domingo, 31 de dezembro de 2017

regeneratio3

Na ponta do meu lápis há apenas nascimento.
 Manoel de Barros   
        
Dentro do casulo parece que a lagarta está morta. E, de fato, ela está. Ela não se move, ela está parada: ela é o passado que morre. Para a lagarta, o casulo é um túmulo. Mas algo ali acontece, e para ver esse processo poucos têm os olhos. Pois o que chamamos morte da lagarta, como fim ou término, é apenas o começo do nascer da borboleta. Não é a morte da lagarta que cria o nascer da borboleta. Ao contrário, é o nascer da borboleta que dá à morte da lagarta um outro sentido. O casulo , na verdade, nunca foi um túmulo: ele sempre foi um útero em razão da metamorfose do que  há de nascer. O mundo que a lagarta via   não será o mesmo que a borboleta verá : mudará o mundo porque mudarão, antes, os olhos que o irão ver.


Penso renovar os homens usando borboletas.
Manoel de Barros







sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

a não velhez dos dias


Durante as viagens sem rumo dos andarilhos
eles são instalados na natureza igual se fossem uma aurora.
Manoel de Barros
                                                                                                                                                                                                                                
                                                                                                         
Erguer-se... como se ergue a aurora do seio da noite.

     Homero, Ilíada 
   

“O que é verdadeiramente novo nunca vira sucata” , ensina o poeta  Manoel de Barros. “Sucata”, segundo o poeta, é tudo aquilo que a “velhez venceu”. “Velhez” não é uma vida perto do fim , velhez é uma vida que se perdeu de seu começo, de seu “minadouro”, de sua (re)invenção.
Se 2017 está virando sucata, não era ele verdadeiramente o tempo novo. Se 2018 também vai virar sucata, não acharemos nele o novo que desejamos . Mas onde achar a “não velhez” do tempo, o seu embrião?
Sem fazer alarde ou  promessas,  independente de tecnologias,  a aurora de não importa qual dia nos dá a resposta, sem exigir champanhe ou fogos em troca: uma aurora sempre vem para nos lembrar que todo dia  é dia novo! ( e não apenas 1º de janeiro!) 


       

                                              

     

quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

livro: poesia pode ser que seja fazer outro mundo

                                         
         




(trecho do livro a sair em março/2018, pela editora 7letras)



                Poesia pode ser que seja fazer outro mundo
               - Uma homenagem ao centenário de Manoel de Barros -

 Eu sou dois seres.
O primeiro é fruto do amor de João e Alice.
                               O segundo é letral:        
É fruto de uma natureza que pensa por imagens,
Como diria Paul Valéry. 
O primeiro está aqui de unha, roupa, chapéu e vaidades.
O segundo está aqui em letras, sílabas, vaidades frases.
E aceitamos que você empregue o seu amor em nós.
                                                                        (Manoel de Barros, Poemas rupestres)      
           
                                                                                                   
- Inventar aumenta o mundo

"Poesia pode ser que seja fazer outro mundo" é um verso do próprio Manoel[1].  Mil sentidos podem ser extraídos dele,  inesgotável é sua riqueza. Acreditamos que a ênfase deve ser colocada no “fazer”, no produzir, e não no mundo enquanto produto ou coisa pronta, tangível, reconhecível, etiquetável, prestes a virar propriedade de um dono. Sempre haverá mundo para a poesia fazer, a poesia mais necessária é prática de fazer outros mundos: mundos políticos, psíquicos, oníricos, semióticos, desejantes, enfim, mundos por fazer, sempre múltiplos. É da invenção fazedora de mundos que o poeta deseja ser o dono, não do mundo: "quem inventa é dono daquilo que inventa, quem descreve não é dono daquilo que descreve"[2], diz o poeta.
Se estivesse vivo, Manoel de Barros completaria 100 anos em 2016.  Mais precisamente, no dia 19 de dezembro. Esse número tão expressivo parece contrastar com a imagem que o poeta imprimiu à sua obra. Não são as datas e a passagem do tempo que o interessam, mas “as origens que renovam”[4]. Quanto mais o tempo passa, mais a obra de Manoel de Barros parece nos encantar como seus inauguramentos, seus exercícios de ser criança: “Quem é quando criança a natureza nos mistura com suas árvores, com as suas águas, com o olho azul do céu. Por tudo isso que eu não gostasse de botar data na existência”[5].
Este livro nasceu de evento-homenagem ao poeta acontecido em outubro de 2016, na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Tal como no evento, quisemos fazer um livro-homenagem também plural, transdisciplinar, reunindo filósofos, poetas, pesquisadores, enfim, profissionais que encontraram na obra do poeta um caminho para a invenção de ideias. Manoel foi para nós um intercessor. Um intercessor não nasce da intercessão de opiniões idênticas ou semelhantes, mas do produzir singularmente uma área de afeto onde não se diz mais "eu" ou "outro": ousa-se dizer "nós", mesmo que ainda em balbucio ou gaguejando. O intercessor-Manoel nos colocou em estado de embrião, como forma em rascunho, no limite de nós mesmos, desabrindo-nos. Somente dessa maneira pudemos, com Manoel, ousar um “afloramento de falas”.
É de se notar, hoje, a variedade de campos envolvidos nas produções acadêmicas que tomam o poeta como tema. Além da Teoria Literária, há estudos em Filosofia, Dança, Geografia, Psicologia, Pedagogia, Museologia, Teatro…Essa pluralidade expressa a riqueza de uma poética que ainda se oferece por descobrir, exigindo um rico trabalho de diálogo interdisciplinar em sua hermenêutica. Mas Manoel é arisco: a expressão reta não o apanha...
O livro deseja contribuir para a divulgação de um pensador originalíssimo de nossa cultura, com influência crescente nas mais diversas áreas da vida brasileira. Apesar do reconhecimento midiático, a poética de Manoel ainda é relativamente pouco conhecida e estudada, e falar dela também é, sem dúvida, pensar nossa sociedade, nossa linguagem e as formas plurais mediante as quais produzimos conhecimento. Esta é a originalidade do poeta: uma simplicidade sem pose, uma simplicidade múltipla, pois toda autêntica simplicidade é vária, com-plexa: múltiplas coisas estão dobradas e implicadas nela.



"Por coisas singulares entendo coisas que são finitas e têm existência determinada. E se vários indivíduos concorrem em uma ação de forma que todos juntos são causas de um efeito, considero-os todos, nesta medida, como uma coisa singular".(Espinosa, Ética, Segunda Parte, definição VII)






[1] Encontros: Manoel de Barros (org. Adalberto Müller), Rio de Janeiro: Azougue, 2010, p. 68.
[2] Entrevista concedida ao jornalista José Castello e publicada no site Jornal de Poesia, em 30/05/2005.
[3] Encontros: Manoel de Barros, p. 135.
[4] Poema “Aprendimentos” , Memórias inventadas – as infâncias de Manoel de Barros. São Paulo: Editora Planeta, 2010, p. 109.
[5] Manoel de Barros, Memórias inventadas: as infâncias de Manoel de Barros, p. 113.                                   

mendive-espinosa

Um corpo bebe outro corpo
Um corpo come outro corpo
Um corpo sorve outro corpo          
Um corpo pare outro corpo
Um corpo fere outro corpo
Um corpo ama outro corpo
Um corpo odeia outro corpo
Um corpo se une a outro corpo
Um corpo se afasta de outro corpo
Um corpo entra em outro corpo
Um corpo sai de outro corpo
Um corpo afeta outro corpo
Um corpo é afetado por outro corpo.

E todos os corpos são um só Corpo,
expresso diferentemente em cada corpo.
Porém este Corpo Único não é O Corpo
pairando acima dos corpos.
Se assim  fosse não seria corpo 
este Corpo Um do múltiplo,
seria ideia  incorpórea do corpo:
pura abstração,corpo morto. 

Não existe  o Corpo Infinitamente Uno
a não ser expresso nos uns singularmente únicos;
não existe a multiplicidade de corpos únicos
a não ser como expressões singulares do Corpo Uno.


o corpo verde da planta
o corpo pardo do bicho
o corpo amarelo do sol
o corpo branco da água
o corpo negro da terra
meu corpo e o teu
são cores únicas da Una Cor
expressa diferentemente em cada uma.





O mito da criação, Mendive

domingo, 24 de dezembro de 2017

intermezzo

Entre um segundo e outro do dia,
unindo-os para a cotidiana travessia,
é aí que se vive o verdadeiro ano novo.

Em nossas mãos, enquanto avançamos,
ao invés de champanhe ou fogos,
a água, o pão e o sonho.  


                 


sábado, 23 de dezembro de 2017

pascalino

quando a mente  quer abarcar o infinito,
olha para cima, para baixo e para os lados,
e só vê abismos... 
             
então, arranco seus olhos vazios dos meus,
e tateando recolho-me ao corpo do coração,
que me recebe e aceita como sou de fato,
sem "razões" ou "por quês",
como ao ovo recebe o ninho com cuidado.






quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

artigo sobre Espinosa/Revista Trágica



http://www.tragica.org/lastedition/




(trecho do artigo)


1.Introdução: os afetos e a imaginação          
Quem não tem instrumentos de pensar,
inventa.
Manoel de Barros

Segundo Spinoza, são três os afetos originários: o desejo, a alegria e a tristeza.[1] Esses afetos estão na origem, todos os outros afetos derivam deles. Eles estão na origem não porque remetam ao passado, ao que passou, e sim em razão de que eles são a origem do que somos agora, enquanto duramos, com nossa mente envolvendo um corpo. Eles não se originam de nós, somos nós que nos originamos deles. Originar-se, aqui, não significa um ir para fora e separar-se, significa um estar envolvido, ao mesmo tempo que um envolver, pois não podemos existir a não ser envolvidos pelo viver. Desses três afetos se originam outros dois: o ódio e o amor.
Desejo, alegria e tristeza não são estados da alma, são o existir mesmo. A alegria é uma passagem [transitio] a uma perfeição maior, a tristeza é uma passagem a uma perfeição menor.[2] A perfeição é o existir mesmo, ela é o desejo. A perfeição não é um modelo a alcançar, da perfeição não há modelos. A perfeição não é algo externo a se desejar, senão a própria origem do desejo. O desejo é a existência mesma, existência esta que uma essência ou ideia envolve. Por aqui se vê que é impossível escrever sobre Spinoza sem que logo surja este verbo: o envolver.
A tristeza nunca vem do desejo mesmo, ela pode vir, e vem, de algo externo que envolve o desejo. Mas esse algo externo não deve ser visto apenas como a coisa que existe lá, no mundo objetivo. A tristeza é um afeto que acompanha o desejo, mesmo estando ausente o ser que a causou. A tristeza não se mantém pela presença do objeto, ela se mantém na diminuição do desejo, ela é a passagem a essa diminuição, e não o próprio estado. É por isso que é difícil apreender essa tristeza de que fala Spinoza, pois ela não é apenas um estado da alma, não é somente psicológica. Ela é uma passagem a uma perfeição menor. A perfeição só é sentida como menor quando conseguimos compreender a perfeição, a sua ideia adequada, para assim conhecer as variações dela mesma: para se saber se um grau de azul é mais intenso do que outro, ou menos intenso, é preciso, antes, formar uma ideia adequada do azul. Um grau de azul pode ser qualificado como mais ou menos azul em comparação com outros graus da mesma cor, mas primeiro é preciso existir o azul, que é plenamente ele mesmo sem precisar ser comparado com outra cor.
 Mesmo na tristeza há uma perfeição, uma existência, e é a partir da compreensão desta que a tristeza pode ser vencida. Aquele que está em uma perfeição menor, porém carece   da capacidade de fazer uma ideia adequada da perfeição, isto é, da existência e do desejo, pode imaginar que está em uma existência perfeita, desde que o circundem coisas, posses, propriedades, bens.[3] Ou seja, a perfeição será avaliada de acordo com coisas externas.
A alegria é a passagem a uma perfeição maior. Ela é a passagem a essa perfeição, e não a própria perfeição. A alegria e a tristeza são afetos nascidos no encontro do desejo com as coisas externas. Elas são, por isso, paixões: paixões alegres ou tristes. O amor, nesse nível, é a imaginação de que nossa alegria tem por causa algo externo. O ódio, ao contrário, é a imaginação de que nossa tristeza tem por causa algo externo. Quando sentimos alegria, esse afeto vem acompanhado, envolvido, pela ideia da existência do ser que nos causou tal afeto. O amor é a imaginação-desejo de que devemos nos unir a ele. A tristeza, por sua vez, é envolvida pela ideia-imagem do ser externo que imaginamos ser sua causa. Tanto a alegria quanto a tristeza, embora imaginações, podem levar-nos a ações, e não apenas imaginá-las. De tal modo que me esforçarei para fazer o bem a quem amo, e mal a quem sinto ódio. Esse agir não é bem um agir, ele é um reagir, pois minha ação será explicada por aquilo que imagino, e não pelo que compreendo. 



[1] Para o que se segue: Ética, Terceira Parte, “Definição dos afetos”. Empregaremos aqui a edição bilíngue, trad. Tomaz Tadeu, Editora Autêntica, 2013 (3ª edição).
[2] “Digo passagem porque a alegria não é a própria perfeição” (Spinoza, Ética, “Definição dos afetos”, nº 3: A tristeza, explicação). No original latino, o termo “transitio” não está em itálico, apenas na tradução.
[3] No Tratado da correção do intelecto, por exemplo, são a essas coisas que Spinoza identifica como motores da opinião e da mera imaginação. 

segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

ter o que dizer...

Segundo o filósofo Kierkegaard, toda autêntica fala é sempre uma "comunicação indireta", na medida em que ela não deve ser apenas nosso ego a falar, pois  em nossa fala, se ela tem de fato algo a dizer,  deve estar a fala de outrem , a qual ouvimos ou lemos, com a qual aprendemos. Toda fala que possibilita outras falas suscita variações na apreensão singular de seu sentido. Por isso, tais falas nunca pedem ou vigiam para serem reproduzidas como se fossem textos imaculados. Mas não é essa outra fala   que deve falar na nossa fala, apagando-a; devemos ser nós mesmos a falar nossa fala, agenciados com a fala de outrem, da qual a nossa será uma expressão, uma variação, e não uma simples xérox. Somente assim, em comunicação indireta, temos realmente o que dizer, e não mera opinião. E aquele para o qual falamos ou escrevemos, leitor ou aluno,  pode também ir àquele a partir  do qual falamos, para assim ele mesmo construir sua fala, mesmo que divirja da nossa. Toda fala que diz algo autêntico nasceu de um ouvir ativo que aprendeu a ouvir a fala do outro, mesmo que não entenda tudo,seja esse outro um livro, um filme, um poema, uma criança, um louco, o cosmos... ou mesmo o silêncio.



domingo, 17 de dezembro de 2017

o nascimento do poema

Segundo a mitologia, assim nasceu a poesia: certa divindade que seguia um cortejo de Dioniso enamorou-se de uma ninfa, porém esta fugiu. O apaixonado a perseguiu, mas a ninfa escondeu-se num lago, metamorfoseando-se em cinco caniços de bambu, para assim não ser achada. Desistindo de procurá-la, aquele que a desejava sentiu que precisava pôr para fora  o que sentia. Então, ele pegou os cinco caniços e os amarrou unidos, sem saber que eles eram a metamorfose dela. Ele começou a soprar no interior dos caniços, e estranhamente sentiu que naquele sopro reencontrou o que parecia perdido . Assim nasceu a flauta. Pondo no sopro o afeto, falou cantando o que queria dizer à ninfa, e assim nasceu o primeiro poema. “Sopro” em grego é “pneuma”; em latim, “spiritus”, “espírito”. Poesia é o espírito cantando, não importa se canta a dor ou a alegria, o trágico ou o lírico.




sábado, 16 de dezembro de 2017

voar fora da asa

poesia é voar fora da asa.
Manoel de Barros

chegamos perto da metafísica. E voltamos.
Manoel de Barros


Quando vemos  os pássaros voando, sobretudo aqueles de grandes asas que planam  bem acima do chão, parece que  é fácil fazer o que fazem. Eles planam calmos, estoicamente sobre os acontecimentos. Parecem imóveis, não batem mais as asas, porém voam em espirais concentradas, pois aprenderam a se compor com o vento.
Desde pequenos, foi caindo do ninho que aprenderam o salto. Foi tombando que depois subiram. Mas o voar não nasce do tombo, pois o tombo nada mais é do que o efeito de um se alçar que ainda não é senhor de si, que descrê de si mesmo, que ainda não aprendeu-se, inventando-se livre, não obstante os riscos.
Não é fácil conquistar um meio, para assim mover-se nele, ampliando o poder de agir próprio. Sobretudo quando esse meio parece invisível, sendo  realidade que pés e mãos não tocam, apenas o pensar e o sentir o sabem deles próximo.

Assim é também o pensamento: é com o tombo empírico que aprendem a voar/pensar os metafísicos. Estes não têm a pressa ou o desespero dos que migram pragmaticamente , tampouco  voam em formação uniformemente objetiva  como os que buscam outras terras para serem os donos. 
Os que voam conquistando um meio infinito   se desterritoralizam  do chão conhecido e se reterritorializam no voo que inventam , e no qual perseveram.  Eles voam sobre o território físico conquistando o meio intangível sempre aberto. Por vezes, atravessam as nuvens e bebem o rascunho da chuva antes de ela ser fluxo, que amanhã , apenas amanhã, descerá à  terra, tornando-se mar e rio. 


para o meu tatatatatataravô


Entre os tupinambás que aqui viviam ,  quando um guerreiro morria  era necessário um último ritual. Os tupinambás foram povos guerreiros que nunca aceitaram ser escravizados.  Eles só aceitavam como chefe aquele que maior capacidade tinha em se desapegar do poder. Os tupinambás não faziam guerra para ampliar posses ou fazer escravos. Eles guerreavam quando sentiam sua liberdade em risco, e preferiam a morte a viverem sem honra.
 Para eles, a  morte era a última prova, especialmente para os chefes e guerreiros, isto é, para aqueles que eram tidos como valentes, corajosos, generosos, leais.
Então, quando o guerreiro morria, pintavam seu corpo com as tintas extraídas do jenipapo. Colocavam junto ao corpo suas armas , bem como a flauta feita do fêmur oco do inimigo vencido  .Quanto mais valente o guerreiro, mais flautas possuía e tocava para advertir os inimigos: quando os colonizadores ouviam o réquiem da taba se aproximando , saiam correndo...
Ao fim  da tarde , punham o corpo do guerreiro numa canoa  e a empurravam em direção ao horizonte. Os tupinambás não acreditavam na separação entre mar e céu. O azul de ambos confirmava suas crenças: lá no horizonte se encontrava uma fronteira . Guardando esse limiar estava o Grande Ancestral. Se o guerreiro na canoa fora  um dissimulado, um traidor  que a todos iludiu com esperta lábia, disso saberia o Guardião, que barraria o dissimulado na travessia ao mar do céu. Mas se o guerreiro de fato fora honrado , e não um farsante, o Guardião o deixava atravessar  para no céu ser eterna estrela.

No dia seguinte ao ritual, os tupinambás corriam à praia para ver se as ondas cuspiram uma estrela do mar. Se  achassem uma, choravam envergonhados por terem sido enganados por tal imitação de homem virtuoso. Mas se não achassem essa estrela sem luz, na noite daquele dia faziam uma alegre festa, pois mais um guerreiro valoroso estava brilhando  como estrela viva a protegê-los dos maus.



quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

a arqueira

Inventar aumenta o mundo.
Manoel de Barros

A vida só é possível reinventada.
Cecília Meireles


Nietzsche dizia que a Vida envia a filosofia  aos homens à maneira de uma arqueira, como a deusa Atena: a sabedoria não livresca, poético-filosófica,  é a  flecha que a Vida lança. A Vida/arqueira não lança a flecha para o alto, para a altura dos céus. Ela lança a flecha horizontalmente , ela mira  o horizonte aberto, que é seu amor, sua paixão. A Vida não visa  um alvo específico, mas confia que a filosofia vai atingir o coração de alguém, que se tornará então  poeta-filósofo , isto é, um novo arqueiro, que lançará flechas também. Na ponta da flecha não há mensagens ou ordens, tampouco cartilhas a decorar. Na ponta da flecha há apenas uma semente, cuja razão de ser é frutificar o mais longe de onde foi lançada, tornando-se outra, diferente, plural : fazendo-se rizoma .



o nascimento da virtude

Assim diz o mito: quando Ulisses retornou à sua casa, viu que muitos queriam ocupá-la , já o tomando por morto. Eram os “pretendentes” ao poder, que queriam inclusive tomar-lhe a esposa Penélope. Ulisses se acercou deles disfarçado de velhinho, fingindo ser um pretendente também. Penélope propôs então uma prova: “terá minha mão e a chefia da pólis aquele que dobrar o arco de Ulisses”. Os pretendentes se atropelaram,  todos queriam ser o primeiro, julgando que seria fácil aquela prova. O arco passou pela mão de cada um , mas sem se dobrar um milímetro. Até que chegou a vez do velhinho...Todos zombaram , julgando pela aparência que viam, pois  pretensiosos só veem  aparências, e  ignoram o autêntico esforço. O velhinho-Ulisses, porém, dobrou o arco, e não foi com meros músculos.
Quando a corda do arco fica tensa, ela se torna capaz de "vibrar" e lançar a flecha longe. Essa força potencial que nasce da corda tensionada era chamada de “vis”, de onde nasceu “virtude”, como força ou “intensio” ( "ir para dentro da vibração”) que dota a alma da capacidade de pôr-se à prova, às claras, para assim lançar longe, pelo exemplo,  as ações ou palavras que nascem dela, como flechas.

Segundo Plotino, há duas possibilidades para o homem: ser Narciso ou ser Ulisses. Narciso é o egoísta a querer que o outro seja uma cópia ou réplica dele mesmo. Quando dois Narcisos se encontram, portanto, é ódio recíproco, pois um quer anular a diferença do outro. Já Ulisses é o retorno da alma a si mesma por intermédio da ação ético-política  que dobra as impossibilidades pela força de querer mais do que o possível. É do caráter, e não dos músculos , que vem a potência que vence as provas ético-políticas e distingue o autêntico do mero usurpador dissimulado.


sábado, 9 de dezembro de 2017

gravitacionais e eletromagnéticos

Há duas forças fundamentais na natureza: a força da gravidade  e a força eletromagnética. Elas atuam em realidades diferentes, e diferem também quanto aos efeitos que produzem.
A força da gravidade atrai os corpos de grande , média ou pequena massa. Sob tal força, os corpos são compelidos a ficarem juntos, mas sem formar uma unidade consistente. É tal força também que suscita os choques.O mundo visível e sua ordem objetiva é um efeito de tal força. Ela governa as galáxias, as estrelas, os sóis, os planetas, as plantas, os animais, o ar, a água,a pedra, os ventos e as marés ...governa também tuas pernas ao andar, tua mão ao escrever, teu sangue a correr , teu pulmão a respirar. Essa força preside toda forma de movimento extensivo. Em tudo o que se move ela imprime seu decreto: de mim ninguém escapa, de mim ninguém é livre.
Já a força eletromagnética age em uma esfera de realidade sutil, imperceptível aos olhos costumeiros . Tudo o que ela une forma uma realidade que persevera, durando, vibrando. Toda força eletromagnética é o equilíbrio entre  uma força centrípeta, que mantém singularidades coabitando em um núcleo, e uma força centrífuga, que a tudo quer liberar e nomadizar.  É desse equilíbrio que nasce a consistência de uma forma de organização que não é instável ou estável, mas metaestável.
As forças gravitacionais criam contiguidades, as forças eletromagnéticas engendram vibrações, irradiações, que se parecem mais com um pulsar do que com o ir e vir das coisas no espaço.
Os corpos que atraem o interesse são forças gravitacionais, porém é eletromagneticamente que as ideias puxam para si a mente que as pensa, fazendo-a vibrar. Pois é isto o pensar: uma vibração eletromagnética, ora centrípeta, como na construção de ideias e sua composição, ora centrífuga, como fluxo heraclítico, dionisíaco. Dobra e fluxo.
Uma força gravitacional somente pode ser vencida por  outra força gravitacional de amplitude maior, ao passo que as eletromagnéticas são forças de atração e repulsão, de criação e de crítica, de sim e de não, de construção e destruição:  elas atraem o que fortalece e auxilia certa composição, porém elas também  repelem o que é destrutivo para a vida de certa composição. Vibrações se sentem.
As forças gravitacionais agem nos nossos órgãos, incluindo o cérebro. Contudo, é no pensamento e no afeto  que as forças eletromagnéticas atuam, ensejando um corpo vibratório, intenso, como potência magnética inexplicável pela lógica extensa dos órgãos.

As forças eletromagnéticas não agem apenas no plano microfísico. Seus efeitos no plano visível podem ser vistos onde existam  invenções, criações, paixões; bem como rupturas, revoluções, enfim,  voos que ousam desafiar toda forma de peso e gravidade. 


sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

o alfabeto de espinosa 3

Minhas palavras não se ajuntam por sintaxe, mas por afeto.
Manoel de Barros

Uma letra diz mais sozinha ou na companhia de outra, formando uma sílaba? Uma letra diz mais sozinha ou em uma sílaba que faz parte de uma  palavra? Uma letra diz mais sozinha ou em uma sílaba que faz parte de uma palavra que fala uma mentira? Uma letra diz mais sozinha ou em uma sílaba que faz parte de uma palavra que profere uma verdade? Uma letra diz mais  sozinha  ou em uma sílaba que faz parte de uma palavra que alguém grita? Uma letra diz mais sozinha ou em uma sílaba que faz parte de uma palavra que alguém cala? Uma letra diz  mais  sozinha ou em uma sílaba que faz parte de uma palavra que alguém xinga? Uma letra diz mais sozinha ou em uma sílaba que faz parte de uma palavra que alguém canta?
Vista da perspectiva do ego, parece que é a letra que vem primeiro, parece que o ser isolado tem primazia. Porém louca seria a letra que  julgasse  dizer mais sozinha do que fazendo parte de uma   sílaba, como parte de uma  palavra, dentro de uma frase , compondo um livro. Pois é na imanência do livro, como parte de seu sentido, que uma letra de fato pode ampliar o seu sentido  expressando a si mesma naquilo que expressa o livro, desde que o livro não seja apenas frases, palavras, meras letras no papel, mas expressão de um  dizer singular , vivo. 


ética...

Espinosa desejava  que sua Ética não tivesse o seu nome como autor. Não que ele quisesse se esconder ou ficar neutro. Quem lê Espinosa sabe que ele nada tem de neutro, porém ele não é  parcial ou sectário . Parecia ser esse o seu desejo: não seria ele que assinaria seu nome no pensamento,  seria o pensamento que  teria para si uma assinatura, simplesmente “Ética”. Haveria um nome melhor para o pensamento? Quem chama o pensamento de “Ética” certamente o conhece melhor do que aqueles que o chamam de Lógica, ou Teoria, ou Epistemologia, ou Política.
É como Ética que o pensamento também é Lógica, Ciência e Política.E a Política , a Ciência e a Lógica nada são se suas práticas, suas teorias e seus raciocínios forem apenas raciocínios, teorias e práticas, e não modos de ser  da Ética.



as carruagens



(trecho do livro)

No Fedro, Platão se valera da   ideia da carruagem   como modelo para a  compreensão da alma humana. A carruagem de Platão compõe-se de três elementos: o cocheiro e dois cavalos. Na carruagem de nossa alma, diz Platão, o cocheiro é a Razão: é esta que tem as rédeas e guia a carruagem para um rumo determinado, ao passo que aos cavalos cabe a obediência à disciplina imposta pela razão-cocheiro. Um dos cavalos, de cor branca, é dócil e receptivo aos comandos da razão: trata-se da Vontade. Mas o outro cavalo, de cor preta, é indisciplinado, convulsivo, rebelde. Quanto mais a razão quer comandá-lo, mais rígida ela precisa ser. Por mais que tente forçá-lo a seguir em linha reta, é sinuosamente, barrocamente, que o cavalo preto insiste em ir. Este cavalo preto é o Desejo. 
Segundo Platão, na carruagem de nossa alma a razão e o desejo, o cocheiro e o cavalo preto, estão sempre em conflito. Este nasce pela impossibilidade que a razão encontra de pôr o desejo na direção dos valores morais que ela visa atingir. A disciplina moral é a rédea da razão, às vezes também seu chicote,  mas  o desejo não se dobra, resiste, e segue atraído pelas  aparências  do mundo sensível  .  Seguir  o desejo é perder-se, desorientar-se, maldizia  Platão.  Mas a alma  não pode prescindir desse rebelde cavalo preto, uma vez que é dele que provém a maior parte da energia que a  faz mover-se. 

Curiosamente, uma outra imagem da carruagem inspirou Nietzsche. Trata-se da Carruagem de Dioniso, o Deus das Artes. Segundo o mito que cerca este Deus, Dioniso se locomovia em uma carruagem, sendo ele próprio o cocheiro. Mas, ao invés de cavalos, sua carruagem era puxada por panteras. Eram temíveis  feras transportando o deus e mostrando o grande poder de Dioniso para guiar a natureza. A arte não nega ou reprime a natureza  ( como o faz o cocheiro de Platão), mas a põe a seu serviço conforme uma disciplina que não é estrangeira à potência das panteras. Na natureza, as panteras são solitárias e jamais se unem. Porém, sob as mãos da arte, as panteras se tornam forças que se conjugam, que se agenciam, e conduzem a alma por sendas onde a razão não ousa ir.  Dioniso transforma a agressividade destrutiva e mortífera das pulsões-panteras em potência criativa afirmadora da vida. Dioniso é o próprio desejo que se tornou guia, cocheiro, domador: somente se pode segui-lo com a condição de transformar-se, conjugando  disciplina e inventividade na condução da carruagem . Esta segue para onde não se sabe, pois seu destino é o próprio percurso enquanto este se faz. 

quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

o alfabeto de espinosa 2



                                                                                                                                                               

As vogais são a alma das letras
e as letras sem  vogais são corpos sem alma.
Espinosa ,Compêndio de gramática da língua hebraica

Tenha o que dizer,
e cada palavra irá ao lugar certo.
Lewis Carroll
.

  Uma letra isolada é um ser que pouco ou nada diz: se a repetirmos, ela apenas  reproduz a si mesma, sozinha, como um átomo, um ego. Mas quando uma letra encontra outra, havendo composição,desse encontro nasce um novo ser: a sílaba
A sílaba é a primeira criação de algo  comum : ela é o inauguramento do comum.A sílaba diz mais do que pode dizer cada letra isolada que lhe está integrada. 
Mesmo as sílabas também podem se juntar : dessa composição nasce um ser que não se reduz às sílabas ou às letras das quais a sílaba é feita. Esse novo ser é a palavra. Dentro da palavra as sílabas crescem, ao mesmo tempo em que crescem, dentro das sílabas,   as letras. As palavras aumentam as letras e as sílabas : não em tamanho, como o faz uma lente, mas em potência de existir, como parte de um comum de maior amplitude. 
Essa potência não pode ser medida com régua, pois seu tamanho equivale ao sentido que a palavra se torna apta a produzir.Dentro da palavra a letra existe mais do que sozinha, isto porque ela passa a existir agenciada, em composição. 
Mais do que a mera lógica ou a gramática, é o afeto que já se faz presente aí, unindo uma letra à outra :"minhas palavras se unem mais por afeto do que por sintaxe"(Manoel de Barros). É o afeto, e não a posse, o motor autêntico de todo  comum. O autêntico comum   não é o pensar igual ou o fazer igual, mas aumento de amplitude conquistada em agenciamento.Amplitude conquistada é aumento do poder de pensar e de agir , como potencialização do existir.
Na sílaba, cada letra singular não perde sua diferença. Ao contrário, esta é aumentada no encontro com outras diferenças que com ela se compõem. As palavras também podem se juntar, se compor. Essa composição é a produção de um novo ser que, por sua vez, as produz também, uma vez que as potencializa. Esse novo ser é a  frase. Nesta estão as letras ainda mais potencializadas, assim como as sílabas e as palavras.Das frases nascem ainda os textos, e destes os livros, enfim. O livro é o comum de maior amplitude que integra, sem negá-las, as amplitudes menores enquanto  graus seus ou expressões imanentes
Os livros nascem não por causa da letra,das sílabas , das frases ou dos textos. Os livros nascem da necessidade do espírito em se expressar. É pelo pensar que o espírito se expressa: o pensar  é sua maneira de agir
Visto da perspectiva do finito, parece que é a letra que vem primeiro, parece que o ser isolado tem primazia. No entanto,louca seria a letra que julgasse ser livre existindo à parte de toda sílaba, palavra, frase, livro. Pois é na imanência do livro, como parte de seu sentido, que uma letra de fato pode ser livre, expressando a si mesma naquilo que expressa o livro. 
Dessa maneira,vendo as coisas da perspectiva do eterno, da liberdade , sub specie aeternitatis , é o pensar que vem primeiro, pois ele é a produção de sentido que integra letras, sílabas, palavras, frases, textos, livros. É o infinito que se expressa em cada finito,  integrando-os em uma realidade superior na qual eles aumentam de potência, tal como a letra aumenta de potência na sílaba, a sílaba na palavra,a palavra na frase, a frase no texto, o texto no livro, e o livro no pensar, enquanto potência viva de produção de Sentido.
 Em Espinosa, a Natureza, ou Deus, é o Pensar Vivo,infinito, do qual cada pensar finito é uma letra. O infinito é o Incomum .
Não é a letra que faz nascer o livro, nem o livro faz nascer o pensar. É o pensar que já está presente na imanência da letra, como desejo ímpar, afirmativo. Assim, o finito passa a existir mais potente, integrado no Sentido que a tudo produz e em tudo se expressa, diferencialmente.



terça-feira, 5 de dezembro de 2017

voar fora da asa

O Poeta é semelhante a essa águia marinha 
que desdenha da seta, e afronta os vendavais; 
Exilado na terra, entre a plebe escarninha, 
não o deixam andar as asas colossais!
Baudelaire

Poesia é voar fora da asa.
Manoel de Barros

Sonhar é acordar-se para dentro.
Mário Quintana


O pássaro possuidor de maiores asas é o albatroz. A envergadura das asas do albatroz pode alcançar três metros, sendo inúmeras vezes maior do que o restante do corpo do pássaro.
O albatroz necessita de asas gigantes porque ele é o único ser que aceita o desafio do oceano. “Venha cobrir-me se tiver coragem!”, assim desafia o oceano  a todo vivente. O oceano é o horizonte em todas as direções. As asas do albatroz  são proporcionais ao tamanho do seu risco: horas voando, mesmo dias, sem poder pousar. Os pássaros de asas menores não ousam se aventurar muito distante da costa, seu território conhecido. A  costa é objeto de  tratados, mapas, cartilhas, ciência e opinião.  Quando muito longe vão, os pássaros de asas menores assim o fazem indo de ilha em ilha, de conhecido a conhecido. Mas não o albatroz: em seu voo metafísico, parte sem contar com ilha, porto ou qualquer outro lugar de parada. Ele vai aonde não alcança a vista. Ele conta apenas com suas asas, assim como Van Gogh contava apenas com suas tintas.
O albatroz pode ficar dias voando, mais de uma semana. Ele consegue assim voar porque a vida lhe  inventou uma estratégia: enquanto voa, metade de seu cérebro parece  adormecer, metade fica desperta. Depois, a parte acordada fecha os olhos e vai sonhar, enquanto que a parte que sonhava , agora renovada, desperta para ver. E nesta nova visão  renovada o mundo também se renova. O que pode nascer quando o sonho e a realidade, ao invés de se negarem, se somam, se agenciam? No albatroz-poeta, a parte desperta olha a realidade adiante, a realidade objetiva, ao passo  que a parte que sonha vê  outra realidade não  menos viva.E talvez seja essa parte lúdica a que de fato conduz todos os que "voam fora da asa": "acordando para dentro", ousam transver o que lhes está fora, para que as  asas físicas se metamorfoseiem em  asas de um Daimon ,  o ser das necessárias travessias.
Sem o desafio do oceano, suas asas não teriam crescido. Mas não é por já ter grandes asas que o albatroz criou coragem e enfrentou o desconhecido. Ao contrário, foi o próprio desconhecido que, no albatroz, se fez asas e ímpeto: como um artista que não imita prévios modelos, o desconhecido criou tanto o albatroz quanto o oceano, e, na sua dessemelhança, os fez um para o outro. O albatroz é o desconhecido que atrai a si mesmo, sobre si mesmo plana, e vence o peso da gravidade, por todos conhecido. O voo do albatroz é a liberdade em exercício: desterritorialização absoluta que se faz sem cartilha.
Porém, no meio do oceano, por vezes o albatroz avista um navio. Ele recolhe então as asas e pousa sobre o convés deste solo imprevisto. No convés daquele cotidiano, a marujada está entregue aos afazeres utilitários: um lava o piso, outro ajeita a vela. Fazem o que fazem sem pensar porque o fazem : reclamam a má sorte, e xingam baixinho quem lhes dá  ordens, enquanto sonham com o rum, a ilha do tesouro e pelo dia em que terão poder  e acumularão ouro. Quando o albatroz começa a andar sobre o piso, a marujada cai na gargalhada. Zomba a marujada do andar desengonçado que o pássaro executa. Isso acontece devido às asas gigantes do pássaro, que só então revelam o peso que o pássaro, sem o vento, mal consegue carregar. Em meio aos homens, anda o albatroz sem jeito, inábil para agir no mundo rasteiro.O albatroz não cabe nele mesmo: no rasteiro do chão, sua  liberdade parece, ali, inútil peso.
Mas logo o pássaro recupera sua força, pondo-se  pronto ao esforço para vencer a si mesmo: subitamente, o pássaro de novo abre as asas, descobre no invisível uma escada, e sobe por ela como um nobre em direção ao altar onde será coroado. Sereno, mas firme, no céu ele voa: para além de si ele abre a vida que não cabe nele. No convés, a marujada cala a gargalhada e, em silêncio, eleva seus olhos muito além de proa e popa, leme e mastro: graças ao pássaro, a marujada por um instante se esquece de tudo, e voa no pensamento também.

Eleva-se o albatroz tão alto, que não o alcançam pedras,flechas ou mísseis.Tampouco o atinge a opinião dos homens : as mesmas asas que no limite do chão impedem-no de andar como todo mundo anda, no céu ilimitado elas são  sua prova de nobreza, de coragem , de paixão. E quem ergue os olhos do chão avista em seu voo um corajoso exemplo.