“Hades” era, ao mesmo tempo, o nome
de uma divindade e de um lugar: o Hades.
Esse lugar ficava abaixo da superfície,
porém ainda dentro de Gaia , a Mãe-Terra, como uma espécie de útero às avessas: enquanto o útero gera vida, o
Hades serve de abrigo a quem morreu. Os homens são injustos com o deus Hades,
não reconhecendo que ele é o último a
nos dar abrigo quando ninguém mais o pode dar. O Hades não é a mesma coisa que
o “inferno”, pois para o Hades não iam apenas os maus, ia todo mundo que morria. Na Grécia antiga, quando alguém
morria a sombra se descolava do corpo e ficava sozinha. O corpo era incinerado nas cerimônias fúnebres, mas como
queimar uma sombra? Era a sombra então que era recebida no Hades,
juntando-se a milhares de sombras que ali já estavam. Isto explica em parte a
escuridão do Hades: mais do que física, sua escuridão era por ali só haver
sombras. Quando estamos vivos, às vezes nos esquecemos de alguma coisa.
Vem então nossa memória e nos ajuda a recordar. “Recordar” é : “re-cordis”,
“trazer de novo ao coração" ( cordis , em latim). Mas quando a pessoa morria e se tornava sombra,
acontecia um esquecimento mais profundo: ela se esquecia de si própria. Pois é
isto a morte para os gregos: Esquecimento Absoluto. Não o esquecimento dos
outros em relação a nós, mas esquecimento de nós mesmos em relação a nós
mesmos, não nos lembrando mais o que é a vida. Morrer, para os gregos, é
esquecer de si. Certa vez ,o poeta Orfeu
foi ao Hades, porém sem ter falecido. Ele foi em busca de sua Eurídice que
havia morrido . “Eurídice” também é um dos nomes da alma, assim como “Pneuma” e
“Psiquê”. Simbolicamente, isso significa que a alma do poeta, tomada de grande
dor e tristeza, havia
"morrido", parando de cantar. Parar de cantar é, para o poeta,
morrer. Mas somente ele poderia resgatar sua Alma-Eurídice, pois somente ele
tinha a arte de fazer viver de novo
almas. Chegando ao Hades, isto é, à região escura que também estava no
interior dele mesmo, Orfeu reúne forças
e começa a cantar. As canções de Orfeu eram simples, porém
ricamente elaboradas, cheias de vida. Eram canções
talvez semelhantes às que Cartola cantava...Ao ouvirem Orfeu, as sombras foram novamente se lembrando de
si mesmas: tornaram-se novamente almas,
focos de luz, cujo corpo era a arte
trazendo-as à vida. Por um instante, fez-se no Hades um dia claro.
“Descanse tranquilo onde cantam, os
maus não cantam.” (Schiller)
“A literatura é o esforço para interpretar
engenhosamente os mitos que não mais se compreende, por não sabermos mais
sonhá-los ou produzi-los." (Deleuze)
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