Serás menos escravo do amanhã,
se te tornares dono do presente.
Sêneca
O não-filosófico está talvez mais no coração da
filosofia que a própria filosofia,
e significa
que a filosofia não pode contentar-se
em ser compreendida somente de maneira filosófica
ou conceitual.
Gilles Deleuze
Mais importante do que o pensamento é o que “dá a
pensar”;
mais importante do que o filósofo é o poeta.
Gilles Deleuze
1.
Questão preliminar: o que é a filosofia?
Dar uma
definição rápida do que significa a filosofia não é tarefa fácil. Oriunda do
grego, a palavra “filosofia” nasceu da reunião de duas outras palavras: “philo”
e “sophia”. “Philo” significa tanto “amor” como “amizade”. Isso quer dizer que
a filosofia não é prática apenas
intelectual ou racional, pois ela se nutre também de uma dimensão
afetiva, expressa exatamente pelo termo “philo”. Deleuze afirma, por exemplo,
que a filosofia não é apenas Conceito, ela também é Afeto (este termo não
significa a mesma coisa que o mero sentimento
). Espinosa ensina, por sua vez, que a filosofia é prática que se faz na
Alegria. Outros, como Kierkegaard, Heidegger e Sartre, enfatizam o afeto da
Angústia. Há ainda Aristóteles, para quem a filosofia começa na Admiração.
Nunca, absolutamente nunca, algum filósofo ensinou que a filosofia pode nascer
do ódio, da covardia, do medo ou da intolerância. Ao contrário, a filosofia é
um esforço para se tentar vencer essas “sombras”, como diria Jung, ou essas
“tristezas”, nas palavras de Espinosa. E é antes de tudo naquele que filosofa
que a vitória deve anunciar-se primeiro.
O
filósofo não é apenas aquele que domina a prática teórica e metodológica de
definir conceitos, ele também é aquele que se afeta pelo que “dá a pensar”, e o
que dá a pensar nem sempre pode ser explicado por conceitos. Nem sempre o que
dá a pensar já está pensado e definido em livros e teorias. Um filme, uma
música, um gesto, uma paisagem, um poema, um acontecimento...também dão o que
pensar, ou podem dar o que pensar. Mas nada dá tanto a pensar do que a própria
vida.
“Sophia”
significa “sabedoria”. Assim, uma definição simples e geral da filosofia seria:
“amor ou amizade pela sabedoria”, “afeto pela sabedoria”. Visto dessa maneira,
o filósofo não é apenas amigo da sabedoria, ele não é apenas um intelectual,
ele também é um ser que, como diz Espinosa, cultiva uma paixão alegre . O
filósofo se mostra filósofo não apenas falando ou escrevendo, ele deve
mostrar-se filósofo igualmente, e sobretudo, agindo. Segundo Cícero, o mero
sofista busca a retórica das palavras, almejando persuasão; já o filósofo/sábio
se exercita em outra retórica: a das ações, cujo objetivo é a compreensão.
“Sophia”
não é só teoria, fórmulas, razões. Ela também é Vida, Arte, Poesia. São a essas
coisas que o filósofo dedica Afeto. Para Deleuze, não há filosofia sem um modo
de viver filosófico, sem um modo de vida. Um modo de vida filosófico não
significa uma vida erudita mergulhada em livros, nem um tipo de vida que, para
ser vivida, necessita de um título filosófico auferido pela academia.
Além
disso, há uma diferença entre a filosofia e o filosofar. Heidegger, por exemplo, afirmava que a filosofia existe
desde a Grécia. Porém, o filosofar, enquanto pensar, inaugurou-se na aurora da
filosofia, entre os pré-socráticos. Nestes pensadores, o pensar foi exercido de
forma múltipla, mais intuitiva do que sistemática. Depois adveio o seu ocaso com Platão e, desde
então, “velou-se”. Para a prática do pensar retornar, pensava o filósofo
alemão, é preciso reviver a experiência da “origem”, como a viveram os
pré-socráticos, e compreender que o pensar somente se anuncia em uma linguagem
que nasça da experiência do Ser como Criação, Poesia. O Pensar é experiência
com a aurora dele mesmo.
A
filosofia é uma disciplina com sua história, metodologias, temas. O filosofar é
uma ação feita não apenas pelo filósofo. Por exemplo, quando alguém, em uma
situação cotidiana, emite um juízo acerca da beleza ou ausência de beleza de
uma canção que ele ouve no rádio de seu carro, sem que saiba ele está
filosofando ou tentando filosofar, pensar, uma vez que ele está emitindo um
juízo de gosto. O gosto é um tema da Estética. Se outro homem ao ler o jornal
lamenta a ausência de caráter dos políticos, tal homem também está a filosofar,
pois ele indaga acerca do caráter. Em grego, “caráter” se diz “ethos”. A ética,
enquanto disciplina filosófica, tem na ideia de caráter o seu grande tema (de
Aristóteles a Kant, passando por Espinosa). Em geral, quando o senso comum
imagina o que é a filosofia, ele costuma identificá-la apenas com uma parte
dela: a metafísica. Mas linguagem, justiça, poder, potência, amor, desejo ,
Deus ( enquanto objeto da teologia racional ou natural)...são temas que podem
suscitar o indagar filosófico.
Sócrates
inaugura a atitude filosófica indo debater na praça, em meio ao povo, esses
temas. Sócrates buscava , com a filosofia, mudar a propensão dos homens em não
questionarem suas opiniões ( esse não questionar-se está na base do que Sartre
designa “consciência irrefletida”). Para lutar contra inimigo, pensava
Sócrates, é preciso ir enfrentá-lo onde ele mora: a praça. Sócrates é o
acorrentado que se liberta, sai da caverna e depois retorna para tentar fazer
com que os outros acorrentados tomem consciência de que estão acorrentados e
retirem o grilhão com a própria mão, pois o tomar de consciência, enquanto prática de autonomização, é ação que
um outro não pode fazer por nós. O parteiro ajuda no ato de parir, mas a consciência
que nasce pertence àquele a quem ele auxiliou a nascer.
De Platão a Deleuze, o inimigo do pensamento é
a opinião, a doxa. É Platão que, de certa maneira, afasta a filosofia das
praças, reservando o filosofar exclusivamente para aqueles que também soubessem
medir, contar, enfim, matematizar. Sabe-se que
Platão afixou à entrada da Academia a seguinte ordem: “não entre aqui
quem não for geômetra, mas também não
entre aqui quem só for geômetra”. Esse isolamento da filosofia em relação ao
filosofar nasceu exatamente com esse nome: Academia . Este foi o lugar
construído por Platão para ser o templo de uma nova divindade: a Deusa-Razão. Muitos séculos depois, Nietzsche
chamará essa Deusa-Razão de um Ídolo construído por Platão para se proteger da
multiplicidade, da contradição, da mudança, enfim , da Vida. Nietzsche
inclusive opta por filosofar através de uma linguagem não acadêmica, mais
próxima da alegoria poética do que da sistemática conceitual. Não obstante, ele
não é menos filósofo do que o sistemático e conceitual Kant. Em O crepúsculo
dos ídolos, Nietzsche afirma que o filósofo autêntico sempre tem na mão um
“martelo”, que é a crítica que ele deve endereçar a “esses Ídolos” . Segundo
Francis Bacon, a quem Nietzsche toma de empréstimo o termo, Ídolo é algo que,
no âmbito do conhecimento, ao invés de
fazer o homem pensar, leva-o apenas a cultuar ou adorar. O culto ou a adoração
são justificáveis no campo religioso, porém se tornam danosos quando trazidos
para a prática do pensamento filosófico, que sempre tem de ser crítico e livre.
“Crítica” provém do termo grego “krisis”: capacidade de julgar, discernir ou
avaliar.
Sophia
também pode ser um nome próprio. "Sophia", ou "Sofia", é o
belo nome que muitos pais escolhem para chamarem a quem trazem à vida. Por
outro lado, “Teoria” é tão abstrato que alguém vivo não se deixa chamar assim,
tampouco pode ser o nome de alguém “Razão” ou “Ciência”. Não dá para imaginar
alguém se chamando “Razão”! (embora muitos imaginam encarná-la e serem donos
exclusivos dela...).
Tal como uma pessoa , a sabedoria só atende se
for chamada pelo seu nome. Se alguém a chamar apenas de "razão" ou
"ciência" ela não atenderá, ela não virará seu rosto para quem assim
a chamar, mesmo que grite, mesmo que, com poder, ordene. Mas assim como uma
pessoa é mais do que seu nome, a sabedoria é mais do que sabedoria, ela também
é generosidade, coragem, modéstia, invenção.
Platão,
São Tomás e Espinosa destacam ainda outro nome para a sabedoria: fortitudo, firmeza ( que é o oposto da
volubilidade). Em A República, Platão
afirma que a firmeza, ou fortaleza, é a virtude daqueles que defendem , com
coragem, a cidade. E sem a defesa prática da cidade não pode haver atividades
contemplativas. A cidade em questão não é apenas a física , pois a cidade
externa é reflexo da cidade interna que a própria alma é. Espinosa torna ainda
mais filosófico o tema, e diz que a fortaleza é firmeza para consigo e
generosidade para com o outro, ao passo que a fraqueza é rigidez no julgamento para com o outro e generosidade complacente apenas
para consigo. Enfim, é na prática das virtudes que se pode reconhecer também a sabedoria. Um
homem que exerce a virtude da justiça realiza, de forma prática, a sabedoria –
mesmo que ele nunca tenha lido a Ética a
Nicômaco, de Aristóteles, e conhecido teoricamente a definição do que é a
justiça. Ao contrário, alguém pode conhecer todos os livros de ética que
definem o que é a justiça, porém nada de justo haver em suas práticas. Tal
homem é, quando muito, um erudito, não um sábio.
A
principal diferença entre a sabedoria da filosofia e o conhecimento da
ciência repousa no fato de que todo
conhecimento científico pressupõe um
objeto. Por exemplo, nosso corpo pode ser objeto de conhecimento da Física, da
Biologia, da Química, da Medicina, etc. Cada ciência faz um “recorte” sobre
nosso corpo, para assim torná-lo objeto de conhecimento. Ao fazer isso, a ciência perde de vista o
todo, já que nosso corpo não é apenas uma realidade física, biológica ou
química, mas a reunião disso tudo e mais outras coisas. Sartre chega a dizer
que é o corpo do outro que possui órgãos que podem ser tratados como se
existissem em separado do ser inteiro de alguém. Todavia, quando vivo meu corpo, o sinto como
a expressão tangível de meus desejos, de meus projetos. Ou seja, o corpo é
parte de um todo que não é apenas corpóreo.
Ao
realizarmos esse tipo de afirmação, buscando assim o todo , entramos sem dúvida
na filosofia...Ou melhor, nos damos conta de que nunca podemos sair dela. A
ciência disseca a realidade em partes separadas e estanques, criando assim um
conhecimento especializado, a filosofia une e liga cada parte ao todo. Este
todo não é um todo fechado à maneira de um círculo. Se o fosse, não seria o
todo, seria tão somente um conjunto, um conjunto de coisas. E um conjunto de coisas
também pode ser um objeto de estudo da ciência. Em grego, chama-se “holos” esse
todo buscado pelo saber filosófico. Sartre conclui O ser e o nada nos dizendo
que a consciência e o mundo formam um “holos” . De holos procede holismo, que é
a tentativa de ver matéria e espírito como duas expressões diferentes de uma
mesma realidade.
Durante o
século XIX, no auge do positivismo, muitas dessas ciências supracitadas não
apenas desconsideravam a filosofia, como também afirmavam que ela não possuía
nenhuma serventia para a humanidade. Imperava a ideologia cientificista (que
Machado de Assis, no livro O Alienista,
ironizara tão bem). Munia essa ideologia
o “reducionismo”. Ou seja, cada ciência achava que o objeto por ela
estudado não era uma parte da realidade, mas a realidade inteira. Assim, os
químicos achavam que tudo podia ser explicado quimicamente (inclusive os
sentimentos humanos). Os biólogos, por sua vez, achavam que todo comportamento
humano, inclusive aqueles considerados os mais nobres (como os comportamentos
morais e éticos) , nada mais eram do que o efeito de condicionantes biológicos.
No direito, por sua vez, esse reducionismo marcou o surgimento do positivismo
na França, quando a lei escrita, posta pelo Estado, passou a ser considerada a
única fonte de direito, tornando-se depois, o positivismo, uma ideologia.
Radicalizando essa visão, Napoleão retirou o ensino de filosofia nas faculdades
de direito da França.
Todavia,
mais do que fazer de uma parte a verdade do todo, o que tal procedimento
positivista fazia era tomar uma parte como um todo à parte. E o mais absurdo
nos reservava o século XX, quando uma parte da filosofia, a Lógica, passou a
pretender ser a filosofia inteira: tudo aquilo que não era lógico foi
considerado palavra vazia sem sentido. Os positivistas lógicos, por exemplo,
para ironizarem a “inutilidade” da metafísica, costumavam exemplificar tal
inutilidade com frases tiradas de
Heidegger , como a célebre “o nada nadifica”. Mas talvez não exista nada
mais sem sentido do que a loucura, a loucura racional, de uma lógica que
queira, enquanto parte, ser o todo... “Uma razão insone engendra monstros”,
ensina-nos Shakespeare .
Se a
sabedoria da filosofia não possui objeto, no sentido em que o conhecimento da
ciência o possui, então o que exatamente a filosofia estuda?A filosofia
enquanto sabedoria espelha intimamente as principais atividades da alma
humana. Esta possui quatro atividades
principais: pensar, conhecer, agir e sentir. O conhecer é atividade realizada
pela razão enquanto logos ou
inteligência ( em seu sentido mais amplo); o agir, por sua vez, é uma
atividade exercida pela vontade; enquanto o sentir é uma atividade realizada
pela parte de nossa alma designada como
desejo (ou sensibilidade). Razão,
vontade e desejo são faculdades da alma humana. O pensar é uma atividade ou
potência exercida pelo pensamento ( em grego, “nous”).Assim, pensar não é a
mesma coisa que conhecer. Por exemplo, conhecer o direito é uma atividade que
diz respeito à Ciência Jurídica. Mas pensar o direito é uma atividade exercida
no âmbito da Filosofia Jurídica. Conhecer a vida é atividade da Biologia, ao
passo que pensá-la cabe à Filosofia da Vida. Por isso, o pensar não é atividade
de uma faculdade específica, uma vez que ele é uma atividade, um processo, que
concerne à alma como um todo em relação consigo mesma e com o mundo.
A parte
da filosofia que trata do conhecer chama-se Epistemologia ( ou Teoria do
Conhecimento).A epistemologia é a parte da filosofia que interessa
principalmente às ciências na medida em que estas procuram refletir sobre os
seus métodos e procedimentos. O “objeto” da epistemologia é o próprio conhecer
(enquanto atividade das ciências), e não o objeto que cada ciência isolada estuda.
Assim, embora a filosofia também exerça um tipo de conhecimento, este difere
daquele exercido pela ciência. Enquanto
o conhecimento, na ciência, aplica-se a um objeto, o conhecimento que a
filosofia realiza se aplica sobre o próprio conhecimento da ciência, estudando
principalmente como ele ocorre e quais suas bases e métodos. E é nessa questão
do método que vemos surgir epistemologias as mais diversas, até mesmo
conflitantes, pois não existe apenas um único método, e sim métodos distintos.
Algumas filosofias priorizam a indução ( os empiristas), outras a dedução ( os
racionalistas), e há ainda as filosofias que dizem que tudo começa na
contemplação, e há outras filosofias ( como a de Bergson) que fazem da intuição
o coração da atividade filosófica; e há ainda Leibniz, que propõe a abdução
como método ( Deleuze, dando à abdução um sentido um pouco diferente, a coloca
como processo imanente à prática criativa que a filosofia também é).
A Ética e
a Moral são as duas disciplinas filosóficas
que se ocupam do agir humano. Por
isso, estas são as disciplinas da filosofia que mais interessam à Economia, à Política e ao Direito, pois
estas três ciências estão intimamente
associadas ao agir humano, ou seja, à vontade enquanto faculdade.
O sentir é uma atividade da alma humana estudada por uma disciplina da filosofia
intitulada Estética . Alguns desdobram o sentir também em fazer. Em grego,
fazer se diz “poiésis”, nascendo assim o termo poética. O fazer da poética não
é o mesmo que o agir da ética. Nesta, trata-se do agir humano, ao passo que o
fazer da poética concerne ao criar uma obra de arte. E aqui pode nascer uma
questão decisiva: se a obra a ser criada é
a própria vida que se leva, surge então uma íntima relação entre a arte
e a ética, entre a poesia e como agimos/vivemos, nascendo assim o que Foucault
chamava de “estética da existência”, que é, na verdade, uma “poética da
existência”. Aqui, não apenas o fazer e o agir se revelam como arte, como
também o próprio pensar: este se mostra então como criação e produção de
sentido para a vida .
Por
tratar das maneiras e capacidades da alma humana de sentir, a Estética
interessa principalmente às artes ( pintura, cinema, música, poesia, etc.).
Desse modo, através da Estética a
filosofia realiza uma interseção com as artes. É por isso que podemos afirmar
que a filosofia não está apenas nos livros de filosofia, mas também nos filmes,
nas músicas, nas poesias e nas pinturas - na medida em que essas artes , tocando a nossa
sensibilidade, faz-nos também pensar.
É preciso deixar claro que o pensar, o
conhecer, o agir e o sentir não são atividades
estanques. Afinal, para agir, por exemplo, é preciso sentir. Por outro
lado, muitos danos podem ocorrer quando agimos sem pensar. E quem pensa sem
sentir não pensa verdadeiramente.
Na
história da filosofia vemos os filósofos discordarem sobre qual atividade é a
mais importante. Os racionalistas, por exemplo, conferem total supremacia à razão e pouca
relevância à sensibilidade. Por este motivo, eles acreditam que somente podemos
conhecer algo de verdade se nos afastarmos de nossa sensibilidade. Por outro lado, há filósofos que tendem a dar maior importância ao desejo e à
sensibilidade, denunciando os excessos da razão epistemológica.
Conforme dizia o escritor Balzac, “quando a
forma predomina, desaparece o sentimento”. Em nossa alma, a razão é a faculdade
mais formal de todas. Daí seu perigo quando se confunde o pensar com o mero
conhecer.
Então,
através da Epistemologia a filosofia oferece elementos para as ciências compreenderem
melhor seus métodos e procedimentos; por intermédio da Moral e da Ética a
filosofia estabelece um diálogo
sobretudo com a Política e o Direito , fornecendo elementos críticos para se
compreender tais atividades e estabelecer suas finalidades; pela Estética ( e pela Poética) a filosofia explora o mesmo território que as
artes também exploram: a nossa sensibilidade. Mas de todas as atividades da
alma a que mais caracteriza a filosofia é exatamente o pensar. O pensar é a
mais importante atividade da filosofia justamente porque ele não interessa apenas à filosofia, mas a
todos enquanto conhecemos, agimos e sentimos.
Portanto, sempre que procuramos seja pensar o que sentimos, seja pensar
como e porque agimos ou pensar o que conhecemos, nesse esforço de compreensão se encontra o filosofar. Pensar, enfim, é
questionar. A filosofia é a arte do
questionamento. O Pensar é a atividade estudada pela Metafísica.
- Os
primeiros filósofos e a filosofia
O nome “pré-socráticos” expressa um conjunto
heterogêneo de pensadores.O termo “pré” não significa que eles vieram
exatamente “antes” de Sócrates no tempo. Ao contrário, alguns lhe foram
contemporâneos. Assim, o termo “pré” designa uma visão da filosofia que toma
Sócrates como referência e padrão.Outros ainda empregam a expressão
“pré-platônicos”, uma vez que tomam Platão como o início da filosofia.
É errada a visão que considera inexistir nos
pré-socráticos uma reflexão sobre o ser humano. Entretanto, a maior
dificuldade para a reconstrução dessa visão que eles possuíam
do homem repousa na escassez de fontes. Poucos escritos dos pré-socráticos
chegaram até nós. Sabe-se, por exemplo, que Demócrito , o atomista, teria
escrito bem mais que Platão! Todavia, apenas fragmentos nos chegaram.
Segundo argumentam Deleuze e Guattari no
livro O que é a Filosofia? ( Editora 34), é com os
pré-socráticos que surge, pela primeira vez, o termo “filósofo”. Este termo
nasce mais especificamente com Tales de Mileto. O filósofo veio ao mundo
antes da filosofia. O filósofo surgiu em um espaço “entre” o Ocidente e o
Oriente, pois foi nessa área limítrofe das colônias da Grécia que o filósofo
apareceu. Há algo do Oriente em Tales,isto é, há nele um tipo de sabedoria que
não se apoia apenas em conceitos.Há nele a poesia, a alegoria, a linguagem
simbólica – acompanhadas de uma intuição profunda, quase mística. Enfim, o
filósofo também era, em seu berço, um poeta. Muitos pré-socráticos, até mesmo
Parmênides, evocam as Musas para inspirá-los. Pitágoras, apesar de matemático,
criara uma doutrina esotérica acerca da transmigração das almas, o que faz dele
o primeiro filósofo a acreditar na imortalidade da alma .
A filosofia, sustentam Deleuze e Guattari,
nasceu um pouco mais tarde. A filosofia surgiu após já ter nascido
o filósofo. Enquanto este apareceu às margens da Grécia, a filosofia é
fruto genuíno de Atenas, o coração do Ocidente. Para a filosofia emergir, foi
preciso que o filósofo perdesse essa aura poética e mística,foi necessário que
ele deixasse de ser um sábio:foi preciso que ele desse as costas para o Oriente
místico.
A filosofia aparece somente em Atenas, no
auge da Grécia Clássica.A filosofia nasceu em um determinado meio político
ávido por debates e disputas verbais. A Grécia de então era um meio atravessado
por rivalidades de toda ordem. Nesse ambiente era fundamental a
constituição de associações. Nasce então uma idéia muito especial de
“amizade” que será considerada a base da filosofia. A filosofia seria um exercício
dialogado entre aqueles que buscam a sabedoria tendo como elo uma forma muito
especial, não privada, de amizade.Na Grécia Clássica, o filósofo se torna um
“amigo da sabedoria”, um “amigo do conceito”. Enquanto amigo do conceito, o
filósofo vai também defender o conceito dos seus “falsos amigos”:os meros
sofistas. Um amigo,um verdadeiro amigo,nunca faz seu amigo de meio para
obtenção de coisas materiais. Segundo pensava Platão, os sofistas faziam da
sabedoria um meio para obtenção de fama e dinheiro. Na verdade, então, eles não
faziam sabedoria,mas”falsa sabedoria”, uma “aparência de sabedoria”. Sócrates,
Platão e Aristóteles dedicaram boa parte de seus ensinamentos para refutar
esses falsos amigos do conceito.
No Banquete, porém, Platão demonstra
que o termo “philia” , presente em “philosophia”, não designa apenas “amizade”.
“Philia” também significa , de forma mais profunda, “amor”. De maneira
provocativa e sutil, Platão quer com isso dizer que o filósofo não é apenas um
amigo do conceito: ele também é um amante do conceito, ele é um enamorado do
saber. Enquanto “amigo do conceito”, podem aparecer rivais,como os sofistas.Mas
como amante do conceito, o filósofo não tem rivais, uma vez que ele e a
sabedoria formam uma unidade cujo elo é o amor. Aqui, Platão reata com certo
misticismo pré-socrático de fundo pitagórico , no qual tinha grande importância
a intuição silenciosa do Bem,isto é, daquilo que a mera palavra não
alcança ( mais tarde , Plotino e Santo Agostinho dedicarão belíssimas
páginas a esse tema). Esse aspecto de amante da sabedoria dará ao filósofo uma
condição de “estrangeiro”, isto é, de alguém que não se deixa determinar pelas
convenções de uma determinada pólis. Sem dúvida, Sócrates é um personagem
importantíssimo nos diálogos de Platão, talvez o mais relevante.Todavia,
importante também é o personagem apenas designado como “o estrangeiro”, isto é,
aquele que porta uma fala que transcende ao estabelecido pelas leis e costumes
que os homens estabelecem, de forma convencionada , em uma determinada pólis.
Se a condição de “amigo” liga o filósofo aos homens, nascendo assim questões
pedagógicas e políticas, a condição de “amante” o liga ao divino que
imortaliza sua alma, fazendo-a conhecer e viver a união amorosa com o Celeste.
- Principais
pré-socráticos
Apesar da diversidade de doutrinas que caracteriza
esse grupo de filósofos, uma questão pode ser apresentada como sendo a
característica geral dos pré-socráticos: a busca pelo Um.
Diante da multiplicidade de aspectos que a natureza apresenta aos órgãos da
sensibilidade, os pré-socráticos buscavam a unidade que tornaria essa
multiplicidade pensável e inteligível. A esta unidade eles deram um
nome: arqué.Este termo grego possui uma rica carga semântica. Os
principais sentidos atribuídos a arqué são: origem, princípio, comando e causa.
Os pré-socráticos empregavam arqué no sentido de causa. Perguntar sobre a
arqué era indagar acerca da causa que gerou tudo o que existe.
Diante da multiplicidade de aspectos cambiantes que
nossos sentidos testemunham, o pensamento se erguia diante dessa multiplicidade
e fazia uma exigência: o Um, a arqué, a causa. A pré-socrática representou o
primeiro momento de tematização de um problema que acompanhará toda a filosofia
, de Tales de Mileto a Deleuze: as relações entre o Um e o Múltiplo. Se o
múltiplo constitui a realidade tal como ela se apresenta aos sentidos, alcançar
o Um exige outro instrumento distinto da sensibilidade. Assim, emerge
igualmente nesse período uma visão de que o homem é constituído por dois
princípios: a sensibilidade, necessariamente ligada ao múltiplo, sendo ela
própria múltipla, e o Logos, este igualmente Um, tal como a arqué.
Assim, seria o Logos o instrumento que poria o homem em contato com a arqué,
com o Um.
Os primeiros pré-socráticos estão ainda muito
próximos da poesia. Há neles uma visão do caráter divino da natureza. Em grego,
natureza é “physis”, palavra esta cujo sentido se reporta ao processo
de “nascer” ou “brotar”. Mais do que se pautarem pela abstração dos conceitos,
eles ainda se apoiam em imagens, apesar de já se fazer presente a exigência de
racionalização comandada pelo Logos.
Tales de Mileto dizia que “tudo é água”. A água
seria a arqué da qual tudo nasceu. Como ele chegou a essa posição? Após a
chuva, ele percebia que a natureza se renovava ou renascia. Quando estão
saudáveis, os olhos estão sempre umedecidos. Do mar vêm vários seres vivos. A
placenta, que é o primeiro berço de todo ser vivo, é um reservatório de água.
As fontes trazem vida aos desertos. Assim, onde está a água se encontra a
vida. Por outro lado, Tales constatou que tudo o que morre e definha vai
perdendo água e secando. A terra sem umidade se torna estéril. Enfim, Tales
intuiu que a água é o princípio da vida. Então, existe a água visível em suas
mais variadas formas. Mas existe ainda a água enquanto arqué ou causa de tudo o
que existe. Esta água universal não tem um aspecto particular, e só o logos
intuitivo a pode apreender. Ela não é doce ou salgada: ela é simplesmente água,
a pura água que apenas o pensamento pode intuir e conceber.
Heráclito, por sua vez, afirma que o fogo é a arqué
ou o Um do qual tudo é feito. Este Um, no entanto, reúne nele o múltiplo,
de tal modo que este Um é idêntico ao movimento, ao devir. O fogo
nunca fica imóvel, e é por isso que ele também é a imagem do tempo. E é isso
que diz o célebre fragmento de Heráclito: “Nós não podemos entrar duas vezes no
mesmo rio”. Quando saímos do rio e retornarmos para entrar nele, suas águas já
passaram, assim como nós mesmos já somos “outro”. Muda o rio e mudamos nós.Nada
é, tudo devém,pensava Heráclito. “Devir” significa: “vir de novo”. Cada
“momento” do devir é uma repetição, um re-venir. Cada momento do
devir é uma repetição dele mesmo, que sempre se repete diferente, pois nunca
ele é o mesmo, assim como as águas do rio do tempo.Segundo dirá Platão, ninguém
mais que Heráclito compreendeu tão perfeitamente o mundo sensível, que sempre é
regido pela mudança. Hegel, Nietzsche, Bérgson e Deleuze foram muito influenciados
por essa intuição heraclítica do devir.
Mas por que as coisas mudam? Heráclito dirá: “não
existe um porquê”(Aristóteles , por sua vez, responderá a Heráclito afirmando
que as coisas mudam para realizar um fim: a forma). Heráclito dizia que há no devir
uma “inocência” pela qual o devir constrói e destrói, tal como crianças que
brincam de construir e destruir castelos de areia. Não raro, Heráclito
era visto observando crianças brincando e jogando. E a muitos ele dizia
que aprendia mais com elas do que com os doutos. Para muitos, um obscuro. Para
outros, o primeiro dos pensadores trágicos. Com Heráclito teria nascido o
primeiro pensamento da imanência. “Imanência” provém de “i-manare”.
“Manancial” se origina de manare. Manancial é a mesma coisa que “fluxo”. Assim,
imanência é, literalmente, o que existe interior ao fluxo, ao devir, ao tempo.
Por oposição, temos o vocábulo “transcendência”. “Transcendência” é: “ir
para além dos entes” ( no núcleo da palavra transcendência existe
o termo “ens”, “ente”).
Vale destacar outro pré-socrático: Empédocles. Ao
invés de apontar para apenas um elemento como arqué, Empédocles nos diz que a
causa de tudo são as quatro raízes e os dois princípios. As quatro raízes são:
a água, o fogo, o ar e a terra. Os dois princípios são o Amor e o Ódio. O Amor
é a Vida, ao passo que o Ódio é a morte. Sob o poder do Amor, as quatro raízes
se combinam para gerar tudo o que existe, uma vez que tudo o que existe seria a
união da água, da terra, do fogo e do ar. O ódio, por sua vez, é o princípio
que dissolve o ser organizado e faz as quatro raízes voltarem a
existir separadas. O ódio faz as raízes existirem sós. O ódio é a solidão. O
ódio não destrói as quatro raízes, ele apenas desfaz os seres que nascem de sua
união e composição. Além de realidades meramente físicas, Empédocles introduz
Afetos (Amor e Ódio) na gênese do mundo. Estes afetos não estariam apenas no
homem, eles não seriam tão somente subjetivos. Tais afetos seriam também
cósmicos e presidiriam, ao mesmo tempo, a vida dos homens e a vida do universo.
Outro pré-socrático importante foi Anaximandro. Com
Anaximandro, o pensamento atinge graus de abstração nunca antes alcançados.
Para este pensador, a arqué não é a água, o ar , a terra, o fogo ou a mera
combinação deles. Para ele, a arqué não pode ser nada de determinado, pois tudo
o que é determinado possui um limite, uma identidade. E tudo o que possui
limites não é o todo. Assim, para ele a arqué ou causa de tudo será
chamada de Apeiron. A-peiron:o que não tem limites. Mas
por que existem as coisas com limites, as coisas finitas? A resposta de
Anaximandro introduz um elemento de julgamento moral: as coisas finitas existem
por uma culpa. Todo ser finito que se separa do infinito o faz por uma culpa.
Dessa forma, tudo o que é limitado, por isso mesmo, sofre. O sofrimento é a
condição existencial de tudo o que existe separado. Anaximandro acreditava que
a sabedoria seria um processo de reatamento com o que não tem limites, o que
implicava em uma regra de vida que se libertasse do império das coisas
limitadas. Por exemplo, bens materiais, por maiores que sejam, são coisas com
limites. Todo apego ao limitado, seja o limitado das coisas ou o limitado do
“ego” ( embora Anaximandro não empregue exatamente esta palavra tão
moderna), todo apego alimenta ainda mais a culpa e o sofrimento.
Por essa razão, impede a liberdade e o pensamento.
Por fim, existiu Parmênides.Para este filósofo , a
arqué não é mais nada físico, tampouco a combinação de coisas físicas.A arqué
também não é, para ele, algo que se assemelhe a afetos humanos. A arqué,
porém, também não seria o infinito, o que carece de fins. Para Parmênides, a
arqué, a causa de tudo, seria o Ser. E o que é o Ser?A resposta de
Parmênides é seca,lacônica, e já anuncia,firmemente, o princípio fundante
da lógica: o Ser é o Ser. O Ser é idêntico a ele mesmo. O Ser não devém.
Quando a água devém nuvem, ela deixa de ser água para se transformar em outra
coisa. Como pode algo deixar de ser?Aceitar o devir é aceitar um
paradoxo:afirmar que o não ser é.Assim, pensava Parmênides, o Ser não se move,
ele não muda: ele simplesmente É. Os sentidos nos enganam: eles não nos mostram
o Ser, eles nos mostram apenas as aparências. Desse modo, existiriam dois
caminhos: o da Verdade, caminho este que apenas a alma pode trilhar, e o
da opinião,que é o caminho no qual reinam as aparências e ilusões nascidas de
vivermos apenas a vida do corpo. O caminho da Verdade é o do Ser,ao passo
que o da opinião é o caminho da mera aparência, isto é, do não ser. Com
Parmênides são esboçadas as primeiras exigências de um pensamento lógico,
que posteriormente será desenvolvido por Aristóteles;em Parmênides também se dá
início à célebre distinção entre Essência e aparência,
tema este que merecerá especial atenção de Platão, e que marcará, até hoje, o
vocabulário da filosofia.
- O
nascimento da pólis
A arte pode ser também um espelho que reflete
não apenas a personalidade daquele que a criou. Ela também pode ir mais além, e
expressar a sociedade e a época em que ela foi produzida. Daí a função
pedagógica da arte,a sua “Paidéia”[1],que ensina não apenas sobre a
sua especificidade enquanto obra de arte, como também sobre o mundo do qual ela
foi uma expressão.
Como se sabe, a Grécia Clássica representou o
período de surgimento da democracia e da filosofia. O principal fruto da
democracia foi a pólis. Esta palavra costuma ser traduzida por “cidade”. Porém,
existe ainda um sentido mais rico e pouco conhecido. Trata-se do termo
“organização”. Por exemplo, na palavra “própolis”
encontramos esse sentido de pólis como organização ( pró-polis= a favor da
organização,uma vez que a colmeia é uma organização). Assim, a pólis é mais do
que algo físico ou urbano. A pólis é uma organização que envolve
também um espaço mental[2]. O homem será, ao mesmo tempo, criador da pólis e criatura dela. O
homem assim compreendido será chamado de “politikos”. Em português: cidadão.
O centro da pólis era designado como “ágora”. Esta
era a praça pública. “Ágora” procede de “agon” , que significa “disputa”. A
ágora era um local onde se travavam disputas. O instrumento de tais disputas
não eram lanças ou espadas, mas a palavra. A palavra dialogada era a base do
exercício do poder na democracia nascente. Havia uma condição para que se
pudesse usar tal instrumento: que o homem que a empregasse fosse livre e
proprietário. Em grego,”propriedade” procede de “oikonomia” ( “oikos” é “casa),
de onde nasce economia. Desse modo, emergem a política e a economia como
espaços que deveriam ser, no entanto, mantidos separadamente: o politikos não
deveria buscar o poder político para obter favorecimentos em sua esfera privada
e econômica. A palavra dita em praça pública, e da qual nasciam as leis,
deveria ser expressão de sua vontade em agir pelo bem comum.Tal palavra não
poderia ser mero instrumento de interesses econômicos
particulares. A palavra também não poderia ser veículo da
passionalidade,uma vez que a palavra deveria servir à razão. Uma razão
política, nascida do esforço para domar a contingência.
Mas quando surgiu exatamente este homo
politikus?Este homem difere daquele que viveu à época mitológica. O homem
do período mitológico viveu em um período no qual imperavam reis e
triunfavam guerreiros , enquanto muitos viviam a condição de escravos,
submetendo-se àqueles. Inexistia o homem livre, tal como o concebemos.
Isto porque não havia ainda, àquela época, a democracia. O centro da vida de
então era o castelo onde morava o déspota, e não a praça pública do povo.Além
disso, não havia ainda uma clara delimitação , e separação, entre o universo
humano e o dos deuses.Mesmo o guerreiro justificava suas ações pela influência
de alguma divindade.
Porém, entre o desaparecimento do guerreiro e
o aparecimento do cidadão há um período de passagem e transformação. Esta
transformação não envolve apenas a política, pois ela também implica uma
transformação mental do homem. Assim como a poesia ( a epopeia) é o melhor
instrumento para compreendermos a mentalidade do homem que viveu na Grécia
mitológica, há outra arte que desempenhará papel fundamental para
compreendermos essa nova mentalidade humana que emerge com a democracia. A arte
em questão é o teatro. Hoje, mal percebemos a importância que já possuiu
essa arte. Todavia, essa arte está na base de constituição do homem que passa a
viver no período democrático. Este período exigirá do homem uma nova relação
com suas ações. Estas não poderão mais evocar a influência dos deuses como
co-autores. Doravante, o homem deverá assumir-se como responsável pelos seus
atos. E foi no teatro grego que esse processo de passagem foi primeiramente
tematizado. Dessa maneira, o teatro também constitui um fator de educação
cívica do cidadão, pela qual ele aprendia a evitar os fatores que impediam que
ele se assumisse como responsável pelos seus atos. Nasce, nessa época,o
primeiro esboço de uma teoria da vontade humana [3] .
- Os
sofistas: o homem como o metron de todas as coisas
Foi nesse ambiente de extrema valorização do
indivíduo, e da palavra, que surgiram os Sofistas. A maioria deles veio de fora
de Atenas.Por isso, não podiam exercer atividades políticas nesta capital da
Grécia. A origem dos Sofistas se liga a Sicília, àquela época uma colônia
grega. Nesta cidade um tirano foi deposto pelos cidadãos com a ajuda de um
retórico chamado Córax. Este ajudou os cidadãos a como falar bem em público e
defender suas causas diante dos juízes. Teria sido Córax o inventor da
retórica. Ele teve um discípulo: Górgias. Este deu à retórica outros
fins, fins também comerciais. E foi com Górgias que nasceu o termo “sofista”,
que a partir de Platão passou a ter um sentido pejorativo.
Com os sofistas, as questões cosmológicas são
substituídas pelos temas antropológicos. O homem passa ao centro da reflexão
filosófica. Protágoras , outro famoso sofista, resume bem essa atmosfera com o
célebre pensamento: “O homem é a medida (metron) de todas as coisas:
daquelas que são,na medida em que são, e daquelas que não são, na medida em que
não são”.Platão,ao refutar os sofistas, dirá que apenas a Ideia pode ser a
medida das coisas que se podem conhecer.
Filosoficamente, os sofistas inauguram o relativismo e perspectivismo enquanto
visões do homem e do universo. Para eles, a verdade nada mais seria do que uma
perspectiva que derrotou suas rivais. Eles, no entanto, eram apenas
“professores”, já que não podiam exercer atividades políticas. Seus cursos eram
procurados avidamente por todos aqueles que queriam vencer seus rivais em praça
pública, e assim ver transformado em lei , e obedecido por todos, o que
nascia apenas dos seus desejos e ambições. Como consequência, os preços das
aulas subiram de tal modo que apenas os mais ricos podiam pagar. Assim, o poder
econômico passou a preponderar sobre o interesse público, o que acarretou em um
descrédito nas leis. Resumidamente: o caos passou a rondar a nascente
democracia. E os sofistas passaram a ser perseguidos, presos e até mesmo
expulsos. É nesse ambiente conturbado, política e eticamente, é nesse ambiente
que surge Sócrates.
-Sócrates
Ao surgir, Sócrates teria sido confundido como mais
um sofista. Inclusive, alguns inimigos de Sócrates, que são os mesmos inimigos
da democracia, fizeram de tudo para manterem essa confusão até o fim , para
assim tirarem proveito e condená-lo à morte,como de fato o fizeram.Mas os que
se acercavam com sinceridade de Sócrates, e o ouviam falar e questionar,
estes de imediato percebiam, não sem admirado espanto, que o
grande dom da palavra que Sócrates possuía servia a outros fins, embora o
próprio Sócrates dissesse que “apenas sabia que nada sabia”.
Entre aqueles que dele se aproximaram, havia um
jovem que até então admirava os sofistas e pensava em seguir a carreira de
autor de teatro. Esse jovem ainda se chamava Aristocles, mas passará à
história com outro nome:Platão. Sob o impacto do contato com Sócrates, o jovem
Platão rasga seus poemas e decide se dedicar exclusivamente à filosofia
(embora, até onde se sabe, nunca o velho Sócrates teria exigido que o
jovem discípulo rasgasse poemas...).
Ao conhecer Sócrates, o jovem Platão descobre
seu caminho. Entre as muitas lições que ouviu de Sócrates, e que depois
reproduzirá ( nem sempre fielmente...) em seus célebres Diálogos, uma delas
merece destaque, pois essa lição também a aprenderá Aristóteles, e esta lição
muito o influenciou na invenção da Lógica Dialética. A referida lição é a
seguinte: “Para lutarmos contra a palavra mentirosa só temos uma arma: a
palavra verdadeira”. A mera força bruta pode fazer calar a palavra mentirosa,
mas não extirpa sua raiz da alma. Apenas a palavra que traz a verdade pode
derrotar a palavra mentirosa . E a palavra verdadeira deve vencer a mentira à
luz do dia, uma vez que a palavra mentirosa teme a luz. Ela vive da
ardilosidade, da intriga e da dissimulação, uma vez que a movem interesses que
vivem à sombra da razão. Assim, aquele que defende a verdade deve saber usar a
palavra, pois aqueles que defendem a mentira só sabem usar a palavra, uma vez
que carecem de ideias e virtudes. São as ideias e as virtudes que dão força à
palavra que traz a verdade. Ou seja, o que torna as palavras verdadeiras
vivamente poderosas é que elas não são apenas palavras ( flatus vocis).
Um fato marcante acerca de Sócrates é que ele dizia
ouvir “uma voz interior”. Nele existiam ouvidos para ouvir essa voz que não era
humana. Tomando de empréstimo uma expressão que já fazia parte da cultura
grega, mas dando a ela outros fins, Sócrates chamava essa voz interior
como sendo a voz de um Daimon. Contextualizando esse termo com
outro de nós mais próximo, a voz do Daimon seria a “voz da consciência”, a “voz
da interioridade”. Sócrates ouvia essa voz e a fazia de autoridade: era
ela que pautava a sua conduta,e não os valores ( ou a falta deles...)
dominantes. Essa interioridade que Sócrates descobre não era uma interioridade
meramente psicológica. De forma mais profunda, ela era uma interioridade que o
ligava ao Bem. É pelo interior que se alcança, alçando-se, o Bem.
Sócrates evocava a duplicidade de sentidos presente
no termo “soma”. De “soma” nasce “somático”. “Soma” significa “corpo”. Mas
“soma” também significa, em grego, “túmulo”. Sócrates explorava essa
duplicidade do termo soma para indicar que o corpo era o túmulo da alma: quanto
mais a alma vive apenas a vida do corpo, mais ela está como que “morta”,
morta em vida, morta para a vida do pensamento e para todos os frutos que ele
pode conceber, como o fruto das virtudes; ao contrário, quanto mais a alma
busca a vida que é dela própria, mais
ela se percebe eterna e ao Bem busca se unir.
Outro pensamento de Sócrates muito sábio: ”Conhece-te
a ti mesmo”. Para ele, somente quem conhece bem uma coisa pode aperfeiçoá-la.
Por exemplo,o bom sapateiro é aquele que conhece bem os sapatos. Por isso, o
bom sapateiro sabe não apenas consertá-los, ele sabe igualmente
aperfeiçoá-los. O fim maior de todo conhecimento é o aperfeiçoamento. Assim,
conhecer a si mesmo é aperfeiçoar a si mesmo. Sabe-se quem se conhece
pelo esforço que faz para aperfeiçoar-se. O ignorante,ao contrário,já se
acha perfeito, e é por isso que não busca verdadeiramente conhecer-se. O bom
sapateiro conhece a essência dos sapatos, e é por isso que ele
é capaz de melhorar os sapatos em suas existências imperfeitas.
Se todo conhecer é um aperfeiçoamento, este aperfeiçoamento é praticado em
razão de algo que já existe perfeito, e que funciona como modelo. Este ser
perfeito é o Bem, modelo de todo aperfeiçoamento. Conhecer a
alma é, também, conhecer quem a fez. É o Bem o produtor da alma. E conhecer o
Bem é fazê-lo. Sabe o que é o Bem quem o faz, pois o Bem não é matéria
teórica,mas prática.
Dessa maneira, as preocupações de Sócrates versam
quase que exclusivamente sobre o plano ético-moral. É Platão que dará um
estatuto epistemológico e ontológico às palavras que ouviu do seu mestre.
Platão transformará em sistema aquilo que em Sócrates era vida e ação.
[1] Para saber mais sobre o assunto: WERNER,
Jaerger. Paidéia: a formação do Homem Grego. São Paulo: Martins
Fontes,2001.
[2] A esse respeito: VERNANT, Jean-Pierre. “O
universo espiritual da pólis”, As origens do pensamento Grego.Rio
de Janeiro: Difel, 2002.
[3] Em termos estritos, a doutrina das faculdades humanas somente
pôde estabelecer-se quando a filosofia se debruçou sobre o Sujeito, fato
este que caracteriza a Filosofia Moderna. No entanto, em termo lato , amplo, já
existe desde os gregos , ainda que em esboço, uma tematização de que o
homem é dotado de determinadas atividades, que posteriormente serão conhecidas
como “faculdades”. O principal texto a esse respeito é: VERNANT, Jean-Pierre.
“Esboços da vontade na tragédia grega”. In: Mito e tragédia na Grécia antiga.
Tradução Anna Lia A. de Almeida Prado, Filomena Yoshie Hirata Garcia e
Maria da Conceição M. Cavalcanti. São Paulo: Perspectiva, 1999.
Referências:
BORNHEIM,
G.Os filósofos pré-socráticos. São Paulo: Cultrix, 1998.
NOGARE,
P. Humanismos e anti-humanismos.Petrópolis:Vozes, 1979.
VAZ,
C. Antropologia filosófica I. São Paulo: Edições Loyola, 1995.
Filme sugerido:
Sócrates, de Rossellini.