A fábula da
formiga e da cigarra é só parte da história. Tal como a conhecemos ,a narrativa favorece a perspectiva da formiga. No mito anterior à fábula, porém, existiam
apenas as formigas, que trabalhavam, trabalhavam, trabalhavam...para servirem à
Rainha. A felicidade para elas consistia em aplacar a gula sem fim da Rainha.
Certa vez, as Musas vieram passear perto das formigas . Em grego, “Musa”
significa “conhecimento”,um conhecimento que não vem de livros, mas da própria vida . “Música” e “museu” derivam de Musa. Tirésias, considerado o maior sábio grego ( mais do que Sócrates...)
, tornou-se sábio quando viu as Musas
banhando-se em uma fonte. Elas estavam nuas. Quando o conhecimento se despe das palavras e teorias acadêmicas, é como poesia nua que ele se mostra.
Então, quando algumas formigas viram as Musas, esqueceram a servidão à Rainha, e passaram a cantar.
Nunca antes elas tinham feito tal insubmissão. Esqueceram de tudo. Apenas cantavam e
cantavam, talvez como cantou Cartola...
Elas morreram cantando, sem fome, sem
sede, livres: empoemadas... Para que tal cantar renascesse, as Musas lhes fizeram uma metamorfose: da formiga rasteira que morreu, nasceu a cigarra alada; venceu-se a servidão passiva à Rainha, desabrindo o poeta “sem Rei nem regências”, diria Manoel .
“Rainha” e “Rei” derivam
da mesma palavra da qual se originou “real”, como aquilo que se opõe à invenção
e ao sonho. Assim, há aqueles que só conhecem a realidade dada, “objetiva”, são os
formigas-pragmáticos ; mas há os que conhecem , e fazem, a invenção, “pois inventar aumenta o
mundo” , canta a cigarra-manoel.
Segundo Manoel de Barros, poeta é quem possui visão fontana, uma visão que é
“fonte do que vê”. Não é uma “visão acostumada”; ao contrário, é uma visão que
vê “a coisa ainda singular, corporal, ainda não generalizada nem mentada”. Mais
do que fixar-se em coisas e objetos , uma visão fontana vê , antes,
o sentido - que é a alma das
coisas : “a palavra abriu o roupão para mim, ela quer que eu a seja”,
fontaniza-se o poeta.
No meio da noite, sozinha em seu quarto, a criança expulsa o medo cantando (DELEUZE e GUATTARI, 1980, p. 382).O canto é territorializante:ele cria um território no qual a criança, não obstante a noite, tanto a exterior quanto a interior, apesar desta noite a criança acha/inventa onde habitar. O canto cria uma consistência, ele produz um território existencial. Este não se confunde com um espaço meramente físico, assim como não é meramente físico o pantanal de que fala Manoel de Barros : “O que eu gostaria de dizer é que o chão do Pantanal, o meu chão, fui encontrar também em Nova York, em Paris, na Itália,etc” ( 1992, p. 328).Cantando, a criança pode até se mover, ela pode até mesmo saltar, embora já seja um salto, um salto para fora do caos, o próprio canto que ela entoa: “ela salta do caos a um início de ordem no caos” (DELEUZE E GUATTARI, 1980, p 382). O poeta enfrentou questão semelhante: “São 30, são 50 cadernos de caos. Preciso administrar esse caos. Preciso de imprimir vontade estética sobre esse material.(...).Tenho que domar a matéria”(1992, p. 334). Para a criança que canta , não importa a letra completa, importa apenas o estribilho, a repetição que o estribilho é. A criança inventa um território, ela entra em um ritornelo (DELEUZE E GUATTARI, 1980, p. 381). Dois elementos constituem um ritornelo: a repetição e a diferença. Por isso, todo ritornelo é prática de invenção de um estilo: “Repetir repetir - até ficar diferente./Repetir é um dom do estilo”(1997b,p11). O ritornelo é afirmação de um ritmo, tal como o que inventa o próprio poeta ( 1992, p313).
O território não é um espaço físico, tampouco meramente psíquico; ele não é apenas externo ou interno. São os ritmos que nos mostram isso: os ritmos não pertencem exclusivamente ao externo ou ao interno, eles habitam um entre-dois (DELEUZE E GUATTARI, 1980, p. 385). Os ritmos são entidades de limiares, de travessias. O canto do passarinho, por exemplo, não pode ser reportado apenas a elementos endógenos ao organismo ou a elemento exógenos, como agressividade contra um rival, marcação de território, etc. Decerto que estes fatores existem.Todavia, enquanto ritmo, o canto é territorializante : ele inventa territórios. E é por isso que os passarinhos produzem seus territórios no próprio canto, e este pode trazer um componente de desterritorialização que faz cessar o canto para iniciar o voo, o "bater de asas".O canto é territorializante porque ele é produção de ritmo.O mundo interno e o externo podem ser codificados. Mas os ritmos obedecem a fenômenos de transcodificação ou transducção.A mosca, por exemplo, possui seu código; a aranha, por sua vez, também possui o seu. Contudo, quando a aranha produz sua teia, esta permanece invisível à mosca. Isto porque a aranha , antes de capturar a mosca, capturou seu código, o transduccionou, de tal modo que a aranha inventa uma mosca que é um ritmo-mosca (DELEUZE E GUATTARI, 1980, p. 386). Não é a “mosca indivíduo” ou a “mosca espécie” a mosca que a aranha inventa: é a singularidade-mosca, a diferença-mosca - o que os medievais chamavam de hecceidade.Outro exemplo: a orquídea fabrica em suas pétalas o órgão genital de uma vespa . Ela o faz porque apreende o ritmo-vespa, a expressão-vespa, o acontecimento-vespa. A orquídea inventa um devir-vespa, ela o faz, diria o poeta, por “imitagem”. O ritmo passa entre os gêneros e as espécies, que são códigos ou formas; é por isso que o ritmo não é uma mera forma ou o informal, ele é um deslimite.Ao encontrar o seu ritmo, a sua expressão, o artista atinge um ponto onde se produz um "delírio ôntico" (2004), pois “poema é o lugar onde a gente pode afirmar que o delírio é uma sensatez”, (1998 p. 81).Os “delírios ônticos” são como “os impossíveis verossímeis de nosso mestre Aristóteles”( 2010d, p.7).Este ponto , esta metamorfose, não é sentimento ou objetividade, pois passa entre os dois, e entre os dois inventa um sentido que renova a ambos: “desabre outra pessoa” (2007,p. 39), inventa-se outro mundo. São os passarinhos, com seus cantos, os autênticos produtores de ritmos.
O vídeo mostra um fluxo de lava se
lançando ao mar. O fluxo passa entre sólidas rochas que um dia já foram lavas.
Hoje, essas rochas se acumulam, camadas sobre camadas, formando estratos,
segmentos. Um fluxo não tem segmentos, tampouco estratos. Um fluxo se expressa
em velocidade e lentidão, avanços e paradas. Um fluxo nunca vai para trás, para
o passado. Um fluxo vai para a frente com o máximo de força que tiver. Tornar-se
rocha não é o destino do fluxo-lava, tornar-se rocha é seu passado. A rocha
sólida é um testemunho da lava que já foi.
Os fluxos são sempre primeiros, eles
têm primazia, diria Manoel. Já se começa a redescobrir o que já sabia Lucrécio séculos atrás: o universo é um rio, um fluxo. E mesmo o mito já dizia: a Via
Láctea, o “caminho leitoso”, é um fluxo de leite que jorrou dos seios amorosos
de uma deusa.
Mas ninguém pode viver nos fluxos, podemos
desejar apenas nos aproximar o mais possível deles. Somente os vulcões expelem
tais inícios, porém ao preço de se explodirem eles mesmos.
Deleuze e Guattari nos falam da existência dos fluxos e dos
estratos, do liso e do estriado. Tudo é composto de fluxo e de estratos. Os
estratos são mais visíveis , já os fluxos são imperceptíveis, embora também
reais.
A linguagem possui seus estratos
gramaticais, mas o fluxo do sentido constitui uma agramática poético-filosófica.
É danosa a estratificação da vida
mental em id, ego e superego, pois nos leva a imaginar que o id, o
inconsciente, é também um estrato, como o são o ego e o superego. O inconsciente
não é um estrato contiguo ao estrato ego, ele é um fluxo sem contiguidade, dado
que suas margens se fazem e desfazem. Gênero masculino e feminino, e outros,
são estratos; porém fluxo é a sexualidade (nenhum dos estratos é dono dela).
Os estratos podem se opor
dialeticamente, e lutarem pela supremacia sobre o outro; no entanto, todo fluxo
é indivisível, nunca ele se opõe a ele mesmo. Os estratos constituem poder ( potestas), anseiam por “empoderamentos”; porém de potência (potentia) são feitos os fluxos. Mas os
fluxos não são evidentes, é preciso achá-los, por vezes inventá-los, se força
tivermos para não nos deixarmos reduzir a um estrato.
Porém, é preciso cautela e cuidado
nesses processos, advertem Deleuze e Guattari. Não por acaso, o anel de
Espinosa trazia a inscrição latina : “caute”, cautela, cuidado . O anel era
parte da mão que pacientemente polia “as
lentes”. Segundo Deleuze e Guattari, é preciso manter algum estrato quando nos
aproximamos dos fluxos. É preciso manter vivo o ego quando fazemos a viagem ao
inconsciente. E de tal viagem o ego retornará outro: menos ego e mais
devir-outro.
O melhor exemplo talvez seja a vida
de um pequeno pássaro: o tordo. Este passarinho possui três espécies de canto.
Os dois primeiros servem aos estratos biológicos para a conservação de sua vida
própria. São cantos que ele emite quando
quer obter um território e conquistar uma fêmea. São cantos belos. Aparecem
rivais de estratos diferentes, há então duelos, medições de força. Vencerá quem
mais poder tiver. O território assim obtido é um estrato. No entanto, esse
passarinho emite ainda um terceiro misterioso canto. Ele o emite em dois
momentos do dia: o vespertino e o matutino, o crepúsculo e a aurora. Ele o
canta sozinho, sem disputas, sem rivais. Ele se põe então em certo galho elevado
de sua árvore. O galho constitui o limite de seu território-estrato. O galho se
torna o estrato mais próximo de perigosos fluxos. Pois, cantando, o pássaro
pode ser achado pela soturna coruja, sempre cobiçosa por predá-lo. Não obstante, entrega-se o pássaro
ao misterioso e vivo canto.
Este último estrato não é vencido por
voos físicos feitos por tangíveis asas, vez que apenas o canto pode ir além
dele, em um “voar fora da asa”. Não é um canto belo, é um canto sublime. Na
estética, o belo é um afeto pela forma, pelo limite, ao passo que o sublime é
um afetar-se por aquilo que não tem limites. É, por isso, um canto de limiares.
Não é um canto entrecortado, segmentado, como o são os outros dois cantos. É um
canto contínuo, sem intervalos, onde o pássaro parece alcançar os seus limites
canoros. Mais do que para o sol, ele canta para seu fluxo luminoso.
Toda ciência se torna poesia, depois de se ter tornado filosofia.
A poesia é a grande arte de construção da saúde transcendental.
O poeta é, portanto, o médico transcendental.
Novalis
No poema Lacraia , Manoel
compara a lacraia a um trem. Os gomos são os vagões . A cabeça vai à frente,
como no trem a locomotiva. Quando menino, o poeta decidiu cometer uma
peraltagem: descarrilar a lacraia. Ele então a descarrilou, desfazendo-a em
partes. Quando o menino-poeta se preparava para ir embora, aconteceu algo para
o qual nada antes o preparara para ver :a cabeça da lacraia se voltou para
olhar uma parte que lhe estava separada. E esta parte passou a se mover indo em
direção à cabeça que a chamava, sem dizer nome ou palavra. As outras partes
fizeram o mesmo, “para se emendarem e voltarem a ser”: "a força que age nessas
partes também é amor", afirma o poeta.
Manoel de Barros Encontramo-nos numa crise generalizada de todos os meios de confinamento, prisão, hospital, fábrica, escola,família. Há novas forças que se anunciam: são as sociedades de controle que estão substituindo as sociedades disciplinares. "Controle" é o nome que Burroughs propõe para designar o novo monstro, e que Foucault reconhece como nosso futuro próximo(...). Não se deve perguntar qual é o regime mais duro,ou o mais intolerável, pois é em cada um deles que se enfrentam as liberações e as sujeições(...). Muitos jovens pedem estranhamente para serem "motivados", e solicitam novos estágios e formação permanente; cabe a eles descobrir a que estão sendo levados a servir, assim como seus antecessores descobriram, não sem dor, a finalidade das disciplinas. Deleuze
DIÁLOGO
- O Rei baixou um último decreto.
- Do que trata?
- Expressamente, determina: “É proibido pensar”.
- Qual inimigo pretende tal decreto enquadrar?
- Não se sabe ao certo... Segundo se diz, esse inimigo está
em todo lugar: ele ameaça a Sociedade de Controle.
- O que a Sociedade de Controle controla?
- Ela somente pode controlar o que se mexe e se
extroverte.Escapa-lhe o que é nômade por dentro, e que fica quieto e em
silêncio, e que ouve mais do que fala.Por isso, a Sociedade de Controle
estimula os trânsitos , os posts, os cartões, os chats,as milhagens, os
lisings, os canais...Outrora, era se fechando e imobilizando entre os muros e
paredes que se exercia o poder sobre os
corpos, embora a alma sempre escapasse em suas linhas de fuga
inventadas,literárias, filosóficas,poéticas,marginais, místicas; hoje,o poder
estimula que o corpo se mova e circule,com a condição de que a alma esteja na
caixa...
-Que caixa?
- As que têm na frente uma tela digital.Enquanto a mente
estiver seduzida por uma caixa,o Rei saberá onde ela está: ela estará presa.Mas
o Rei teme que o tal
inimigo esteja dentro.
- Dentro de onde?
- Dentro de tudo que é margem: favelas, desejos, poetas,
loucos, crianças.
- Mas como saber?
- Não queira saber, apenas ajoelhe-se e baixe a cabeça .
- Ajoelhar e baixar a cabeça diante do Rei?
- Não apenas diante dele. Também diante de seus representantes: as estatísticas, as
medianias, as "metas",o sacrossanto mercado e, sobretudo, a lógica.
Nunca se esqueça de dizer que está tudo bem,sobretudo ao seu carrasco. E não se
esqueça também de sempre atualizar a
Suma e o Vade Mecum das cartilhas que
lhe autoajudam a atrair o amor, o prazer, o sexo, o dinheiro, o sucesso
e milhares de visualizações em seu vídeo . Lembre-se: sexta-feira é dia de
ficar bêbado, e na segunda o Rei quer que todo mundo fique triste. Leia o
bestseller que a propaganda recomenda. Para dúvidas existenciais, consulte um
psicólogo, jamais ouse tentar encontrar um sentido por si mesmo.
- Que polícia prenderá os infratores ao decreto?
- A polícia do pensamento. Foi criada ontem. Cuidado...
- Cuidado com o quê?
- Cuidado com tudo. Vê aquela câmera?
- O que tem ela?
- Ela tem sensores que captam idéias ainda não catalogadas.
- Catalogadas!?
- Sim, o utilitarismo pragmático catalogou todas as idéias
que valem a pena pensar. O CNPq financiou o projeto. Teve até concurso público
para selecionar esses polícias. 10 mil por mês de salário, exige-se D.E.
- O que é D.E?
- Dedicação Exclusiva.
- E os poetas?
- Cuidado com o que diz...
- E os filósofos?
- A câmera virou para cá...precisamos ir...
- Ir para onde?
- Você pergunta demais. Disfarça e sorria...E lembre-se: a
ciência explica tudo. Explica o amor, a morte, a vida, o tempo... O código
genético é só mais uma gramática. O google tem todas as respostas, ao menos
para as perguntas que são permitidas e valem nota na prova.Também está proibido
fazer filme que ninguém entende.
- Como fugir?
- Não existe mais fora...
- Isso é o que você acredita. O fora ainda existe. O que nos
falta é reinventar uma porta.
- Se o Rei desconfiar de suas idéias, ele mandará trancar os
corações...Não é isso que você está chamando de porta?
- Não... O coração é exatamente o que está fora do que pode
dominar o poder do Rei. O coração é o cosmos inteiro, talvez seja o que
Espinosa chama de Deus. Este fora somente o vislumbramos através daqueles que
se fizeram porta aberta para ele, e por eles podemos sair , respirar e voltar; para assim, quem sabe, subverter,
re-educar,re-acreditar.
Na mitologia, Museu foi um personagem filho de Orfeu. Tal
como seu pai, Museu também era um poeta. Mas ele fazia poema com coisas, com
fragmentos, e não apenas com palavras. Cada ser que existe, percebeu Museu, vai produzindo e guardando
coisas, que são testemunhos de uma vida, partes de um todo. Quando uma pessoa
desaparece ou morre, ficam apenas os fragmentos. Estes podem se dispersar e se
perder, morrendo uma morte por esquecimento ou descuidado. Assim, Museu cuida
desses fragmentos, novamente os compõe , desejando que estes expressem , de
alguma forma, o ser daqueles que os produziram
e guardaram.
Foi com Museu que nasceu a ideia de exposição. Assim como
um poema reúne palavras com a intenção de comunicar um sentido, uma exposição é
produzida para dar a conhecer um todo mediante o agenciamento e composição de
fragmentos dispostos em um espaço, cada fragmento ocupando um lugar ( positio) no espaço, porém transcendendo ( ex-positio : "ir para fora") esse mesmo lugar singular que ocupa. Cada fragmento "sai" de seu lugar para compor-se com outro fragmento, ambos assim fazendo parte da imanência de um todo que não é apenas espaço, mas também tempo, acontecimento, vida , enfim, narrativa.
Quando lemos um poema, os versos permanecem exteriores a nós mesmos, lá no papel. Mas em uma exposição circulamos entre as coisas: com nosso corpo se afetando e se movendo, tornamo-nos partes desse poema escrito no espaço-tempo.
Manoel de Barros Trata-se de captar um "devir mundial" ,tal como ele surgiu entre os gregos , como ausência de origem, e tal como ele surge para nós agora, desviando-se de todas as finalidades. Gilles Deleuze
(trecho do livro)
A poética é grega. Ela se vincula não apenas à Grécia histórica ― a Grécia de Homero, Hesíodo, Ésquilo, Mênon, Heráclito, Protágoras, Diógenes,Demóstenes...―, mas também à Grécia enquanto Terra que serve de imanência a todos os territórios, inclusive o Pantanal. Enquanto imanência do pensamento e da sensibilidade, a Grécia é a Terra de Lucrécio, Hume, Godard, Marx, Visconti, Artaud,Lima Barreto, Gláuber, Clarice Lispector, James Joyce, Proust, John Coltrane, Nietszche, Van Gogh, Rimbaud...Esse é seu povo, ao mesmo tempo aristocrático e popular, em permanentes rebeldias contra o clichê e contra as mais variadas formas de opressão e banalização da vida. Quando evocada pelo pensamento e pela arte, esta Grécia torna-se um nome que é, ao mesmo tempo, a conjugação de dois verbos: Pensar e Sentir. Uma Grécia onde não existem mais “rei nem regências” de poder, mas potências criativas que, em seus deslimites, nos deixam ver a Vida.
No "Livro de pré-coisas" , na prosa poética intitulada "Agroval", Manoel de Barros descreve um acontecimento ordinário do pantanal. “Ordinário”, aqui, significa a mesma coisa que comum ou regular. À idéia de “ordinário” costumamos opor a noção de “extraordinário”. Vale a pena lembrar a origem matemática destes termos. Na matemática, os “pontos ordinários” de um triângulo são os inumeráveis e indistintos pontos que ocupam cada um dos lados da figura, ao passo que seus três “pontos extraordinários”, ou singulares, localizam-se em cada ângulo do triângulo. Em uma reta, por sua vez, os pontos extraordinários são dois: aqueles que ocupam os extremos da linha.
Todavia, a diferença entre ordinário e extraordinário mostra toda a sua riqueza quando examinamos o círculo. Aparentemente, tal figura geométrica é destituída de pontos extraordinários ou singulares. Mais do que uma linha reta, geralmente costuma-se afirmar que nossa vida é um círculo: o círculo de nossa vida. Então, estaria o círculo de nossa existência destituído de momentos singulares? Estaria nossa vida refém do ordinário?
Mas o círculo guarda um segredo, tanto na matemática como na vida: qualquer ponto ordinário seu pode metamorfosear-se em ponto extraordinário, se por ele passar uma tangente. No encontro da tangente com o círculo, ambos dividirão o mesmo ponto, abrindo assim o círculo a uma força que vem de fora de seus limites e contornos. Quando o ordinário se converte em extraordinário, acontece o deslimite -renovando-se a vida.
Assim, entre o ordinário e o extraordinário não existe uma diferença intransponível: é no seio do ordinário que o extraordinário acontece. “Cada coisa ordinária é um elemento de estima”, afirma o poeta. Pois, complementa, “é no ínfimo que eu vejo a exuberância”. Em "O Guardador de águas", ele revela ainda: “No achamento do chão também foram descobertas as origens do vôo.” É no ordinário do chão que o extraordinário, como voo, é “achado”. Enfim, “o chão é um ensino”.
"O que eu descubro ao fim da minha Estética da Ordinariedade , afirma o poeta,é que eu gostaria de redimir as pobres coisas do chão".
Mais do que um poeta, Manoel de Barros é um pensador, um pensador brasileiro. Certamente, um dos mais originais. Ele faz com as palavras o que Glauber Rocha fizera com as imagens, pondo-as em “Transe”. O transe é o deslimite transposto ao mundo das imagens.
Empregamos aqui “brasileiro” no sentido mais genuíno e rico que esta palavra pode ter, pois ser brasileiro é ser , em essência, “mestiço”. Não nos referimos, claro, a uma mestiçagem baseada em cores de pele, mas na mistura singular de almas heterogêneas que fazem nascer em uma única alma a capacidade de falar e sentir por muitas. Só a mestiçagem de almas pode dar nascimento a um estilo ao mesmo tempo singular e plural , poético e filosófico , autóctone e estrangeiro .
Em sua Filosofia da mitologia, Shelling considera que a arte grega revela,
de forma segunda ou derivada, o que o mito expressa de forma primeira,
originária. Por isso, a arte grega buscava na mitologia seus temas. Exatamente
por ser arte, invenção, a arte não pode ser primeira, sem perder sua natureza
de arte. A invenção artística é assim considerada
por existir algo não inventado que se lhe contrapõe, tal como o
refletido em relação ao reflexo . Se tudo fosse inventado, não se teria
consciência da invenção. Se assistíssemos a uma peça de teatro que nunca
terminasse , e se nós mesmos fôssemos parte dela, essa peça já não seria
teatro, seria a vida mesma, mesmo que fôssemos apenas espectadores dela.
Segundo argumenta Shelling, a
mitologia não é arte, ela é uma forma singular de produzir conhecimento,
conhecimento do que vem primeiro, exatamente por ser divino. Por isso, por dar
a conhecer o que é primeiro, a mitologia não é segunda, ela é primeira. Ela é a
invenção sem a consciência de invenção. A mitologia vive a experiência de não
separação entre o conhecimento e aquilo que é conhecido. Logo, ela é realidade,
uma realidade absoluta, isenta da separação entre subjetividade e objetividade,
corpo e espírito. Nesse sentido, é impossível para nós vivermos o mito tal como
o viveram os gregos que o inventaram , talvez apenas o poeta e a potência
imaginante da criança disso sejam capazes. Ao inventarem os mitos, os gregos
inventavam a si mesmos, sem que houvesse antes dessa invenção um grego como
“verdade objetiva” do que é ser grego. Talvez seja essa a grande lição que
temos de aprender com os gregos: sermos os artistas de nós mesmos.
O grego assim inventado não é
histórico, mas simbólico. “Sym-bólico” : união ou agenciamento das partes.
“Dia-bólico”: separação das partes. Todo símbolo é uma parte que se oferece à
outra parte dela que somos. O símbolo agencia diferenças no encontro que o
expressa. O “diabólico”, ao contrário, é o que nos reduz a um ego, a um cogito.
Talvez nada mais diabólico do que disse Descartes, atormentado pelo seu “Gênio
Maligno”: “o homem está só no mundo, e fala apenas consigo mesmo”. Mas os sabiás
com trevas, como Manoel, Deleuze e Espinosa, acreditam nessa simbólica
poético-filosófica: “o homem está só no mundo, se fala apenas consigo mesmo”.
Por isso, esse grego simbólico inventor
de mitos também podemos o encontrar em nós , desde que ainda nos afetemos pelo
Canto das Musas, e aprendamos não exatamente a nos comportarmos , mas a “inventarmos comportamento”.[1]
Como diz
Deleuze, “a literatura é o esforço para interpretar engenhosamente os mitos que
não mais se compreende, por não sabermos mais sonhá-los ou produzi-los”[2]. O
mito começa com o caos. Perdemos, talvez, o sentido desse começo, no qual arte
e vida ainda não se haviam separado. Em
Aristóteles, a arte imita a vida. Naquela época em que se produziam os mitos,
porém, a poesia era a vida mesma que se repetia outra, como sentido produzido
para si mesma, como Caos e como Gaia, Terra.
Não tenho “alma dentro”, em “interioridades profundas”. Não
guardo segredos nela, tampouco visões de outro mundo.
Minha alma cobre meu corpo como pele mestiça que ora é o sol que marca, ora é a chuva que
tinge e molha. Ela está aberta aos ventos, e tem poros por onde a luz
entra, não importando se é luz de inverno ou de verão. Ela não é tela digital frenética, ela ora é
papel sutil onde o tempo escreve seu poema, mais do que sua história, ora é tela sempre coberta pelas
cores da paisagem que me cerca, mais do que pelas formas.
Minha alma é minha pele, a que me envolve e cresce comigo,
sentindo o que o corpo também sente.
Ela está entre mim e o universo, na
fronteira entre o que ela cobre e o que nela , de fora, se imprime : como uma foto de Francesca, uma partitura de Lhasa.
A filosofia não é um “verniz” para lustrar os móveis feitos
pelas ciências, dando a estas uma "atmosfera lógica" ou "bem pensante", para ser
melhor “vendável” no mercado das ideias. A filosofia é a própria madeira de que
são feitos os móveis, antes sendo a própria árvore natural inserida em uma
floresta, expressão múltipla da Natureza. Pensar/filosofar é ver a floresta na imanência do simples móvel, para assim fazê-lo mais translúcido do que o poderia fazer todo verniz retórico ou lógico.
A "utilidade” da filosofia não é a de um móvel lustrável, mas a de um território com lúmen próprio - às vezes floresta, noutras oceano ou deserto-, que serve a uma desterritorialização ou fuga que lhe vai por
dentro, indo ela também por dentro de nós, para assim desabrirmo-nos.
O nascer é um acontecimento que apenas o verbo pode dizer. Os
anos que vivemos parecem que vão nos afastando daquela origem, e chamamos a
isso de crescimento. Contudo, vamos aumentando apenas em tamanho coisal, ao
passo que o nascer é sempre pré-coisa. Quando vamos nos tornando adultos, os anos passando, aumentamos em matéria e substância, não necessariamente em inauguramentos .
Contudo, a força que nos faz nascer e nos conserva no viver
não são duas, elas são a mesma, única – como viu Espinosa. A força que conserva
é a mesma que cria: somente o que é criado, nascido, pode ser conservado. Do
ponto de vista da força que faz nascer, não há diferença entre criar e
conservar. É no nascido que se dá a dicotomia, quando este imagina que viver é
afastar-se do nascer. Mas é no nascer que a identidade entre criar e conservar se mostra mais viva,
vez que não há ainda nesse acontecimento um “eu” que se queira tomar como algo
pronto, não mais larva.
O poeta, ao contrário, cresce se aproximando dessa
força, desse nascer, como disse Manoel de Barros: “Quando crescer vou virar criança."
Há em Espinosa uma maneira muito peculiar de raciocinar. Não
é como a lógica aristotélica , decalcada que é da semântica da língua grega. A
lógica de Espinosa é geométrica na forma e poética no conteúdo. A geometria não é uma língua falada por um povo, senão a língua do próprio espírito. Porém tal língua não é capaz, sozinha, de produzir o sentido que o espírito expressa e fala. Ler apenas o que Espinosa escreve não é apreender todo o sentido que há no que ele expressa. É preciso apreender o modo como ele raciocina, embora apenas o raciocínio também não expresse toda a potência de sentido que há no seu dizer.
A lógica espinosana se expressa nas palavras, mas as emendando , depurando delas as tristezas
e os ódios, os delírios que nascem de uma razão sem corpo .
Há em Espinosa o
singular encontro, nunca antes acontecido, entre a forma de um raciocínio geométrico unida a uma intuição poética que não se pode
reduzir a raciocínios, pois ela é de outra ordem, mais semelhante a um afeto
singularizante do que a um teorizar
universalizante.
Pensar não é apenas raciocinar. Pensar é unir o raciocinar a
um intuir poético que nunca pode ser reduzido a um raciocínio, e sem o qual
todo raciocínio é tão somente malabarismo intelectual.
Espinosa afirma: Deus possui infinitos atributos, dos quais
conhecemos apenas dois: a extensão e o pensamento. Pensamento e extensão ,
mente e corpo, são partes da Natureza, não são a Natureza inteira. Devemos
tomar o máximo cuidado, por isso mesmo, para não querermos imaginar os outros
atributos que não conhecemos, como se a imaginação pudesse mais do que o
pensamento nesse campo. Decerto que a imaginação pode coisas diferentes daquelas
que pode o pensamento, porém poder
coisas diferentes não significa poder mais naquilo que apenas o pensamento
pode, que é exatamente o conhecimento do infinito. Se cedermos à tentação e
acharmos que a imaginação poderá imaginar o que o pensamento não pode conhecer,
começaremos a duvidar da própria potência do pensar, atribuindo deficiência ao pensamento de pensar uma
realidade mais elevada, que somente a imaginação poderia alcançar, de tal modo que
acabaremos por diminuir aquilo mesmo que
podemos conhecer, como extensão ( ou corpo) e como pensamento (ou ideia). Enfim,
entraremos no delírio, que se tornará tão ou mais perigoso quando querer
expressar-se no campo político, o que
cedo ou tarde acaba acontecendo, outrora e agora, hoje.
Quando a imaginação
ignora a sua virtude, que é a de imaginar, e passa a querer conhecer a Natureza , correm risco o corpo e
as ideias : o corpo será demonizado,
pelos moralistas, ou narcisado, pelos egoístas, ao passo que as ideias serão confundidas com meras elucubrações
mentais, sem lastro de saúde do
espírito.
( no livro há um capítulo escrito por mim dedicado ao poeta)
Trecho:
Manoel de Barros: um sabiá com trevas
O não-filosófico está talvez mais no coração da filosofia que a própria filosofia,
e significa que a filosofia não pode contentar-se
em ser compreendida somente de maneira filosófica ou conceitual.
Mais importante do que o pensamento é o que “dá a pensar”;
mais importante do que o filósofo é o poeta.
Gilles Deleuze
1. Introdução: não se pode passar régua em Manoel
No dia 6 de setembro de 2016 o Centro de Artes Uff prestou uma bela e mais do que merecida homenagem ao centenário de Manoel de Barros. O evento fez parte do Festival Nacional de Cultura Popular – Interculturalidades, organizado pela Uff. Fiquei honrado e feliz por ter sido convidado a participar da homenagem, juntamente com Douglas Queiroz Marçal (assessor de Cultura e de Comunicação da Fundação Manoel de Barros), Luiz Henrique Barbosa (pesquisador da obra do poeta), Mário Chagas (poeta), Gabraz Sanna (diretor do filme “Língua de Brincar”) e ainda o neto do poeta, Thiago Barros.
A mesa que nos reuniu teve por título um verso do Manoel: “Na ponta do meu lápis há apenas nascimento”[2]. Quanta beleza e generosidade nessa frase! Não por acaso, “generoso”, “gerar” e “gente” procedem de uma mesma raiz: “gen”, que significa exatamente “nascer”. O poeta-generoso faz nascer ideias, afetos, percepções, comportamentos, empoemamentos...lá mesmo onde tudo parecia entregue, “acostumado”[3]. Esse “fazer nascimento” é uma forma de resistência que irradia de seus poemas e vem se alojar naquilo que em nós “pede um pouco de possível, para não sufocar”, como dizia Foucault. Há uma inocência nesse resistir, pois se resiste brincativamente[4]. Creio ser esse fazer nascimento a essência do que em Manoel é uma original “empoética” , como prática lúdica, ética, política e clínica de empoemar-se (sobre a qual falaremos mais adiante[5]).
Como definir Manoel de Barros? Essa pergunta suscita outra: por que querer defini-lo? Manoel de Barros é definível? Creio que a dificuldade de se classificar Manoel, pôr nele uma etiqueta, deve-se ao fato de que sua poesia, como poucas, pouquíssimas, é uma aproximação com as fontes[6]. O próprio Manoel é grato às suas fontes. A fonte é a origem que renova[7]. Ser grato às fontes é devir fonte. A fonte também é uma visão, uma visão fontana[8]. A visão fontana faz nascimento no ato de ver, pois “é pelo olho que o homem floresce”.[9] O mundo que os olhos da lagarta veem não é o mesmo que verão os olhos da borboleta: os mundos mudarão porque mudarão, antes, os olhos, diferentes olhos terão florescido.
Há estudos feitos no âmbito da teoria literária que tentam esquadrinhar a obra do poeta, buscando afinidades e filiações, simpatias e pertencimentos. Há razão nesses estudos, não há o que questionar. Porém, basta ler o poeta para perceber que nele há um estilo ainda não catalogado, ainda não visto, como passarinho cuja espécie carece ainda de nome. Há em Manoel uma verdez[10], uma não velhez : a “velhez não tem embrião”[11]. Para saber e experimentar essa não velhez basta lê-lo...Porém, há ainda aqueles que dizem ser Manoel uma fórmula, que há uma fórmula-Manoel , como se o poeta se repetisse. Reduzem sua poética a algumas ideias-imagens que se repetem. Com isso, parecem querer não achar motivo ou razão para perdurar, e renovar, tanto encantamento que muitos encontram em Manoel, sejam eruditos ou não, letrados ou gente simples, jovens, crianças ou idosos.
Contudo, já li não sei quantas vezes um mesmo poema do Manoel. Cada vez que o leio se produz em mim um empoemamento completamente diferente do empoemamento que tivera ao lê-lo anteriormente. É sobre este verbo que é preciso ter a atenção: o empoemar. A obra de Manoel é uma empoética. Não se lê Manoel sem empoemar-se. Mas o que significa empoemar-se? É possível definir esse afeto-metamorfose? O mesmo acontece quando se pergunta acerca do que significa o tempo, o infinito, o desejo, o inconsciente, o absoluto, o sentido... Pode-se dar uma resposta que encerre o problema? Ou ainda: o que significa pensar? Quem se satisfaz com uma resposta que de-fina, dá fim, a essas questões?
Manoel traz uma questão ainda mais nova, que talvez sempre permaneça como a prova de que em seus versos há um “embrião”, desde que em nós também se ache uma verdez. A novidade manoelina não diz respeito à diferença sempre debatida entre a poesia e o poético, mas entre o poético e o empoético.
[2]Encontros: Manoel de Barros (org. Adalberto Müller), Rio de Janeiro: Azougue, 2010p. 135.
[3] “Não use o traço acostumado”, verso do poema “As lições de R.Q.”, Livro sobre nada.
[4]“Nossa linguagem não tinha função explicativa, mas só brincativa”, versos do livro/poema Escritos em verbal de ave.
[5] Para saber mais sobre essa “empoética”, remetemos ao estudo que fizemos: Manoel de Barros : a poética do deslimite .
[6] Poema “Fontes”, Memórias inventadas - as infâncias de Manoel de Barros, p. 147.
[7] “Aprendimentos”, Memórias inventadas. - as infâncias de Manoel de Barros. São Paulo: Planeta, 2010.
[9] “A volta (voz interior)”,Livro de pré-coisas, p. 68.
[10] “Resta sempre uma verdez primal em cada palavra”, verso do poema “Pedras aprendem silêncio nele”, Gramática expositiva do chão – poesia quase toda, p. 342.