sexta-feira, 27 de março de 2015

o brilho da molécula

Quem anda no trilho é trem de ferro.
Sou água que corre entre as pedras.
Liberdade caça jeito.
Manoel de Barros

No documentário A mensagem da água , o cineasta e cientista Masaru Emoto  mostra o seguinte acontecimento: ele desenvolveu uma lente de fotografar tão potente que ela é capaz de registrar imagens de moléculas de água.Por que a água? Pois essa matéria é a mais receptiva que existe: tudo ela recebe, tudo ela aceita. Masaru selecionou  então voluntários, todos muito diferentes entre si, fisicamente e em  temperamento. Os voluntários foram selecionados para o seguinte experimento: eles deveriam, primeiramente, pensar em coisas negativas, como ódio e tristeza por exemplo, e projetar tais ideias/afetos sobre um recipiente contendo  água . Após isso, eles deveriam pensar em pensamentos/afetos positivos, como o amor e a alegria, e projetá-los, apenas com o pensamento, para a água. Enquanto ocorria  isso, o artista/cientista tirava fotografias da água.
Após revelar as fotos, ele descobriu que as moléculas de água ficavam deformadas e menos brilhantes quando sobre elas eram projetados pensamentos negativos. Ao contrário, as moléculas ficavam mais brilhantes , mais vivas, quando sobre elas eram projetados pensamentos positivos. A água recebia, aceitava, indistintamente, a ação de tais forças sobre ela, embora apenas os pensamentos positivos aumentavam e potencializavam sua existência: a alegria pensada também passava para ela, para a sua existência, pois o brilho é como a molécula traduz o que para nós é a alegria.Não só o pensamento é capaz de agir, embora não o faça com braços ou pernas: a própria água , tida por matéria sem alma,  também é capaz de sentir.Embora não possua   pele, carne ou nervos, a água   expressa o que sente diminuindo ou aumentando seu brilho.


(molécula de água sob o efeito de pensamentos afirmativos)

As ideias têm realidade, elas têm força.Os pensamentos negativos são forças também, mas são forças que não se compõem com aquilo sobre o qual elas agem: elas são como o martelo que destrói o bloco de mármore, ao invés de nele moldar uma arte.O pensamento negativo não é apenas o martelo, ele também é a mão e o braço que o seguram, bem como o esforço , o suor, o tempo e a intenção de destruir. O negativo é o positivo que não se compreende como força.Já as forças positivas, forças de afirmação,continuam ainda existindo nos seres que elas afetam e contagiam.Na molécula, a alegria que sentimos subjetivamente se metamorfoseia em brilho objetivo.Os pensamentos afirmativos também são o martelo , a mão, o braço, o suor, a intenção...e mais o amor, o desejo  e a obra através da qual o artista continua a existir. Conclusão do filme: se nosso pensamento é capaz de agir sobre algo que nos é externo, aumentando ou diminuindo sua existência, imaginemos o quanto nosso pensamento pode   agir sobre nós mesmos, aumentando ou diminuindo nossa existência,nós que somos mais de 60% compostos de água.Assim como esta, nós recebemos o que nos damos.
O pensamento não é a vontade,  pois a vontade age escolhendo entre alternativas que lhe são exteriores. Por exemplo, vejo um caminho que se bifurca: escolho ir por um deles, e ao ir pelo caminho escolhido não vou por aquele que não escolhi.Posso ter escolhido o caminho errado! Se acertei ou errei na escolha  somente depois descobrirei. Se errei, isso  pode provocar arrependimento, ou seja, tristeza. O problema é que esses pensamentos de arrependimento quase sempre acompanham o ato de escolher na hora mesmo da decisão, enfraquecendo e  enchendo de hesitação e inconstância tudo o que fazemos, por temor de errarmos em nossas escolhas.A imaginação do erro pode ter mais força que a expectativa do acerto.
O pensamento, ao contrário, não é uma escolha: não posso escolher, pensando,  não pensar. Ao pensamento só posso afirmar.O pensamento que pensa o negativo se enfraquece na medida em que pensa: pois antes de negar uma coisa externa, ele primeiro nega a si mesmo. E é por isso que de tal pensamento nunca nasce nada, pois destruir não é fazer nascer.
É isso exatamente que ensina Espinosa. Para ele, não nos tornamos livres pela vontade.A liberdade não pré-existe, como um caminho, à nossa escolha.A vontade  nada mais é, inclusive, do que um pensamento indeciso, fraco, que não sabe o que quer.A força, ou potência, está no pensamento. Não o pensamento abstrato, mas o pensamento que se compreende força, ação, realidade. Visto dessa forma, é um pleonasmo ou redundância falar em “pensamento positivo”, pois todo pensamento é positivo.Sabe disso mesmo a água, embora não o saibam a maioria dos homens, mesmo os muito estudados.
A vontade vive indecisa entre bifurcações e escolhas de qual caminho escolher, e antes da escolha ela já sofre antecipadamente, ou se alegra imaginativamente.E o medo de escolher errado já corrói a própria escolha, de tal modo que muitos escolhem o que imaginam ser um mal menor, supondo que no outro caminho está um mal maior; sem falar naqueles que , carentes até mesmo de vontade, escolhem escolher o que escolhe a vontade alheia, fugindo assim de pensar a própria vida.
O pensamento, ao contrário , não é um caminho que existe antes de o escolhermos. Se o pensar dependesse de uma escolha entre caminhos que se bifurcam, um dos caminhos seria o pensar, mas não saberíamos qual deles o seria, ao passo que o outro seria nem sabemos bem o quê, enquanto que aquele que deve escolher nem mesmo poderia pensar, já que o pensar estaria no caminho que ele deveria acertar escolher, e escolher sem pensar!
Como diz Manoel de Barros:“O andarilho abastece de pernas as distâncias”. Ele não percorre as distâncias de estradas já prontas, mas faz as distâncias que ele percorre aumentarem em razão do seu pensar que anda, avança , inventa caminhos.Não é a força de vontade que muda uma vida, o que muda uma vida é o pensar que afirma a vida.Nós não pensamos primeiro para depois agirmos, pois pensar já é agir, um agir que nasce antes do agir de nossas pernas e braços, e que determina o que eles fazem.Sabe disso primeiro aquilo que, em nós mesmos,   sente esse pensar/agir atuando nele: sabe primeiro nosso sangue, nossos nervos, nosso coração e os olhos com os quais olhamos o mundo.

(o brilho singular da  andarilha  Jeanne Moreau)




domingo, 8 de março de 2015

devir-mulher

Adão, o primeiro homem, conhecia apenas o dormir: o entrar dentro do sono e nada mais ver ou sentir. O sono era, dentro de Adão, a expressão da escuridão que existia antes de a Luz realizar sua obra. Na mitologia grega, Hipnos, o Deus do Sono , é irmão gêmeo de Thânatos, o Deus da Morte. Quem entra no sono , assim nos parece, morre de alguma maneira.
Porém, dentro de Adão aconteceu , certa vez, algo misterioso. E isso aconteceu enquanto ele dormia. No meio do sono, uma Luz se acendeu. No meio da morte que o sono era, Adão renasceu: a referida Luz atingiu seus olhos, mas não os da carne, e os invisíveis olhos se abriram pela primeira vez. Como uma aurora anunciando um novo dia , despontou ,na noite do sono, as cores do primeiro sonho. Algo em Adão se fez dia, paisagem, vida - embora ele dormisse ainda. Sonhando, pela primeira vez Adão via. E ele viu mais claro do que sob a luz do dia que Deus fez. E o que ele viu? Adão viu, pela primeira vez, Eva. Nunca antes ele a vira, pois Eva não fora feita pela Luz que fizera os dias. E estes, outrora perfeitos, incompletos agora se revelavam, pois nestes Eva não vivia . Mas ali estava ela agora, luz nascida do desejo e do sonho de Adão. Não houve antes o sonho e depois Eva, pois Eva era o sonho que nascia de dentro do sono, apagando-o por completo , dando ao sono um sentido. Eva era a luz que iluminava, por completo, a face interna de Adão.
Então, Deus viu Eva, a viu através dos olhos fechados de Adão, que estavam como nunca abertos. De olhos fechados, Adão sorriu pela primeira vez; e falava com as palavras que Deus lhe ensinara , e só agora elas pareciam realmente terem completo sentido, vez que eram ditas para Eva. Assim nasceu o poema, como palavra que se diz para o ser que nasce no sonho, e neste vive.
Enquanto Adão sonhava, Deus retirou-lhe uma costela, uma porção de sua matéria, e ali esculpiu o que Ele, através de Adão, via. E assim nasceu Eva, não como simples fruto da costela, como erradamente se interpreta, mas como fruto que nasceu do desejo de Adão. E neste desejo não havia, como não há, pecado. Nas asas desse desejo Adão, como um anjo, voou. E este Adão que assim voou, o Adão-Poeta, nunca o alcançará o Adão que nunca sonha, e que do voo só conhece a queda.













exercícios de ser criança

Sei de todas as espurcícias do mundo,
mas do que gosto mesmo é de circo.
Manoel de Barros



Xandinho, o Alexandre Jr.,tinha 10 anos quando foi meu aluno em um pequeno  grupinho de estudos de filosofia.As aulas aconteciam na casa dele. A idéia das aulinhas de filosofia nasceram por convite feito a mim  por parte do pai do Xandinho, o Alexandre pai .
Agradeço ao Xandinho por eu ter descoberto que poderia ensinar filosofia brincando. Também aprendi naqueles encontros que podemos desenhar as ideias e conceitos filosóficos, desde que seja como forma em rascunho,como ensina Manoel de Barros.Em muitas daquelas aulas eu desenhava o que queria comunicar, e assim encontrava  um meio mais propício do que a mera fala ou a escrita.Mas todos os desenhos eram feitos para colorir,sobretudo com as cores da alma ( que mais cores têm quanto mais inocentes são, ao passo  que o preto ,o  branco  e o cinza  imperam nos desenhos  dos adultos...).
Uma das primeiras coisas que disse a Xandinho era acerca da origem do nome dele: “você sabia que ‘Alexandre’ significa ‘protetor da humanidade?’”. Ao ouvir isso, Xandinho olhou para si mesmo com  olhos diferentes, e cresceu por dentro.
 Esses encontros eram exercícios para ser criança,como dizia Manoel de Barros. Exercícios estes sobretudo para mim.Se as crianças aprendiam brincando, eu desaprendia o sério posado da razão pura ( o qual,aliás,nunca tive...). Desaprendi muito naqueles encontros, pelo que fui salvo: “é preciso desaprender oito horas por dia”, dizia Manoel de Barros. Naqueles encontros, eu “ia até à infância e voltava”, e aquele que ia não era o mesmo que voltava. E o que voltava vinha de lápis de cor na mão, e aprendia que a filosofia também pode ser desenhada com lápis de cor.
O cursinho era para durar 1 mês. Acabou durando 1 ano.Em mim, porém, ele nunca vai terminar, pois aprendi ali algo que não posso esquecer,sobretudo dando aulas para jovens e adultos.Se não posso mais desenhar os conceitos em papel,hoje os desenho em minha alma, ela que não tem contornos, e passo o desenho para  aqueles que me ouvem , para que estes também desenhem dentro de suas almas  um conteúdo que não pertence a ninguém ,para que assim fique mais do que na memória, fique na vida; cada um  deve desenhar o desenho também dentro de suas almas, com suas próprias mãos  , e a condição de o desenho ficar  é  que ele nunca deve deixar de ser “forma em rascunho”,forma construída também com o sonho e com o desejo.
Entre a penúltima aula com Xandinho e a última houve duas semanas de intervalo  por conta de feriadões. Aproveitando a ocasião, a família de Xandinho foi  viajar.Aconteceu algo na viagem que o Alexandre pai, ao retornar,  resolveu me contar sorrindo, pois ele insinuou que eu tinha algo a ver com o ocorrido.A família de Xandinho  aproveitou para ir a Londres, na companhia de outros parentes.Eles foram ver , entre outras coisas, a cerimônia  célebre na qual a rainha passa diante dos súditos, e todos devem se ajoelhar inclinando os olhos para o chão.Muitos brasileiros viajam milhares de quilômetros para se ajoelharem assim. E o fazem pagando caro e “por livre e espontânea vontade”.Eles usam sua liberdade para se tornarem servos.
Pois bem, estavam todos lá, o lugar estava repleto de ingleses e turistas. E  lá vinha a rainha da Inglaterra com sua pompa e ouro. À medida que ela se aproximava, um movimento uniforme se fazia: todos se inclinavam, olhos ao chão, como prova de submissão.Porém,quando a rainha da Inglaterra passou exatamente diante da família de Xandinho, todos se ajoelharam também, com exceção do menino.Xandinho ficou de pé.Tal fato chamou a atenção da rainha, pois àquele tipo de insubmissão ela não estava acostumada a ver. Então, os olhos do poder e os olhos da criança se cruzaram, e foi a rainha que desviou os olhos primeiro.A criança venceu. Quando a rainha passou, um dos adultos parentes de Xandinho  perguntou,um tanto constrangido, por qual razão ele não fez como todos e se ajoelhou diante do poder. E foi com um sorriso,um sorriso amigo, que o Alexandre pai me contou o que disse seu filho,o Xandinho: “eu não me ajoelho diante de quem é igual a mim”, disse o menino com firmeza.

O curso terminou sem exame final e sem prova,claro. Xandinho já está aprovado, para a vida.