segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

manoel de barros: a não velhez

( trecho do artigo:http://brasileiros.com.br/2015/01/manoel-de-barros-uma-didatica-da-invencao/ )

As coisas que não têm nome são mais pronunciadas 
por crianças.
Manoel de Barros

A velhez não é uma idade. Ela é um estado. Ela é, a velhez, a antipoesia: a “velhez não tem embrião” [1]. A velhez é refém da “palavra acostumada”, da “mente acostumada”, da “sociedade acostumada”, da “teoria acostumada”. Torna-se um acostumado aquele que perdeu a capacidade de achar dentro de si “minadouros”[2]. O acostumado, em filosofia, tem um célebre nome: recognição. O olho acostumado perde o dom de descobrir: “O mundo foi renovado, durante a noite, com as chuvas. Sai garoto pelo piquete com olho de descobrir”[3].
A velhez  é a impossibilidade de se perceber como “forma em rascunho”, como minadouro de sentidos. A palavra que apenas informa tem essa velhez jornalística, uma vez que para o jornal de amanhã, para a vida de amanhã, ela já será cadáver: “A palavra  até hoje  me encontra na infância” ( 2010a, p.111).
As infâncias não remetem a uma fase de crescimento que antecede a vida adulta, elas são devires de (re)invenção.É sobretudo em  Deleuze e Guattari ( 1980) que encontramos a idéia de devir tal como a empregamos  ( SOUZA, 2010).Devir é uma forma de comunhão por imitagem  (2010b, p. 177). A imitagem não é um tornar-se cópia de um Modelo, como em Platão; a imitagem é a produção de uma variação por contágio: “é ir imitando os camaleões sendo pedra sendo lata sendo lesma” (1992, p. 314).O devir é uma metamorfose da qual o próprio poeta fez seu Tratado de Metamorfoses (  1992, p.250).
No poema “Invenção” ( 2010b, p. 151),  o poeta dialoga com um menino que nasceu do seu lápis: "inventei um menino levado da breca para me ser",  diz o poeta, "passarinhos botavam primaveras em suas palavras", "(...) ao fim me falou que ele não fora inventado por esse cara poeta/ porque fui eu que inventei ele" . O "eu” deste último verso não é um  eu lírico, ele  é um agente coletivo como lugar da invenção.Ele é o “eu” do menino que o poeta inventou para (re) inventá-lo, empoemá-lo ( 1989), enfim,   para terapeutá-lo ( 1996).Há um elo ,uma distância mínima, um hífen entre o poeta e o menino. Tal distância não é a do julgamento, não é a distância do afastamento; trata-se de uma distância  que possibilita o afeto, o contágio, o ser tocado: é a distância intensiva de quem , como o poeta, "escreve com o corpo" ( 1992, p. 212).
O menino disse ao poeta enquanto o poeta o inventava: sou eu que te invento poeta, enquanto você me inventa. Esse menino, diz o poeta, é “a criança que me escreve” ( 2010b, p.147). O menino que inventa o poeta se torna um intercessor: “A liberdade e a poesia a gente aprende com as crianças"( 2010d, p.469) , como exercício de ser criança (  1999).Por mais que passem os anos, esse menino será sempre um menino que nos faz devir um, por mais idade que tenhamos.
A distância mínima que possibilita a  invenção não pode ser medida com régua: ela   é    a origem, a fonte, que está sempre no meio, como espaço de comunhão, de  “imitagem”. Processo semelhante experimentou Clarice: “Às vezes começa-se a brincar de pensar, e eis que inesperadamente o brinquedo é que começa a brincar conosco” (LISPECTOR, 1984, p11). Talvez nosso poeta experimentasse algo parecido quando afirmou: “Nossa linguagem não tem função explicativa, só brincativa” . Entre o menino e o poeta há uma distância mínima onde ocorre um contágio, um afeto , uma transubstanciação (1992, p320), uma epifania, um devir-criança, enfim. Este intervalo não é um espaço vazio, ele é o lugar das “raízes crianceiras” ( 2010b, p 187).
O tempo do devir-criança não pode ser medido pelo relógio; ele é o “tempo quando” (2010b, p. 133). Do ponto de vista dos fatos cronológicos encadeados linearmente, o devir é um desacontecimento (1992, p. 238). O desacontecer remete a um “tempo quando” não cronológico, tempo de metamorfoses. O quando é o tempo de "ir às origens de uma coisa ou ser" (  2010b, p. 133): “eu não amava que botassem data na minha existência.(...) Nossa data maior era o quando.O quando mandava em nós. A gente era o que quisesse ser só usando esse advérbio” (Idem).
 O "des" do desacontecer é o mesmo "des" do desaprender que Manoel aprendeu de Klee: "Ocorre que falo em desaprender pra chegar ao degrau da infância" ( apud BARBOSA, 2003, p. 127). O “quando” do tempo quando  não é data: não é passado, presente ou futuro. O quando é acontecimento que expressa uma metamorfose, tal como relatado no poema “Palavra” ( apud  RANGEL, 2001):  o poeta  estava sentado em um lugar. Até que veio a palavra e tirou o lugar debaixo dele. Ele continuou sendo, porém sem lugar. Todo lugar limita um espaço de estar, de ficar. Sem o lugar, o poeta permaneceu  ainda sendo, mas não no aqui, apenas no quando. Este quando é um lugar também, mas sem contornos, sem limites, posto que é um lugar de metamorfoses, de nadifúndios (1989, p. 14). "O artista está sujeito a essas metamorfoses" ( apud BARBOSA, 2003, p.125) que o fazem ir além do "mesmal" (apud  BARBOSA, 2003, p123).





[1] Ibid., p. 98.
[2]Ibid.,p.145.                                                                                                                                                                   
[3] Poema “Mundo renovado”, Livro de pré-coisas.

Referências

- Obras de Manoel de Barros consultadas:

Compêndio para uso dos pássaros. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1961.
Gramática expositiva do chão. Rio de Janeiro: Ed. Tordos, 1969.
Arranjos para assobio. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.
O guardador de águas. São Paulo: Art Editora, 1989.
Gramática expositiva do chão — poesia quase toda. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992 ( segunda edição).
Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Record, 1996 .
Livro de pré-coisas. Rio de Janeiro: Record, 1997a.
O livro das ignorãças. Rio de Janeiro: Record, 1997b .
Retrato do artista quando coisa. Rio de Janeiro: Record, 1998.
Exercícios de ser criança. Rio de Janeiro: Salamandra, 1999.
Ensaios fotográficos. Rio de Janeiro: Record, 2000.
Memórias inventadas – a infância. São Paulo: Editora Planeta, 2003.
Concerto a céu aberto para solos de ave. Rio de Janeiro: Record, 2004.
Cantigas por um passarinho à toa. Rio de Janeiro: Record, 2005.
Memórias inventadas – a segunda infância. São Paulo: Editora Planeta, 2006.
Poemas rupestres. Rio de Janeiro: Record, 2007.
Encontros: Manoel de Barros . Rio de Janeiro, Azougue, 2010a (Org. Adalberto Müller).
Memórias inventadas - as infâncias de Manoel de Barros. São Paulo: Planeta, 2010b.
Menino do mato.São Paulo : Leya, 2010c.           
Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010d.
Escritos em verbal de ave. São Paulo : Leya, 2011.

Outras referências:

ARNHEIM, Rudolf. Arte e percepção visual: uma psicologia da visão criadora. São Paulo: Pioneira, 2000, 13ª edição.

BARBOSA, Luiz Henrique. Palavras do chão: um olhar sobre a linguagem adâmica  em Manoel de Barros. Belo Horizonte: Fumec/Annablume, 2003.

CAVALCANTI,Ana Símbolo e alegoria – a gênese da concepção de linguagem em Nietzsche. São Paulo: Annablume, 2005

DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Kafka - pour une littérature mineure. Paris:
Minuit, 1975.

_____________. Mille plateaux. Paris: Minuit, 1980.

_____________. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34,1992.

LISPECTOR, Clarice.A Descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira , 1984.

PESSOA, Fernando. O eu profundo e os outros eus.Rio de Janeiro: Nova Fronteira,2006.

RANGEL, Pedro Paulo. Manoel de Barros por Pedro Paulo Rangel.Coleção Poesia Falada, vol. 08.CD.Rio de Janeiro: Luz da Cidade, 2001.

SOUZA, Elton Luiz Leite de. Manoel de Barros: a poética do deslimite. Rio de Janeiro: 7letras/FAPERJ, 2010.


( desenho de Manoel de Barros)



(Chagall, O tempo não tem margem , 1930-1939)










quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

a arqueologia poética de manoel







                                                                                                        Quem se aproxima da origem se renova.

***   ***  

O que não aprendeu ainda a renunciar ao desejo de informar,
ao desejo de narrar, não aprendeu a cantar.
Quem canta é músico, passarinho, pintor, vento, poeta, chuva.
Poeta não precisa de informar sobre o mundo.
Poeta precisa de inventar outro mundo.

***   ***      

Palavra séria, para mim,
é aquela   que convida as outras 
para brincar de poesia.

Manoel de Barros

Há um poema de Manoel de Barros no qual ele diz ter visto, quando criança, dois homens "escovando osso" ( o nome do poema é exatamente "Escova").Isso o afetou singularmente. Tempos depois, ele soube o nome do  que aqueles homens estavam fazendo: eles faziam "arqueologia", eles eram "arqueólogos". "No começo achei que aqueles homens, afirma o poeta, não batiam bem. Porque ficavam sentados na terra  o dia inteiro escovando osso.Depois aprendi que aqueles homens eram arqueólogos . E que eles faziam o serviço de escovar osso por amor".Desse aprendizado ele inventou outro, pois o poeta diz que aprendeu a fazer algo semelhante , só que com as palavras. Ele aprendeu a "escovar" as palavras.
Os arqueólogos escovam o osso , algo aparentemente inerte e morto, para nele fazer viver a "arqué". "Arqueo-logia" procede de "arqué". "Arquivo" também procede. "Arqué" tem por sentido "princípio", "causa" ,"fonte", "origem" ou "começo".Só arquivamos( em armários, gavetas , museus ou em nossa própria memória) aquilo que julgamos ter alguma relação com nossa existência, seja como causa , fonte ou origem.Em nossa memória não está apenas o passado, está também o que dá sentido ao presente.Em A Arqueologia do Saber, Foucault mostra que o saber é prática de construção de "arquivos" que co-existem sem se sucederem em progressão.No exemplo de Manoel de Barros, os arqueólogos descobriam que havia, naquele osso, algo arquivado: arquivado não como um papel em uma gaveta, já que , nesse caso, o que está arquivado é o próprio osso como arquivo, como signo, como sentido. O tempo estava arquivado nele, e ele, o osso, estava arquivado no tempo. E este tempo não é o passado no qual aquele osso foi esqueleto, já que se trata também do tempo no qual ele é descoberto como arquivo.Um osso não é apenas um osso, quando nele descobrimos um arquivo.Outrora ele fazia parte de um esqueleto escondido sob pele e músculo.Hoje, como arquivo, percebe-se que ele faz parte do universo inteiro, e sobre este ensina.O osso vira um documento: docere, aquilo que ensina.
O poeta escova a palavra, e a faz nos ensinar coisas que a mera informação utilitária não ensina. O poeta escova a palavra para nela fazer nascer sua alma: o sentido. Escovada, tornada arquivo, ela não designa apenas o referente que o uso consagra, pois ela passa a expressar também a origem que a inventou, e essa origem não está fora, mas lhe é imanente como ato de invenção.Esta é a fonte do sentido: a invenção. Ao escovar a palavra, não importa qual, o poeta acha a poesia, tal como o arqueólogo acha no osso o mundo no qual ele era uma parte, e  hoje esse mundo é parte dele, como mundo a descobrir. A palavra se torna mais do que palavra quando o poeta a escova, para nela fazer viver uma memória.
Nietzsche dizia que sempre nos esquecemos que nunca vivemos o que agora vivemos. Ele evoca então  uma memória singularíssima: uma memória que deveria nos lembrar que nunca vivemos o que agora vivemos; uma memória não do passado ou do que se viveu, mas uma memória do novo, do que nunca se viveu. Pois é disso que a gente se esquece: do novo. Nesse sentido, a percepção utilitária, aquela que busca sempre o "já visto" em todo ver, tal percepção também precisa ser escovada, para que assim de fato possamos deixar nascer em nós a memória daquilo que a todo tempo nasce,  e que somente pode ser visto por  uma "visão fontana" , uma visão que também é fonte do que vê.Quando olha para uma árvore, nela somente vendo o útil, o lenhador vê o possível móvel ou as folhas de papel que guiam sua percepção interessada, que se torna cega de uma cegueira ignorada. Ele não vê a árvore, muito menos a poesia que a faz e fez. Ele não vê a "arqué", ele não vê que ali há uma fonte.Em um museu, um objeto exposto deveria expressar essa poesia que faz o  objeto ser mais do que um objeto, tal como o escovar a palavra a faz ser mais do que mera informação utilitária que amanhã já será sucata, feito as informações  do jornal de ontem. O que é verdadeiramente novo nunca vira sucata, o verdadeiro novo nunca vira ontem.O novo é sempre fonte:arqué.A fonte é a "origem que renova".A fonte não é como um ponto de onde um fluxo jorra, pois este fluxo que a atravessa vem de um infinito com o qual ela permanece ligada. Pois é isto ser uma fonte: nos ligar a um infinito que nenhuma metragem utilitária pode diminuir. A fonte é o que nos liga e amplia.
"Poesia": poiésis, produção. Assim, o escovar é prática de cuidado também. Mais importante do que o "conhece-te a ti mesmo" é o "cuida de ti mesmo". Em latim, "caute" é a palavra que Espinosa imprimiu em seu anel. De caute provém cuidado também, assim como "curador": aquele que cuida."Caute" também pode ser "cautela" enquanto conduta ética. Desse modo, a poesia não é um conhecer meramente  intelectual, ela é um cuidado com o sentido, um cuidar do sentido.E é por isso que a poesia é também uma ética e uma clínica, como deveria sê-lo todo conhecimento, que nada é se não for também autoconhecimento. Assim , ao escovar um simples osso, é a nós mesmos que procuramos conhecer, não como um ser à parte , mas como parte de uma Natureza que é Poiésis.



a casa de espinosa

(Vermeer, Vista de Delft, 1660/1661)


Do ponto de vista arquitetônico, um prédio, uma casa, é como uma caixa: possui quatro lados, dos quais o da frente é a fachada. Esta é como um rosto, uma face: é na fachada que a casa ganha uma dimensão expressiva. Na visão barroca, visão esta compartilhada por Espinosa, a fachada não era considerada como mera parte externa da casa: a fachada era vista como a face interna da rua, entendida a rua como o espaço do comum.A fachada-face da habitação barroca trazia a expressão de um rosto que não era determinado apenas pelo mundo de dentro, subjetivo e privado ( o interior da casa), pois tal rosto era a expressão da relação entre a esfera privada e a pública, entre o subjetivo e o político,enfim, entre o habitar e o ser.Daí a fachada da casa barroca ser uma superfície expressiva na qual se via arte.
Hoje, construídos em vidro e alumínio, a face dos prédios se tornam espelhos que refletem outros prédios espelhados.Cada um devolve para o outro o mesmo reflexo de um outro reflexo, nos quais não se vê um rosto, apenas a máscara sem identidade do Capital: os prédios que sobem aqui são os mesmos que se elevam em Boston , Cairo ou Pequim. Os prédios envidraçados espelham outros prédios envidraçados nos quais  se veem, deformados, os mútuos reflexos :e é assim que se cria a norma e o padrão de   tais obras sem memória. A superfície remete à outra superfície, sem outro conteúdo a não ser nada deixar escapar à função e à forma.
Enquanto as construções góticas, tais como se vê nas catedrais, queriam ser elevadas para assim se aproximarem do céu em que acreditavam , sobem os prédios modernos cada vez mais alto, mas para quererem do céu serem os donos. Tal como os antigos colonizadores expulsaram da terra os índios, os neocolonizadores do céu "pós-moderno" esvaziaram-no  dos mitos, da filosofia e da poesia, e especulam sobre o vazio criado, tal como o especulador agrícola contabiliza  a terra da qual ele arrasou a floresta. E, para tal ,competem , “empreendem”, “focam”, “agregam valor”, “batem metas” ; e fazem crescer a indústria da segurança e das armas, bem como o lastro de "oportunidades" da indústria farmacológica cujo carro-chefe são os medicamentos tarja-preta .
À altura em que esses espelhos de espelhos sobem, não mais se pode refletir a imagem do homem.







quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

o céu e o mar de amanhã

Existe uma política na poesia 
que não se confunde com a política que vai na cabeça dos políticos. 
Uma política mais complexa, mais profunda , 
que é crítica da própria política, 
enquanto modo limitado de ver a vida. 
 Paulo Leminski

Poesia pode ser que seja fazer outro mundo. 
Manoel de Barros


Quem vê a imensa baleia a nadar, imagina que ela foi feita pela natureza para tal.
Quem vê o morcego a voar, imagina que ele fora feito, desde sempre, com asas.
Porém, como começou a nadar a primeira baleia? Não havia outra baleia para a ensinar.
O ser do qual proveio a baleia não era uma baleia, e seu nadar ainda não era nadar.
Talvez se assemelhasse mais a um ousar, a um arriscar, como conquista de um novo meio.

O mesmo se aplica ao ser do qual proveio o morcego. 
O que hoje é voo sem receio, outrora foi salto sem ainda ter asas. 
E mesmo no voo mais perfeito do morcego de hoje, ainda existe esse salto como sua causa.

Os olhos que apenas veem o que está pronto, 
ignoram o ato criativo, ato poético,  que preside a existência de todas as coisas, 
e sem o qual não haveria a vida que vemos hoje. E sem o qual não haverá vida amanhã.

 Os seres que o mundo dos adaptados  imagina que estão caindo ou se afogando, 
pode ser que nestes seres desprezados, incompreendidos,inúteis, marginalizados...
pode ser que neles estejam  sendo esboçados o nado e o voo 
que somente vão nadar e voar os seres de amanhã.








artigo publicado na Revista Trágica



Título do artigo: "Deleuze e Guattari: o gosto filosófico"


(trecho)

O batismo do conceito solicita um gosto filosófico.
(Deleuze & Guattari,  O que é a filosofia? , p. 16)


 Deleuze intitula pop’filosofia a relação entre o pensar e o sentir, entre a ideia e a sensação, entre o conceito e a imagem. “Pop” como popular. O popular não é o massificado, o popular não é o que custa barato. Ao contrário, custa muito o popular: custa não em moeda ou capital, mas em modéstia e gosto. O popular não é o que vende muito: o popular é o que não se deixa vender, seja pelo mercado seja pela potesta do Estado. O popular não se opõe ao erudito. O popular não se confunde com classe ou gênero. O popular não é a classe  C, D ou E. O popular é inclassificável: multitudo.O popular é composto pelo povo que a Terra, a grande desterritorializada, pede para si. Povo bastardo, mestiço, despossuído, “Ninguém”, como diria Manoel de Barros: “Falar a partir de ninguém/ Faz comunhão”[1]. “Comunhão” como produção de um agente coletivo de enunciação. Povo ao mesmo tempo nobre e menor, como a cartola do Angenor, como o sax de Pixinguinha. Nomadologias: agenciamento do pop com o “geo” de uma geofilosofia , para assim potencializar o gosto pela Terra. O popular é o devir-minoritário de cada um: “escreve-se em função de um povo por vir e que ainda não tem linguagem”[2].



[1] BARROS, M. Ensaios fotográficos. Record, 1996, p.25.

[2] DELEUZE, G. Conversações, p. 179.Nossa interpretação acerca da natureza ao mesmo tempo estética e política do gosto,  interpretação esta presente em todo o artigo, encontra apoio no próprio Kant, que identifica o gosto ora com uma faculdade ora com um “senso comum”. Contudo, o “comum”  referido pelo gosto não é apenas subjetivo : ele também serve de base a um pensamento sobre a comunidade política, fato que ensejou a especulação de que Kant ainda prepararia uma “quarta Crítica”: uma Crítica da razão política. Sobre esse tema, embora de uma perspectiva um pouco diferente da que apresentamos aqui: PROUST, F. Kant le ton de l’histoire. Paris:Payot, 1991, p 34 e seguintes.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

o samurai espinosista



Ele era um “ronin”. Literalmente, um “homem-onda”. “Ronin” era o nome que recebia o samurai sem mestre. Um ronin era como uma onda, uma “vaga”: eles se tornaram então andarilhos, deambuladores, itinerantes, nômades. Pareciam mendigos e vagabundos, e apenas isso de fato seriam, se os homens se definissem apenas pelas aparências e roupas.
Em determinado momento da história do Japão, os samurais se desterritorializaram, pois somente assim poderiam continuar a serem samurais, homens livres, uma vez que os territórios passaram ao poder  (potestas) dos senhores feudais. Antes, cada samurai possuía um mestre, cujo poder advinha da sua destreza e maestria, além da sabedoria. Era subordinando-se a um mestre que um samurai aprendia a como ser um samurai, “mestre de si”. Essa subordinação nada tinha a ver com servilismo, pois a condição de servo é incompatível com a natureza do samurai.
Só se aprende a ser samurai com outro samurai que já o seja mais. Impossível se tornar samurai sem ter tido um mestre. Pois ser um samurai é sempre um aprendizado de como sê-lo. Saber usar a espada é somente parte do aprendizado. Primeiro, é preciso saber usar a mente. O maior dos mestres samurais também teve mestre. O samurai que aprende confia em seu mestre , pois nenhum samurai tem dois mestres. Além disso, todo samurai sabe que não houve um primeiro samurai que aprendeu a ser samurai do nada. Nunca houve um primeiro samurai que tenha sido o “mestre dos mestres”. O que sempre existiu, para um samurai,  é a necessidade de aprender a ser um samurai. O melhor samurai não é o que sabe mais, porém o que melhor aprendeu. Assim, o ronin não tinha mais mestre porque ele mesmo já não poderia ser o mestre de novos samurais.Pois esse é o sentido de se ter um mestre: é preciso um  para se tornar mestre , mestre de si. O samurai é aquele que sabe achar um mestre, mais do que querer se impor como um.
Há diferença de potência entre os samurais, assim como há diferença de graus entre os tons de azul. Cada tom de azul é uma perspectiva diferente acerca do mesmo azul, e inexiste um azul puro existindo à parte  dos graus do azul. Mas existem graus onde o azul está mais forte: nestes  o azul existe mais.Uma perspectiva diverge da outra no seio de algo que lhes é comum, assim como os graus divergem entre si em razão da cor azul comum. Todavia  um samurai e um servo não possuem nada em comum, e é por isso que um servo não tem perspectiva, ele é destituído da potência de divergir: ele apenas concorda, aceita, submete-se ao incolor poder.O que caracteriza um servo, tanto no Japão medieval  quanto nas épocas informatizadas que correm, é a carência de uma vida que desconhece  a presença de um mestre.
Um mestre samurai nada tem a ver com um senhor feudal.Este quer o monopólio de sua vontade como imperativo para todos que ele pretende dominar, ao passo que o mestre samurai, com seu exemplo, ensina cada discípulo a se fortalecer como samurai, isto é, como homem livre.
 Os senhores feudais ganharam poder com a introdução, no Japão, da arma de fogo . Já os samurais consideravam que a arma de fogo não era digna dos homens  corajosos e nobres: apenas os medrosos se enfrentam de longe, à distância, e , covardemente, não dispensam oportunidades para atirar  pelas  costas. Além disso, para o samurai a boa espada é aquela que menos precisa ser desembainhada, pois antes dela deve prevalecer  a força da palavra e do caráter. Mas caso ela precise ser desembainhada, nunca o será para servir à covardia, ao mero poder pelo poder  e à vilania. E muito menos será usada para atingir pelas costas.
O filme Depois da chuva narra a história de um ronin, um samurai-andarilho que não se vende aos senhores feudais.Os senhores feudais e os samurais já não pertencem ao mesmo mundo. Os senhores feudais tentam comprar  os samurais, oferecendo-lhes chefia de exércitos, querendo fazer deles generais e ostentadores de medalhas e títulos. Contudo, um general somente existe em razão de uma hierarquia de poderes, estando ele acima, e os comandados abaixo.Entre os samurais, porém, não existe acima, a não ser como lugar onde vive a honra, e não existe abaixo, senão como baixeza servil dos que adulam, se ajoelham, baixam a cabeça, dissimulam e se vendem.

Recusando-se a usar sua sabedoria e potência  a serviço  dos que desconhecem o que é nobreza e honra , os samurais se tornam nômades-andarilhos, seguem sem destino pelos caminhos, fiéis ao que são e aprenderam , não cedendo aos que põem em tudo um preço. Se sabem os últimos homens livres, tendo sido os primeiros.







sábado, 16 de janeiro de 2016

ariadne-dioniso

                                                                    

 O não-filosófico está talvez mais no coração da filosofia que a própria filosofia,
 e significa que a filosofia não pode contentar-se
em ser compreendida somente de maneira filosófica ou conceitual.
Mais importante do que o pensamento é o que “dá a pensar”;
mais importante do que o filósofo é o poeta.
Gilles Deleuze
  
Segundo Deleuze, a filosofia não é uma prática estritamente conceitual. A filosofia entra em uma relação direta, sem mediadores, com algo que a antecede. Não se trata de acúmulo de experiência ou leitura isso que a antecede. Esse “antes” que antecede a filosofia   não é outra disciplina. Esse antes é um “pré”, um pré-filosófico. Este pré-filosófico não é o conceito, tampouco o bom senso ou o senso comum. A aurora precede o dia que a sucede.Contudo, esse “pré” com o qual a filosofia entra em relação não é como um antes que ela, vindo depois, põe-se no lugar, assim como dia toma o lugar da aurora. Esse pré é sempre pré: ele não é o conceito ainda se fazendo, tal como o pré-adolescente já é o adolescente se formando. Esse “pré-filosófico” é uma aurora que nunca deixa de ser aurora, ou como uma criança apenas criança, e não  um adulto incompleto.
 O pré-filosófico não é conceitual, jamais o será.Se a filosofia é o mundo do pensamento, o pré-filosófico é a terra do pensar, um pensar que também se sente, um sentir que se pensa.Esse pré não é um objeto que o conceito representa.Ele é uma terra que o pensamento conquista.Conquista a quem?A filosofia não recebe, de presente, essa terra; tampouco é uma terra prometida. O nômade que habita o deserto conquista o deserto.Mas o deserto não tem dono, ninguém pode marcar nele linhas retas em seu solo, pois o vento vem e apaga. Conquistar não é fazer do conquistado uma propriedade, restando-lhe fora, especulando ou a deixando deserta de vida. Conquistar é povoar, habitar,encher de vida, mas sem recortar, sem construir muros. É com itinerâncias, é com trajetos e viagens, é se movendo sobre o deserto que o Nômade conquista um. O deserto não é nômade, mas ele torna nômade quem o conquista, povoando-o.
A terra que a filosofia conquista é um deserto sobre o qual ela traça mundos, trajetos, habitares, modos de ser, sem que exista, antes, um modelo a imitar de como ser.Pois antes dessa conquista, antes da terra pré-filosófica, não existe algo pronto, feito, acabado, que se possa herdar, reproduzir ou imitar.O que existe é o caos. Este não é um limite à conquista, mas aquilo sem o qual não há conquista . É a terra o que se conquista, não o caos. A terra  tem outro nome: consistência. Ter consistência não é ser inflexível ou rígido.Ter consistência é conquistar uma terra sem murá-la, sem fechá-la, sem finitizá-la. Toda conquista é um co-memorar do que se conquistou. Assim, a terra não é o fim do caos, mas o começo da consistência.Toda terra conquistada ao caos é sempre terra infinita.A ciência finitiza, objetifica, gira em torno de objetos. A filosofia traça uma terra infinita, a qual ela conquista sem negar o caos. Nenhuma conquista nasce da mera negação, toda conquista é uma afirmação da capacidade que tem o pensamento de conquistar. Não conquistar prêmios, títulos, propriedade, poder. Mas conquistar a si mesmo, criando a si mesmo , fazendo do infinito a sua terra.
A filosofia não nega o caos, não o demoniza: ela conquista-lhe uma terra.A terra não é o caos.A terra é o inaugurar de uma distância mínima, que nenhuma régua tem como medir. Pois não é uma distância mensurável em centímetros, milímetros ou qualquer outra unidade de medida, por menor que seja. A distância que separa a terra do caos é semelhante àquela que separa a paisagem pintada e a matéria sem a qual não existe a paisagem pintada. A paisagem não é a matéria da tinta, mas uma distância não extensa que o artista conquista, como o fez Cezanne: do caos das sensações ele conquistou uma paisagem que  existe como distância não física conquistada à desordem das tintas. 
         Deleuze chama de “crivo” essa distância que existe entre a terra e o caos. Quanto mais próximo do caos, mais rica a terra que a ele se conquista. Porém, maior se torna também o risco...Quem se aproxima do caos pode nele se perder .E o poeta?                                                           
Talvez o artista, sobretudo o poeta, seja aquele que  mais de perto vê o dragão. Nietzsche: “Quando você olha para o abismo, o abismo te olha”. A terra que o poeta conquista é o par do caos, é sua fêmea. A terra e o caos vivem  um amor que pode matar ou salvar.Não matar a terra , mas ao poeta que é o produto desse amor, amor este que também  o fecunda.O poeta não cria conceitos como o filósofo: seu pré é imediatamente o caos do qual apenas a terra inventada pode ser o par.O poeta é o palco desse amor cósmico, tal como o amor Ariadne-Dioniso.O poeta também vive uma conquista, mas é uma conquista amorosa, na qual ele aprende a dizer, como Manoel , “eu-te-amo” a todas as coisas.



(Cezanne, A montanha Santa Vitória)





sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

monumentar passarinhos

Livro sobre nada ( Manoel de Barros)
Venho de nobres que empobreceram.
Restou-me por fortuna a soberbia.
Com esta doença de grandezas:
Hei de monumentar os insetos!
(Cristo monumentou a Humildade quando beijou os
pés dos seus discípulos.
São Francisco monumentou as aves.
Vieira, os peixes.
Shakespeare, o Amor, A Dúvida, os tolos.
Charles Chaplin monumentou os vagabundos.)
Com esta mania de grandeza:
Hei de monumentar as pobres coisas do chão mijadas
de orvalho.

sábado, 9 de janeiro de 2016

a empoética de manoel



(trecho do livro)
"Não se escreve com lembranças de infância,
mas por blocos de infância, que são devires-criança do presente".
Gilles Deleuze

Onde o perigo existe,
ali cresce o que salva.
Hölderlin

Podemos dizer que a poética de Manoel de Barros é uma original “empoética” sem regras ou cânones , uma vez que “empoemar” é um verbo que toda palavra conjuga quando perde seu limite utilitário (...).“Empoemando”, a palavra adquire a potência de expressar. Através desta potência, dá-se “um inauguramento de falas” que “insana”o significado habitual , gramatical e ordinário. Mas essa “insanidade”, ou agramaticalidade, produz uma verdadeira saúde : a de uma linguagem que redescobre a natureza extraordinária, singular, do sentido. Graças a essa poiésis da agramaticalidade,a linguagem é redescoberta como fonte de inauguramento de sentidos: “pelos meus textos sou mudado mais do que pelo meu existir”, revela-nos o poeta.
Empoemar as palavras é subverter os clichês e as representações que as fazem “acostumadas”. Esta empoética não possui regra de fabricação, a não ser o retirar das coisas as suas próprias regras: errar o idioma, fazer agramática.O “errar o idioma” não se faz por uma fala pessoal que se equivoca nas regras, mas por intermédio de uma “fala coletiva” que diz um sentido que foge a toda regra, que leva a própria regra a variar.
Empoemar a palavra é torná-la despalavra, verbo-substantivo onde se pode enxergar “o feto dos nomes”. Empoemar é um verbo que toda palavra pode conjugar desde que “abra seu roupão para o poeta”, e o deixe sê-la.
A essência da poética de Manoel de Barros, sua empoética terapêutica, consiste em produzir uma didática da invenção. Esta nos ensina que não apenas o poema, mas a própria Vida somente se explica como um “milagre estético”:

O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de interromper o voo de um pássaro
botando ponto no final da frase.

("O menino que carregava água na peneira", livro: Exercícios de ser criança)


****   ***   ****

A única coisa que a diferença quer
é  diferenciar-se.
Diferindo  de si mesma,
ela se torna múltipla:
(re)inventa-se.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

o cacto



Vem a chuva e molha a planta:
não mais  cabisbaixa,
o caule de novo  levanta,
e abre-se acima uma porta com o céu.

Outra vive perto do rio.
E sabe com raízes achar o fluxo,
sugando o rio para   dentro de si.

Mas o cacto mora no deserto.
Não há água perto,
no chão ou no céu.
Uma arte inventou o cacto:
o de ter longas raízes.

Sondando o fundo da terra,
metros e metros abaixo
do que pode ver a vista,
tal sobrevivente encontra a água
que morou no céu um dia.

Ele a chama para si
e a guarda como tesouro
mais valioso do que prata ou ouro:
prenhe de chuvas e rios,
firme se alegra ,
e a água oferta a quem sede tiver.






manoel & espinosa



Mais importante do que o pensamento é o que “dá a pensar”;
mais importante do que o filósofo é o poeta.
Deleuze


Em seu livro sobre Espinosa[1], Yovel se refere ao terceiro gênero de conhecimento do autor da Ética como uma “metamorfose mental”. Antônio Houaiss afirma, por sua vez, que a poesia de Manoel de Barros está a serviço de uma experiência clínica: a da “felicidade mental”[2]. A metamorfose poético-filosófica como medicina animi .
Há uma influência dos estoicos sobre Espinosa no esforço que este empreende para instituir uma medicina da alma ou medicina animi. Para Espinosa, é absurdo que o homem tenha criado uma medicina corporis e que, no entanto, tenha descuidado de uma medicina animi, uma vez que ele é constituído por essas duas realidades, e não apenas por uma delas. O homem  pôde produzir a medicina corporis quando conseguiu vencer  o curandeirismo nas questões que envolviam a saúde do seu corpo. Todavia, no que diz respeito à salut de sua alma, entrega-se o homem ainda a práticas encantatórias, mágicas, como se apenas de um milagre pudesse nascer tal salut e felicidade.
Segundo Yovel, essa metamorfose mental é a expressão de um "olhar sinóptico", isto é, um olhar que liga coisas diferentes, coisas estas que não pertencem à extensão de um mesmo conceito. Parece-nos que esse olhar sinóptico muito próximo está do que em Manoel é uma visão fontana. O olhar sinóptico desfaz os limites dos conjuntos extensivos, e nos faz perceber a singularidade de cada coisa em sua relação com o Todo que se expressa no coração de cada ente singular e diferente: “é no ínfimo que eu vejo a exuberância”[3], “só as coisas rasteiras me celestam : a desgrandeza é de Deus”[4] .
Cada coisa está conectada à outra através do todo: a vitória está conectada com a derrota, o acerto está conectado com o erro, a  verdade está  conectada com a falsidade, o juiz está conectado com o bandido, a razão está conectada com a imaginação, a realidade está conectada com o sonho. Estar conectado não significa estar subordinado, ou que um seja  superior ao outro. O importante, o que dá sentido aos termos de cada relação , é o que está no meio, é a própria relação. Quando nos colocamos na perspectiva da relação, percebemos que juiz e bandido, razão e imaginação, acerto e erro, etc., são termos relativos não apenas  uns aos outros, mas relativos à relação que lhes dá um sentido.
Todavia, afirmar a relação nada tem a ver com defender o relativismo. O relativismo nasce quando se supõe que bandido e juiz são o mesmo, assim como a verdade ou o erro. O relativismo geralmente segue  de mãos dadas com o ceticismo e o cinismo, vez que reduz a relação aos termos. Mas quem dá as mãos ao ceticismo finda por andar em círculos, quem as dá ao cinismo cedo descobrirá que se encontra sozinho. Somente a compreensão, como diz Espinosa, pode conduzir-nos pelas mãos e nos levar para onde já estamos. E o lugar onde estamos é sempre o de uma relação, a começar pela relação de cada um consigo mesmo.
Por isso, quando nos colocamos na perspectiva da relação afirmamos apenas ela como necessária, de tal forma que compreendemos que, sob uma outra relação, o que hoje é bandido pode se tornar um justo, ou o que sob determinada relação é erro sob outra poderia ser acerto, ou o que sob determinada relação é ensino pode ser aprendizado sob  outra relação. Através da relação e da conexão cada coisa se liga não apenas a outra que lhe seja oposta, ela se liga também ao todo e , através deste, a ela própria, para assim mudar, devir, (re)inventar-se.
Sob determinada relação, a droga é veneno; sob outra, remédio. Todavia, isto não significa dizer que ela nunca é veneno .Ao contrário, significa dizer que nem sempre a droga é veneno, ou que nem sempre a razão é razão: sob certa relação, a razão pode ser veneno, o juiz pode ser bandido, e o bandido pode ser um santo. Pensar as coisas sob o viés da relação é pensar como é produzido o sentido que lhes atribuímos, e que este sentido sempre está inserido em uma prática que nós mesmos construímos, mesmo que passivamente. Enquanto pensarmos a relação apenas em termos duais ( juiz-bandido, verdade-falsidade) corremos o risco de ficarmos reféns das dicotomias e dos discursos que se alimentam  do preto e do branco, do não e do sim apenas.
Na pintura, o discurso racional sempre se expressou com o predomínio da forma, do limite, em detrimento da cor. O discurso passional, ao contrário, sempre realçou a sombra, o claro-escuro, o fundo negro, as trevas...Em ambos os casos, sempre se colocou a cor em segundo plano. Sabe-o disso não apenas quem pinta : a cor desborda os limites, bem como introduz uma pluralidade expressiva irredutível à gramática redutora do preto, branco, cinza e sombra. Pelas cores, percebemos que a sombra não é a ausência da luz ou o efeito de um princípio ativo distinto da luz ( a treva). Pois as cores também produzem sombras, como se o pode ver em Vermeer[5].
olhar sinóptico não é um olhar relativista ou que aceita, resignadamente, que tudo é igual, homogêneo. O resumo de algo  às vezes é dito “sinopse”. Para fazermos a sinopse de um livro ou filme, é preciso que o tenhamos visto ou lido. Mas quem viu, inteira, a própria vida? Em princípio, somente podemos fazer a sinopse de um dia que vivemos à meia-noite do mesmo. Essa idéia , porém, confunde a sinopse com a reprodução abreviada do que se viveu ou do que se teve a experiência.
Quem viu, inteiro, Deus ou a Natureza? A experiência com o infinito nunca pode terminar, como se termina a leitura de um livro.Quem leu um livro se torna apto a relatar o que leu. Mas e quem viu Deus ou o Absoluto, do que se torna capaz de narrar?E deve fazê-lo em prosa? Ou apenas em versos o conteúdo do que viu pode caber? Manoel de barros nos fala de um “olhar divinatório”[6]: olhar que “celesta” as coisinhas do chão.
Quando Espinosa emprega o termo “sinopse” ele está a querer dizer que o infinito está resumido em cada coisa, por mais simples que seja esta “coisinha do chão”, não importando se ela é uma vitória ou uma derrota, uma dor ou uma alegria, um idoso ou uma criança que acaba de nascer. Enquanto vivemos  o dia, e o tomamos  mais como algo que passa do que como algo que dura, não conseguimos experimentar/viver cada parte dele como o resumo dele mesmo. Se a isto soubéssemos enquanto o vivemos, seríamos como um artista a criar uma obra, dado que o todo não é um texto pronto,mas uma virtualidade , uma matéria ou potência a criar. Então, quando à meia-noite fazemos uma sinopse do dia, o fazemos segundo as possibilidades existenciais daquela parte do dia, e não segundo toda a potência que foi o dia inteiro. Inclusive, parte dessa potência que escapa à consciência  pode ser melhor resumida e expressa em um sonho que nos desperta no meio da noite, fazendo-nos compreender algo que não percebemos durante o dia.
O que vale para um dia vale igualmente para uma vida inteira: cada momento de uma vida é um resumo da vida inteira. Quem descobre isso, e o vive, olha não só a parte,o resumo, mas o todo, o que está sempre a se viver,pois o todo é sempre maior que cada   parte sua, e é maior até mesmo que a soma das mesmas:o dia que vivemos é maior do que as partes dele que vivemos, assim como é maior que cada parte dela a vida nossa mesma. É maior não como um pé que não cabe  em um sapato, ou um livro que não cabe em uma bolsa. É maior porque torna maior cada parte que  a expressa, assim como um tom mais vivo de azul torna mais azul o grau de azul que o expressa. Quando uma parte se liga ao todo do qual ela é uma expressão, ela se torna maior porque ela,através do todo, se liga a todas as partes que expressam o mesmo todo: embora única e singular, ela se descobre ligada ao inumerável que expressa o mesmo todo de mil outras perspectivas, e nenhuma dessas outras perspectivas é a dela própria, o que acentua sua diferença, ao mesmo tempo em que a liga e a integra ao todo que é sua alma heterogênea.O todo não é totalizável, ele não é quantificável: nele “não se pode passar régua”, ele é uma incógnita.
Cada parte de uma vida é uma sinopse de uma vida inteira, embora a vida inteira seja maior do que a mera soma de suas sinopses. De nossa vida inteira vivemos quase exclusivamente a parte atual, a mesma que a cada momento passa. Mas o que passa é a parte atual, não a vida inteira, que é sempre virtual. A parte atual é governada pela percepção, ao passo que a vida inteira somente é experimentada por uma invenção que a torna deslimitada, idêntica ao gosto superior de viver.
olhar sinóptico, porém, não é um olhar da percepção, da memória ou da imaginação: ele é o olhar da alma que, enfim, se tornou inteira, sabendo-se parte do que é infinito, e o infinito é a multiplicidade do que existe de infinitas  maneiras. O olhar sinóptico  é aquele que vê cada coisa finita como um resumo singular do infinito, uma vez que o infinito lhe está imanente como aquilo que nunca a deixa ser finita, limitada. Para ligar cada resumo a outro é preciso, antes, ter a experiência do todo, e este nunca é um livro ou texto. O todo é sempre extratextual. Ele se assemelha mais a uma música: não a música que está em uma partitura ou cd, mas a música que flui, que dura, e que faz de nós mesmos o seu intérprete, de tal modo que apreender tal música não se faz sem que criemos e aperfeiçoemos nosso próprio estilo e gosto, tal como o artista, o músico, que ama tanto o tocar quanto o que precede e prepara o tocar: o estudo,o treinar,o aperfeiçoar, enfim, o esforço.








[1] YOVEL, Y. Espinosa e outros hereges. Lisboa: Imprensa Nacional, 1993, p. 161 e seguintes.

[2] Texto de apresentação presente na  orelha de O guardador de águas , edição da Art Editora, São Paulo, 1989.

[3] “Desejar Ser”, Livro sobre nada, p. 55.

[4] Ibid., , p 41.

[5] Cf.HÖRNAK, S. Espinosa e Vermeer: imanência na filosofia e na pintura . São Paulo: Paulus, 2010.

[6] Entrevista concedida à jornalista Bianca Ramoneda e publicada no site da Leia Brasil.