( trecho do artigo:http://brasileiros.com.br/2015/01/manoel-de-barros-uma-didatica-da-invencao/ )
As coisas que não têm nome são mais pronunciadas
por crianças.
Manoel de Barros
A
velhez não é uma idade. Ela é um estado. Ela é, a velhez, a antipoesia: a “velhez
não tem embrião” [1].
A velhez é refém da “palavra acostumada”, da “mente acostumada”, da “sociedade
acostumada”, da “teoria acostumada”. Torna-se um acostumado aquele que perdeu a
capacidade de achar dentro de si “minadouros”[2]. O acostumado, em
filosofia, tem um célebre nome: recognição.
O olho acostumado perde o dom de descobrir: “O mundo foi renovado, durante a
noite, com as chuvas. Sai garoto pelo piquete com olho de descobrir”[3].
A velhez é a impossibilidade de se perceber como “forma
em rascunho”, como minadouro de sentidos. A palavra que apenas informa
tem essa velhez jornalística, uma vez que para o jornal de amanhã, para a vida
de amanhã, ela já será cadáver: “A palavra
até hoje me encontra na infância”
( 2010a, p.111).
As infâncias não remetem a uma
fase de crescimento que antecede a vida adulta, elas são devires de
(re)invenção.É sobretudo em Deleuze e
Guattari ( 1980) que encontramos a idéia de devir tal como a empregamos ( SOUZA, 2010).Devir é uma forma de comunhão
por imitagem (2010b, p. 177). A imitagem
não é um tornar-se cópia de um Modelo, como em Platão; a imitagem é a
produção de uma variação por contágio: “é ir imitando os camaleões sendo pedra
sendo lata sendo lesma” (1992, p. 314).O devir é uma metamorfose da qual o
próprio poeta fez seu Tratado de Metamorfoses ( 1992, p.250).
No poema “Invenção” ( 2010b, p.
151), o poeta dialoga com um menino que
nasceu do seu lápis: "inventei um menino levado da breca para me
ser", diz o poeta, "passarinhos
botavam primaveras em suas palavras", "(...) ao fim me falou que ele não
fora inventado por esse cara poeta/ porque fui eu que inventei ele" . O
"eu” deste último verso não é um eu
lírico, ele é um agente coletivo como lugar da invenção.Ele é o “eu” do menino que o
poeta inventou para (re) inventá-lo, empoemá-lo ( 1989), enfim, para terapeutá-lo ( 1996).Há um elo
,uma distância mínima, um hífen entre o poeta e o menino. Tal distância não é a
do julgamento, não é a distância do afastamento; trata-se de uma distância que possibilita o afeto, o contágio, o ser
tocado: é a distância intensiva de quem , como o poeta, "escreve com o
corpo" ( 1992, p. 212).
O menino disse ao poeta enquanto
o poeta o inventava: sou eu que te invento poeta, enquanto você me inventa.
Esse menino, diz o poeta, é “a criança que me escreve” ( 2010b, p.147). O
menino que inventa o poeta se torna um intercessor: “A liberdade e a
poesia a gente aprende com as crianças"( 2010d, p.469) , como exercício
de ser criança ( 1999).Por mais que
passem os anos, esse menino será sempre um menino que nos faz devir um, por
mais idade que tenhamos.
A distância mínima que
possibilita a invenção não pode ser
medida com régua: ela é a origem, a fonte, que está sempre no meio,
como espaço de comunhão, de “imitagem”.
Processo semelhante experimentou Clarice: “Às vezes começa-se a brincar de
pensar, e eis que inesperadamente o brinquedo é que começa a brincar conosco”
(LISPECTOR, 1984, p11). Talvez nosso poeta experimentasse algo parecido quando
afirmou: “Nossa linguagem não tem função explicativa, só brincativa” . Entre o
menino e o poeta há uma distância mínima onde ocorre um contágio, um afeto ,
uma transubstanciação (1992, p320), uma epifania, um devir-criança, enfim. Este
intervalo não é um espaço vazio, ele é o lugar das “raízes crianceiras” (
2010b, p 187).
O tempo do devir-criança não pode
ser medido pelo relógio; ele é o “tempo quando” (2010b, p. 133). Do ponto de
vista dos fatos cronológicos encadeados linearmente, o devir é um desacontecimento
(1992, p. 238). O desacontecer remete a um “tempo quando” não cronológico,
tempo de metamorfoses. O quando é o tempo de "ir às origens de uma coisa
ou ser" ( 2010b, p. 133): “eu não
amava que botassem data na minha existência.(...) Nossa data maior era o quando.O
quando mandava em nós. A
gente era o que quisesse ser só usando esse advérbio” (Idem).
O "des" do desacontecer é o mesmo
"des" do desaprender que Manoel aprendeu de Klee: "Ocorre que
falo em desaprender pra chegar ao degrau da infância" ( apud BARBOSA,
2003, p. 127). O “quando” do tempo quando
não é data: não é passado, presente ou futuro. O quando é acontecimento
que expressa uma metamorfose, tal como relatado no poema “Palavra” ( apud RANGEL, 2001): o poeta
estava sentado em um lugar. Até que veio a palavra e tirou o lugar
debaixo dele. Ele continuou sendo, porém sem lugar. Todo lugar limita um espaço
de estar, de ficar. Sem o lugar, o poeta permaneceu ainda sendo, mas não no aqui, apenas no quando.
Este quando é um lugar também, mas sem contornos, sem limites, posto que é um
lugar de metamorfoses, de nadifúndios (1989, p. 14). "O artista
está sujeito a essas metamorfoses" ( apud BARBOSA, 2003, p.125) que
o fazem ir além do "mesmal" (apud BARBOSA, 2003, p123).
[1] Ibid., p. 98.
[2]Ibid.,p.145.
[3] Poema “Mundo renovado”, Livro de pré-coisas.
Referências
- Obras de Manoel de Barros
consultadas:
Compêndio para uso dos
pássaros. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1961.
Gramática expositiva do chão.
Rio de Janeiro: Ed. Tordos, 1969.
Arranjos para assobio. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.
O guardador de águas. São
Paulo: Art Editora, 1989.
Gramática expositiva do chão —
poesia quase toda. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992 ( segunda
edição).
Livro sobre nada. Rio de
Janeiro: Record, 1996 .
Livro de pré-coisas. Rio
de Janeiro: Record, 1997a.
O livro das ignorãças. Rio
de Janeiro: Record, 1997b .
Retrato do artista quando
coisa. Rio de Janeiro: Record, 1998.
Exercícios de ser criança.
Rio de Janeiro: Salamandra, 1999.
Ensaios fotográficos. Rio de Janeiro: Record, 2000.
Memórias inventadas – a
infância. São Paulo: Editora Planeta, 2003.
Concerto a céu aberto para
solos de ave. Rio de Janeiro: Record, 2004.
Cantigas por um passarinho à
toa. Rio de Janeiro: Record, 2005.
Memórias inventadas – a
segunda infância. São Paulo: Editora Planeta, 2006.
Poemas rupestres. Rio de
Janeiro: Record, 2007.
Encontros: Manoel de Barros . Rio de Janeiro, Azougue, 2010a (Org.
Adalberto Müller).
Memórias inventadas - as infâncias de Manoel de Barros. São Paulo:
Planeta, 2010b.
Menino do mato.São Paulo : Leya, 2010c.
Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010d.
Escritos em verbal de ave. São Paulo : Leya, 2011.
Outras referências:
ARNHEIM, Rudolf. Arte e percepção visual: uma psicologia
da visão criadora. São Paulo: Pioneira, 2000, 13ª edição.
BARBOSA, Luiz Henrique. Palavras do chão: um olhar sobre a
linguagem adâmica em Manoel de Barros.
Belo Horizonte: Fumec/Annablume, 2003.
CAVALCANTI,Ana Símbolo e
alegoria – a gênese da concepção de linguagem em Nietzsche. São Paulo :
Annablume, 2005
DELEUZE, Gilles e GUATTARI,
Félix. Kafka - pour une littérature mineure. Paris:
Minuit, 1975.
_____________. Mille plateaux. Paris: Minuit, 1980.
_____________. O que é a
filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34,1992.
LISPECTOR, Clarice.A Descoberta do mundo. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira , 1984.
PESSOA, Fernando. O eu profundo e os outros eus.Rio de
Janeiro: Nova Fronteira,2006.
RANGEL, Pedro Paulo. Manoel de Barros por Pedro Paulo Rangel.Coleção
Poesia Falada, vol. 08.CD.Rio de Janeiro: Luz da Cidade, 2001.
SOUZA, Elton Luiz Leite de. Manoel de Barros: a poética do deslimite.
Rio de Janeiro: 7letras/FAPERJ, 2010.