"Na plenitude da felicidade cada dia é uma vida inteira".

Goethe



Segundo Fernando Pessoa, existem duas paisagens: a paisagem de dentro e a paisagem de fora. Cada uma delas possui um sol: o sol da paisagem de fora é esse astro incandescente que vemos no céu todos os dias (às vezes inclemente, como em dezembro; noutras, atrás de nuvens que o encobrem, como acontece em junho).
O sol da paisagem de dentro é o coração. No entanto, enquanto na paisagem de fora há uma lei férrea de sucessão das estações (o inverno sucede ao outono, este por sua vez sucede ao verão, e este último se segue à primavera), na paisagem de dentro uma outra lógica se opera: por vezes, dura dentro de nós um verão interminável:sob o crivo de seu meio-dia, tudo o que é sombra se desfaz. Noutras vezes, ao contrário, se instala na paisagem de dentro um inverno de densas tempestades e bruscas nevascas: em pleno meio-dia, já é noite... Some de nossas vistas espirituais o caminho que nos levava ao que desejávamos, tateamos numa noite que nos vai dentro. Mesmo que na paisagem de fora esteja a brilhar um sol de dezembro, em plena Ipanema, o inverno de dentro às vezes perdura, invencível ─ achamo-nos no Alaska.
E o mais estranho é que, na paisagem de dentro, por vezes esse mesmo inverno é substituído por um verão que chega sem aviso. Então, a neve que antes nos imobilizava, prontamente se derrete: torna-se a poça d’água na qual vemos refletido o céu azul que , de tanto andarmos de cabeça baixa, esquecemos que existia.
A felicidade suprema talvez seja quando os dois sóis (o sol de fora girando em seu céu misterioso e o sol de dentro pulsando em seu céu mais misterioso ainda) brilham juntos numa primavera de renovação ou num outono sem pressa , onde aquece o lume de uma felicidade conquistada , contentemente viva : beatitude.