Quem se aproxima
da origem se renova. Manoel de Barros
Há um poema de Manoel de Barros no qual ele diz ter visto, quando criança, dois
homens "escovando osso" ( o nome do poema é exatamente
"Escova" [1]). Isso o afetou singularmente. Tempos
depois, ele soube o nome do que aqueles homens estavam fazendo: eles faziam
"arqueologia", eles eram "arqueólogos".Desse aprendizado
ele inventou outro, pois o poeta diz que aprendeu a fazer algo semelhante , só
que com as palavras. Ele aprendeu a "escovar" as palavras.
Os arqueólogos escovam o osso , algo aparentemente inerte e morto, para nele
fazer viver a "arqué". "Arque-ologia" procede de
"arqué". "Arquivo" também procede. "Arqué"
tem por sentido "princípio", "causa" ,"fonte",
"origem" ou "começo".Só arquivamos( em armários, gavetas ,
museus ou em nossa própria memória) aquilo que julgamos ter alguma relação com
nossa existência, seja como causa , fonte ou origem.Em nossa memória não está
apenas o passado, está também o que dá sentido ao presente.Em A
Arqueologia do Saber, Foucault mostra que o saber é prática de construção
de "arquivos" que co-existem sem se sucederem em progressão.No
exemplo de Manoel de Barros, os arqueólogos descobriam que havia, naquele osso,
algo arquivado: arquivado não como um papel em uma gaveta, já que , nesse caso,
o que está arquivado é o próprio osso como arquivo, como signo, como sentido. O
tempo estava arquivado nele, e ele, o osso, estava arquivado no tempo. E este
tempo não é o passado no qual aquele osso foi esqueleto, já que se trata também
do tempo no qual ele é descoberto como arquivo.Um osso não é apenas um osso,
quando nele descobrimos um arquivo.Outrora ele fazia parte de um esqueleto
escondido sob pele e músculo.Hoje, como arquivo, percebe-se que ele faz parte
do universo inteiro, e sobre este ensina.O osso vira um documento: docere,
aquilo que ensina.
O poeta escova a palavra, e a faz nos ensinar coisas que a mera informação
utilitária não ensina. O poeta escova a palavra para nela fazer nascer sua
alma: o sentido.
O mistério mais misterioso não é o que acontece escondido, à noite,
e que poucos veem. O mistério mais misterioso é o que acontece em plena luz,
mas poucos têm olhos para ver.
Barrès
Originalmente,
“crítica” é um termo que lança raízes na ágora grega. A crítica é prática
política e filosófica de trazer à pólis , ao comum, o sentido que
elegemos como orientação para nosso agir e pensar. Crítica é prática de
fortalecer o comum, desarmar os egos, coibir tiranos, os de fora e os de dentro
de nós mesmos.
O iluminismo retomou essa ideia. Dessa vez,
trazendo um novo elemento: a luz. Entre os gregos, a luz não fazia parte
exatamente da pólis, pois nesta o agente era a palavra. Era nos místicos e
poetas que a luz aparecia como realidade a atrair a alma mais do que a tudo,
revelando outro poder distinto daquele que movia a política.
O
iluminismo retirou da luz essa dimensão absoluta, poético-mística, e a associou
apenas à razão. No lugar do sol místico, interpôs-se a razão. Contudo, esse
interpor-se da razão também produziu sombras. O racionalismo cientificista é a
sombra deixada por uma razão que quer ser o sol, que se arvora como única fonte
de luz.
Espinosa
se diferencia muito desse paradigma, embora se saiba que é em Espinosa que
nasceu, de fato, o espírito iluminista, muito antes dos enciclopedistas. Assim,
é em Espinosa que vemos o exercício muito singular da crítica. Na Grécia, a
política se fiou demasiado na palavra, e expulsou para longe a luz espiritual,
acessível apenas aos solitários. Na Europa moderna, trouxe-se a razão para a
política, mas ao preço de retirar dela toda e qualquer dimensão metafísica,
ontológica, ética.
Em
Espinosa, porém, a política e a metafísica serão vistas de forma agenciadas,
como partes de um todo, pois a crítica
ao dogmatismo e ao obscurantismo não se faz apenas colocando a vida sob a luz exclusiva da razão. Espinosa descobre que
há apenas uma luz, uma luz espiritual, mas que esta produz outras luzes também,
que são maneiras ou modo de ser dela. Há certas questões que só ficam claras
trazendo-as sob a luz da lua, luz poética, pois a luz do sol não é capaz de
iluminar o que não é do reino do útil.. E há outras realidades ainda que apenas
sob a luz das estrelas somos capazes de compreender. As luzes das estrelas são
as luzes do infinito.
Espinosa,
de fato, é um iluminista, talvez o maior de todos, desde que incluamos nessa
luz que o move não apenas a luz do sol da razão. A luz do sol é apenas a luz de
uma das milhares de estrelas, assim como a verdade da razão é apenas uma entre
milhares. E há ainda verdades que apenas compreendemos quando refletidas
poeticamente , tal como a luz do sol refletida pela lua.
Ser
um iluminista é trazer à luz o que a
sombra oculta. Esse trazer à luz expressa o papel cristalino da crítica. Mas há
coisas que somente a luz da lua, luz noturna, é capaz de nos mostrar e nos
fazer compreender, mesmo que em torno daquilo que assim compreendemos se
estenda uma noite absoluta, como a que existe ao redor da lua . A luz da razão,
luz diurna, apolínea, clareia a ágora e impede, sem precisar de armas, as
obscuridades nascidas dos que se inclinam ao vil e ao torpe do ponto de vista
jurídico e político. Contudo, o erro do racionalismo iluminista é querer ver
sob a luz da razão realidades que somente se mostram sob a luz das estrelas, luz
dionisíaca, pois somente estas podem clarear o que para a razão é ainda
obscuridade, incluindo a obscuridade de uma razão que se quer luz exclusiva .Somente
a luz das estrelas nos pode revelar as torpezas e vilanias metafísicas.
A
luz da razão é luz crítica direcionada para fora. Somente esta luz não nos
permite alcançar o exercício da autocrítica e do autoconhecimento. Outras luzes
são necessárias. Não luzes que nos atinjam de fora, mas sim luzes que clareiem
por dentro.
Apreendido
isoladamente, nosso sol deixa de ser estrela e se torna o astro que parece
existir com a finalidade de aquecer meu
corpo e dar vida à terra. É sob sua ação que vemos nascer e durarem os dias. É a sucessão dos mesmos que nos faz
crer no tempo. E assim contamos os dias, os meses , os anos, os séculos. Porém
é da perspectiva do infinito que cada sol é uma estrela, ou seja, algo que
existe no infinito, incomensurável com o tempo. Imaginemos alguém vivendo em um
planeta que gira em torna da estrela Úrsula Maior. Para este habitante, a estrela
deixa de ser estrela e se torna o sol dos seus dias, ao passo que nosso sol se
torna a estrela, uma das infinitas estrelas, de sua noite metafísica,
poética - na imanência da qual está,
invisível, a nossa terra.
É
desse iluminismo estendido ao infinito que brota a luz que alimenta as ideias
mais politicamente libertárias, uma vez que libertam não apenas o corpo ou tão somente o
espírito, libertam a ambos. E um corpo cujo espírito também se libertou não
lutará apenas por emprego, moradia, direito ao voto, casa, salário...sem lutar
também por liberdade , arte, pensamento, criatividade, alegria, singularização,
enfim, existência.
É
uma abstração conceber o sol apenas como sol, e não como estrela também ( ou
seja, como parte do infinito), assim como é uma abstração conceber nosso corpo como parte apenas da
terra, pois ele também é parte do infinito, assim como o espírito que a luz
infinita aquece e faz viver.
Há
questões que devem ser tiradas dos “esconderijos” da vida privada e trazidas
para o espaço da pólis. Mas há outras questões que somente podemos compreender
as colocando em aberto, sob o infinito . Paradoxalmente, é somente sob esse
aberto que podemos ver direito o que nos vai dentro. Não para relativizá-lo,
mas para pô-lo em relação com coisas e realidades que não lhe são contíguas no
espaço ou contemporâneas no tempo. A crítica e autocrítica assim nascidas não
são um julgamento sobre o que se fez ou uma repressão ao que se deseja fazer,
mas sim o encontrar um lugar. Um lugar mais do que na pólis ou na terra : um
lugar no infinito. E este lugar não está no além ou alhures, ele está aqui,
agora, já.
Muitos exaltam as linhas retas e os pontos; outros idolatram as alturas ou as profundidades. O homem racional, por exemplo, crê que os caminhos seguros são apenas os retos, dos quais se parte após um planejamento sem brecha para o acaso, e retilineamente a razão teoriza seu porto: a Verdade. Os místicos, por sua vez, amam as alturas, as ascensões, as elevações. Já os profundos vivem a mirar poços, abismos, que dizem existir dentro deles.
Todas essas imagens inspiraram doutrinas e visões do mundo científicas, religiosas ou artísticas. Contudo, o mais surpreendente é a ideia da dobra. Deleuze associa a dobra ao barroco. Não apenas ao barroco, como à própria vida. A vida é produtora de dobras. Não há no vivo nada que se assemelhe a uma linha reta.
As dobras são movimentos em duas direções: toda dobra implica algo, ao mesmo tempo que também desdobra alguma coisa. Em toda dobra algo está implicado, em toda dobra algo pode ser desdobrado.Implicar e desdobrar.O desdobrar também recebe outro nome: explicar. Aristóteles dizia que a finalidade da semente é se tornar uma árvore, e que a árvore já estaria dentro da semente, como forma final que a semente, enquanto potência, visaria atingir, para depois sumir, apagando-se. No mundo barroco, diferentemente, a árvore está dobrada dentro da semente. Ao nascer, a árvore explica a semente, a desenvolve. Porém, na árvore que cresce a semente continua a existir, mas implicada, dobrada virtualmente, de tal modo que a explicação ou desdobra não é a persecução de um fim, pois toda explicação vai em duas direções: explicação e implicação.A árvore explica-se , desenvolve-se, mantendo dobrada em si a semente que lhe está implicada, envolvida. Todas essas palavras (implicar, explicar) têm como raiz, raiz rizomática, o termo “pli”. “Pli” significa exatamente, ou anexatamente, “dobra”.Implicar é o movimento pelo qual a dobra constitui um “dentro”, um interior. Não um interior fechado, limitado por contornos rígidos.É um interior como forma em rascunho, diria Manoel de Barros. Ex-plicar é trazer para fora (“ex”) o que está implicado, o que está dobrado. Todo desdobrar é um explicar, um desenvolver.O feto se desenvolve desdobrando o que nele está implicado: ao se desdobrar, o feto explica o que nele está implicado e, dessa forma, se explica.Tudo o que se desdobra explica a si e aquilo que nele está envolvido, implicado.Mais do que mera informação que vai em linha reta, o código genético é uma dobra que, ao se desdobrar, cria um organismo, e neste mesmo organismo o código permanece implicado, dobrado.
O processo que vai da implicação à explicação se chama expressão.Toda expressão tem algo implicado nela e algo é desdobrado dela. Uma expressão não re-presenta ou re-apresenta algo que lhe esteja fora ou ausente, tal como a palavra “casa” que re-apresenta a casa como seu objeto exterior, seu referente . Diferentemente, a expressão não representa, ela expressa, ela desdobra o que já está implicado nela. E o que está implicado nela é o sentido, é a ideia expressiva, a essência. O feto desdobra sua essência, ele a explica e assim se explica.
( O infinito de seus olhos, poema-concreto de Décio Pignatari. A expressão do infinito nasce quando o círculo é dobrado sobre si mesmo, espiralando-se: o código genético tem forma semelhante)
A vida não é representativa: ela é expressiva, ela é uma expressão. Explicar é desenvolver o que já trazemos implicado em nós.A semente explica ou desenvolve o que está implicado nela. E o que está implicado nela não é uma essência universal de árvore, mas a singularidade árvore, a essência singular de uma árvore que nasce a partir de uma diferença.O que é uma árvore? Uma expressão da vida. O que é um homem? Uma expressão da vida.O que está implicado no feto humano não é a ideia universal de homem, mas a singularidade homem, a novidade homem, o poema homem.Toda expressão, toda essência singular, traz e é o novo.
A expressão nos mostra que o dentro e o fora não são termos dicotômicos, tal como ensina a tradição filosófica. O fora é o dentro que se vai desdobrando e explicando, o dentro é o fora mesmo implicado em nós.O subjetivo é carregado de objetividade, a objetividade nada é se uma subjetividade não pode explicá-la. A ciência diz que o universo surgiu da explosão de um ponto: este ponto que explodiu recebeu o nome de “big-bang”. Contudo, talvez o big-bang não tenha sido a explosão de um ponto (seguindo-se daí a diáspora do que antes foi uma unidade). Talvez o que se chama de big-bang tenha sido o desdobrar do que estava implicado. E se o infinito estava implicado, é infinito também o seu desdobrar.
Além disso, todo desdobrar/explicar tem uma carga de invenção: o que é explicado não é uma cópia do que está implicado.O feto não é uma cópia do código genético; uma aula não é uma cópia de um texto ( que ela, no entanto, desdobra e explica). Todo explicar, quando expressivo, é uma invenção de algo que está implicado, mas virtualmente. Toda explicação é uma diferenciação. Explicar não é tanto ensinar quanto é aprender: aprender com o que está implicado, e que nenhum explicar pode esgotar.O aprender vem antes do ensinar.
Tudo pode ser pensado assim, quando vemos e vivemos as coisas não como representação, e sim como expressão.E tudo o que é expressão tem algo implicado que pode ser explicado, desde que o explicado esteja implicado naquele que explica.Por exemplo, pode-se falar representativamente da justiça, fazer da justiça uma representação que a lei representa. Mas enquanto expressão, a justiça é algo que está implicado naquele que a explica: a explica não exatamente fazendo leis, a explica em seus gestos, em suas palavras, em suas ações.Não existe a “Justiça em Si”, como pensava Platão.Existe a justiça implicada, envolvida, e que somente passa a existir se for explicada, desenvolvida, criada. Pois aquele que assim explica a justiça explica a si próprio, se inventa: existe como justo. O amor somente pode ser vivido como expressão se ele estiver implicado naquele que o explica e desenvolve. E se através da explicação do amor aquele que o explica também se explicar através do amor que está implicado nele, somente assim pode-se confiar que este ama.Só o amor está implicado na explicação que o desenvolve. O amor implicado e sua explicação constituem a essência do amor como expressão. Toda explicação singulariza. Quando se tem de uma coisa apenas a representação, entre ela e aquele que a representa passa a existir então como que um vazio que será preenchido por alguma coisa, por um clichê por exemplo, ou então esse vazio será dissimulado por comportamentos impotentes, pois neles não estará implicado aquilo que se quer viver.Quando vivemos algo como expressão, ao contrário, não o vivemos apenas em palavras, o vivemos como aquilo que nos explica, pois está implicado em nós e também em nossas ações.
As coisas que estão implicadas podem entrar em relação com outras coisas dobradas.Essa relação das coisas implicadas entre si, criando uma conexão ou rizoma, os medievais chamavam , em latim, de “complicatio”. Complicatio significa : dobrado junto.Ou ainda: complexo.Tudo o que está implicado em nós está complicado, dobrado junto, com o universo inteiro. Não se pode explicar complicando. Ao contrário, toda explicação é um desenvolvido de coisas implicadas que, por sua vez, estão complicadas com outras.Não há complicação que não possa ser explicada, desde que se encontre o que está implicado.E o deve estar primeiramente em nós, assim como o código da vida que está na vida do feto.
É desdobrando o complicado que se alcança o simples. Sim-plex: literalmente, "sem dobra", posto que foi desdobrado.O simples não se opõe ao complexo, o autêntico simples é o que se desdobra do complexo, ele é aquilo que resulta do explicar o complexo.Além disso, algo sem dobra não é exatamente algo reto. O simples permanece ligado sempre ao complexo, tal como o fio de Ariadne que , desdobrado, permanece sempre ligado à complicatio de seu novelo.E neste novelo estão implicadas todas as narrativas, estão implicadas todas as narrativas que salvam, que criam percurso e inauguram linhas de fuga.A linha reta, ao contrário, não tem novelo. Uma linha, dizem, é feita de pontos.Mas o ponto é o falso simples, um simples meramente matemático.No começo não está o simples: o simples somente surge como o produto cujo agente o desdobra de uma complicatio, de algo complexo. Somente encontramos o simples após uma explicação, e não antes dela.Tampouco existe o complexo sem o simples, e o simples sem o complexo. E no meio de ambos estão a implicação e a explicação.
Singularizar é intensificar. Cada um explica o que lhe está implicado de acordo com a potência que tem.O que está implicado em mim está complicado com o que está implicado em tudo .O Todo está implicado em tudo, e é por isso que o Todo é complexo e se expressa em cada coisa simples. Uma explicação aumenta sua potência quanto mais ela se percebe como não sendo uma explicação exclusiva, definitiva. Toda explicação potente é uma forma em rascunho que explica uma potência que nunca é puramente formal.
Uma ideia, não importa qual, é uma expressão: ela implica algo e dá a possibilidade de ser explicada por aquele que a vive.E aquele que a vive também explica a si mesmo naquilo que ele explica e vive.
Os estudiosos da vida nos dizem que aquilo que chamamos de “órgãos” são, na verdade, dobras. O cérebro, por exemplo, é dobra sobre dobra sobre dobra...O cérebro é todo dobrado sobre si mesmo.O cérebro é uma complicatio, mas simples é a ideia que faz pensar e ensina, educa.O pulmão também é uma dobra: dobra esta feita de dobras.Quando se desdobra fisicamente um pulmão, ele vira uma superfície do tamanho de uma quadra de tênis. Assim, no horizonte de uma dobra não está a altura nem a profundidade,tampouco o ponto; no horizonte de uma dobra está uma superfície. Não o superficial, mas a superfície. A superfície não é o raso por oposição ao profundo, ela também não é o baixo por oposição ao alto das alturas.A superfície é a horizontalidade.No mito, a primeira divindade a surgir foi Gaia, a Terra. Esta era caracterizada pela superfície.A superfície é espaço de conexões.Não raro, há alturas superficiais, bem como profundidades que são superficiais. Na origem da dobra não está a linha ou o ponto, está a superfície.Em nós, os afetos estão dobrados; quando os desdobramos, vem expressá-los a superfície do rosto.A onda do mar, por exemplo, também é uma dobra: se esticarmos uma onda descobrimos que ela nasce da superfície do mar.Os simples não são profundos, tampouco desejam ascender a píncaros. Os simples habitam as superfícies.Os simples habitam a Terra.A superfície é espaço de travessias.
Um livro quando vivo, quando faz viver,é uma dobra.Ele é dobra porque nele está implicado o que está dobrado junto com tudo. Ele é uma dobra cheia de dobras.Lê-lo é desdobrá-lo, é explicá-lo.Explicar o complexo é devir simples. Explicamos um livro de acordo com a potência que temos. Mas o que está implicado no livro tem sua própria potência, que pode sempre aumentar a nossa, desde que desejemos devir simples porque em nós está implicado um sentido , uma questão.Ler um livro é desdobrar o que nele está implicado, e o que está implicado nele está implicado em nós, pois não se trata de letras, mas de ideias, de ideias expressivas.Livros assim têm uma potência de desdobramento infinita, pois o infinito está implicado neles. E o infinito não começa e nem termina, o infinito possui apenas meio. Tais livros não têm exatamente origem, eles têm horizonte: é deste que eles nasceram.Lê-los é horizontar-se.
A Ética, de Espinosa; O que é a filosofia? , de Deleuze e Guattari; O livro de pré-coisas, O livro sobre nada e O livro das ignorãças, de Manoel de Barros; Gilles Deleuze: a grande aventura do pensamento, de Cláudio Ulpiano; Moby-Dick, de Melville...São livros-dobra : neles está implicada a mesma potência que está implicada em cada coisa que vive, e é em nossa alma que essa potência se desdobra e se explica, nos explicando, nos singularizando.
Segundo Sartre, não há como o homem
pôr-se diante de si a não ser confrontando-se com a angústia. Uma das primeiras aparições da palavra angústia se
encontra na Odisseia, de Homero. Tal
palavra aparece para designar uma situação
pela qual passou Ulisses, o navegante. Não por acaso, Ulisses é considerado um
dos símbolos da condição humana. Enquanto viaja pelo mar aberto, Ulisses não
presta muita atenção no rumo que está tomando. Ele não está consciente do
caminho: sua mão pousa leve sobre o leme, ele se distrai e se perde nas coisas
que vê. Parece que o barco vai sozinho, como se ele mesmo soubesse o caminho. O
navio “fisga” o navegante irrefletido,
parece que o navio se torna “viscoso”: dir-se-ia que é o navio que decide a
direção. E que esta direção é a necessária.
Detalhe: Ulisses navegava sem mapa,
sem bússola. Ele retorna da guerra de Troia. Após passar por mil desventuras,
tenta achar o caminho que o leve de volta à sua terra natal, Ítaca. Porém, de repente ele vê rochas, ilhas que
vão se avolumando. Ele precisa pegar mais firme no leme agora e decidir por
conta própria o caminho, pois este se vai estreitando. Quanto mais ele avança,
mais ele precisa escolher o caminho, mais ele precisa ter consciência e refletir no que fez, no que faz e no
que fará. Presente, passado e futuro formam um estreito circuito enquanto
Ulisses age. Mais do que nunca, ele compreende que sua existência é ação, que
sua existência é tempo, consciência do tempo. Ele precisa ter consciência do
que fez, e não mera memória de algo feito; ele precisa ter consciência do que
faz, e não mera percepção de que está fazendo algo; ele precisa ter consciência
do que fará, e não mera expectativa de que tem algo a fazer. Esse passado, enquanto meio de toda escolha, não passa: ele é retido ( retenção); esse futuro não é um presente que virá: é do próprio presente, o que passa, que o futuro é alcançado, e se torna presente para fazer o presente passar ( protensão), tornando-se passado retido. É nesse circuito temporal existencial que Ulisses se torna
consciente de que existir é fazer escolhas. Essa temporalidade existencial não é a do relógio, ela é vivida , e descoberta, na experiência da indiscernibilidade do tempo, da consciência, do corpo e do mundo. Cada escolha depende dele,
exclusivamente de sua consciência, e não de sua memória ( ele nunca passou por
ali...) , tampouco a escolha quem faz é o vento ou o navio. Ele se percebe só em sua escolha. Atena e
Zeus o abandonaram. Essa solidão é, ao mesmo tempo, um castigo, uma maldição e
sua liberdade. Ulisses percebe que sua existência é escolha, o heroísmo de se saber escolha. Ele sente sua existência correr como
um líquido, como uma água, não mais o prende o viscoso navio.
“Angústia” significa, no mito,
“caminho estreito”. “Angústia” não é medo. Ulisses poderia ter medo de um
rochedo atingi-lo. O medo vem do ser-em-si do rochedo. A angústia nasce de ele poder
lançar o navio contra o rochedo. A angústia é angústia frente a si mesmo,
frente ao seu ser-para-si. A angústia é essa consciência de que nada escolhe
por ele, e que ele pode escolher até mesmo não escolher, ou pode escolher o
gesto extremo. A angústia é o caminho o mais estreito, onde só você pode
passar.É o preço que a vida cobra para quem deseja tornar-se autêntico, singular.
Quando Nietzsche dizia: “Detesto tanto seguir como ser seguido: para me acompanhar aonde vou é preciso aprender a amar andar ao lado”, esta regra prática que não é categórica, mas cheia de categoria, anuncia um programa nômade de percurso sobre a Terra - a extemporânea. Somente podemos percorrer a Terra agenciados, andando ao lado de nossos intercessores.
A própria filosofia é inaugurada por esse “andar ao lado”. Pode-se ver esse “andar ao lado” imortalizado em Rafael, o grande mestre da arte renascentista, quando este pintou um afresco que se tornou famoso. A obra se intitula A Escola de Atenas.
Inúmeros pensadores e filósofos aparecem nela, embora muitos deles tenham vivido em épocas distintas. Na verdade, não se trata de um quadro histórico ou cronológico, mas de uma apreensão artística das múltiplas possibilidades e perspectivas heterogêneas que compõem o pensamento: sob a pintura, como seu “chão” ilocalizável, estende-se,infinita, a Terra.
Não obstante a multiplicidade flagrante, um ponto se destaca no afresco: em seu centro, entregues a um diálogo cortês, mas no qual se percebe um ar de confronto, encontram-se Platão e Aristóteles. Platão já não anda à frente de seu brilhante discípulo, nem este segue mais os passos de Platão.Platão veste um vermelho sobre púrpura. O vermelho é a cor da incandescência da alma, típica da alma inspirada de um poeta. Rubro é Eros. O vermelho também é a cor do arrebatamento de uma paixão contra a qual não se pode lutar, a qual os gregos chamavam de "mania", termo que pode ser traduzido por "loucura". Não a loucura meramente resultante do desagregamento da vida psíquica. Diferentemente, a mania filosófica, como insana sabedoria, nasce do contágio da alma com algo que a arrasta para fora de si, e é neste fora de si que ela, no entanto, se acha e se encontra.Platão veste rubro sobre púrpura. O púrpura, mistura do vermelho com o azul, traz a paixão daquele e a paz deste, e expressa a iluminação mística. Já Aristóteles veste azul sobre marrom. O azul de Aristóteles é o de um céu enquanto cobertura plácida sobre o marrom-terra.Na borda do azul há tecituras e bordados, feitos com o capricho da beleza.São flores, mais do outono do que da primavera. O outono da razão veste o filósofo que desabrocha.Platão está descalço , seus pés ainda se movem.Os pés descalços são símbolo do desapego : nesses pés descalços já se anuncia São Francisco. Aristóteles calça uma sandália bem trabalhada , fruto da mão humana.Seus pés não andam, estão firmemente no chão como colunas de um sistema. Platão, já ancião, segura com a mão esquerda um exemplar de sua famosa obra: o Timeu . Chama-nos a atenção a posição na qual se encontra o livro. Platão o segura em posição vertical, como se o livro fosse a cópia do gesto que Platão faz com a mão direita: com a mão e o livro, com o corpo e o espírito, o filósofo aponta para o céu (reproduzindo o gesto que fizera seu mestre Sócrates antes de ingerir a cicuta). Ao seu lado, encara-o o discípulo, já entrando na idade madura. Ele também segura um livro com a mão esquerda: a sua Ética. O livro, disposto na horizontal, acompanha o gesto da mão direita de Aristóteles:este está com a mão espalmada, como a dizer que no plano horizontal é que se encontra a motivação da filosofia, e não apenas no céu. Em suma, a filosofia de cada um se encarnou em suas distintas maneiras, e fez-se ver nos gestos que o corpo de cada um desenhou.
Todavia, o verdadeiro centro da obra não é Platão, tampouco Aristóteles ( ou qualquer outro filósofo que aparece na representação). O centro do afresco, o seu ponto de fuga, é o intervalo entre os dois filósofos. O centro do quadro é a divergência. É esta que constitui a essência da filosofia como exercício plural do pensamento. Entretanto, este centro nada tem a ver com uma suposta neutralidade.Seu lugar, ao contrário, é o da mais afirmativa tomada de posição.
Por isso, a filosofia não possui uma identidade: ela é exercício da diferença. Quando simplesmente dizemos: “Platão é diferente de Aristóteles” ou “Marx é diferente de Hegel”, ainda não compreendemos de fato o que é a diferença que constitui a filosofia, uma vez que a tornamos refém de duas identidades que se opõem.
Por esse motivo, a verdadeira diferença não é oposição ou rivalidade, mas afirmação e criação de novas possibilidades que ainda não têm identidade.
Não se devém platônico ou aristotélico, nietzscheano ou kantiano. Pois tornar-se alguma coisa, assumir uma identidade, é deixar de devir. Somente devimos verdadeiramente quando, deixando de ser o que somos, tampouco com um determinado filósofo nos identificamos, mas nos tornamos de nós mesmos diferentes,encontrando na filosofia essa possibilidade, fazendo dessa possibilidade nós mesmos.
Buscar essa diferença não é isolar-se, mas conectar-se com uma multiplicidade, e assim aprendermos com a filosofia que , nela mesma, não é Platão ou Aristóteles, Nietzsche ou Kant, Hegel ou Marx, sim ou não, eu ou outro, corpo ou alma, vida ou morte, tempo ou eternidade, arte ou natureza, espírito ou matéria.
Na pintura, o ponto de fuga expressa aquilo que não pode ser representado, uma vez que ele aponta para uma profundidade infinita, que vai muito além da cena pintada em primeiro plano. Chamamos de linha de fuga a diferença que constitui a filosofia. Como linha de fuga, a filosofia é o fundo que torna possível o primeiro plano onde encontramos as doutrinas e os filósofos diferenciados, com suas respectivas identidades e aparatos acadêmicos. Filosofar é partir desse fundo, instalar-se nele, e vivê-lo como potência que vai além de nossas vidas em primeiro plano .
O primeiro plano somente se conecta com o fundo quando dele fazemos partir uma linha: não uma linha que se fecha em contornos, mas uma linha que possibilita percursos.
Como linha de fuga, a filosofia é uma linha que vai de nós mesmos àquilo que ainda não somos, e para o qual nos impele nosso pensamento e desejo conjugados. A linha vai em direção à diferença. Por conseguinte, a linha não existe de forma pronta, como um trajeto no espaço. Ao contrário, ela só existe enquanto criada: ela é um sentido no tempo, e se abre a infinitas direções apenas virtualmente esboçadas.
A filosofia é o fundo, diferença pura. Mas o filosofar é a linha, ato de criação. Linha de fuga é a criação que tem a diferença como sua direção multiorientada.
Por esse motivo, a diferença não é um porto ao qual se deve chegar, mas sentido que torna real um percurso de singularização, contra todas as formas de poder padronizante, que retiram da vida seu fundo, seu devir , seu deslimite ─ para reduzi-la às atuais formas dominantes de vida em egóico primeiro plano, com suas disputas e rivalidades; onde a imitação toma o lugar da criação, enquanto que as diversas formas de clichê são vendidas pela mídia com o rótulo da diferença.
Andar ao lado: agenciamento. Todavia, o “andar ao lado” de Platão e Aristóteles durou apenas o ínfimo instante que Rafael imortalizara em sua pintura, uma vez que em cada um desses filósofos a vontade de ser seguido superou o desejo de andar ao lado.
Encontram-se em Gilles Deleuze as coordenadas de uma filosofia do agenciamento, uma filosofia do aprender a andar ao lado de nossos intercessores.Curiosamente, a expressão “intercessor” remonta à Bíblia, e designa aquele que “abre as portas do céu”. Um céu que não é apenas exterior, mas também interior. Em Deleuze, o Céu é uma das imagens da Terra. E o intercessor que nos leva a ela pode ser inúmeras coisas: não apenas um livro de filosofia, uma música, um poema, enfim, uma obra de arte também podem sê-lo - com a condição de aprendermos a andar ao lado desses intercessores, com as pernas de nosso pensamento e de nossa sensibilidade.
Escrever é o modo de quem tem a palavra como isca:
a palavra pescando o que não é palavra.
Clarice Lispector
Admiro o pescador que busca seu peixe
muitas vezes pondo-se em risco, lançando-se no oceano.O autêntico pescador sabe onde achar os peixes porque ele
forma primeiro uma ideia do oceano onde os peixes habitam. Como tudo o que
existe, os peixes não são indivíduos que existem em separado, eles existem
fazendo parte do oceano, que é seu mundo.Somente compreendendo o mundo onde um ser vive é que podemos entender sua maneira de ser.
Admiro mais ainda o pescador que
pesca com anzol do que com rede. Quem pesca com rede quer quantidades, números:
pesca com conceitos meramente teóricos. Mas quem pesca com anzol deseja o peixe
raro, único,singular, que é, por isso mesmo, o mais difícil de se deixar
fisgar. Esse peixe raro exige paciência e perseverança. O anzol que atrai tal
peixe tem a forma de um ponto de interrogação (que tem a aparência de estar de cabeça para baixo, porque na verdade está mergulhando...).
Somente a interrogação afeta o que é livre e não anda em cardumes. É a
interrogação lançada no infinito oceano, somente ela, que pode atrair o peixe
arisco, livre, indomável. A interrogação tem na ponta, como isca, uma ideia
singular. Somente uma ideia singular pode pescar o que é único.Toda ideia singular
é uma interrogação acerca do que é ser único. E essa interrogação somente pode
ser lançada ao mundo, ao oceano, ao infinito, à Vida.E a resposta sobre o que é
ser único somente o que é único pode dar, com sua existência única.
O pescador busca a ideia viva,
retirada lá mesmo da imanência onde a vida mora. O peixeiro vende apenas a
ideia morta transformada em palavra que
, para atrair e convencer, precisa da retórica, da tecnologia, de apetrechos midiáticos
e outros dispositivos que, não raro, são apenas artifícios para maquiar o cadáver. O filósofo-poeta-pescador quer a ideia viva. O
peixeiro-comerciante-publicitário-de-si-mesmo vende apenas a ideia morta,
teórica, acadêmica. Quando o peixeiro-teórico-acadêmico se aventura a ser pescador,
ele o faz indo buscar uma ideia genérica
que existe apenas em livros rasos. Para ser
pescador-pensador é preciso um instrumento
intuitivo, ou seja, capacidade de ver o que se pensa sem necessitar da mediação
de teorias. Já o peixeiro necessita de dotes apenas palavrescos. Porém, não existiriam peixeiros se não existissem pescadores, pois estes vivem primeiro , sem prévio modelo, o que aqueles reproduzirão depois. Não haveria filosofia e poesia se não houvesse poeta e filósofo , uma vez que estes vivem para elas, ao passo que o professor e o literato apenas vivem delas.
O educador-pescador pesca seus peixes em
razão da fome dos homens, e com generosidade lhes oferta o alimento.O peixeiro-pragmático , sempre de olho no mercado, se vale dos peixes
como meio para obter dinheiro mesmo (e suas variantes: fama, poder, currículo).
Foram desses pescadores que me
alimentei dos peixes mais raros, encontráveis apenas por aqueles que sabem
transformar um livro ou uma sala de aula em oceano : Lucrécio, Plotino, Espinosa, Nietzsche,
Deleuze, Herman Melville, Pessoa, Foucault, Manoel de Barros, Clarice e Cláudio Ulpiano.
O
prefixo “des” comumente exprime “negação”, “ação contrária”, “privação”,
“afastamento”. Por exemplo, “desfigurado”: aquilo que é desprovido de figura.
Contudo, somente de forma aproximada essa explicação linguística consegue
traduzir o uso que Manoel de Barros faz do termo “des”.
No
poeta, portanto, “des” é uma ideia : a ideia de uma ação. Não se trata de uma
ação de simplesmente negar, contrariar, privar ou afastar, mas de
“transfazer”. “Des” é uma ação de transfazer as coisas , retirando
delas as suas utilidades. Transfazer:
fazer poesia, desinventar sobretudo as palavras e dar a elas funções de não
significar ou não representar, para que assim elas possam reinventar-se como
sentido.
Nem
todo fazer poético é transfazer. Nem todo fazer verso e rima atinge essa
condição. Transfazer é mais do que fazer poético, é mais do que rima e verso.
Transfazer é estender o poético para além da poesia. E é isto que faz Manoel de
Barros ao fazer poesia: põe-nos no estado desta, à disposição de “inventar
comportamentos” e vislumbrarmos novas possibilidades para a vida que vivemos. Mais
do que nos fazer ler poesia, Manoel quer nos empoemar.
Em
suas poesias e entrevistas podemos encontrar os principais frutos desse
“transfazer”: desformar , desnome,
desútil, des-ser, desinventar, descomer, desabrir, desuntensílio,
desobjeto, desler, despalavra, enfim, deslimite.
Note-se
que não são exatamente neologismos tais expressões. Não são palavras novas, mas
o reinventar, o “transfazer”, das mesmas palavras ordinárias, comuns.
Mais
do que negar ou significar uma privação,
“des” expressa potencialização: um “transfazer” da coisa em outra. Comumente
usamos o termo “trans” como algo que atravessa fronteiras, cercas, formas. Por
exemplo: prática trans-disciplinar. O “trans” aqui indica um processo de ir
além das fronteiras e amarras de uma única disciplina. O ‘trans”, portanto, é
prática de fazer os conjuntos se comunicarem, descobrirem algo em comum. Por
isso, nada mais “trans” do que a prática de comunicar, pois isso envolve que
encontremos um espaço comum ao eu e o outro, um espaço do nós.”Trans-formar”:
mudar a forma, fazê-la conectar-se com um conteúdo que nela não cabe, a não ser
se ampliando, modificando e alargando
seus limites, ou os apagando.
Uma
coisa é o alicate, outra é a ideia de “cremoso”. O transfazer de uma coisa
noutra faz nascer o “alicate cremoso”como desuntensílio da “Oficina de
Transfazer Natureza”. Essa “oficina” é a própria poesia. E “poesia pode ser que seja fazer outro mundo”, afirma o poeta..Mais do
que um prefixo, o “des” exprime uma ideia de ação que é transformadora.O “des”
é a força que subverte o sentido habitual das coisas. Ele não é forma, mas
processo. Por isso, ele é a própria essência da poética de Manoel de Barros.
Em um período não muito distante daquele em que Platão
escreveu, evocava-se Dioniso como o deus cuja natureza melhor expressaria a
essência da arte.Esse fato está inscrito no
nome do deus*: Di-oniso, aquele que nasceu duas vezes. Isto porque este
deus foi gerado a partir da união de Zeus com uma simples mortal. Reside em
Dioniso, então, a convivência de dois mundos, o humano e o divino, que não se misturam, mas que nele fazem um.
Ainda criança, Dioniso fora vítima de seus irmãos da parte divina, que em fúria
o despedaçaram. Ao ver tal cena, Zeus se perguntou em qual daquelas partes o pequeno Dioniso estava
inteiro, pois esta parte seria ,
sem dúvida, divina. Zeus descobriu então
que era no coração que Dioniso se encontrava. Foi então do coração, a parte que
contém o todo, que Zeus fez nascer novamente o deus. Mas esse nascimento
através do coração foi, em verdade, um renascimento. O coração expressa o
afeto, a sensibilidade ― que é, como diz
o poeta, o “entendimento do corpo”.
A relação de Dioniso com o teatro e a arte em geral se deve
ao fato de que, tal como o Deus, a arte também faz a realidade nascer
novamente. Através da arte, a realidade renasce. A arte faz a realidade
renascer, imitando-a. Contudo, ao imitá-la, a arte reinventa a própria realidade
que imita: a retira do tempo e do espaço, e desse modo a eterniza. Enquanto a
reprodução da boa cópia anula a diferença em nome da semelhança, na arte a
semelhança é produzida a partir de uma diferença primeira.
*** ***
Segundo Platão, na carruagem de nossa alma a razão e o
desejo, o cocheiro e o cavalo preto, estão sempre em conflito. Este nasce pela
impossibilidade que a razão encontra de pôr o desejo na direção dos valores
morais que ela visa atingir. A disciplina moral é a rédea da razão, às vezes
também seu chicote, mas o desejo não se dobra, resiste, e segue
atraído pelas aparências do mundo sensível .
Seguir o desejo é perder-se,
desorientar-se, maldizia Platão. Mas a alma
não pode prescindir desse rebelde cavalo preto, uma vez que é dele que
provém a maior parte da energia que a
faz mover-se.
Curiosamente, uma outra imagem da carruagem inspirou
Nietzsche. Trata-se da Carruagem de Dioniso, o Deus das Artes. Segundo o mito
que cerca este Deus, Dioniso se locomovia em uma carruagem, sendo ele próprio o
cocheiro. Mas, ao invés de cavalos, sua carruagem era puxada por panteras. Eram
temíveis feras transportando o deus e
mostrando o grande poder de Dioniso para guiar a natureza. A arte não nega ou
reprime a natureza ( como o faz o
cocheiro de Platão), mas a põe a seu serviço conforme uma disciplina que não é
estrangeira à potência das panteras. Na natureza, as panteras são solitárias e
jamais se unem. Porém, sob as mãos da arte, as panteras se tornam forças que se
conjugam, que se agenciam, e conduzem a alma por sendas onde a razão não ousa
ir.
(O triunfo de Dioniso - o triunfo sobre as feras como expressão de uma vitória sobre si mesmo)
Dioniso transforma a
agressividade destrutiva e mortífera das pulsões-panteras em potência criativa
afirmadora da vida. Dioniso é o próprio desejo que se tornou guia, cocheiro,
domador: somente se pode segui-lo com a condição de metamorfosear-se, conjugando
disciplina e inventividade na condução da carruagem . Esta segue para onde não
se sabe, pois seu destino é o próprio percurso enquanto este se faz.
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* Na verdade, Dioniso seria um semideus: na mitologia, um semideus expressa as núpcias do divino com o humano.