terça-feira, 31 de dezembro de 2019

fim de ano



Limpar a casa: retirar a poeira acumulada que sufocava de cinza as cores. Lustrar os vidros da janela : até de novo poder atravessar  luz por ela. Reorganizar as distâncias entre as coisas : para que entre elas haja livre espaço para o correr de crianças. Reabrir a porta que mantivemos trancada: para que no coração uma linha de fuga também se refaça. Limpar tudo ao som da música, cantando junto, para que na mente também se opere a faxina. Forrar a mesa  com uma toalha multicolorida:  sobre ela colocar   pão , frutas e poesia . Depois de tudo revitalizado, reentrarmos como alguém que nos fizesse uma primeira visita.
                                                                                                                           
“É a minha própria casa,
mas creio que vim fazer uma visita a alguém.” (Maria Gabriela Llansol)       

“Perdoai. Mas eu preciso ser Outros. ” (Manoel de Barros)

( imagem: “Porta e janela abertas”, de Matisse)









segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

o tempo-será...


Em toda  passagem de ano comemoramos um ano novo: um ano velho  vai, um ano novo vem. Mas o ano novo não é um começo radical : ele é a continuidade de um mesmo tempo. É por isso que o ano novo é contado e recebe um número : 2020 é um ano novo de um mesmo tempo que é numerado, então, com um ano a mais. 2020 é um novo ano de um mesmo tempo, e não um tempo novo. 2020 é anunciado como ano  novo, mas  o tempo que ele traz  em parte ainda está refém, infelizmente, de uma mentalidade retrógrada  , nostálgica de um passado de trevas.
Entre os gregos o tempo era vivido de outra maneira. O tempo não era concebido de forma linear e numérica. Os gregos viviam o tempo como repetição cíclica. Dois eventos determinam o ciclo do tempo: o nascimento e a morte, a criação e a destruição. O tempo nasce, cresce e morre, como tudo o que é vivo. Porém, o tempo renasce, vencendo sua própria morte.  O tempo que renasce é um tempo novo que nada tem a ver com o que morreu. Esse tempo novo  não é o desenvolvimento de um tempo antigo. Por isso  nenhuma data ou número pode determinar esse tempo  renascido outro. É no tempo novo, e não no tempo morrido, que o tempo mostra sua verdadeira face: deixar para trás tudo o que está morto.
Quantos tempos novos já existiram? Impossível numerar... Infinitas vezes já houve um tempo novo. Apesar disso, sempre haverá tempo novo, a despeito dos homens conservadores do antigo.  É para  criar-se novo que o tempo se destrói como antigo. Repetindo-se, o tempo  sempre retorna, diferente. O tempo não é eterno: eterna é a repetição através da qual o tempo retorna, novo.

“Só podemos destruir
sendo criadores."
(Nietzsche)








sábado, 28 de dezembro de 2019

auroras...


“O que é verdadeiramente novo nunca vira sucata” , ensina  Manoel de Barros . “Sucata”, segundo o poeta, é tudo aquilo que a “velhez venceu”. “Velhez” não é uma vida perto do fim , “velhez” é uma vida que se perdeu de seu “minadouro”, de seu embrião. Se 2019 está virando sucata, é porque ele nunca foi verdadeiramente o tempo novo. 2020 é anunciado como o tempo  novo, porém ele igualmente  virará sucata... Então onde achar   o tempo  “verdadeiramente novo”  que resiste a  virar sucata  ? Onde encontrar  tal “minadouro”  para nos umbilicarmos  a ele e não virarmos  sucata também?
À meia-noite de 31 de dezembro fogos de artifício explodem no céu. Suas cores e luzes atraem olhos esperançosos que se erguem até eles com pedidos e promessas.  Porém os fogos de artifício não duram muito: logo viram fumaça...O dia novo somente nasce mesmo  com as luzes e  cores trazidas pela   perseverante aurora, que sempre vem para nos lembrar que todo dia  é novo,  e não apenas o 1º de janeiro!
Fazendo minhas as palavras do querido poeta,  que não nos falte a força criativa  para  (re)inventar auroras que nos ajudem a vencer  toda  forma de treva, sobretudo a que ameaça   nossos direitos e dignidade, sucateando nosso futuro antes mesmo que este aconteça. Que a visão de uma aurora possa nos inspirar a olhar também para dentro, para criar   também em nós , individual  e coletivamente,   o alvorecer de recomeços.





quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

manoel : andar ao lado...


“Odeio tanto seguir como ser seguido: para me acompanhar aonde vou, é preciso aprender a amar andar ao lado. ” (Nietzsche)

Não há nenhuma virtude no mero seguir. Quem segue ignora o caminho, e não sabe se ele vai dar num lugar melhor ou no abismo. Neste último caso, a verdade só é descoberta quando já se está caindo.... Há menos virtude ainda em querer ser seguido: tal pretensão às vezes nada mais é do que a vaidade de ter atrás de si muitos, para assim não se perder sozinho neste mundo sem rumo. O importante não é o que está no fim do caminho, o importante são os meios   que possibilitam o andar ao lado e avançar: cada qual sobre suas próprias pernas, ora aprendendo, ora ensinando, sem comparamentos , no mesmo sentido indo.

 “Não preciso do fim para chegar: a estrada põe sentido em mim. ” (Manoel de Barros). 



terça-feira, 24 de dezembro de 2019

o transver...


Quando eu era criança, bem criança, no natal meus pais costumavam me dar carrinhos de presente. Eu recebia tais brinquedos e os guardava, agradecido. Porém  eu gostava mesmo era de brincar com as próprias coisas, retirando delas os sentidos acostumados . Por exemplo, gostava de pegar o chinelo de meu pai e fazer de carrinho: eu segurava o chinelo  com as mãos e o fazia correr pelo chão, inventando também para ele uma estrada, um caminho. Como realidade lúdica, brincativamente inventada,  o carrinho estava mais  em meus olhos do que no chinelo.  Nunca me fizeram falta os brinquedos, enquanto eu soube brincar com o sentido.
Brincar com o carrinho de plástico era bom, porém brincar com o chinelo  subvertido  carrinho era mais do que brincar: era ato poético-político, ainda que inocente,  para subverter o sentido do que está dado. Depois de crescido,  (re)descobri em Manoel de Barros essa mesma arte-peraltagem transformada em  exercício poético : para assim   manter vivo um devir-criança como antídoto contra o  olhar resignado.

“O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê. É preciso transver o mundo” (Manoel de Barros)



sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

para onde aponta a bússola

Segundo Nietzsche, há filosofias do “sol nascente” : nestas filosofias,  o pensamento  é como o sol que nasce e ilumina a natureza que a noite obscura ocultava. As filosofias do sol nascente coincidem com a própria origem da filosofia:  assim foi a filosofia  dos pré-socráticos, como um sol nascente a revelar a natureza, a “physis”. Mas  existem também filosofias do “sol poente”, filosofias do ocaso: elas coincidem com a filosofia europeia, na qual este mundo em que vivemos hoje foi gerado. Essas filosofias substituíram a luz nascente da physis poética , tal como existia em Tales ou Heráclito,  pela luz poente da razão objetivista  , sendo o niilismo a sombra que acompanha essa luz pragmática e despoetizada.
Mas há ainda , segundo Nietzsche, a “filosofia dos hiperbóreos”. Entre os gregos , “bóreo” era o nome do vento mitológico conhecido como “vento do norte”. Esse vento por vezes também era chamado de “vento da morte” ( nos vários sentidos que a morte tem). Assim, o hiperbóreo era um lugar que ficava  além do que podia alcançar o vento bóreo, o vento da morte ( em grego, o prefixo “hiper” também significa: “o que está em lugar superior”). Os gregos diziam que para as  regiões hiperbóreas iam alguns deuses, como Apolo, quando queriam recuperar as forças. A região hiperbórea não é exatamente o norte da Europa,  e sim o limiar  desta . Na verdade não é para o norte , e sim para o hiperbóreo, o lugar para o qual toda bússola aponta. Mas  o que mais caracteriza a região hiperbórea da terra é que nela o sol  jamais morre : ele está sempre no horizonte e corre sobre as montanhas, horizontalmente. Na região hiperbórea é sempre amanhecer...   “Hiperbóreos”,  assim deveriam ser  os pensadores  do futuro, acreditava Nietzsche,    para assim vencerem o vento da morte que sopra contra  o pensamento e a diversidade, e   não se deixarem capturar pelo  niilismo  redutor da vida  ao dinheiro e ao mercado . Como reconhecer um hiperbóreo? Um hiperbóreo é aquele em cujo horizonte aberto o sol que nunca morre é a Arte.

( imagem: capa do livro “O fazedor de amanhecer”, do poeta
 Manoel de Barros)

   


       

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

o presente do papai noel...

"Como quem espreita o céu 
  e colhe na visão um novo planeta,
  assim fiquei então."

Keats


Eu tinha cerca de 6 anos. Na noite do dia 24 de dezembro , próximo à meia-noite, meus pais me levaram ao meu quarto para me mostrarem o que o papai noel deixou para mim sobre minha cama: uma bola. Mas eu mal dava atenção ao presente, eu queria era ver o papai noel! Meus pais então me diziam: “ele já saiu pela janela!” Depois eles me levavam correndo ao quintal e apontavam para o alto: “Olha o papai noel lá, subindo ao céu em seu trenó, está vendo?” Mas eu só via as estrelas... Com a alma acesa, eu não parava de fazer perguntas aos meus pais: “O papai noel mora numa estrela? Por que ele se esconde? Ele tem medo da gente? Ele sempre foi velho ou um dia foi criança?” Meus pais acabavam indo embora para cuidarem da ceia, sem entenderem tanta curiosidade poético-metafísica... Inquieto, eu ficava ali olhando a imensa noite estrelada do verão carioca, cheio de perguntas ainda. Após um bom tempo olhando o infinito , acabava me lembrando da bola, e voltava correndo para brincar com ela até tarde. Ia dormir abraçado com a bola...
No ano seguinte mudamos para uma nova residência. Na noite do nosso primeiro natal no apartamento novo, fiquei de soslaio olhando a janela. Meus irmãos menores, impacientes , queriam ir logo para o quarto ver os presentes trazidos pelo papai noel. “Ainda não é meia-noite,ele ainda não veio”,dizia meu pai.Houve um momento em que vi meu pai e minha mãe trocarem olhares. Eles não repararam que eu notei aquela comunicação estranha, parecia que estavam combinando algo.Meu pai saiu de fininho, enquanto minha mãe entretinha a gente na sala com o panetone. Mas eu só fingia olhar para o panetone, pois minha atenção estava voltada para surpreender o papai noel em sua entrada sorrateira pela janela. Se meus queridos pais não tinham respostas para minhas indagações metafísicas, seria então ao próprio papai noel que eu interpelaria com minhas perguntas. Eu nem fazia questão da bola nova, já ficaria contente em ter de presente as respostas. Então, de rabo de olho , vi meu pai entrando no nosso quarto na ponta dos pés, sem notar que eu o via. Ele nem acendeu a luz para entrar, achei estranho... Porém em suas mãos estava o motivo daquele seu esgueirar-se feito sombra:meu pai carregava pacotes de presentes...
Foi instantânea a minha compreensão do que estava acontecendo. Não fiquei decepcionado com a situação, tampouco desiludido . Algo em mim despertou, abriu os olhos e nunca mais os fechou. Mais do que a tudo, foi a existência da linguagem que surgiu ali para mim, pois até aquele momento nunca tinha reparado na existência dela. Só existe a mentira porque existe a linguagem, embora a linguagem não seja uma mentira, mas uma invenção. A mentira é uma invenção que quer passar-se por uma verdade não inventada. Eu ainda não sabia ler direito as palavras escritas nos livros, porém começava a ler o mundo . Quando meu pai retornou à sala dizendo que viu o papai noel saindo pela janela, fiquei pensativo e não disse nada. Senti ali uma solidão diferente : um estar só sem ficar triste. Enquanto meus irmãos corriam para o quarto, fui à janela e olhei para o imenso céu de maneira nova: com uma intensa e viva alegria que só compreendi muitos anos depois ao ler Espinosa. E ao tentar apreender com o pensamento aquele infinito estrelado, entendi que era o Sentir, e não o racionalizar , o que me punha mais próximo daquela realidade insondável. Senti então que algo me crescia por dentro, livre. Acho que foi ali que começou a ser partejado em mim o filósofo.

“O homem seria metafisicamente grande, se a criança fosse seu mestre”(Kierkegaard).



terça-feira, 17 de dezembro de 2019

paulo freire e a palavra-geradora


"A justiça social tem que vir antes da caridade", ensina o educador Paulo Freire. Em seu método de alfabetização de adultos, Paulo Freire ensina algo que muito lembra Espinosa: o educador deve aprender com os educandos conhecendo-os não apenas como educandos, mas como agentes construtores da realidade em que vivem. Assim, o autêntico educador deve conhecer seus educandos não como objeto, como faz a douta academia, e sim como agentes que dão sentido ao mundo em que vivem. Mesmo que não saiba ler ou escrever, um homem dá sentido ao mundo em que vive por intermédio de palavras-ferramentas, as quais Paulo Freire chama de “palavras-geradoras”. As palavras-geradoras não vivem em livros ou dicionários, elas vivem no enunciado singular do homem no mundo. Assim, quem quer ensinar tem que aprender a ouvir tais palavras na fala social e coletiva. O professor é aquele que põe livros em sua fala, ao passo que o educador é aquele em cuja fala também se encontra a fala daqueles que com ele vieram aprender mais do que lições de livros.
As palavras-geradoras, autênticas palavras-potência, desenvolvem e explicam o sentido que nelas está implicado. Pois elas não são apenas palavras, elas são também ideias, percepções, cantares, repentes, sons ancestrais... As palavras do dicionário , ao contrário, são palavras-poder : elas não geram, elas apenas roubam a fala singular para impor uma fala abstrata, a fala sem gente da gramática . O sentido das palavras-geradoras não é apenas gramatical, pois elas estão umbilicalmente ligadas a um modo de vida, e nunca um modo de vida é apenas gramatical. Assim, a verdadeira pedagogia também é exercício ético da política, como pedagogia da autonomia. A palavra-geradora me lembra as palavras geradas do lápis do poeta Manoel de Barros, que dizia: “Na ponta do meu lápis tem apenas nascimento”. O contrário da palavra-geradora é qualquer uma que, mera palavra-destruidora, venha da boca de um fascista.



sábado, 14 de dezembro de 2019

poesia & utopia


 Na rica  fala do povo do pantanal, “agroval” significa:  “lugar onde se cultiva a vida”. “Agroval” também é o nome que Manoel de Barros escolheu para  um de seus mais belos  poemas. O poema narra o que faz uma imensa  arraia quando as águas do pantanal secam e põem a vida em perigo: a arraia abre suas grandes asas  e pousa no barro, retendo parte da água abaixo de si. Com arte e cuidado, a arraia recria um  pequeno pantanal entre seu abdômen e o chão úmido , para que nesse espaço  protegido o coração do pantanal possa habitar e perseverar  ,    vivo. Generosa, a arraia deixa tudo o que  corre perigo  vir morar sob suas asas, fazendo delas abrigo. Migram  não apenas bichos, instalam-se  também sementes  de futuras flores e frutos, de tal modo que debaixo da arraia tudo o que vive acha um  útero. Sob a proteção de tal Gaia, a vida continua, resiste, fortalece-se; acontecem agenciamentos, contágios, enamoramentos da vida por ela mesma, una e múltipla. Até mesmo uma festa se esboça, feito uma  kizomba a celebrar a vida salva pela Vida. Pois quando as águas do pantanal  vão secando , aumenta a lama e vai sumindo o oxigênio.  Os predadores   sorrateiros lucram com a desolação  e   ficam à espreita para predar a vida que sufoca . Mas a arraia é resistente: quando o oxigênio falta às águas, a arraia aprende a sorvê-lo do ar para  partilhá-lo com os que respiram graças à respiração dela. Aconteça o que aconteça, nunca a arraia  se entrega ou desabraça. Quando as águas novamente  caem do céu e  a vida pode recomeçar, a arraia levanta as asas e  parteja  os seres que salvou do perigo, como uma utopia que enfim sai das teorias e  livros  para ser criada na prática.






quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

o terraplanismo...


Quanto mais lados um polígono possui, mais próximo ele está do círculo. Um triângulo possui três lados, o quadrado possui quatro. O quadrado está mais próximo do círculo do que o triângulo. O hectágono, polígono que tem cem lados, está mais próximo do círculo do que o quadrado. O megágono, polígono de um milhão de lados, encontra-se mais próximo do círculo do que o hectágono.Um bilhão de lados possui o gigágono, e isto o faz estar mais próximo do círculo ainda. Mas acima do gigágono existem ainda outros incontáveis polígonos com mais lados ainda, todos se superando em estar mais próximo do círculo. Um círculo, porém, não possui um trilhão ou um quatrilhão de lados, pois ele simplesmente não possui lados. 



Por isso, a única maneira de um polígono alcançar o círculo é se tornando um, é coincidindo com ele. Um polígono somente pode alcançar o círculo se libertando do afã de ampliar seus limites, pois é isto o que acontece quando ele aumenta seus lados. Coincidir com o círculo é um “deslimite”, diria o poeta Manoel de Barros. Comparado com um polígono que tem menos lados, o polígono de mais lados parece que está mais perto do círculo. Mas comparados com o próprio círculo, todos os polígonos lhe estão a igual distância, dado que o círculo é incomparável.


A ciência tenta alcançar a Vida aumentando as teorias, tal como o polígono que aumenta seus lados achando que assim alcançará o círculo. Física, química, biologia, matemática, sociologia, psicologia, etc., são os lados do polígono-ciência. Contudo, mesmo que se aumente indefinidamente a quantidade cumulativa de tais ciências, nunca elas alcançam o todo da Vida, pois este todo é um processo, um devir. Diferentemente da ciência , a poesia é como o círculo: sua riqueza e multiplicidade não advém do aumento de teorias. No círculo absoluto da Vida , o pensamento , a poesia e a vida são a mesma coisa. O círculo da Vida, porém, não tem centro ou perímetro determinados. A Vida é um círculo cujo centro está em toda parte , sendo seu perímetro ilimitado.
Olhado apenas nele mesmo , o círculo é a coisa mais simples que existe. Porém quando intuímos todos os polígonos que estão virtualmente compreendidos nele, o círculo nos aparece então como a realidade mais complexa e rica que existe, mas sem deixar de ser simples, como a Vida.
Não é aumentando seus lados que um polígono pode coincidir com o círculo. Não é aumentando a inteligência que se alcança a sabedoria; não é contando todas as estrelas que existem no universo que se compreende intuitivamente o que é o céu; não é meramente aumentando o número de ações que fazemos que nos tornamos ativos; não é proliferando o número de palavras que dizemos que aprendemos a ter o que dizer. Mesmo que tivéssemos um trilhão de dias para viver isto não significaria que , somando esses dias, chegaríamos a viver a vida com intensidade. Quando o círculo gira sobre seu próprio eixo, nasce assim a esfera, tal como o nosso planeta Terra . O terraplanismo odeia toda essa riqueza ilimitada , e seu ódio-ignorância também se dirige à própria vida diversa e múltipla, pois “planar” significa “tornar homogêneo”, “apagar as diferenças”.

(foto: Olavo, o terraplanista...)




- para quem quiser gostar de matemática, este livro é um dos melhores:

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

métis


A filosofia grega atendia por um nome : “Sofia” (“Sabedoria”). Não se deve confundir “Sofia” com “Razão”. Em grego, a palavra “Razão” é masculina e tinha  em Zeus um dos seus símbolos. Porém Zeus  não era a Sabedoria: esta nasceu dele como sua filha ou obra. Sofia é filha de Zeus com Métis. Os romanos traduziram “Métis” por “Prudência”. Porém a palavra “prudência”  não traduz  a riqueza semântica  da “Métis” original  grega. Pois “Métis” também é a deusa das “habilidades”. Não habilidade meramente   técnica, mas habilidade no sentido de produzir em nós um querer, uma consistência,  uma perseverança, um agir. À Métis também está associada a ideia de “saúde” enquanto cuidado consigo e com os outros. A palavra “caute” , base da Ética de Espinosa, provém dessa noção de métis enquanto medicina  do corpo e da mente. Uma das características de “Métis” é que ela era capaz de metamorfoses, de devires. Então, Zeus, o deus da razão, buscou na metamorfose de Métis uma nova saúde , uma saúde unindo pensamento e ação. De certo modo, a razão buscou sua saúde para além dela mesma, como se a simples razão fosse , sozinha, doença. Mesmo a razão precisa aprender habilidades que a pura razão não ensina. As habilidades de Métis são artes que unem o pensar ao agir. E foi desse agenciamento mais afetivo do que teórico , mais artístico e poético do que acadêmico, que nasceu Atena, Sofia. Os teóricos da razão  inspiram-se em Zeus, mas os pensadores são enamorados e apaixonados por Sofia: e por essa paixão não apenas pensam, como também agem e criam.



terça-feira, 10 de dezembro de 2019

sofias...


Isso aconteceu recentemente em uma favela do Brasil: enquanto a água da enchente subia rapidamente e invadia o casebre simples, porém honesto, a mãe pede à menina para que pegue e salve o que for mais importante para sua sobrevivência e  ponha na mochila . A menina então se salvou sobre uma tábua de  madeira, agarrada à mochila. Quando a menina chegou à terra seca e abriu a mochila, foi tirando dela apenas livros...Quando lhe perguntaram a razão disso, ela disse: “salvei os livros porque são eles que vão me salvar...”.  O nome da menina é Rivânia, mas também poderia ser chamada de “Sofia”.



segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

a tolerância...


Anda muito estranho este nosso país: li ontem reportagem informando que livros didáticos estão sendo triturados para virarem papel higiênico! E o mais absurdo: são livros ainda na embalagem, que nunca chegaram, e nem irão chegar , às mãos dos alunos...Isso me lembrou uma situação que vivi recentemente: vi em uma lata de lixo perto de casa um livro que ali estava jogado fora. Era um livro de filosofia: “Tratado sobre a Tolerância”, de Voltaire. Notei o livro porque, antes, reparei em um senhor morador de rua que revirava a lata em busca de coisas que ainda podiam valer algo. Quando ele saiu, fui salvar do lixo a Tolerância. A situação me lembrou um verso de Manoel de Barros: “O que é verdadeiramente novo nunca vira sucata”. A Tolerância estava perto de um celular que um dia já foi novo, mas que agora virou sucata em razão de um modelo novo que o mercado lançou . Porém este mesmo modelo novo, não demora muito, virará sucata também. Mas valores o mercado não fabrica, embora ele viva de sucatear os valores com sua lógica de a tudo reduzir a coisa que se compra e vende...Peguei enfim a Tolerância e a retirei daquele lugar de coisas reduzidas a nada. A Tolerância estava muito machucada... Levei-a para casa e a pus perto da janela para pegar sol, secar e curar. As folhas estavam quase dissolvendo, porém não eram as folhas que eu queria salvar, na verdade eu queria manter viva outra espécie de realidade. “Ab-soluto” significa: “o que não é soluto, o que não se dissolve”. Mesmo que todos os livros sobre a Tolerância fossem jogados fora pela mentalidade  utilitarista ou pelo obscurantismo fundamentalista, seriam dissolvidos papéis e tintas, mas não a Ideia de Tolerância enquanto ela viver na alma , na palavra e na ação de quem não a deixar “virar sucata”. Um valor absoluto não é um valor eterno, um valor absoluto é aquele que a gente não deixa morrer. A Tolerância está viva e bem, nova como sempre, apesar daqueles que a querem no lixo. A luz do sol faz milagres...



sábado, 7 de dezembro de 2019

acervo , museu da maré


Um autêntico “acervo” não é feito de  coisas mortas ,  inertes. “Acervo” vem de “cérvix”: "cervical". A coluna cervical  , por exemplo, não é apenas o que sustenta a cabeça. Pois a  coluna cervical também é o que nos põe de pé e serve de elo entre o cérebro e o restante do corpo : é atravessando a coluna   que as ideias e desejos nascidos no pensamento se tornam força ,  alcançam nossas mãos e pernas,  traduzindo-se em ação sobre o mundo. Não por acaso, Fernando Pessoa nos lembra em um de seus poemas  que a coluna cervical  tem a forma de um ponto de interrogação. Pois é isto que põe o homem de pé: sua capacidade de pôr questões. Assim  como a coluna cervical, um acervo existe para manter de pé  as ideias que nos fazem seres pensantes. Quando os  obscurantistas  nos querem de joelhos, a educação emancipadora é a coluna sobre a qual devemos  nos erguer.

 ( foto: no Museu da Maré,  como parte de seu acervo ,  a luta de Marielle permanece de pé) 









quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

livro sobre manoel

trecho de novo livro a sair em breve. Nome do livro: "MANOEL DE BARROS: INFÂNCIAS, INVENÇÕES, EXPERIMENTAÇÕES " ( escrevo dois capítulos no livro)

No poema “O guardador de águas”, Manoel de Barros descreve o seguinte acontecimento: sob um monturo de restos de ossos, de folhas apodrecidas, de cacos de vidro e farrapos do que outrora respirou e foi vivo, sob tal monturo, que a natureza recolheu sem preconceito ou condenação, no ventre desse casulo úmido, uma semente despertou e uma fuga foi-se desenhando, e o que era obstáculo tornou-se impulso para a vida que se expandia. Move esta vida o desejo de ver o sol, o sol que ela nunca viu. Esse desejo perfurou o monturo, e deu-se a jubilação: saiu a pequena planta cantando o amor de existir. O poeta: “indivíduo que enxerga semente germinar”, pois “nas fendas do insignificante ele procura grãos de sol” (BARROS, 1992, p. 211). 
O guardador de águas: guardador de fluxos. Os fluxos somente podem ser guardados em um espaço aberto, sem limites determinados, cujas margens são limiares que, por dentro, se podem expandir. Guardar os fluxos é cuidar também deles, a começar pelos fluxos que nos constituem: caute, como recomendava Espinosa; cuidado como ato ético e também clínico. Em Manoel de Barros (2010a, p. 145), a essência não é uma “forma fixa”, ela é um “minadouro”, dela brotam e minam inauguramentos. Só  podemos guardar os fluxos em um espaço múltiplo, ao mesmo tempo subjetivo (lírico) e objetivo (prosaico). Guardar as águas é guardar-se nelas, como larva, rascunho, desabrimentos — “estou à janela e só acontece isto: vejo com olhos benéficos a chuva, e a chuva me vê de acordo comigo. Estamos ocupadas ambas em fluir” (LISPECTOR, 1984, p. 119).





terça-feira, 3 de dezembro de 2019

os vendilhões...


Os gregos diziam que a sociedade é composta por três classes: aqueles que a devem governar com leis e regras, os que a devem defender com armas ( subordinados à Constituição)  e os que vivem do comércio querendo obter lucro e dinheiro. O perigo que a sociedade corre é quando os comerciantes resolvem querer governar. Não há nenhum problema quando o comércio se exerce limitando-se no comprar e vender coisas . O risco supremo para uma sociedade é quando o espírito de comerciante quer também ser governo. Pois quando o espírito de comerciante domina   também o Estado ,  tal espírito de comerciante  não mudará seu jeito, e assim ele continuará a fazer a única coisa que  sabe: comprar e vender. Dessa vez, no entanto, virará objeto de comércio coisas que não deveriam ter preço: como as leis , o ensino, as florestas, os mares, a saúde do povo, enfim, o patrimônio público. E assim , é o próprio povo que, em última análise,  será comprado e vendido por um preço que o espírito de comerciante se esforçará para ser o mais baixo, pois quanto mais barato for comprado e vendido o povo,  maior será o lucro de tais comerciantes espúrios. Porém, temendo uma revolta do povo, o espírito de comerciante sempre se associa com aqueles cujo poder é o das armas, os militares, nascendo assim a tirania. A tirania é sempre cívico-militar: o capital unido às armas.



- infelizmente, este maravilhoso livro não tem em português ( mas deveria ser traduzido urgentemente): "O preço das coisas sem preço".


segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

artigo: a clínica de manoel


trecho do artigo:                     

            MANOEL DE BARROS: A EMPOÉTICA TERAPÊUTICA
                                                         
                                                                                               Elton Luiz Leite de Souza[1]


RESUMO: A poesia de Manoel de Barros é mais do que uma poética, ela é uma empoética. Sua terapia literária enseja uma terapêutica da linguagem e de nós mesmos, empoemando-nos. Empoemar-se é estender o poético para além dos meros versos, e é isso que faz Manoel em sua obra, incluindo entrevistas, cartas e mesmo seus desenhos. São esses os componentes de sua Oficina de Transfazer Natureza, para assim inventar comportamento.
PALAVRAS-CHAVE: Manoel de Barros; Poesia; Empoética.


1. Introdução: a Oficina de Transfazer
A literatura é uma saúde.
Gilles Deleuze

Manoel de Barros define sua poesia como Uma Oficina de Transfazer Natureza”[2].  Toda oficina é um lugar de “fazimentos”, de “inventar comportamento”[3]. Nessa Oficina há várias ferramentas, ferramentas simbólicas, semióticas, lúdicas. Queremos falar de uma ferramenta em especial. Manoel constrói e reconstrói inúmeras coisas com ela. Trata-se não de uma palavra, mas de uma “pré-palavra”: o prefixo “trans”. O pré-fixo é o que vem antes de algo fixo, pronto, fechado. “Fixo”, “acostumado”, é o significado que o uso enrijece: “significar reduz novos sonhos para as palavras”[4] .  Mais do que uma lógica, uma Oficina do Sentido: “Na ponta do meu lápis / Há apenas nascimento”.[5]
O “trans” é uma ferramenta da oficina poético-filosófica do artesão Manoel. Não é a gramática que pode explicar o emprego em Manoel de tal prefixo, apenas uma agramática o pode:

Um subtexto se aloja.
Instala-se uma agramaticalidade quase insana,
que  empoema  o sentido das palavras.
Aflora uma linguagem de defloramentos,
um  inauguramento  de falas.[6]

 No poema acima, Manoel nos ensina, brincativamente [7], a principal lição de sua Oficina:  o empoemar como atividade que aqui chamaremos de empoética. Esta é a hipótese que sustenta tudo o que queremos aqui dizer: toda a poesia de Manoel é uma empoética, e dessa empoética também fazem parte as entrevistas e mesmo sua correspondência.
Essa empoética também é expressa por outros meios sem ser a palavra, tal como se vê nos desenhos muito originais e singulares que o próprio poeta engenha. E mais: os livros nascem em cadernos artesanais que o poeta confecciona à mão. Também é parte de sua empoética essa sua artesania.          




[1] Filósofo, Professor Adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio); autor do livro Manoel de Barros: a poética do deslimite (Editora 7letras/Faperj); publicou também   artigos sobre a obra de Manoel de Barros. Organizador de publicação em homenagem ao centenário do poeta: Poesia pode ser que seja fazer outro mundo, Editora 7letras (no prelo).
[2] O guardador de águas, p. 20.
[3] “Comportamento”, Ensaios fotográficos, p. 65.
[4] Escritos em verbal de ave.
[5] Encontros: Manoel de Barros. Rio de Janeiro, Azougue, 2010(Org. Adalberto Müller), p. 135.
[6] “Retrato quase apagado em que se pode ver perfeitamente nada”, Guardador de águas, p. 62.
[7] Escritos em verbal de ave. São Paulo: Leya, 2011.




- link para artigo completo:

http://websensors.net.br/seer/index.php/guavira/search/authors/view?firstName=Elton%20Luiz&middleName=Leite%20de&lastName=SOUZA%20%28UniRio%29&affiliation=Fil%C3%B3sofo%2C%20Professor%20Adjunto%20da%20Universidade%20Federal%20do%20Estado%20do%20Rio%20de%20Janeiro%20%28UniRio%29&country=BR

domingo, 1 de dezembro de 2019

a pintura de espinosa


Se a gente olha um quadro de muito perto, vemos apenas as tintas, as pinceladas, as texturas e tudo aquilo que nasceu do movimento do pincel. Mas  se nos afastarmos um pouco  e olharmos para a tela,  vemos enfim a paisagem que o artista criou. Quando olhamos de perto, a paisagem “desaparece” para nossos olhos, porém não das tintas. Paisagem e tintas são, no quadro, uma única realidade vista de duas perspectivas diferentes. Assim são, segundo Espinosa, o corpo e a alma:  as tintas e as paisagens que somos. Se o artista  altera o tom de uma tinta, também altera , ao mesmo tempo, o sentido da paisagem. As árvores pintadas, os verdes das plantas, o amarelo do sol, todas as ideias expressas no quadro enfim, estão conectadas tais como estão conectadas as tintas no espaço do quadro. Alguém poderia perguntar a Espinosa: “E se depois de estarmos bem perto e vermos as tintas começarmos a nos afastar lentamente, haverá um momento em que veremos a paisagem nascendo antes de as tintas morrerem para nossos olhos? Seria possível vermos as tintas e a paisagem  como realidades diferentes antes de elas se tornarem uma única realidade?” Talvez Espinosa respondesse assim:  “Quando olhamos o quadro o fazemos com os olhos do nosso corpo, que é ´parte da matéria-tinta que somos, olhos estes que são os olhos mesmos da alma enquanto expressão da paisagem que somos. A unidade não nasce de fazermos a paisagem ser superior às tintas, pois a autêntica unidade está no artista: é ele o produtor da paisagem enquanto alma das tintas, e das tintas enquanto corpo da paisagem. A unidade que somos, unidade de tintas e paisagem, corpo e alma, está  no artista do qual somos a obra de arte”. Este artista não é nosso ego, mas a Natureza Infinita, a qual Espinosa chama de Natura Naturante: a Pintura Absoluta.