quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

o que é verdadeiramente novo nunca vira sucata



O que é hoje velho,não foi um dia novo: sempre foi velho.
E o que é verdadeiramente novo nunca fica velho: o novo é o tempo por vir.
Deleuze

O que é verdadeiramente novo
nunca vira sucata.
Manoel de Barros



Arrumar a casa.
Limpar a poeira acumulada, para que as cores sufocadas respirem em nova aparição.
Cuidar dos suportes físicos, para que eles sejam a imagem externa da integridade do nosso espírito.
Lustrar os vidros, para que nesta transparência nosso pensamento se possa ver.
Reorganizar as distâncias entre as coisas, para que o espaço não seja um vazio, e para que a presença dos objetos não impeça o deambular de nossa percepção.
Praticar o desapego daquilo cujo tempo passou, para que a luz do dia toque de novo os olhos do nosso desejo: e que este seja como uma aurora a raiar.
Fazer tudo ao som da música, cantando junto, para que na mente também se opere a faxina.
Depois de tudo revitalizado, alegrar que sejamos nossa primeira visita.



***   ***
Entre um segundo e outro do dia, 
unindo-os para a cotidiana travessia, 
é aí que se vive o verdadeiro ano novo: 
em nossas mãos, enquanto avançamos, 
ao invés de champanhe ou fogos, 
a água, o pão e o sonho.

***   ***


O tempo não é um velho,
mas uma criança:
dentre os seus vários brinquedos,
o sempre  novo é a esperança.


***   ***







quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

manoel de barros: o olho divinatório


Se as portas da percepção estivessem limpas,
cada coisa apareceria como é: infinita.
W.  Blake


Certa vez, quando perguntado sobre sua poética, Manoel de Barros respondeu:

Penso que nasci com o olho divinatório, que é o que chamam de dom. É assim que Sófocles, no Édipo Rei, chamou. Ele disse que o artista nasce com esse olho divinatório. E que esse olho deve ser completado com outro olho, que é o olho do conhecimento. E completou que a arte é feita da reunião desses dois olhos. Isto seja: que a arte é o terceiro olho. Eu andei lendo os poetas, os filósofos, ouvindo os músicos, vendo os Picassos para ganhar o olho do conhecimento. Acho que a construção de minha poesia, que é uma construção meio caipira e meio erudita é fruto desse terceiro olho e mais de uma disfunção lírica. Essa disfunção vem do grande fastio que tenho pela palavra acostumada.    
                                       
 “Olho divinatório”: olho de transver as coisas, desformar a natureza. Assim, a poética de Manoel de Barros é inseparável de uma percepção. Esta não é um “fazimento cerebral”, mas um instrumento de incorporação. Incorporar as coisas é sê-las, é mimetizá-las como um camaleão. 
O olho de transver é uma “visão fontana”  na qual o mundo, renovado em seu inacabamento , renasce e jorra em sua eterna  novidade:  

Tudo que os livros me ensinassem
os  espinheiros já me ensinaram.
Tudo que nos livros eu aprendesse nas fontes eu aprendera.
O saber não vem das fontes?


(trecho do livro)






domingo, 6 de dezembro de 2015

dançando sobre a mesa




O filme Filhos da Esperança (Children of Men, 2006) , de Alfonso Cuarón , passa-se em 2027 e é determinado por um acontecimento sem precedentes: há 18 anos , desde 2009, não nascia um único ser humano. Todas as mulheres do mundo, da África à Ásia, da Oceania à Europa, e de todas as Américas, tornaram-se inférteis. Por conta disso, não havia mais futuro: encurtando-se mais e mais, o horizonte enfim chegaria à praia, e nada para se ver ao longe haveria.
Enfim, a infertilidade generalizada das mulheres anunciava que a humanidade teria fim. Não havia mais crianças já de algum tempo. Em breve, não haveria mais adolescentes. Depois, inexistiria a juventude. Estranha ideia: geralmente associamos a noção de extinção a seres de um passado muito remoto. Porém, um dinossauro se tornava, no filme, a juventude ( e não haveria, no futuro, nem mesmo arqueólogos para descobrirem que um dia existira a juventude...). Na continuidade das extinções, seria a vez dos adultos desaparecerem, restando apenas os idosos :mais do que nunca, de novo crianças ( aliás , um dos personagens mais “jovens” do filme é, por sinal, o mais idoso, e é representado pelo ator Michael Caine ; a juventude de tal personagem se expressa sobretudo através da sua preferência musical pelo rock, sendo a música o último registro no qual a juventude, como “fóssil”, ainda sobrevive ) .
O filme mostra escolas vazias, museus às moscas, obras de arte que hoje valem milhões sendo encontradas jogadas na rua. Ainda existiam os livros, mas não existia mais a leitura. Ninguém mais escrevia, ninguém mais lia; não havia mais professor e aluno, expectativas e projetos. Restavam apenas seres humanos lutando para permanecerem humanos. Quando desaparecem o pintor, o professor, o aluno , o escritor, o educador, etc., corre perigo o próprio humano, que é decerto a base, mas que tão frágil se mostra diante do assalto do seu contrário, o inumano, a barbárie ,a violência. E é essa a atmosfera do filme: uma guerra constante de todos contra todos.
Não obstante o fato de quase todas as instituições terem desaparecido, permanecia , no entanto, uma. Somos levados a crer que a existência dessa instituição nada teria a ver com o futuro e com o humano. Essa instituição é o Estado. Embora não houvesse mais justiça, havia o Estado. Apesar de não existirem mais faculdades de Direito, existia o Estado. E o seu braço armado, a polícia, estava mais atarefado do que nunca. Como prender alguém visando a sua ressocialização se a própria sociedade já estava condenada à pena de morte? Não se prendia, matava-se. Assim, tornava-se uma assertiva incontestável, e não por questões metafísicas ou religiosas, mas políticas, a opinião de que a morte era a única certeza.
A abolição do futuro apagava, ao mesmo tempo, a lembrança do passado, e tornava o presente uma enlouquecida estrada cujo ponto de chegada e ponto de partida se encontrariam no meio dela, abolindo-a e a tudo que sobre ela caminhou e deixou rastro.
Outro fato chama a atenção no filme: havia aqueles que se contrapunham ao poder do Estado, e se valiam de armas para realizarem seus intentos. Eles se diziam “ a resistência”. Mas frágeis eram as idéias que justificavam o uso daquelas armas. Obscuros eram também seus propósitos.Examinando bem suas posições, parecia que era o uso das armas que justificava ter idéias, fossem estas quais fossem, o que acabava sendo o mesmo que atestar que as idéias já não mais existiam, tampouco a fronteira, que é já uma idéia, que separa , e distingue, a esquerda da direita, os progressistas dos conservadores, a revolução do terror.
Contudo, no meio do filme acontece algo de extraordinário e  imprevisto. Afinal, o extraordinário não seria extraordinário se não fosse imprevisto. Nada de mais ordinário que a previsibilidade ( o que nos permite concluir o quanto que a ciência, com o seu ideal de previsibilidade, nisto dando o braço ao cálculo financeiro, pactua com a ordinariedade). Uma refugiada extremamente jovem, negra, pobre, muito pobre, aparece grávida. O sagrado fizera novamente uma esquiva aos homens, e reaparecera não no ventre de uma mulher poderosa, tampouco no altar de um templo, mas no ventre de uma marginalizada. Eis o sentido do sagrado: ele é marginal, no sentido de estar à margem de tudo o que o homem põe no centro. E quase sempre o homem põe no centro o poder, e em torno deste passa a gravitar. Mas o sagrado também é poder, e revela que a margem está por toda parte.
Quando os homens que se consideram da resistência descobrem a grávida, resolvem se apropriar dela ,e passam a calcular a vantagem que poderiam tirar do fato.Ventila-se inclusive a idéia de matá-la, pois vislumbravam nisso uma vantagem política. Porém, um personagem um tanto cético e resignado até então, chamado Theo (representado pelo ator Clive Owen) , sente-se tomado por um impulso involuntário para proteger a menina grávida. Aos poucos, movido por essa exigência, sua índole vai mudando. Vê-se que ele passa a acreditar em algo. Esta crença muda seu rosto, seus gestos, suas percepções, sem que ele entenda exatamente por que. Não que ele se torne outro. Ao contrário, era como se ele, conforme dizia Espinosa, se tornasse ele mesmo. Desconfiando dos homens da resistência, Theo resolve fugir com a grávida, e passa a ser perseguido após descobrir que tanto ele quanto ela seriam mortos.
Uma das cenas mais fortes do filme , apresentada em um plano-sequência admirável, acontece quando os dois personagens tentam se esconder em um prédio em ruínas abarrotado de refugiados. Na verdade, eram três os personagens, uma vez que o bebê acabara de nascer momentos antes. Diante do prédio, um exército atirava sem parar contra os que estavam lá dentro escondidos, pois entre estes se encontravam também os líderes da resistência, que por sua vez tentavam capturar Theo e sua protegida. Até mesmo um tanque disparava contra a construção, fazendo voarem destroços por toda parte e deixando o ar saturado por uma poeira cinza. O barulho era ensurdecedor. De repente, como se fosse um indignado e são protesto contra toda aquela loucura, um chorinho de nada começa a ser ouvido. Era o chorinho do bebê enrolado nos trapos que a mãe improvisara como manta. Pouco a pouco, os refugiados, pondo a própria vida em risco, saem de seus esconderijos e esticam a cabeça para se certificarem de onde vinha aquele chorinho. Um soldado ouve o choro e cala a arma. Faz sinal para que um outro também escute e lhe imite. Resguardando-se como que para obedecerem a um imperativo mais forte do que a ordem de comando , cada soldado guardou a arma, até mesmo o tanque não mais atirava. Só se ouvia o chorinho como expressão do poder da vida, que ali fazia calar o poder da morte. Os três passam por entre os soldados. Alguns se ajoelham, outros choram, muitos sorriem...Passa diante deles não um rei ou um príncipe, mas uma simples criança humana , tão singular em sua natureza universal: une vie, uma simples vida, como dizia Deleuze.
Passava por eles a fonte sem a qual todo valor seca, aquilo sem o qual não há instituição que sobreviva, nem teoria que mereça sair da boca humana. Sem o devido cuidado e valorização dessa fonte, o quadro vira só tinta, a música se torna apenas som, o poema se converte tão somente em letra no papel e o tempo se torna apenas contagem que avança para o fim.
No mito grego, um segundo estômago fora colocado em Pandora, a primeira mulher, como algo destituído de utilidade: esse segundo estômago seria tão somente um buraco excedente, que obrigaria o homem a muito esforço para preenchê-lo, ao mesmo tempo que dotaria a mulher de uma insatisfação crônica. Contudo, nesse segundo estômago deu-se o milagre estético, vingou um poema:ele se tornou o útero.
Como diz Deleuze, todo órgão se explica por uma função que ele cumpre.O funcionalismo, como império das utilidades, preside não apenas o mundo orgânico, como também o mundo econômico, tecnológico , acadêmico e mesmo o mundo cultural.Segundo a visão funcionalista, utilitária, tudo existe para cumprir uma função: a função do cérebro, enquanto órgão, é fazer teorias ( teses, monografias, ciências...); a função dos olhos, enquanto órgão, é ver o "mundo objetivo"; a função de uma mesa é servir de apoio para o almoço ou a janta... Mas a criação, pela qual algo novo nasce, afirma Deleuze, nada tem a ver com o exercício da função de um órgão.A criação vem de um corpo ainda "sem órgaõs": ela vem de uma parte do corpo sem função utilitária ou pragmática. É como uma graça, uma espontaneidade que não se explica pelas programações e metas do mundo funcional, que é sempre "focado", ávido por resultados.
corpo sem órgãos não é outro corpo, mas nosso corpo mesmo quando o libertamos de existir à maneira de uma empresa ou fábrica, e o experimentamos-vivemos como um laboratório ou oficina: como "Uma Oficina de Transfazer Natureza", nas palavras de Manoel de Barros.O segundo estômago de Pandora se transfez: reinventou-se útero.
O futuro não é gerado por nenhum dos órgãos constituídos do presente, seja esse “órgão” a ciência, o capital ou o Estado. O que esses órgãos fazem é construir um arremedo de futuro em razão de seus interesses presentes. Mas a linguagem da graça não a pode entender todo aquele que apenas crê no resultado a serviço de um interesse.  Esses órgãos põem o futuro em risco, e nada põe tanto o futuro em risco do que um presente sem futuro. O futuro somente pode nascer onde existam as subversões a este mundo presidido pelos órgãos e suas funções, pelos órgãos e suas metas, pelos órgãos e seus “focos”.
Sem dúvida, sentar-se à mesa para almoçar ou jantar , ou nela realizar  “reunião de negócios”, dá uma razão de ser funcional, utilitária,à mesa. E a essa razão ninguém questiona...A não ser aqueles que sentem a necessidade de subir  sobre a mesa, subvertendo a lógica das utilidades, fazendo da mesa  um palco;  e, dançando, nela servem outros alimentos; dançando, justificam a sublevação pela instauração de outra realidade que, pelo afeto, falam por aqueles que os almoços&negócios excluem.






(da trilha sonora do filme)

 (da trilha sonora do filme)


(da trilha sonora do filme)

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

a vitória da facção mais numerosa

Dizer que cada um tem sua opinião, e que isso traduziria a essência da democracia, equivaleria a aceitar que, no campo da política, cada político tivesse seu próprio partido.Mas se cada político tivesse seu próprio partido, apenas em favor de si mesmo cada político agiria ( o congresso brasileiro, contando já com mais de 30 partidos, parece caminhar para isso...). Este agir de cada um a favor de si mesmo nada tem a ver, em essência, com a ideia de anarquia. A questão é: uma ideia não é uma opinião.
As pessoas devem buscar as idéias, não as meras opiniões.É fácil ter uma opinião:basta julgar,diminuir,aumentar,etiquetar,dissimular,subestimar,superestimar,cobiçar,lisonjear,rivalizar,pretender... enfim, ignorar( mas sem saber que se ignora).Sem esforço, muitos emprestam suas almas para que nelas viva um ou mais desses verbos.
Oscar Wilde dizia que "a vitória da opinião da maioria muitas vezes nada mais é do que a vitória da facção mais numerosa".Ter uma ideia, porém, exige esforço. Exige autonomia conjugada com o afeto pelo comum. Exige também coragem: coragem para não se subordinar às opiniões dominantes , que também são modos de vida estandartizados , tristes e impotentes, que querem se propagar através de nós. Ter uma idéia não é ter uma opinião: mostrar essa distinção consiste no maior valor que a educação, como prática libertária, pode ter.
Maquiavel inaugura a política moderna ao afirmar a seguinte opinião : "os fins justificam os meios". Entre povos mais sábios, porém, professa-se esta justa ideia :"se o homem que não convém empregar os bons meios, os bons meios não convirão"( Confúcio).Os "fins" pertencem à esfera da opinião, ao passo que o homem que convém aos outros e a si age sempre de acordo com as ideias. Estas são sempre meios, jamais fins. É por isso que a ação de uma ideia é sempre imediata: seus efeitos (políticos, clínicos, pedagógicos,enfim, existenciais) nunca podem ser vividos apenas em um futuro incerto, prometido, como reza toda esperança, religiosa ou política.Uma ideia não é uma estátua pronta , tampouco a beleza ideal que se toma como modelo para a sua produção. Como meio, ferramenta, a ideia é como o martelo e o cinzel, bem como a força, a sensibilidade e o desejo do escultor que, antes de tudo, esculpe a si mesmo.
Uma perspectiva sobre uma idéia não é uma idéia, é tão somente uma perspectiva sobre uma idéia. É a idéia que justifica a existência de um partido político. É a idéia que é uma perspectiva sobre a realidade, não a opinião.As próprias idéias são perspectivas sobre uma realidade que, por ser processo, não pode ser encerrada em uma opinião fixa.As facções nunca têm perspectivas, elas têm "A Verdade". E por esta Verdade ferem e matam , corrompem e são corrompidas.Elas estão sempre em “guerra civil” contra a Verdade de outra facção. Como em toda guerra, há os mercenários que leiloam suas competências à facção que pode pagar mais.

As idéias, contudo, formam um conjunto aberto, plural, sem hierarquia, onde reina a autêntica democracia.Nesta, a verdade existe como perspectiva sobre a vida, cujo valor se mede pelo quanto que ela favorece a própria vida.A mera defesa da opinião , sem o esforço para alcançar a perspectiva que uma idéia é, equivale, no plano político partidário, à conduta condenável de quem usurpa o comum para fazer prevalecer seus interesses pessoais .A essência da democracia são as idéias, assim como o são da própria vida.

regeneratio

Com as duas mãos para trás, andando lentamente, o homem de meia-idade só pensava em uma coisa: no próximo passo a dar, o qual ele dava de forma hesitante. De repente, passa correndo por ele uma criança, sem nada nos pés, sem nada nas mãos, sem nada no estômago. Correndo atrás dela, o policial, o assistente social, o padre, o psicólogo, as balas de revólver. Dentro do homem escondeu-se aquela criança, entrando-lhe pela porta da sensibilidade apenas entreaberta: a criança se apossa , desfaz o laço e o nó das mãos às costas, e delas cai o passado que o homem segurava como uma pedra.



segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Espinosa: o direito nascente (artigo)



(trecho do artigo)

                                ESPINOSA: O DIREITO NASCENTE


                                                                  Elton Luiz Leite de Souza*


Resumo:A originalidade de Espinosa, que é também sua atualidade, repousa na distinção de dois termos: jus e lex. Essa distinção envolve a célebre diferença entre direito natural e direito positivo.Porém, Espinosa se recusa a dividir o direito. Para ele, há apenas um único direito, e este é expresso pelo termo jus, que também se traduz em sua obra por potentia.O que comumente se chama de justiça, Espinosa identifica à lex, a lei.A diferença entre direito e lei é a mesma que distingue potência ( potentia) e potesta ( poder).Ao identificar o direito à lei, o positivismo relega a justiça ao campo meramente ideal, do dever ser.Para Espinosa, diferentemente, a justiça é âmbito da lei, e apenas dela, uma vez que o direito, enquanto potência, é parte do próprio ser.
Palavras chave: Espinosa, Direito, Justiça, Lei.


Quem se aproxima da origem se renova.
Manoel de Barros


1 Introdução: jus e lex
Na época em que Espinosa escreveu havia certa tensão semântica entre dois termos: jus e lex. Espinosa defende a precedência do jus sobre a lex, tomando-o como sinônimo de potentia. O jus é a potentia. E a potentia é a própria existência. Em Espinosa, a existência se expressa como capacidade de agir.
O agir não é exatamente correr, andar...Olhar também é agir, assim como o ouvir. E mesmo o meditar é um agir. O agir é uma atividade. Corpo e mente agem: eles agem posto que existem. O contrário do agir é o padecer. Este nasce quando aquilo que fazemos se explica mais por outra coisa do que por nós mesmos. Um exemplo: o homem que, tomado pelo ódio, fala descontroladamente e corre atrás do ser que ele odeia, para assim tentar feri-lo ou destruí-lo, esse falar e esse correr feitos por ele não são ações, são padeceres.O corpo dele aparentemente age, mas não age a mente. Esta sofre o agir de algo externo. Sob um padecer, nascem as paixões. Estas podem ser tristes ou alegres, conforme veremos mais à frente.Por ora, queremos adiantar o seguinte: as paixões não são ações, mesmo as paixões alegres. As ações são idênticas às virtudes. Mas Espinosa inova, e muito, também aqui; pois para ele as virtudes não são temas circunscritos apenas ao âmbito dos valores, já que elas, as virtudes, pertencem à própria existência: elas fazem parte, portanto, da própria ontologia, isto é, da maneira como de fato somos. E é por isso que ele nomeia sua obra como Ética. Aqui, porém, o objeto não é o dever ser, e sim o próprio ser. Sua concepção de direito, conforme será visto, é marcada por essa originalidade: o direito está inscrito no campo ontológico; logo, na esfera da ética.O direito assim compreendido não é prática apenas da vontade: ele também é, de forma imanente, questão que envolve o pensar.Por isso, e este é o ponto principal, há uma relação intrínseca entre jus e existência, entre jus e natureza. Daí a definição do jus como direito: direito natural  .
A palavra “natureza” é a tradução do termo grego “physis”, que significa  “nascer”. Hoje, quando pensamos em natureza, imaginamos florestas, rios, animais...isto é, coisas não tocadas ou maculadas pelo agir técnico do homem; já os homens da ciência,  por sua vez, pensam na natureza como a esfera do determinado, do objetivo, por oposição ao mundo dos valores. Essas duas maneiras de encarar a natureza, porém, não traduzem o sentido original da ideia de natureza presente no pensamento de Espinosa. Para este, natureza é tudo o que existe. A natureza também compreende o plano das ideias, o âmbito da mente ( do pensar).
Todavia, as coisas, os seres,  podem existir como efeito ou como causa.E aqui está a riqueza de Espinosa: em geral, olhamos para o efeito como algo já nascido, pronto, e mal atinamos para o produtor, para aquele que o fez nascer. Por outro lado, em Espinosa não há uma cisão absoluta entre o nascido e aquele ( a causa) que o faz nascer. Quando olhamos para tudo o que é efeito e buscamos ver nele sua causa, compreendemos que o efeito nunca se separa de sua causa, e que esta está sempre a viver na imanência daquilo que ela produz. Aplicando essa ideia ao tema do artigo, podemos dizer que a lex é o efeito do jus. O jus é direito, mas direito sempre nascente. Quando a lex se separa do jus, ela pode se tornar direito morrente: um direito que perdeu sua relação com a existência, com a ética. Apenas as palavras, e as paixões, a sustentam. A lex provoca, então, mais maus encontros do que bons: entrar em contato com ela gera mais tristeza do que  alegria. E o mais grave: quando a lex perde seu vínculo, vínculo filosófico, como o jus, ela pode se converter em meio ou instrumento para a injustiça. Isto é, ela pode tornar-se arma nas mãos daqueles que a empregarão para fazer valer suas paixões, sobretudo a paixão pela potesta, pelo poder.
Por outro lado, Espinosa desdiviniza a lex  e a considera como fruto da prática humana. Com a lei, nasce a ideia de justiça. Não há justiça sem lex; não há lex , e portanto justiça, sem direito. O que hoje chamamos de direito civil é o que Espinosa designa como lex.Por outro lado, atribui-se  hodiernamente o nome de direito natural a algo muito distinto do que Espinosa entendia por esta expressão. De fato, é consensual hoje estender  a ideia de lex à natureza, o que leva a supor que há um legislador que criou esta lex, e que este legislador não é o homem. Além disso, esta lex não trata do que é, da existência, mas do que deve ser. Repetimos: em Espinosa, a natureza não é um dever ser, ela é ser, existência, potência.Quando se atribui ao ser a lex, a lei, finda-se por   prescrever ao que é  uma obrigação: a de que ele deve ser. Coloca-se então uma cisão entre a existência( o agir, a potência) e o plano das essências. Estas se tornam modelos ideais que todo agir deve buscar realizar. Quando se atribui a lex à natureza, salta para fora uma transcendência como plano ideal e moral. O plano das essências seria perfeito, esfera das “puras formas”: nestas estaria a perfeição de que carece a existência. No plano das essências há um homem ideal como modelo moral para os homens que de fato existem. Esse modelo ideal de direito natural é tolerado pelos usurpadores da justiça, e até mesmo incentivado, uma vez que ele não incomoda a ninguém. Como diz Espinosa, esse modelo estéril/erudito/formal/transcendente  de direito natural   é como um templo no qual os homens entram e , lá dentro , abraçam-se e se tratam de amigos e irmãos. Mas quando voltam aos seus interesses , que deixaram fora do templo, tratam-se como inimigos e, por imaginativa precaução, dissimulam meios para se colocarem como exceção às regras, considerando que o mesmo fará , se liberdade tiver, o outro homem.
É assim que argumenta Espinosa para refutar a intromissão da lex no âmbito do direito natural: como toda lex, a lei natural seria um universal, uma forma. Por ser uma forma, ela não é uma potência, mas um limite . Assim, transpõe-se igualmente a ideia de justiça para esta esfera ideal e formal , de tal maneira que existiriam duas justiças: a que depende dos homens, a justiça jurídica, e a que não está no poder dos homens , a justiça natural ou moral, cuja fonte seria uma razão imaculada ou um Deus Legislador.
Espinosa se distingue profundamente dessa concepção clássica de direito natural. Para ele, jus é direito; lex é justiça, lex ( lei) não é direito. Logo, só existe um direito: o que se deduz da potência ou, o que é o mesmo, da existência. Sob essa perspectiva, o justo e o injusto são determinados pelo homem como meios para favorecer sua existência, seu direito natural. O injusto é tudo aquilo que precariza o direito natural. O justo tem seu contrário: o injusto. Mas o direito natural não tem contrário: não existe “indireito”, a não ser que o identifiquemos à fragilização ou despotencialização da existência e, no seu limite, o indireito seria a própria morte.
Direito é sinônimo de existência. Direito é ser, e não dever ser.  A lex não é o direito: ela é o instrumento do direito. E só há um direito: o de existir. O corpo existe agindo, assim como a mente também existe agindo. O agir da mente é o pensar. O direito não pertence ao campo axiológico, mas ao ontológico. Ele não é um valor, ele é um ser, um agir.Pode existir direito sem lex, como no estado de natureza, porém  não pode existir lex sem direito. Em Espinosa há um só direito, e não dois. O que caracteriza a sociedade civil é que, nela, não pode existir direito sem lex. Espinosa não aceita a divisão do direto em dois: o natural e o positivo. Existe apenas um direito.
Como todo valor, a ideia de justiça implica também seu contrário: a injustiça. A injustiça é uma negação da lei.O direito está no campo do ser, da dimensão ontológica. O direito é potência, jus. Se a injustiça é uma negação da justiça, a impotência é um enfraquecimento do jus, da existência, isto é , a sua despotencialização. Não raro,  a introdução da ideia de injustiça no campo da natureza gera a ideia de um “mal radical” ( como pensa Kant) no coração mesmo do homem, como se ele fosse um demônio irrecuperável que furtou ou roubou antes mesmo de haver direito penal para determinar o que é furto e roubo....A intromissão da lei no campo ontológico produz uma metafísica da culpa, do negativo, da pena. Como corolário, criar-se-á um Tribunal Teológico-Jurídico com direito a julgar os homens até mesmo depois de eles não mais existirem.
Quando um jovem virtuoso diz: “vou fazer direito!” , está elidida nessa afirmação a diferença entre direito e lei. Estranharíamos se ele dissesse: “vou fazer leis!”. Esta mesma expressão soaria adequada se o jovem tivesse a intenção de ser um parlamentar, um legislador. Um estranhamento igual causaria se ouvíssemos deste último a frase: “vou fazer direito!”. Assim, ao invés do direito, escolas de direito via de regra  ensinam o conhecimento de leis já prontas, como formas apenas, de tal modo são elas separadas daquilo que é sua virtude: o direito. Pior ainda, confundem o direito com a lei e negam que o direito natural seja de fato direito. Mas o que não é direito é a lei: esta é potesta, poder,  ao passo que o direito é potência. Por essa razão, ensinar o direito não é apenas ensinar leis. Ensinar o direito também é ensinar a filosofia, o agir, o pensar, o desejar, a sociedade, enfim, a natureza. Ensinar apenas a lex é fechar, ao passo que fazer compreender o jus é abrir, é agenciar, é conectar.E é a própria lex que também é assim ampliada, quando a vemos ligada ao jus que a faz existir.
O positivismo, como “religião das leis”, destrói o direito quando o identifica à lex, ao mesmo tempo que retira desta o caráter de poder a serviço de uma potência, isto é, de uma existência ou direito. Quando  o juiz diz que é “a boca da lei”, não está destituindo-se de poder, como aparentemente quer fazer acreditar, mas arvora para si um poder semelhante ao do sacerdote que apenas diz ser o instrumento de Deus. Tal juiz é o sacerdote da religião das leis. Além disso, o jus não concerne apenas à boca, ao proferir sentenças. Ele também se enraíza no coração, no sentir, e é ele que dá consistência ética à sentença como “sentir que também se pensa”.
 Mas por que o direito natural não é suficiente para garantir a convivência dos homens? Por que precisamos da lex? Espinosa afirma que o jus é potência de agir.Contudo, a potência de agir não é exatamente o agir. O médico tem a potência de curar, mesmo quando ele não está exercendo a medicina. Quando ele está de fato a exercendo, o médico está agindo: ele exerce seu poder, sua potesta. A potesta, o poder, decorre da potência, é a sua efetuação. Não há potesta sem potentia, e potentia é jus, direito. O jus primeiro é a própria existência. Existir é o primeiro direito. No estado de natureza, porém, os homens carecem de meios para compreender o que é sua existência, o que é o jus. Embora careçam de meios de compreensão, eles não carecem, no entanto, dos meios de exercerem o poder, a potesta. O que caracteriza o estado de natureza é a utilização da potesta como instrumento a serviço apenas do jus próprio, em detrimento do jus do outro. O jus do outro, a existência do outro, passa a ser considerada como inimiga.
Para Espinosa , e isto expressa sua impressionante atualidade, o estado de natureza não antecedeu, no tempo, o estado social. Ele não foi superado de uma vez por todas com o contrato social e a instituição da lex.O estado de natureza é pré-social. Ele é um estado pré-reflexivo, imaginativo, passional, e que está presente mesmo no homem considerado racional.Quando um juiz julga movido mais por paixões do que por virtude, ele está se comportando como se vivesse no estado de natureza: o outro é um inimigo diante do qual posso trapacear, dissimular, enganar, supondo que ele faria o mesmo comigo se liberdade ele tivesse.O pré-social não é o índio em sua floresta, mas o homem que serve às suas paixões como se fosse um escravo ou servo delas.O estado de natureza não é uma negatividade a ser superada, ele é uma forma confusa de se compreender a existência e a liberdade.Mas não se pode eliminar o estado de natureza, assim como não se pode erradicar, por decreto ou lei, a cobiça, a raiva, a inveja, a ira...
A lex é produzida não para negar o jus, mas para a criação de um outro indivíduo que nascerá para garantir a singularidade do direito de cada um. Esse indivíduo é o Estado.Não há indivíduo sem partes. A lex nos faz partes de um indivíduo cuja existência ( ou jus) consiste em potencializar a nossa existência, o nosso jus. Quando o Estado quer fazer prevalecer seu jus em detrimento do direito dos indivíduos, ele se comportará então como um indivíduo passional, invejoso, guloso, que quererá existir como um todo à parte. E, para tal, ele poderá se servir da lex, da lei. Ou seja, o Estado se comportará , ele também, como em estado de natureza pré-social. Seus inimigos não serão apenas os outros Estados, eles serão sobretudo seus próprios cidadãos. Eles serão forçados a sustentar esse Estado, assim como um órgão doente força os outros órgãos a trabalharem forçadamente para ele, uma vez que já não há mais o todo como razão de ser dos órgãos ( o órgão doente se comporta como “um todo à parte”).
O Estado nasce tão somente da delegação da potesta, do poder, e não da potência. O Estado surge pela delegação do poder de agir enquanto ações que nosso corpo pode fazer. Pois pensar, imaginar, etc. também são ações que fazemos com nossa mente ou espírito. O limite da lex e do Estado é determinado pela potência de pensar. E pensar não é lex, é jus, é direito.





* Doutor em Filosofia ( Uerj), Professor Adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

domingo, 29 de novembro de 2015

o primeiro homem


                                                             
Eu sou mestiço, amigo.
Não sou preto e nem branco.
O amor mistura tudo.
E esse é seu extremismo:
casar extremos.   
            

Há mais semelhanças entre mim e meu irmão do que entre mim  e meu primo próximo.E há mais semelhanças entre mim e meu primo próximo do que entre mim e meu primo distante.Sou mais parecido com meu irmão do que com meu primo porque eu e meu irmão possuímos um mesmo progenitor. Para saber o que tenho de comum com meu primo próximo, é meu avô comum que revela, pois nosso avô é o mesmo pai de nossos pais diferentes.Quanto ao primo distante, é meu bisavô que nos torna comum, enquanto único pai de nossos avôs diferentes. E a um primo mais distante ainda, é nosso trisavô o ponto comum, é ele o elo comum que nos une, a despeito da separação identificada a nossos bisavôs, avôs e pais diferentes. Enquanto indivíduo que viveu em um passado distante, meu trisavô não existe mais. Porém, na medida em que ele é o  elo ou elemento comum entre mim e meu primo muito distante, meu trisavô existe ainda: ele existe em nós, ele é o não individual de nossas individualidades. A causa nunca deixa de existir  no produto que ela gerou.
Imagino agora o parente mais distante possível que possuo, um primo ultra distante: enquanto indivíduo, o nosso elo comum  vivera em um passado muito remoto, mas esse comum ainda vive  em nós, próximo, muito mais próximo do que meu pai como causa próxima. Meu tatatatatatatatataravô está em mim como aquilo que me torna próximo ao primeiro homem, ou seja, ele me torna irmão da humanidade inteira, e primo de tudo o que é vivo.
A diferença entre irmão e primo se define pela proximidade ou não da causa próxima que nos gerou: meu irmão o é pelo pai em comum que temos; meu primo próximo o é pelo avô em comum que temos; meu primo distante o é pelo bisavô comum que temos....E o que me torna irmão próximo ao outro homem distante  não é o seu pai ou o meu, o seu avô ou o meu, o seu bisavô ou o meu, o seu trisavô ou o meu... mas sim a causa comum que nos torna homens. Essa causa nos torna uma irmandade para além dos limites daqueles que chamamos irmãos de família. Somos todos irmãos, desde que experimentemos essa causa como próxima. Assim, seremos irmãos, mas não como foram Caim e Abel.
Entre o negro africano e o asiático há um elo comum que ainda vive em ambos. O ódio do nazista ao judeu é, na verdade, um ódio ao que ambos têm em comum, pois é isto que todo nazista odeia: o comum. O comum nunca é a “pureza”, no sentido de algo sem mestiçagem. Um filho é sempre mestiço: nele está misturado o pai. Na perspectiva da causa, nunca um efeito é o primeiro, pois primeiro apenas a causa pode ser.Do ponto de vista da causa próxima, é um mesmo pai que torna dois seres irmãos, e em torno dessa filiação se traçará a identidade fechada de uma família. O avô, o bisavô, o trisavô , etc., são causas cada vez mais distantes quando comparadas à causa próxima, mas são causas cada vez mais íntimas quando as compreendemos à luz do todo da humanidade.
Em um certo sentido, o primogênito está mais próximo da causa próxima que o gerou do que o segundo filho, mas isto em razão do tempo, não sob o ponto de vista da eternidade. A eternidade não escolhe um filho em detrimento do outro. A eternidade não se mede pelo tempo.Em um certo sentido ,o raio de sol não é o sol, mesmo estando ele mais próximo do sol em seu momento de partida do que quando chega aqui e aquece meu rosto.Mas, em outro sentido, o raio de sol é o sol, e disso sabe toda flor e semente.
Se sou primogênito, não posso julgar que sou mais perfeito do que meu primo distante, em razão de ele não ter o mesmo pai que eu, pois isto seria negar a perfeição do nosso bisavô comum, que inclusive gerou o avô que gerou meu pai. Quando me imagino mais perfeito do que outro em razão de uma causa próxima, faço desta última algo que existiria sem ter sido causada por nada: transformo fantasiosamente algo finito em infinito, pois só o infinito é pura causa ( se o infinito fosse efeito de alguma outra coisa, seria essa outra coisa o infinito...). Espinosa diz que o infinito não é causa próxima, que age de fora, mas causa íntima. Imaginemos uma onda que foi gerada por outra, e que a onda gerada imaginasse que a onda que a gerou seria o próprio oceano...Se a onda gerada assim imaginasse, o faria na pretensão de evocar para si privilégios em relação às outras ondas que vieram depois...Ela poderia dizer: “Eu sou a onda eleita pelo oceano!...”E a onda que assim diz, quer não apenas dizer, mas receber reconhecimento para efeito de poder e heranças presumidas...Mas como poderia um único finito ser o herdeiro do infinito? Como uma única cor  poderia ser a verdade do arco-íris?
Voltando à questão geopolítica ( da qual, aliás, nunca saímos...). Como sustenta a ciência, o homem nasceu na África. O negro foi o primogênito desse primeiro homem. O negro somente é o primogênito porque , ao longo do tempo, nasceram outros homens não negros. Foi a causa comum entre o negro e amarelo que fez do negro o primogênito. Mas ser um primogênito é ser ainda um efeito, posteriormente causa próxima, porém nunca a causa íntima infinita. Assim como o filho se assemelha com o pai, mas não é o pai , em razão de uma diferença que constitui o filho, o primeiro homem, se assim se pode dizer, não foi negro, pois se o primeiro homem tivesse sido negro, isso seria dizer que o pai foi o filho, dogma apenas aceitável e compreensível nos mistérios da teologia, mas não na questão geopolítica acerca das nossas identidades e diferenças. Ou seja, mesmo tendo sido o negro o primogênito, não reside mais nele do que no amarelo a mesma causa comum, que não é negra ou amarela, tampouco branca.
Os maiores absurdos nascem quando o efeito se toma como causa, e disso a história do nazismo e de outros monstros teológicos-políticos mais recentes não nos deixam esquecer.
Esse primeiro homem, essa causa primeira e íntima, está escondida sob a pele.E mesmo ele ainda é efeito, cuja causa é  a Vida.








sábado, 28 de novembro de 2015

manoel de barros , deleuze: rizomas...rizomas...


Essas águas não têm lado de lá.
Daqui só enxergo as fronteiras do céu.
Manoel de Barros


Usa-se a inteligência   para entender a não-inteligência [ o afeto, a  arte, a vida].
Só que depois o instrumento  -  o intelecto - por vício de jogo continua  a ser usado,
 e não  se pode colher as coisas de mãos limpas,
diretamente na fonte.
Clarice Lispector, A Descoberta do Mundo.




Na natureza  há dois tipos de raízes: as arborescentes e as rizomáticas. As primeiras possuem raízes fixas, ao passo que as segundas são constituídas por raízes que se movem, e que fazem da planta um autêntico  andarilho, um Andaleço de espaços lisos de itinerâncias.Filosofias ortodoxas sempre fizeram da árvore um modelo ideal de sistema : raízes fincadas em um solo fixo ( seja este solo a Razão ou Deus), um tronco rígido , a Física, ligando as raízes aos diversos galhos, que são as disciplinas  sustentadas dogmaticamente  pelo tronco.  Descartes,o racionalista, é o exemplo mais célebre de uma filosofia arborescente. Em Deleuze e Guattari, diferentemente, as formações rizomáticas inspiram uma pop’filosofiaMil Platôs). O rizoma é  constituído por  raízes formando uma multitudo, um espaço sem centro, uma anarquia coroada. O rizoma  não é uma semente, um fruto ou uma flor. Ele é uma raiz que brota de si como se fosse uma semente, ele  guarda em si sua continuidade à maneira de um fruto, ele desabrocha  para fora como só faz uma flor.Ele é sua própria semente, fruto e flor, sem deixar de ser raiz.Ele é plenamente raiz, e como tal o rizoma cresce. Enquanto no modelo arborescente as disciplinas são compartimentadas e segmentadas, o rizoma inspira uma produção de conhecimento trans e interdisciplinar.A essência do rizoma é se expandir:  expandir-se como raiz, sem para tal necessitar de semente, fruto ou flor.Os rizomas são plantas sem “existidura de limites” , como diz Manoel de Barros. São plantas de conectividade, agenciamento, encontros, afetos . Como em Manoel de Barros, os rizomas são as raízes crianceiras , são as raízes da invenção.



domingo, 15 de novembro de 2015

a dimensão política dos afetos em espinosa



Quando queremos lutar contra as monstruosidades que existem no mundo,
devemos tomar o máximo cuidado para que nós mesmos não nos tornemos monstros.
Nietzsche



Há alguns afetos que , quando restritos à sua dimensão privada, têm um sentido negativo. Tais são, por exemplo, a piedade e a indignação. No plano privado, pessoal , “a  piedade [comiseratio] é uma tristeza acompanhada da idéia de um mal sofrido por alguém semelhante a nós”( Ética III, Definição dos Afetos), enquanto que a indignação é um “ódio endereçado a alguém que fez um mal a outro”( Idem). Todavia, tais afetos ganham uma dimensão positiva quando Espinosa os aborda a partir de uma perspectiva ética, e que tem seu desdobramento na esfera política e jurídica. Assim, a piedade é definida,  no plano ético- político-jurídico, como uma ação que fazemos visando o útil do outro. Explica-se Espinosa: “Quanto ao desejo de fazer o bem [útil] , que nasce  do fato de vivermos sob a direção da Razão, chamo-lhe piedade [pieta]” ( Ética IV, Prop. XXXVII, esc. I).Por isso, afirma ainda o filósofo,  “aquele que se esforça por conduzir os outros segundo a Razão não age impulsivamente, mas com humanidade [ modéstia] e doçura [cordialidade], e está plenamente de acordo consigo mesmo” (Idem).O útil é tudo aquilo que favorece um aumento de potência, isto é, de existência.
Nesse sentido, a piedade , como pieta,  se confunde com a própria justiça, ao passo que a comiseratio tem uma origem na  imaginatio, isto é, nas afecções da tristeza e do ódio  ( daí sua apropriação por certo discurso político fascista travestido de pretensa teologia ).ue a comiseratio tem um matiz imaginatio, passional. vivermos assim ele ignora a Necessidade de tudo o que lhe acont Compreendida igualmente sob a perspectiva político-jurídica, a indignação é  a busca de punição para quem fez um mal ao outro. Ao contrário do que acontece no plano privado e pessoal, aqui a indignação é movida  pelo  amor à paz pública. Alguns autores, como Matheron, colocam o afeto da indignação  na raiz da produção do próprio Estado, como sua causa eficiente, para assim promover a justiça e, ao mesmo tempo,  vencer no homem a paixão pela vingança , uma vez que esta  ainda o prende ao estado de natureza.
Dessa maneira, quando restritos à mera vida privada, pessoal, tais afetos revelam mais ódio e tristeza do que amor e alegria. Por essa razão, não é verdadeiramente adequado a si e aos outros quem se indigna  com o  mal sofrido pelos seus amigos ou parentes apenas. Retomemos a parte final da definição da piedade ( como comiseratio): “um mal sofrido por alguém semelhante a nós”. Restrita ao âmbito pessoal, passional, privado, a piedade é tão somente uma máscara atrás da qual está a autopiedade, assim como a indignação exclusiva aos amigos e parentes também é sintoma de um amor egoico, uma vez que amando a quem ele julga que o ama, o egoísta  estará amando, em verdade, a si. Se de fato ele amasse ao outro, se o seu critério do amor não fosse o egoico ( que escamoteia, na verdade, um ódio a si), ele se indignaria com o mal sofrido por não importa qual outro, independentemente deste outro amá-lo, dado que seu amor estaria endereçado à comunidade, ao nós.Quem ama ao nós ama também a si e ao outro, seja este outro um  semelhante  ou um diferente. Mas quem ama apenas a si via de regra tem ódio ao outro e ignora a força clínica do nós.E este nós não nos está apenas fora, ele também nos é imanente.
Para alcançar a piedade e a indignação enquanto afetos que nos curam de nós mesmos, é preciso libertar-se de ideias confusas tais como  “ninguém presta, então me é permitido burlar”, “todo mundo quer enganar todo mundo, então posso mentir e enganar”,  “o homem é o lobo do homem”, “Deus elegeu exclusivamente nosso povo”, “Alá obriga que a gente mate quem não acredita nele”, pois estas e outras semelhantes são  ideias confusas que nascem do medo, da ignorância, do desprezar e do zombar, não do compreender e do verdadeiramente amar.


sexta-feira, 13 de novembro de 2015

o que põe o homem de pé

Mesmo percorrendo todos os caminhos,
jamais encontrarás os limites da alma.
Heráclito


O que tornou o ser humano, humano?Que fato?Que ideia? Qual acontecimento? Segundo a ciência, em tempos muito remotos, um fato transformou um determinado ser que, em postura e hábitos, mal se distinguia do que hoje chamamos de chipanzé.Este fato foi uma mudança de postura, postura esta que nunca antes tal ser ousou: ficar de pé. Ficar de pé não apenas eventualmente, como fica o urso, mas ficar de pé como acontecimento incorporado mais do que aos músculos,nervos e ossos, mas também à mente, à visão, ao espírito. O ficar de pé fez o homem. Esta atitude, o ficar de pé, também foi uma nova relação que o homem estabeleceu com ele próprio e com o mundo.
Uma nova pergunta se impõe: o que fez o homem ficar de pé?Para o paleontólogo Leroi-Gourhan, no livro O gesto e a palavra, o acontecimento que produziu o ser humano foi a lenta e irreversível transformação de nossas mãos. Embora, claro, sejam os pés que nos sustentam na postura ereta, esta foi produzida, no entanto, pelas mãos.No início, as mãos eram usadas fundamentalmente como meio de locomoção, como se fossem patas. O homem andava e corria apoiado também sobre elas, e não apenas sobre os pés.Pouco a pouco, as mãos foram sendo desterritorializadas do chão. Desterritorializar-se significa, entre outras coisas, “libertar-se”, “desfazer um vínculo”, “desfuncionalizar-se”, “fugir de um território”, enfim, “nomadizar-se”.Desterritorializadas, as mãos foram adquirindo autonomia em relação à função de locomoção, passando a serem usadas para uma nova função: a preênsil. Esta consistia em pegar, transportar e manipular os objetos que despertavam o interesse do homem, e que o ajudavam a sobreviver,seja como ferramenta ou como arma; desse modo, o homem se sobrepunha aos animais ,ou mesmo aos outros homens.
Todavia, não é a nova função preênsil que explica o deixarem de ser as mãos meras patas. Entre a antiga função e a nova há um intervalo que não se explica pelo discurso meramente funcionalista, utilitário. Este intervalo é ocupado pela invenção, pela potência da vida, pela autoprodução – que interage com o meio externo, mas não é mero efeito deste. As mãos se desterritorializaram do chão e se reterritorializaram no instrumento, pois foi isto que nasceu junto com a mão: o utensílio, o instrumento, o mundo do fazer. Reterritorializar-se é mais do que servir ou se adaptar a uma nova função: é criar um novo mundo, um novo território existencial, ao mesmo tempo técnico e simbólico.Um galho de árvore, por exemplo, deixa de ser apenas um pedaço da árvore: ele se torna um bastão, uma extensão das mãos do homem. A desterritorialização nunca incide apenas sobre um dos termos, mas de pelo menos dois: a desterritorialização das patas fez nascer as mãos, ao passo que essa mesma desterritorialização também agiu sobre o galho, que se tornou utensílio quando as mãos se reterritorializaram sobre ele, fazendo nascer um novo mundo,mundo este que não pré-existia à reterritorialização, pois foi ela, ao contrário, que o fez nascer junto com ela. É por isso que toda desterritorilização se faz para produzir um agenciamento: no caso, o agenciamento mão-utensílio.
A postura ereta produziu uma nova estrutura da abóbada craniana, arredondando-a ( na arquitetura, por exemplo, as cúpulas arredondadas , esféricas, conferem às construções um ar de controle sobre as forças desestruturantes do peso). No gorila e no chipanzé a pontiagudez do crânio resulta do maciço osso que ali se salienta , suporte que é dos poderosos músculos que dão força à mandíbula.O osso da testa, igualmente robusto e protuberante nesses animais, no homem ele se adelgou e alongou. Atrás da testa pôde nascer então o neocórtex, que é a parte mais recente do cérebro, responsável pela linguagem e outras atividades simbólicas. Com a verticalização da testa e recuo da mandíbula, nasceu a face, o rosto. Este passou a ser a superfície de expressão do mundo interno. Por ser direcionado ao outro, a rostificação daquilo que nos animais é apenas a cara indicava também a positivação da relação social e sua importância para a vida do indivíduo. Aqui, surge um novo agenciamento: mão-rosto, uma vez que as mãos, na situação social de comunicação interpessoal, também comunicam: como gesto, isto é, movimento expressivo, no qual o sentido é como que desenhado no ar. Essa é a explicação da ciência para o surgimento do homem. Mas a poesia também fornece seu sentido para o fato, e quem o narra é Fernando Pessoa.
Para o poeta, em tempos remotos o homem andava de quatro, mais ou menos como o faz, hoje, um cão.A coluna vertebral do homem era como um travessão paralelo ao chão.A cara, quase sempre direcionada para o chão, procurava avidamente por restos, pedaços, rastros, resíduos, sinais.Até que houve uma desterritorialização, uma libertação. Esta ocorreu não com as mãos, como afirma a ciência, mas com os olhos: libertando-se das algemas do chão, da gravidade e do imediato, os olhos voltaram-se para o céu.Os olhos se desterritorializaram em relação ao chão e se reterritorializaram no que não tem limites e contornos, e que existe sem que o diminuam as pequenezas, os interesses, as cobiças e posses. Reterritorializando-se no infinito, abriram-se no homem mais do que os olhos do corpo: abriram-se os olhos do espírito. Aconteceu muito provavelmente durante as noites, após o sol retirar-se e, com ele, a presença das coisas tangíveis que se podem cheirar e tocar.Sob as estrelas, os olhos se libertaram da passividade que os reduzia à ação das coisas externas, finitas, e pôde o olhar lançar-se através do olho animal que o homem ainda tinha, fazendo-o alçar-se consigo.Sobre a abóbada do crânio, o olhar se alçou à outra abóbada , que nunca se fecha, eterna fábrica de mundos.Mais do que os olhos de ver, alçaram o homem os olhos de explorar.
Se toda desterritorialização é um libertar-se, os olhos se libertaram da percepção do imediato, reterritorializando-se na apreensão do eterno.Se toda reterritorialização é um agenciamento, o agenciamento que produziu o homem tem por essência o seu caráter poético e produtivo, cuja ferramenta que potencializa o homem é o próprio pensamento, ferramenta com a qual ele produz se autoproduzindo, agenciado não com o conhecido, mas com a potência de conhecer; não com o objeto, e sim com a potência de pensar e sentir.O homem passou a ver através de um ver que sempre se renova, um ver que não constata ou mede, conta ou reconhece, uma vez que o que ele vê não é objeto ou coisa, mas abertura que a tudo amplia.Foi esse olhar que pôs o homem de pé, e não apenas de maneira física, sobre os pés. Desse olhar nasceu um afeto como experiência do homem consigo mesmo, tendo como moldura o infinito.
Etimologicamente, “afeto” significa “ser tocado”.E o que tocou o homem de então pode o homem de qualquer época experimentar, pois tal realidade se apreende com a percepção, e não com a memória. É por isso que tal realidade se renova e renova, e somente assim, como renovação, pode ser conhecida.Espinosa afirma que ela re-genera, gera novamente.Esta é a potência do homem: gerar-se novamente de acordo com a Potência que a tudo gera, e que permanece imanente ao que gera.
Então, segundo o poeta, foi assim que o homem nasceu: com a necessidade de nunca deixar de renascer. Como conseqüência, a coluna vertebral do homem deixou de ser um travessão paralelo ao chão, tampouco se converteu em linha vertical em ângulo reto, mero ponto de exclamação. O que mantém o homem de pé, sua coluna vertebral, transformou-se em um ponto de interrogação, pois é assim que se mostra a coluna quando olhada de perfil. Assim, não são os pés, mas o questionamento que dá estatura ao homem.O que mantém o homem de pé é o olhar que não apenas vê ou reconhece, mas indaga o Sentido.


Van Gogh,Noite estrelada sobre o Ródano ( 1888)
óleo sobre tela, 72,5cm x 92cm
Musée d'Orsay,Paris.








quarta-feira, 11 de novembro de 2015

a criação do homem na mitologia grega





Uma obra de arte deveria sempre nos ensinar que não tínhamos visto o que vemos.
                                         Paul Valéry



Após vencer Cronos,o Tempo, e gerar as Musas, para que estas fossem agentes da comemoração da vitória  ( co-memorar é criar memória daquilo que não pode ser esquecido), Zeus se preocupa então em criar a natureza.Até esse ponto da narrativa ainda inexistia o homem ,bem como todos os outros seres vivos .
Zeus pede então a dois irmãos seus que fizessem toda a obra. Estas divindades se chamavam Prometeu e Epimeteu. "Epi" significa "tarde demais", ao passo que a terminação "meteu" deriva de "métis": "prudência" ou "sabedoria prática" (“meticuloso” se origina de “métis”). Assim, Epimeteu significa "saber tarde demais o que deveria ter sido feito". Já Pro-meteu tem o sentido de "saber antes o que deve ser feito". Epimeteu é o que só vê depois, quando "já é tarde", enquanto Prometeu é o que planeja e projeta.
Zeus lhes incumbiu da tarefa de criar a natureza.  Ele  fez algumas exigências : cada ser criado deveria ser dotado de uma essência que lhe permitisse viver e se desenvolver. E o mais importante: a principal criatura a ser criada deveria ser o homem. E tudo deveria ser feito dentro de um determinado tempo, ao fim do qual Zeus retornaria para ver a obra. Prometeu era a divindade mais indicada para comandar a obra, pois Epimeteu era uma divindade cuja característica principal era a volubilidade e ausência de constância. Porém, por estar atarefado com outras coisas, Prometeu pediu a Epimeteu que este começasse a obra. Prometeu viria ao fim para concluí-la.
Quando Epimeteu voltou-se para a natureza para criar os seres deu-se conta que diante dele estava apenas uma matéria muito indeterminada e confusa, na qual as formas ainda não haviam se separado e distinguido da matéria .Ao invés de começar pelo homem , Epimeteu inicia a obra pelos animais. Encantado com as asas que vira em Eros, Epimeteu decide criar primeiro os animais alados. Criou asas sutis, ligeiras, que deu ao colibri; criou asas imensas, potentes, que pôs no Albatroz.
     A cada espécie criada ele a fazia dotar de alguma virtude da natureza, para que assim tal espécie pudesse se desenvolver e sobreviver. Em algumas espécies ele pôs a força, em outras ele colocou o veneno, em outras ainda o dom de cantar; e houve aquelas que receberam a capacidade de respirar debaixo d’água. Algumas espécies receberam um cobertor natural para que pudessem ,apenas com a espessa pele, suportarem o frio extremo. Outras espécies receberam uma visão tão arguta que mesmo à noite elas poderiam ver como se fosse sob o dia. Enfim, Epimeteu foi esvaziando a dispensa da natureza e dotando cada espécie com aquilo que a natureza poderia oferecer. Chega então Prometeu para inspecionar a obra. A primeira coisa pela qual ele procura é o homem. Onde está o homem? O eco da indagação do Deus pode ser ouvida até hoje, e  ainda hoje perdura a mesma silenciosa resposta...O homem, o ser humano, onde está?Epimeteu se dá conta então que se esquecera completamente do homem. Ele indica para Prometeu onde estava o homem: este era um simples esboço no barro, um rascunho que mal se distinguia daquela matéria. Em latim, barros é “húmus”. Etimologicamente, “homem” procede de “húmus”.
Prometeu percebe então que a criação do homem não poderia ser feita apenas a partir daquilo que a natureza material  poderia oferecer. Prometeu se decide a ir buscar no divino o modelo para construir o homem.
A primeira divindade que Prometeu buscou foi Hefesto, o deus artesão-operário. Este deu a Prometeu, para este dar aos homens,a habilidade de usar as mãos. As mãos passaram a ser empregadas para fabricar coisas. Nascia assim a técnica e, com ela, o homo faber: o homem que fabrica coisas para seu sustento. Este homem já não aceita simplesmente a natureza externa: ele a transforma.  Todavia, apenas usar as mãos não  tornou o homem  um ser completo, pois as feras conseguiam ainda assim destruí-lo e vencê-lo. Prometeu busca ajuda de outra divindade: Atena, a deusa da sabedoria. Esta aceita dar a Prometeu, para este dar aos homens, a capacidade de raciocinar: os homens recebem a inteligência. Com a inteligência, os homens aprendem a contar, a medir, a raciocinar, enfim, a falar. Com a inteligência, nasce o homo sapiens.
Todavia, os que receberam a inteligência não foram os mesmos que receberam a habilidade técnica-manual. Entre estes dois tipos de seres humanos, os trabalhadores/técnicos  e os intelectuais/teóricos,passou a existir então uma inimizade: cada um via no outro apenas a capacidade que faltava a este outro, e que era a capacidade daquele que julgava depreciativamente  a diferença. Cada classe desprezava a outra. Eles não se uniam, não viam entre si nada de comum. Inexistia entre eles a comunicação.Existia apenas rivalidade e ódio.Cada  um desprezava a diferença do outro e prezava apenas sua própria identidade.Assim, facilmente a natureza os vencia . Na verdade, o mito tematiza a danosa oposição que pode existir entre a teoria e a prática (ou a técnica) quando vistas à parte da natureza do homem como um todo.
Prometeu resolve ir então diretamente a Zeus e pedir-lhe ajuda. Este aceita conceder a Prometeu, para este conceder aos homens, o sentido ético da justiça. Zeus fez uma exigência: que este afeto fosse colocado em todos os homens, e não apenas em parte deles. Este afeto seria o impulso que os levaria a agir conforme o comum, e não apenas de acordo com  o interesse particular, individual ou de classe.Prometeu resolve então colocar o afeto pela justiça,pelo comum, exatamente no lugar que serviria para mediar os conflitos entre os intelectuais e os operários, entre a teoria e a técnica, enfim, entre o cérebro e as mãos. Este lugar mediador foi o coração. É o coração que equilibra o homem, o equilibra primeiramente dentro dele mesmo, para que assim ele possa se equilibrar na relação com os outros. Mais do que mero sentimento, o coração representa a sensibilidade no sentido maior da palavra.Este lugar de mediação entre a teoria e a técnica é o lugar da arte,o lugar da cultura.  Sobretudo, a cultura que tem como base a educação do homem.A técnica e a teoria podem servir à guerra e à destruição, ao passo que a arte que educa é instrumento de humanização do homem, humanizando igualmente a teoria e a técnica. Não por acaso, as Musas são as divindades que celebrarão a arte como maneira de vencer a barbárie, inclusive a barbárie que pode nascer da mera técnica desumana e da teoria estéril que serve ao poder.As Musas não são apenas divindades ligadas à memória: elas também são associadas à ética, pois são filhas de Zeus.
E é por isso que musealizar algo também é um ato ético. Além disso, há um aspecto das Musas pouco lembrado: elas também eram divindades que cantavam, elas cantavam para celebrar os matrimônios. Elas cantavam, celebrando, os matrimônios. Assim, elas co-memoravam: criavam uma memória em comum.
Patrimônio é um termo nascido do mundo jurídico romano, e significa: aquilo que se herda, sobretudo do pai.Sem dúvida,há algo de masculino na noção de patrimônio ( “patri” é “pai”).Mas para que um patrimônio seja reconhecido como tal, é preciso que haja um “matrimônio”, um enamoramento, um encontro. “Matri” pode significar  mãe ou mulher, e expressa,simbolicamente, o princípio feminino da sensibilidade. E é isto que as Musas fazem: celebram matrimônios, elas cantam elos nascidos de afetos que unem ( o tal “fundo comum” citado pelos autores da obra referenciada no início desse texto)  .
Todo patrimônio é precedido de um matrimônio, de um encontro. Ir ao museu deveria ser como adquirir um matrimônio com o conhecimento, com a cultura. Fala-se muito de “patrimônio cultural”,mas talvez seja necessário pensarmos também a idéia de um matrimônio cultural,cuja base é o afeto,o encontro,  e não meramente a masculina e jurídica razão.Simbolicamente falando, um patrimônio somente é reconhecido como tal se antes houver um matrimônio,um enamoramento. A exposição, enquanto espaço de mediação, é o lugar desse matrimônio cultural.
Voltando ao mito.Ao receber o afeto ético pela justiça,nasce enfim  o homo eticus.O afeto deveria ter a função de servir de mediação  entre a técnica,o mundo do fazer, e a teoria, o mundo do conhecer.
Seguindo a justiça, os homens aprenderam a cooperar: e assim nasceu a sociedade. O homem não era mais tão somente   um ser individual, ele se percebeu também um ser de comunidade, um ser social. E assim eles passaram a comandar a natureza: tanto a externa quanto a interna ( a natureza interna,em seu aspecto danoso, é aquela que  se manifesta  como passionalidade , ou seja , como  ódio, rancor, cobiça, ignorância,etc.).
Contudo, por muito tempo não durou aquela conduta pautada na justiça,guiada pelo afeto pelo comum.Como sabiam falar e dominar a inteligência,logo os intelectuais criaram leis. Depois, o Estado. E este passou a ser monopólio deles.O Estado passou a substituir o coração nos assuntos da justiça. Nasceu assim o déspota, o homem que faz do Estado um monopólio seu.E este passou a crer que possuía uma origem diferente: não o barro, mas o ouro. O déspota criou uma casta com privilégios, bem como um exército para reprimir os operários pobres, que foram então tornados servos. O homem passou a ser então o leão do outro homem, a serpente do outro homem, o lobo do outro homem. Horrorizado, Zeus pensou em destruir com um raio toda a humanidade. Mas decidiu se vingar com uma lição: levaria o homem a ser destruído pela sua própria ambição e pouco amor pela justiça.
Zeus então pede a Afrodite e Atena que criem um ser que seria o instrumento de sua vingança.Alguns outros deuses as ajudaram na tarefa, como o deus Hefesto, o deus-artesão, que modela no barro úmido o que Zeus vai pedindo a Afrodite e Atena.  O homem fora criado no barro seco, ao passo que este novo ser o será  no barro úmido, que Zeus umedecera com sua saliva. Por isso, este novo ser  será mais maleável e receptivo do que o homem, assim como o é o barro úmido em relação ao seco. O barro úmido é matéria que ainda se pode modelar, pois ele  é o símbolo da sensibilidade, base da educação no seu sentido mais amplo.Atena e Afrodite seriam os modelos divinos dessa nova existência a ser criada.Olhando para elas, e instruindo-se no que pede Zeus, Hefesto ia modelando o úmido barro.
       Zeus quer   que o homem, ao ver esse novo ser,  fique cego. A pele desse ser deveria ser tão macia que, ao tocá-la, o homem se esqueceria do aveludado das pétalas. Esse ser igualmente  deveria ser tão perfumado que o homem ,ao sentir seu perfume, também se esqueceria do perfume das rosas. Esse ser também saberia usar com sedução as palavras, para que o homem sempre acredite nelas. Para tal, Hermes, o deus da comunicação, põe na boca desse ser palavras sedutoras.Mas tais palavras nasciam apenas de sua boca, e não de seu ser inteiro: elas seriam    armas para lutar contra a força física do homem.  E o mais importante: esse ser deveria ter dois estômagos, para que a insatisfação fosse o seu estado mais freqüente, e nunca o homem pudesse preenchê-la totalmente.  O nome desse ser : Pandora, a primeira mulher que foi criada.Mais do que a mulher, Pandora representa, simbolicamente, o feminino.
Zeus a envia de presente aos homens. O mais poderoso dos homens a faz de esposa.Zeus envia um baú ao casal. Na tampa do baú estavam escritas as seguintes palavras: “Não abra antes do  permitido”.A irrefreável curiosidade também era uma das características de Pandora.Não obstante a advertência, ela abre o baú. Dele saem a doença, a pobreza, as pestes e o pior dos males: a morte. Até então os homens não morriam, tampouco procriavam. Quando Pandora se apressou em fechar o baú, dentro dele ficou apenas a esperança.
Entretanto, algo de misterioso acontece com Pandora, mais especificamente com aquele seu segundo estômago. A semente da vida nele se depositou, cresceu e se alimentou. O segundo estômago morreu para que no lugar dele nascesse o útero.
Ela que trouxe a doença e a morte, agora dentro dela estava sendo gerada a vida. O homem foi criado do puro barro seco. Mas a mulher foi criada tendo como modelo o divino. A mulher teve como modelo Afrodite e Atena.E sempre quando a mulher potencializa o feminino que está nela , através dela vemos o divino.
Zeus viu então um novo papel para Pandora (que, simbolicamente, representa a sensibilidade, a sensibilidade à vida). Que ela seja o instrumento da educação do homem.Que suas palavras expressem lições que não nasçam apenas na boca, e nesta morram. Que a sensibilidade à vida  auxilie o homem a entender o que a inteligência não compreende; que o amor à vida o ensine a apreender realidades que as mãos não podem tocar.
Por isso, em termos simbólicos, temos a essência eminentemente artística  da educação humanística, que difere da natureza meramente  operacional  do ensino técnico e do caráter exclusivamente racional do ensino  teórico.Nesse sentido, a comunicação, a mediação e a educação são termos que se complementam.

-Referência:
Hesíodo: Teogonia e Os trabalhos e os dias.