domingo, 28 de julho de 2019

para o meu tatataravô tupinambá

Entre os tupinambás que aqui viviam , quando um guerreiro morria era necessário um último ritual. Os tupinambás foram povos guerreiros que nunca aceitaram ser escravizados. Eles só consentiam como chefe aquele que maior capacidade tinha em se desapegar do poder. Os tupinambás não faziam guerra para ampliar posses ou fazer escravos. Eles guerreavam quando sentiam sua liberdade em risco, pois não aceitavam viver sem honra. Para eles, a morte era a última prova, especialmente para os chefes e guerreiros  tidos como corajosos, generosos, leais. Então, quando um guerreiro morria, pintavam seu corpo com as tintas extraídas do jenipapo. Colocavam junto ao corpo seu arco e flecha, bem como a flauta feita do fêmur oco do inimigo vencido (quanto mais valoroso o guerreiro, mais flautas possuía e tocava para advertir os invasores: só de ouvirem tal som de longe, as pernas dos colonizadores tremiam e   saiam correndo com medo de ficarem sem seus fêmures...).
Ao fim da tarde , após os rituais fúnebres, punham o corpo do guerreiro numa canoa e a empurravam em direção ao horizonte. Os tupinambás não acreditavam na separação entre mar e céu. O azul comum de ambos confirmava suas crenças: o horizonte para eles  era só um limiar, uma passagem. Guardando essa passagem ficava o Grande Ancestral. Se o guerreiro na canoa fora um dissimulado, um traidor que a todos iludiu com esperta lábia, disso saberia o Guardião, que barraria o dissimulado na travessia ao mar do céu. Mas se o guerreiro de fato fora honrado , e não um farsante, o Guardião o deixava atravessar para no céu ser eterna estrela. Na manhã seguinte ao ritual, ao raiar do dia, os tupinambás corriam à praia para ver se as ondas cuspiram uma estrela do mar. Se achassem uma, choravam envergonhados por terem sido enganados por tal imitação de homem virtuoso. Mas se não achassem tal estrela sem luz, na noite daquele dia faziam uma alegre festa, pois mais um guerreiro valoroso estava brilhando como estrela viva a protegê-los dos maus.
O bozo disse que os índios querem “viver como nós”. “Nós”  quem, cara-pálida?



sábado, 20 de julho de 2019

aion


"A eternidade está longe:
brinca de tempo-será" (Manoel Bandeira )


Aconteceu lá no começo das eras :  talvez tenha sido uma criança que, brincando,  pegou uma  semente  que recolheu da floresta  e a plantou em um pedaço de  terra próximo de onde  morava. Antes, a planta crescia livre , sem cercas . Agora ela era cultivada  por alguém que a desterritorializou  de um espaço livre e a reterritorializou em uma terra cercada . Foi assim que  nasceu a agricultura: com a domesticação do que antes crescia e vivia selvagem. “Domesticar”  significa : “colocar sob o poder de um domicílio” enquanto espaço privado. Mas não era apenas a planta  que era assim domesticada,  pois junto com ela  também era domesticada outra realidade . O homem de então percebeu que a planta nasce, cresce , dá  frutos e  morre. Ele  compreendeu que a planta existe dentro de um período com fases e ciclos. O homem deu um nome para essa realidade feita de ciclos: ele a chamou de “tempo”.  Depois, o homem  abstraiu o tempo do cultivo empírico das plantas, ficando  apenas com a ideia de ciclo , estendendo-a  ao cosmos e  a si mesmo. E assim se viu  criança,  adulto e idoso. Ele percebeu que sua vida tinha ciclos, como a vida da planta. Compreendeu que ele era nascimento, vida e morte. A domesticação do tempo constituiu também a descoberta do domicílio onde mora o homem: enquanto os deuses moram na eternidade, o homem tem por morada o tempo. Assim como a planta domesticada passou a viver dentro de cercas, o relógio se tornou  a cerca que limita o tempo domesticado.
Mas a domesticação da planta não fez morrer as florestas nas quais as plantas vivem livres, do mesmo modo que a domesticação do tempo não eliminou o seu existir selvagem enquanto duração para além do  relógio. Esse tempo selvagem e livre é o que alguns filósofos chamam  de “devir”. O devir  está para o relógio assim como a floresta está para a agricultura, ou  como a poesia está para a linguagem: como realidade selvagem, livre,  que nenhuma cerca simbólica domestica. Os relógios nos fazem sedentários angustiados, porém  a duração-devir somente pode ser experimentada se nos fizermos nômades. Enquanto os sedentários vivem olhando para o relógio, os nômades vivem a olhar para as estrelas, e por elas se orientam. No mito, o tempo do relógio é chamado de  Cronos, a divindade que a todos devora, ao passo que a  duração poética atende por  Aion , que era simbolizado por uma criança  que brinca.



terça-feira, 16 de julho de 2019

o fundo obscuro


“Moral” não é a mesma coisa que “Ética”. “Moral” vem do latim “mores”, “costume”. “Ética” procede do grego “ethos”, que tinha um duplo sentido, e é aqui que reside a confusão..."Ethos” significava tanto “virtude” ( ou “caráter” ) quanto “costume”. A diferença entre um sentido e outro era dada pela forma de se pronunciar o “e” de “ethos”: se aberto , significava  “caráter” e “virtude” ; se  fechado,  “costume” ( a diferença era assinalada por um determinado sinal sobre a letra) .“Virtude” vem de “vis”: “força”. Não a força física, mas a força potencial. Essa palavra aparece no poeta  Homero ao falar da força que nasce da corda tensa do arco:  é graças a essa tensão, ou potência, que o arco pode lançar as flechas longe. “In-tenso”: “ir para dentro da tensão”. É essa mesma tensão vital  que faz as fibras do coração  impulsionarem  o sangue que dá vida . Uma alma ética   não é uma alma passiva ou cordata. Uma alma de caráter possui intensidade para lançar suas palavras e ações longe, servindo de exemplo para vencermos as baixezas que nos ameaçam de perto. Chegam até  nós, vivas e como flechas, as palavras de Espinosa  , as ideias de Deleuze, a poesia de Manoel,  lançadas que foram de um pensar e viver  intensamente libertários .
Na Idade Média , traduziu-se  “ethos” apenas por “costume”, nascendo assim a “moral”. Enquanto a virtude-potência é a força da alma/corpo  intensos, o costume é um valor sedentário a serviço de um grupo. E é por isso que a moral  é sempre “conservadora” ,  e sob a máscara do “moralismo”   muitas vezes se escondem indivíduos sem  um pingo de caráter, como  lobo escondido sob pele de cordeiro para se aproveitar dos rebanhos.  

(as imagens às vezes  também são  “atos falhos”: na foto de uma "palestra" do Srº Dallagnol, a palavra “ética” parece ser só uma fachada  apagada atrás da qual há um fundo obscuro)





segunda-feira, 15 de julho de 2019

manoel de barros, deleuze , guattari e as "ferramentas de pensar"





(trecho de  capítulo escrito por mim no livro acima.  Nome do capítulo: "Manoel de Barros e a desfilosofia)

Pop’filosofia: o gosto desfilosófico

O professor de português ensinava, por exemplo, que o pensamento é uma redundância que devemos evitar para bem escrever. Então eu lia no clássico Bernardes: Ele é preciso que as almas ardam. Via que se não houvesse o ele pleonástico, a frase não teria beleza. Ele é preciso que as almas ardam: que lindo! É preciso que as almas ardam afirma a mesma coisa, mas a frase não encanta. Essa era a manifestação de um gosto. É como andar de costas. Penso agora que aquele gosto teria sido a primeira manifestação do ser poético em mim. 
Manoel de Barros

Os conceitos não estão na cabeça: são coisas, povos, zonas, regiões, limiares, gradientes, calores, velocidades.
Deleuze


Muito já se escreveu acerca da filosofia e sua relação com a linguagem. Observou-se que as filosofias que enfatizam valores como estabilidade, fixidez, identidade, forma, etc., tendem a exaltar uma determinada classe de palavras: o substantivo. Aristóteles, por exemplo, acreditava em um isomorfismo entre a linguagem e a realidade: o substantivo é, na linguagem, a representação de uma substância que existiria fora da linguagem. Por outro lado, filosofias que priorizam a mudança, a fluidez, o devir, põem em destaque os verbos. Os estoicos vêm à frente nessa postura, como pensamento que ousa dizer o acontecimento[1].
Deleuze e Guattari introduzem uma nova percepção nessa relação entre o pensamento e sua expressão linguística. Além de termos que expressam mudança, eles mostram a importância de determinadas partículas menores da linguagem, que passam quase sempre imperceptíveis ao olhar meramente analítico. Tais partículas não possuem, nelas mesmas, sentido; porém mudam o sentido de um substantivo quando o acompanham. Tais partículas não expressam mudanças ou ações como as que indicam os verbos; suas mudanças ou transformações são de outra ordem. Essas partículas são os prefixos. Quando acompanham um conceito filosófico, os prefixos devêm autênticas “ferramentas de pensar”: “Quem não tem ferramenta de pensar, inventa”[2].




[1] Deleuze, Lógica do sentido.
[2] Manoel de Barros, “O fazedor de amanhecer”. Poesia completa, São Paulo: Leya, 2010, p. 473.

o batismo e a ameaça de óbito


No filme “O descobrimento do Brasil”, o cineasta Humberto Mauro tenta reconstruir o “batismo simbólico do Brasil”. Para se apropriarem da  terra recém “descoberta”, os invasores  adentram a densa floresta , machados em punho. Ignorando suas intenções  e desconhecendo o que era um machado, os índios os seguem. Quando os intrusos   invadem certa parte da floresta, os índios ficam tensos. Os invasores começam a apalpar as árvores. A tensão entre os índios aumenta. Quando os invasores  desferem a primeira machadada em uma das árvores, os índios saem correndo, como se tal golpe os tivesse atingido também. Os invasores  dão de ombros e derrubam outra árvore. Com os dois troncos, fazem uma cruz para o primeiro culto. Na praia, enquanto o culto  acontecia, os índios saem da floresta e se aproximam da cruz ,  lentamente . Chegam perto da cruz e a tocam , prostrando-se. Um dos invasores grita: “Vejam: até esses animais que parecem homens se curvaram à nossa religião!”. Mas o que os índios viam ali não era a cruz...Eles viam dois Ancestrais sequestrados de seu território sagrado e feitos prisioneiros. Aquelas árvores arrancadas eram um mesmo corpo ( ou significante) com dois sentidos  diferentes, e um dos sentidos queria exterminar o outro. No campo imaterial e simbólico  também ocorrem violências e perseguições  , quando a ideia de “Verdade” é usada como  arma “político-teológica” para  destruir  à força o sagrado  de outro povo . Pierre Clastres chamava de  “etnocídio” tal violência simbólica  ( já o genocídio é o extermínio total de um povo ). Estamos agora diante de uma nova aberração política  representada pelo governo bozo. Se o filme de Humberto Mauro mostra o funesto batismo que está no nosso passado ,  esse governo protofascista parece querer escrever  o atestado  de óbito do nosso futuro enquanto nação, ao ser genocida com os pobres e as minorias do nosso povo  e etnocida com a universidade, a cultura e  a educação.



sábado, 13 de julho de 2019

- o poema de espinosa

Em Espinosa, tudo é luz.
O aumento de potência é um esclarecimento ( es-claro: tornar mais claro);
a diminuição de potência, um assombreamento.
Deleuze

Quando se fala muito claramente,
fala-se muito infinitamente.
Maria Gabriela Llansol

       Segundo Espinosa, o infinito somente pode ser alcançado pelo intelecto. Não quando este conta, mede ou calcula. Tampouco quando ele apenas raciocina ou teoriza. O absolutamente infinito, Deus, somente pode ser alcançado pelo amor intellectus dei , pelo amor do intelecto a Deus ( em Espinosa, a palavra "Deus" tem um sentido diferente daquele veiculado pelas religiões) . O intelecto apenas consegue alcançar o infinito quando ele aprende a exercer um tipo muito singular, e raro, de amor. O intelecto também pode amar. Se ele não chega a esse amor não será um intelecto completo, dele não nascerá um conhecimento como expressão de sua máxima potência.Esse amor de que fala Espinosa nada tem a ver com o amor romântico . Espinosa se inspira no poeta romano Lucrécio, que mostrava que "amor" deriva do termo "a" com função de negar ( como em "a-fasia" = "sem fala") mais a expressão "mor" como abreviação da palavra "morte". Assim, "amor" é "não morte". A não morte não é uma vida advinda após a morte, a não morte é a própria vida que, potencializando-se em vida, vence os vários tipos de morte.
Eis então a difícil tarefa do intelecto: somente ele é o instrumento para nos fazer compreender Deus (somente ele, e não a imaginação). No entanto, como é difícil ao intelecto amar...O intelecto crê que amar é coisa apenas do corpo e da sensibilidade. E que amar afasta-nos da objetiva verdade.
Mas se o intelecto aprender esse amor que somente ele pode, aprenderá que há  realidades mais verdadeiras do que aquelas que ele alcança apenas com a objetiva verdade. Um intelecto que a esse amor aprende, metamorfoseia-se e se torna mais do que pode compreender todo intelecto que não ama. O intelecto assim transfigurado já não será diferente de um poeta. Não um poeta apenas de versos, mas um poeta do pensamento e das ideias, como foi Espinosa.
     No Iluminismo, é a razão, e tão somente ela, a fonte de Luz, como um sol.Em Espinosa, diferentemente, a Luz é o infinito mesmo, e se assemelha mais ao clarão do relâmpago. A Luz é o próprio Amor, como relâmpago irrefreável que desfaz a treva . A razão científica é o intelecto refletindo a Luz, como um espelho.Um espelho reflete o que nele toca. Refletir é devolver o que se recebeu. A razão devolve o Amor que recebe, pois é graças à Luz que ela conhece: a Luz devolvida ilumina o mundo a conhecer.  É pelo seu poder de refletir que a razão conhece o mundo externo, desde que se faça dia .  
     Mas o intelecto  filosófico alcança o máximo do que ele pode quando não apenas reflete a Luz, e sim a absorve : faz-se nele então dia, mesmo que ao redor seja tudo noite. Ele a absorve para conhecer a si mesmo, e não apenas ao mundo externo: quanto mais translúcido, mais o intelecto se conhece absorvendo a Luz que é Amor lhe esclarecendo, clareando. O Amor assim conhecido lhe está dentro e lhe está fora: é o Todo, é Tudo. Relâmpago Absoluto, no clarão e na velocidade.Todas as coisas que a razão conhece são Luz refletida. Porém, o intelecto filosófico, como instrumento metafísico-poético, absorve a Luz para ser da Luz uma expressão potentemente viva:"figuras de luz e não mais figuras geométricas reveladas pela luz" (Deleuze). Dessa maneira, torna-se o intelecto também Amor, absorvendo-o como Afeto beatitude translúcida a si, desfazendo toda opacidade, embora não se sabendo tudo o que a Luz-Amor pode. O termo "beatitude" deriva de beatus, que significa "riqueza". Não a riqueza de acumular coisas, mas riqueza de absorver o máximo da Luz , para assim fazer dela a rara salut (saúde) conquistada, afirmada . O intelecto somente alcança o infinito quando o encontra primeiro dentro dele, como clarão que deveio Ideia, para assim desabrir-se , no pensar e  no agir.









(O clarão de Espinosa)




quinta-feira, 11 de julho de 2019

estamiras

Ela  vive  na  calçada de uma rua  do Centro do Rio. Ela não deve ter mais do que 50 anos, mas aparenta 70 . Ela está sempre na companhia de  uma garrafinha de cachaça, dessas mais baratas e vendidas em uma embalagem que lembra água. Ela vive  dormindo, anestesiada e indiferente , às vezes no meio da calçada, sob  sol ou chuva,  com a garrafinha ao lado, já vazia.Nas poucas vezes em que a vi acordada, seu olhar estava  sempre perdido, como se em dúvida se o que via era real ou parte de um sonho ruim do qual ela ainda não havia despertado.
Hoje de manhã, porém , sob um céu  azul e cristalino ( apesar de ser inverno), pela primeira vez  a vi desperta. Ela segurava uma garrafinha d’água que deve ter comprado com as moedas que juntou. Ela estava sentada no chão, próximo à porta fechada de um comércio  há muito falido.  Ela tentava abrir a tampinha.  Quando me aproximei, ela olhou para mim e  tive a sensação de que me reconheceu, embora eu sempre a visse deitada, aparentemente alheia a tudo e a todos . Ela dirigiu  a palavra a mim  numa voz fraca e sofrida, porém  em tom educado e gentil: “Você poderia abrir essa garrafa para mim, não consigo...” A luz do sol tornava ainda mais translúcida   a água contida no plástico transparente. Peguei a garrafinha , a abri e a devolvi. A senhora  imediatamente a levou à boca. Ela devia estar com muita sede....Ela bebeu apenas alguns goles, tirou a garrafa da boca e levou uma das mãos à garganta, descendo depois ao peito, como se estivesse acompanhando a descida da água por dentro de seu corpo. Em seu  rosto havia uma mistura de alívio e dor , como se a simples e pura água a tivesse queimado  como um sol líquido .“A pureza às vezes também  queima como o álcool: para sarar”, pensei alto e ela ouviu... Ela levantou  os olhos para mim  e sorriu , dizendo “sim” com a cabeça.  O novo gole que ela tomou desceu sem dor. “Muito obrigado”, ela me disse. Eu me despedi e fui. Após dar alguns passos olhei para trás e vi que ela estava com olhos vivos, abertos, parecendo pensar intensamente em algo. Depois  virou para mim e , sorrindo, apontou para a garrafa com o dedo e com o mesmo dedo  tocou a boca , a garganta e  o peito, refazendo  o caminho da água que agora era parte de seu corpo e fazia resistir nela  a vida.






quarta-feira, 10 de julho de 2019

pindorama

Ela se chamava Maria Madalena. Nasceu na Nova Holanda, de pai desconhecido. Aos 13 ficou grávida do traficante do lugar. Mas pouco viveu o recém-nascido,  morrendo antes que soubesse andar.
Aos 15 foi viver na rua, virando a puta de muitos que só a queriam usar: seguranças, policiais, agentes sociais...vários a exploravam muito sob a máscara de fingir ajudar.
Aos 18 ela parecia ter 50: enquanto a distraíam etílicos sonhos, vinha o tempo feito um ladrão roubar seus anos, sem dó , sem pena.
Padres, pastores, pais de santo, ungidos...Todos diziam que a poderiam recuperar.
Um chegou a  dizer que sua vida era castigo,culpa de outra vida, karma a lhe pesar.
Maria Madalena pegou de novo barriga, de novo a perdeu.Seu corpo era todo ferida,mas lhe doía mais a alma que enlouqueceu.                                    
Numa fria madrugada,ela caiu junto a um ipê perto da Lapa,entre sacos de lixo e urina de cão.
Ela caiu perto da raiz,e só a aurora testemunhou sua desaparição.
O ipê a sorveu para dentro de si, a limpou de toda sujeira humana, secou-lhe toda ferida insana, a alimentou com seiva até dormir.
Hoje , Madalena virou beleza que o ipê ao céu fez florir.

(a flor do ipê é uma das poucas que floresce colorida resistindo ao  cinza do inverno. Por poder  ser explorada comercialmente, os brancos colonizadores  escolheram o pau-brasil como árvore do Brasil , mas para os índios que aqui viviam era o ipê a árvore que protegia e curava Pindorama)


deleuze, guattari & manoel



Segundo a psicanálise, o superego é a instância responsável pela censura e crítica ao ego, ao eu. O superego   é como um  juiz que sempre condena  o ego ( sem precisar de provas).  Às vezes o superego  também age como um  policial,  um "tira" dentro da mente. É para “agradar” ao superego que o ego constrói para si  uma imagem ideal de perfeição a alcançar: um “ideal de ego”. Como toda idealização, essa perfeição é inalcançável e torna o ego frustrado consigo mesmo. A infelicidade do ego é o prazer do Superego. Essa frustração, porém, retroalimenta no ego o mecanismo de idealização em busca de uma perfeição de servo, de servo voluntário do superego. O ego é , ao mesmo tempo, reprimido pelo “policial interno”  e repressor do insubmisso que vive dentro dele:    o id ( o inconsciente). Mas ego e id não são reprimidos da mesma maneira. Pois o  id é a própria energia da qual se apropriam superego e ego para se voltarem contra a vida. O superego é como o Estado que construiu uma represa, o ego é a própria represa, enquanto o id é o fluxo do rio do qual a represa deixa passar uma parte para assim fazer girar seus dínamos.
Hoje,  o superego migrou  para fora e se fez  poder teológico-político : o Estado moral-policialesco ,  protofascista,   é ,ao mesmo tempo,  o seu quartel e templo .  Por outro lado, nas sociedades da ideologia do mercado  o ego  ganhou força  e reivindica sua identidade  contra toda idealização de si mesmo ,  buscando o prazer sem culpa. Isso abriu um pouco mais a comporta entre o ego e o id : o ego recebeu mais energia, porém a capitalizou  narcisicamente  sobre si, sem conectá-la com a produção coletiva do social e comum . O ego despotencializou o fluxo do id   até ele virar  apenas um  volúvel  "líquido" . Onde antes imperava a rigidez do superego, agora tudo escorre como "realidade líquida": as relações, os sentimentos, os projetos, a política. Porém , o id não é e nunca será coincidente com a identidade de um  ego . O  id não  é um eu em esboço .  O id  é multiplicidade enquanto  Potência não egoica do Desejo.
 Deleuze e Guattari dizem que o id é um "Amnésico": ele  não tem memória, tal como a tem todo ego . Inexiste no id  uma identidade prévia ao que , se reinventando, ele  se torna .  Em um de seus poemas,  Manoel de Barros nos fala  também  de um “amnésico” : o “ Seo Antônio Ninguém”, um nômade-andarilho do Pantanal. Rio que nenhuma represa pode conter se torna Pantanal  ao transpor suas próprias margens ,  para  assim alcançar   terras das quais não se tem memória: terras novas . Pantanal, diz Manoel, é "realidade onde ninguém pode passar régua".

Deleuze, Guattari & Manoel


segunda-feira, 8 de julho de 2019

Francesca



Ela entrou e não disse nada, apenas sentou na cadeira perto da janela. Não estava frio, nem quente; era um dia de setembro , entre o inverno e a primavera. A janela estava entreaberta; e  a hora do dia,  incerta. Havia luz, não muita; fazia azul, porém encoberto. Ela tirou da bolsa um cigarro e  acendeu. O vermelho da brasa avançava lentamente sobre o branco do papel  : parte do cigarro se tornava cinza a cair  no chão , enquanto   outra parte virava  fumaça a ir bater no teto. E assim o cigarro silenciosamente ia se consumindo parecendo que apagava...Porém  não se apagou: o rubro da brasa que parecia morta renasceu no esmalte vermelho que cobria as unhas dela. Aquele acender-se contagiou e fez-se também nela : a incontível vida era nela agora uma chama de brasa branda, porém  intensa. A chama   avançava  como faz num incenso: deixando a cinza cair à terra, enquanto uma voluta espiralada, mais do que fumaça, atravessava a janela e se libertava, etérea .




a escova do poeta

                                                   






                                                                                                        Quem se aproxima da origem se renova.

***   ***  

O que não aprendeu ainda a renunciar ao desejo de informar,
ao desejo de narrar, não aprendeu a cantar.
Quem canta é músico, passarinho, pintor, vento, poeta, chuva.
Poeta não precisa de informar sobre o mundo.
Poeta precisa de inventar outro mundo.

***   ***      

Palavra séria, para mim,
é aquela   que convida as outras 
para brincar de poesia.

Manoel de Barros

Há um poema de Manoel de Barros no qual ele diz ter visto, quando criança, dois homens "escovando osso" ( o nome do poema é exatamente "Escova").Isso o afetou singularmente. Tempos depois, ele soube o nome do  que aqueles homens estavam fazendo: eles faziam "arqueologia", eles eram "arqueólogos". "No começo achei que aqueles homens, afirma o poeta, não batiam bem. Porque ficavam sentados na terra  o dia inteiro escovando osso.Depois aprendi que aqueles homens eram arqueólogos . E que eles faziam o serviço de escovar osso por amor".Desse aprendizado ele inventou outro, pois o poeta diz que aprendeu a fazer algo semelhante , só que com as palavras. Ele aprendeu a "escovar" as palavras.
Os arqueólogos escovam o osso , algo aparentemente inerte e morto, para nele fazer viver a "arqué". "Arque-ologia" procede de "arqué". "Arquivo" também procede. "Arqué" tem por sentido "princípio", "causa" ,"fonte", "origem" ou "começo".Só arquivamos( em armários, gavetas , museus ou em nossa própria memória) aquilo que julgamos ter alguma relação com nossa existência, seja como causa , fonte ou origem.Em nossa memória não está apenas o passado, está também o que dá sentido ao presente.Em A Arqueologia do Saber, Foucault mostra que o saber é prática de construção de "arquivos" que co-existem sem se sucederem em progressão.No exemplo de Manoel de Barros, os arqueólogos descobriam que havia, naquele osso, algo arquivado: arquivado não como um papel em uma gaveta, já que , nesse caso, o que está arquivado é o próprio osso como arquivo, como signo, como sentido. O tempo estava arquivado nele, e ele, o osso, estava arquivado no tempo. E este tempo não é o passado no qual aquele osso foi esqueleto, já que se trata também do tempo no qual ele é descoberto como arquivo.Um osso não é apenas um osso, quando nele descobrimos um arquivo.Outrora ele fazia parte de um esqueleto escondido sob pele e músculo.Hoje, como arquivo, percebe-se que ele faz parte do universo inteiro, e sobre este ensina.O osso vira um documento: docere, aquilo que ensina.
O poeta escova a palavra, e a faz nos ensinar coisas que a mera informação utilitária não ensina. O poeta escova a palavra para nela fazer nascer sua alma: o sentido. Escovada, tornada arquivo, ela não designa apenas o referente que o uso consagra, pois ela passa a expressar também a origem que a inventou, e essa origem não está fora, mas lhe é imanente como ato de invenção.Esta é a fonte do sentido: a invenção. Ao escovar a palavra, não importa qual, o poeta acha a poesia, tal como o arqueólogo acha no osso o mundo no qual ele era uma parte, e  hoje esse mundo é parte dele, como mundo a descobrir. A palavra se torna mais do que palavra quando o poeta a escova, para nela fazer viver uma memória.
Nietzsche dizia que sempre nos esquecemos que nunca vivemos o que agora vivemos. Ele evoca então  uma memória singularíssima: uma memória que deveria nos lembrar que nunca vivemos o que agora vivemos; uma memória não do passado ou do que se viveu, mas uma memória do novo, do que nunca se viveu. Pois é disso que a gente se esquece: do novo. Nesse sentido, a percepção utilitária, aquela que busca sempre o "já visto" em todo ver, tal percepção também precisa ser escovada, para que assim de fato possamos deixar nascer em nós a memória daquilo que a todo tempo nasce,  e que somente pode ser visto por  uma "visão fontana" , uma visão que também é fonte do que vê.Quando olha para uma árvore, nela somente vendo o útil, o lenhador vê o possível móvel ou as folhas de papel que guiam sua percepção interessada, que se torna cega de uma cegueira ignorada. Ele não vê a árvore, muito menos a poesia que a faz e fez. Ele não vê a "arqué", ele não vê que ali há uma fonte.Em um museu, um objeto exposto deveria expressar essa poesia que faz o  objeto ser mais do que um objeto, tal como o escovar a palavra a faz ser mais do que mera informação utilitária que amanhã já será sucata, feito as informações  do jornal de ontem. O que é verdadeiramente novo nunca vira sucata, o verdadeiro novo nunca vira ontem.O novo é sempre fonte:arqué.A fonte é a "origem que renova".A fonte não é como um ponto de onde um fluxo jorra, pois este fluxo que a atravessa vem de um infinito com o qual ela permanece ligada. Pois é isto ser uma fonte: nos ligar a um infinito que nenhuma metragem utilitária pode diminuir. A fonte é o que nos liga e amplia.
"Poesia": poiésis, produção. Assim, o escovar é prática de cuidado também. Mais importante do que o "conhece-te a ti mesmo" é o "cuida de ti mesmo". Em latim, "caute" é a palavra que Espinosa imprimiu em seu anel. De caute provém cuidado também, assim como "curador": aquele que cuida."Caute" também pode ser "cautela" enquanto conduta ética. Desse modo, a poesia não é um conhecer meramente  intelectual, ela é um cuidado com o sentido, um cuidar do sentido.E é por isso que a poesia é também uma ética e uma clínica, como deveria sê-lo todo conhecimento, que nada é se não for também autoconhecimento. Assim , ao escovar um simples osso, é a nós mesmos que procuramos conhecer, não como um ser à parte , mas como parte de uma Natureza que é Poiésis.

sábado, 6 de julho de 2019

joão


"Descanse tranquilo onde cantam, 
os maus não cantam."
(Schiller) 

"O silêncio aperfeiçoa o som."
(Arnaldo Antunes)



























manoel : o antesmente


Manoel de Barros diz que a poesia está no “antesmente verbal”. O verbal é a palavra, escrita ou falada. A poesia existe antesmente à palavra. Mas esse antesmente onde vive o poético não é  como o esboço que um dia morre quando  o pintor termina o  quadro. Nunca o antesmente se deixa prender   em um atualmente que queira matá-lo . O antesmente se parece mais com fonte, embrião e semente, dos quais nascem rios, plantas, gente. As ideias e palavras são coisas que alguém  atualmente  pensa ou fala, porém a poesia , como lugar da criação do que ainda não foi dito ou pensado, é sempre “pré-coisa” em devir inesgotável.  Essa realidade antesmente verbal só pode ser   experimentada  se nós mesmos  nos colocarmos antesmente a nós mesmos,    junto à vida e perto de tudo aquilo que ainda não tem nome: “As coisas sem nome são mais ditas pelas crianças” , ensina Manoel de Barros. Antes de estar na palavra, o sentido está nesse antesmente : mais como parte de mundos a criar do que como parte de livros já escritos. No antesmente onde habita, a poesia  não  é texto ou palavra ainda : ela é a própria existência que resiste  umbilicada à vida.

“O poeta aprende que o essencial está fora do pensamento, naquilo que força a pensar” (Deleuze)

“Ensinar sobre a existência de uma realidade diferente é despertar no outro a experiência dela” ( Étienne Souriau)






sexta-feira, 5 de julho de 2019

o brado retumbante


Espinosa dizia que  toda “representação” é uma convenção que só tem poder sobre nós se assim aceitarmos. A linguagem convencionada, por exemplo, é uma  “representação” que aceitamos para nos comunicar com os outros. Mas o poeta é um subversivo: ele não aceita essas representações, ele reinventa a linguagem criando novos sentidos. Espinosa chamava de “expressão” esse justo agir  que se rebela quando a “representação”  já não consegue dizer tudo aquilo que a linguagem pode. O mesmo vale para a política: deputado, ministro, presidente...são representações  políticas.  Essas representações não podem pôr em perigo a expressão em nós da vida. E vida é algo que se potencializa em liberdade, pensando e agindo: na educação , nas artes e no viver  em comum dentro da sociedade plural, heterogênea. Nenhuma representação política  vem de “Deus”, ela vem dos homens, ou  de parte deles, por intermédio da eleição. Quando uma representação põe em risco nossa potência de expressão, essa representação deve ser destruída. Em Espinosa, “destruir” uma representação não significa exatamente  agir com violência física , mas se voltar contra ela por intermédio de uma incessante e perseverante crítica, mostrando que tal representação é um perigo  para toda forma de expressão, inclusive para a expressão democrática ( que vai além do mero voto). Esse governo , na verdade, nem representação é. Toda representação, não importa qual,  é parte de um todo.  Uma representação se torna uma ameaça ao todo quando ela se põe como “um todo à parte” querendo  impor sua maneira de ser ao todo. E a única maneira de um todo à parte querer se impor como todo é destruindo todas as outras partes que são expressões  diferentes desse todo chamado Brasil. Até o momento, não houve um ato desse governo que não seja uma ameaça às partes desse todo diferentes da parte que o bozo representa. No corpo vivo,  essa ameaça de uma parte do corpo à vida do corpo todo tem um nome : câncer, um agente da destruição e morte. Se o Brasil pudesse falar e dizer o que esse governo está fazendo com suas florestas, com seus índios , com sua gente, enfim, o Brasil diria: “esse governo é uma doença”. Depois gritaria , como está no hino, um brado retumbante: “ME LIVREM DELE!!!”.





terça-feira, 2 de julho de 2019

manoel: a ignorãça


O maior sábio da Grécia não foi Sócrates. O maior sábio foi Tirésias. Ele não se tornou sábio obtendo  erudição dos livros ou ouvindo os  doutos. Tirésias se tornou sábio   a partir de algo que ele viveu e viu.  Foi assim  : atrás da casa de Tirésias passava um rio. Do rio vinham a água que ele bebia e o alimento que pescava. Até que um dia Tirésias se fez uma pergunta: “De onde vem esse rio? Onde fica seu minadouro?”. Tirésias resolveu então  ir contra a corrente no esforço para achar a nascente. Somente  indo contra a corrente  se pode achar  nascentes, de rio ou de ideias . A fonte nunca vive no “acostumado” , no “mesmal”. Não demorou para alcançar  partes onde o rio, embora o mesmo, já não lhe era conhecido : viu em suas margens flores que nunca tinha visto, ouviu passarinhos dos quais não sabia o nome.  Enquanto prosseguia, não via trilhas ou pegadas. Hesitou, quase abortando sua “linha de fuga”. Até que ele olhou à frente e viu alguém a se banhar. Era Atena, a deusa da sabedoria.  E ela estava nua... A  sabedoria precisa às vezes se banhar  para reinventar-se nova. Nas academias e bibliotecas  , a sabedoria se veste de livros e teorias. Ela nunca se mostra nua nesses lugares. Quem a conhece apenas assim  vestida pode  até se tornar  um teórico ou cientista, mas nunca será  um pensador ou poeta. Tirésias então percebeu que ao se despir das teorias é como poesia que a sabedoria então se mostra. Manoel chama essa sabedoria nua de “ignorãça” .  A   autêntica sabedoria  é fonte que renova a si mesma  para que em nós  não seque a vida.
                                                                                                                                                
“A palavra abriu o roupão para mim:
ela quer que eu a seja.” (Manoel de Barros)