sexta-feira, 31 de julho de 2020

das serpentes e suas alianças...

Espinosa dizia que há uma espécie de “trindade obscurantista” que reduz os homens e as sociedades ao pior deles mesmos, pondo em risco a pluralidade social , a educação e a democracia. Essa trindade é composta pelos  seguintes personagens ou tipos: o escravo, o tirano e o sacerdote. O escravo é aquele que se deixa dominar pelas “paixões tristes”. O escravo  não apenas as sofre, o que é natural de acontecer tendo em vista a condição humana, porém ele se alimenta delas, como se isso preenchesse algum buraco em sua vida. O ódio, a ignorância, o medo, etc., são exemplos de paixões tristes. Se uma serpente nos morde, é inevitável que em nós entre o veneno, cabendo-nos imediatamente buscar o antídoto. Mas a paixão triste pode fazer  do homem um dependente do veneno que o enfraquece , ao mesmo tempo maldizendo quem traz antídotos. O tirano é quem se vale das paixões tristes para dominar os ressentidos e ignorantes. O  tirano canaliza as paixões tristes e as emprega a seu favor, inclusive politicamente. O tirano chega ao poder  não por amor à coisa pública, mas tirando proveito  das paixões tristes e as fazendo de arma contra os que ele estigmatiza como  inimigos. O sacerdote é aquele que passa a mão sobre a cabeça do escravo, bendizendo a ignorância .  Em geral, os sacerdotes são pequenos, e só ficam maiores do que os escravos os mantendo ajoelhados. O sacerdote prega que a tristeza é melhor do que a alegria, que o obedecer é melhor do que o  rebelar-se, que filosofia, ciência e arte são perigosas. O tirano escraviza o corpo do escravo, o sacerdote escraviza a alma. “Sacerdote”, aqui, não é exatamente uma autoridade religiosa literal, mas um tipo  que se aplica  a várias espécies  de homens. Espinosa chama de poder teológico-político a essa aliança abominável  entre tiranos e sacerdotes, cuja força cresce quanto mais o escravo ignora sua escravidão. Para quem imagina que  Espinosa já nasceu sábio ou que está se colocando em uma situação superior ao restante dos homens , ele relata que  já viu de perto essa escravidão nele mesmo  , escravidão  no sentido aqui colocado. E ele se tornou o que se tornou porque libertou, primeiro, a si mesmo, ao mesmo tempo  compreendendo  que não há sentido em libertar a si mesmo sem libertar igualmente aos outros, nisso concentrando seus esforços, não sem alegria e amor . Esse concentrar de esforços libertários tem um nome: filosofia prática.




Alguns alunos sempre me dizem ( e com razão):  “Professor, é difícil ler a Ética de Espinosa!”. Quase sempre , o motivo da dificuldade é a “roupa” com a qual Espinosa “veste” seu pensamento: a geometria. Além das boas Introduções ao pensamento de Espinosa, como este livro de Deleuze, recomendo o seguinte roteiro para quem nunca leu Espinosa e não tem formação em filosofia. A Ética possui cinco partes. Na Primeira Parte , começar lendo pelo Apêndice ( que se encontra no final dessa Primeira Parte). Após ler o Apêndice, ler a Proposição 8 e, sobretudo, os dois Escólios dessa mesma Proposição 8 ( a palavra “escólio” significa “escola” ou “comentário”, ou seja, é no escólio que Espinosa comenta e melhor explica suas ideias, sem vesti-las com a roupagem geométrica que, muitas vezes, dificulta a leitura). Depois, ir para a  Segunda Parte. Nela, ler a Proposição 49 e, principalmente, o Escólio. Seguir para a  Terceira Parte, ler o Prefácio  . Depois, ler a Proposição 2 e seu Escólio; em seguida, a Proposição 56 e seu Escólio; por fim, ler a “Definição de Afetos” e a “Definição Geral dos Afetos” que fecham essa Terceira Parte. Na Quarta Parte, ler o Prefácio e depois o Apêndice que fecha essa Quarta Parte. Na Quinta Parte, ler o Prefácio  e a Proposição 42 ( e seu Escólio). Na obra de Espinosa intitulada “ Tratado Político”, o filósofo recapitula , nos Capítulos 1 e 2 ( que não são extensos)  , as principais teses de sua “Ética” , e numa linguagem mais acessível ( sem os aparatos da geometria). Sempre recomendo também o livro “Tratado sobre a emenda do intelecto”, obra que antecede a Ética e rascunha algumas ideias que serão desenvolvidas posteriormente. É nessa obra que Espinosa mostra como encontrou o “remédio” ou o “antídoto”, fato que mencionei por alto aqui na postagem.


quinta-feira, 30 de julho de 2020

germinal

Os estudos sobre a vida mostram a existência de dois  processos vitais: o germen e o soma. Alguns traduzem “germen” por “embrião”, porém é mais do que isso. Pois o embrião um dia deixa de ser embrião, ao passo que os processos germinativos estão sempre presentes no organismo , mesmo no adulto , para mantê-lo vivo.  O germen não é a semente, e sim o que faz a semente germinar. É o germen que também faz as flores, os frutos e as sementes germinarem em uma árvore.  O germen nunca é estático como um  ponto, ele é um dinamismo ou potência : ato de germinar. Não é apenas na semente que há coisas germinando: na árvore também sempre há coisas a germinar, mesmo nas árvores centenárias. Não são apenas as  coisas físicas  que germinam,   também germinam ideias, desejos, imaginações, ações...para que a vida pensante em  nós floresça e frutifique.

Em grego, "soma" significa “corpo". O soma  é sempre o resultado da atividade de um germen. Os corpos podem ser medidos e mensurados, ao passo que os germens se medem por aquilo que eles produzem. As doenças são psicossomáticas, mas a saúde  é sempre produção de um germen.  As células germinativas não apenas geram as células somáticas , como também as   socorrem   quando elas precisam regenerarem. Germinativo não é somente  o que gera, é também o que regenera, sejam células , afetos ou ideias.

A diferença entre germen e soma também habita a arte. As artes germinativas pressupõem a duração, enquanto  as artes somáticas dependem da extensão e suas dimensões. O canto e a música são artes germinais por excelência; a pintura, a escultura e arquitetura são artes somáticas. O realismo é sempre somático; porém impressionismo e expressionismo são  germinativos. As artes somáticas impõem um limite; as artes germinativas, como a própria vida, afirmam e expressam  um deslimite. O cinema mostra que em todo soma há um germen que o vivifica, pois o corpo inerte  dos fotogramas somente  se torna imagem viva quando  o germen da luz os ilumina por dentro . A poesia tem uma origem germinal : o sentido que o poeta cria é o germen  que dá vida ao corpo  da letra. A lei é soma ou corpo jurídico, mas a justiça é sempre germen que nasce do desejo por democracia. Soma é a família, porém germen é o amor. O tempo do relógio é a soma, ou o soma, dos dias que se vão; já  a duração vital é o germen do novo dia que chega. A filosofia possui seu corpo de Doutrinas ; contudo sempre germinal é o pensar. O significante é somático; germinal é o sentido. A posse das coisas  pode dar corpo às nossas alegrias, mas o germen da felicidade muitas vezes germina no despossuir-se em generosidade.

“No achamento do chão também foram descobertas as origens do voo.”(Manoel de Barros)



 O livro “Germinal” fala das condições de trabalho sub-humanas em uma mina. Para escrever o livro, o próprio Zola passou cerca de dois meses trabalhando como operário mineiro. Revoltados  com a situação e inspirados por ideias libertárias, a greve foi ganhando corpo entre os trabalhadores, pois neles já germinava a indignação contra a exploração , germinando igualmente o desejo de dignidade e liberdade. “Germinal” também foi o nome que se deu à primeira primavera após a Revolução Francesa, e passou a simbolizar, dali por diante, o germinar e frutificar de ideias libertárias . O livro de Zola inspirou o filme cujo cartaz ilustra a postagem.


terça-feira, 28 de julho de 2020

espinosa como educador

O filósofo Leibniz dizia que se a gente prender uma semente na mão,  com o tempo ela apodrece. Mas se a gente plantar a semente, cuidar e cultivar, dela nascerá uma árvore. Da árvore nascerão incontáveis frutos : dentro de cada um, uma nova semente. Se a gente plantar essas novas sementes, delas nascerão outras árvores, cada uma com inumeráveis frutos, cada fruto grávido de novas sementes. Naquela primeira semente havia virtualmente uma floresta inteira , uma floresta-potência, assim como  em uma criança está a humanidade à espera de crescer. Pois humanidade não é uma quantidade numérica afim a   rebanhos, mas uma potencialidade inseparável de nossa singularidade, e   que se cultiva com educação, afeto  e liberdade . Para uma potencialidade florescer, da semente ou de uma criança, é preciso um exercício de cuidado e um espaço aberto livre de estreitezas. Quem descobre tal floresta dentro de si não aceita viver limitado por cercas : como diz Manoel de Barros,  mundos por criar desabrem dentro e saltam para fora . Na imanência de uma ideia libertária   há sempre outras ideias, infinitas ideias, pois toda ideia libertária  é plural e múltipla, já nos ensinava Espinosa. Educadores plantam ideias-sementes, obscurantistas se armam com  motosserras. Reduzindo a vida a mero negócio, esses obscurantistas   só aceitam sementes que possam manipular como se fossem moedas.  Quando  as plantam, tais sementes se tornam tão fracas que, para se manterem vivas, precisam de veneno, de muito veneno,  que mate as outras vidas diferentes delas . Então,  os obscurantistas derrubam as heterogêneas e múltiplas florestas , deixando no lugar  apenas morte e deserto  .  Depois  cobrem esse deserto  com soja  homogênea parecendo um rebanho vegetal , para  assim  virar    óleo e fazer as engrenagens do Capital girarem ,  ou então farelo que só aos porcos engorda.
Ao falar da semente descobrindo-se floresta, Leibniz se refere simbolicamente à educação e ao seu papel crítico, criativo e emancipador.  Dentro da semente não está a floresta com suas árvores já prontas e individuadas, pois a floresta que existe dentro da semente é uma floresta em rascunho, uma floresta-embrião, que somente nasce se a semente for plantada em terra fértil e horizontada. Essa  floresta-potência existe não como quantidade determinada, mas como intensidade de uma vida que nasce de si mesma e frutifica , ao mesmo tempo singular e plural.

“Poeta é ser que vê semente germinar.
Nas fendas do insignificante ele procura grãos de sol.” (Manoel de Barros).

“O grande segredo do regime  autoritário e seu interesse vital consistem em enganar os homens, travestindo o medo com o nome de religião , com o que se quer sujeitá-los; de modo que eles combatem por sua servidão como se se tratasse de sua salvação.” (Espinosa)




“Com a sentença dos Anjos, com o consentimento de Deus [...] nós Excomunhamos, apartamos, amaldiçoamos e praguejamos a Baruch de Espinosa [...]. Maldito seja de dia e maldito seja de noite, maldito seja em seu deitar e maldito seja em seu levantar, maldito ele em seu sair e maldito ele em seu entrar; não queira Adonai perdoar a ele, que então semeie o furor de Adonai e seu zelo neste homem e caia nele todas as maldições escritas no livro desta Lei. E vós, os apegados com Adonai, vosso Deus, sejais atento todos vós hoje. Advertindo que ninguém lhe pode falar oralmente nem por escrito, nem lhe fazer nenhum favor, nem estar com ele debaixo do mesmo teto, nem junto com ele a menos de quatro côvados (três palmos, isto é, 0,66m; cúbito), nem ler papel algum feito ou escrito por ele”. Trecho do “Herem” (“Censura” ) aplicado ao jovem Espinosa (23 anos ele tinha à época) , como parte de sua excomunhão. Detalhe: em 2012 , cientistas e filósofos israelenses se reuniram para elaborarem um documento solicitando que as autoridades religiosas israelenses suspendessem, enfim, o “Herem” ( que ainda continuava em vigor!). Mas as autoridades religiosas indeferiram o pedido alegando que a pessoa de Espinosa morreu, porém seu pensamento ainda continua vivo.

segunda-feira, 27 de julho de 2020

musas, poesia & filosofia


O pensar filosófico nasceu antes da própria filosofia. Esse pensar nasceu com os pré-socráticos. Os pré-socráticos não eram ainda filósofos, porém já não eram mais poetas, como Homero e Hesíodo. Esse “entre” a poesia e o conceito, entre a criação e o pensamento, é o lugar no qual o pensar filosófico nasceu. Os pré-socráticos sempre evocavam as Musas para inspirá-los a alcançarem a “Aletheia”. “Musa” significa: “conhecimento que vem das artes”, isto é, da sensibilidade. As Musas simbolizavam a música, o teatro, a dança, a poesia...Os primeiros pensadores evocavam o auxílio das artes para que neles nascesse o pensar criativo. A palavra “Aletheia” vem de “lethes”, que era um rio cujas águas produziam esquecimento em quem bebia de suas águas. “Aletheia” é : “não-lethes”, isto é, “não esquecimento daquilo que não pode ser esquecido” . A Aletheia era uma força que nascia dentro do pensador, tornando-se pensar ativo que vencia o esquecimento do que era a justiça, o homem, a natureza, o cosmos, o amor...Aletheia era a lembrança de que essas realidades não existem se não forem criadas. Assim , o pensar filosófico evocava as Musas para nascer dentro dele uma força criativa como instrumento potencializador da vida, ao passo que a “doxa” ( ou opinião) é a palavra destrutiva que nasce da boca daqueles que se embebedaram com lethes, também conhecido como “o rio da morte”, morte enquanto esquecimento daquilo que nos faz humanos.
Os pré-socráticos escreviam sob a forma de poemas. Mas o conteúdo desses poemas já não era Zeus, Atena, Hermes, Poseidon, o Olimpo...O conteúdo era a Terra, a Água, o Fogo, o Ar, enfim, a Natureza, o Cosmos. Quando a filosofia nasceu com Platão, a razão masculina veio tomar o lugar das Musas, porém não as exterminou . As Musas são Imortais. A filosofia ortodoxa abandonou a forma do poema e adotou a forma da prosa. Ao invés de evocar as Musas, Aristóteles evoca a fria Lógica.
Mas o pensar poético-filosófico não morreu. Subversivo, ele aprendeu a colocar alma poética na forma da prosa, para assim criar novas lógicas e novos pensares não falocráticos, trazendo de volta a potência libertária das Musas. Quando lemos Plotino, Nicolau de Cusa, Giordano Bruno, Espinosa, Nietzsche, Deleuze, Foucault...reencontramos aquele pensar poético inaugural, mas que agora reinventou as Musas como devir-terra e devir-feminino.
Poesia não é a mesma coisa que poema. Poema é uma forma, já poesia é um conteúdo que pode até mesmo vestir-se de prosa, para assim potencializar o conceito e as ideias. Tal como entre os pré-socráticos, o desafio hoje ainda é o mesmo, porém muito maior: reinventar Aletheia, vencer as forças obscurantistas da doxa , para assim não esquecermos daquilo que nos torna o que verdadeiramente somos.

“É preciso transver o mundo.” (Manoel de Barros)





domingo, 26 de julho de 2020

sobre o mito grego e o "mito" dos tolos


Não acho muito adequado contrapor a mitologia, sobretudo a grega, com o discurso da história , como se aquela fosse uma deturpação desta. Na verdade, a mitologia não é um discurso histórico, ela é uma fabulação simbólica e, enquanto, pertence à filosofia,  não à história. Inclusive, todo bom livro de Introdução à Filosofia tem a mitologia como seu capítulo inicial. Os pré-socráticos, por exemplo, evocam as Musas e expressam  suas filosofias sob a forma de poema. Mesmo a filosofia tendo abandonado  a forma do poema, ela nunca abandonou a poesia e a simbologia, como se vê em Plotino, Nietzsche, Nicolau de Cusa e tantos outros. Quando os simpatizantes do bozo o chamam de “mito”, esse sentido de “mito” nada tem a ver com o sentido grego, pois o “mito” que eles usam vem do verbo “mitar”, um neologismo nascido nas redes sociais . “Mitar” significa “ser o primeiro” ou “liderar”, mesmo que seja o primeiro dos tolos liderando  um grupo de tolos.





os ancestrais


Certa vez, uma querida amiga me perguntou por qual motivo eu assino “Elton Luiz Leite de Souza”, e não apenas “Elton Souza” ou “Elton Leite”, nome e sobrenome mais fáceis, digamos assim,  de gravar. Já me fizeram essa mesma pergunta antes, e sempre respondo assim: quando comecei a dar aula, gostava de  assinar  apenas “Elton Luiz”, sem sobrenome. Eu assim o fazia por homenagem à minha bisavó que era índia, não deixando  sobrenome na história (assim como extinguiram o nome  “Pindorama”). Porém, nunca respeitavam esse meu desejo nos diários de classe. Embora não dissessem abertamente, pareciam considerar “Elton Luiz” um nome muito bastardo. Acontecia então uma bagunça: às vezes escreviam “Elton Luiz Leite” nos diários de classe , noutras “Elton Leite ”,  o mais comum era escreverem “Elton Souza”. Nos primeiros artigos que escrevi, então, ninguém aceitava o singelo “Elton Luiz". Por considerarem  “Elton Luiz Leite de Souza” muito grande, escreviam abreviando : “Elton L L de Souza.” O curioso é que meu nome não seria “Elton”. Meu pai, que era fanático por futebol, certa vez chegou em casa e disse para minha mãe: “Já sei como será o nome do nosso primeiro filho!”. Desconfiada, minha mãe pôs  a mão na cintura e perguntou: “Qual?” . “Amarildo !”, disse cheio de esperanças meu pai ( “Amarildo” era o nome de um famoso futebolista da época). Minha mãe apenas disse: “Não”. Meu pai nem insistiu...Nada contra o “Amarildo”, mas ainda bem que , lá em casa, quem mandava era minha mãe. Foi ela que decidiu pelo “Elton”. Anos depois, descobri que “Elton” significa: “aquele que nasceu em Ella”. “Ella” era uma cidade mítica céltica. Segundo tal mitologia, essa cidade tinha uma característica: todos que lá nasciam se tratavam como iguais, com plena justiça.  Assim, eu achava que “Ella” tinha algo de uma taba ou tribo onde viveu minha bisavó. Como boicotavam meu  “nome menor” ( “menor” , ensina Deleuze, é tudo aquilo que, por ser singular, foge ao  “padrão”) decidi de uns tempos para cá assinar o nome completo, tal como aparece aqui no face . Juro que não é por vaidade ou pretensão que faço isso ,  é só mesmo por pura consideração àqueles que escolheram meu nome e sobrenome. Quanto à minha bisavó índia, embora ela não esteja  no sobrenome,  sinto que é  forte sua presença em  meu sangue.
Hoje é “Dia dos Avós”.  Ao falar da minha querida bisavó, queria também falar de nossos Ancestrais. Tudo o que eu queria dizer, Manoel de Barros já diz por nós:

“Tenho em mim um sentimento de aldeia e dos primórdios. Eu não caminho para o fim, eu caminho para as origens. Não sei se isso é um gosto literário ou uma coisa genética. Procurei sempre chegar ao criançamento das palavras. O conceito de Vanguarda Primitiva há de ser virtude da minha fascinação pelo primitivo. Essa fascinação me levou a conhecer melhor os índios.”

(nunca conheci pessoalmente essa minha bisavó, ela já era falecida quando nasci. A única coisa que vi dela foi uma foto em preto e branco muito antiga, quase se apagando. Eu era criança e a imagem me tocou muito...Anos depois, eu já adulto e trabalhando, tive um primeiro e único sonho com ela. Eu passava por uma situação difícil à época, semelhante a essa na qual vivemos agora. No sonho , ela apareceu vestida de colares e com um cocar multicolorido adornando a cabeça, cujos cabelos eram compridos e muito brancos. Havia um céu de um azul indescritível emoldurando sua cabeça. Ela só me disse uma coisa no sonho : "Abra seu olho cósmico, não há o que temer..."Após a fala dela, imediatamente acordei e me lembrei de uma carta escrita por Espinosa a um amigo que lhe indagava acerca do sentido de mensagens que nos chegam por intermédio dos sonhos. Segundo Espinosa, na vida em vigília temos a ilusão de que somos pontos descontínuos uns aos outros. Mas quando sonhamos o ego individual fica enfraquecido, e assim podemos ter a experiência, ainda que imaginativa, de que nossa vida faz parte da mesma linha dos que nos antecederam, sendo também parte da linha vital dos que nos sucederão. No sonho, é a imaginação que tenta visualizar esse processo de continuidade, porém é apenas despertos que conseguimos pensar essa continuidade e compreendê-la , desde que vençamos a limitação reativa do ego )



O livro acima é só uma sugestão para quem desejar conhecer algumas  belíssimas histórias que narravam os povos originários. De forma interessante, o autor prefere a expressão “histórias indígenas” do que “mitologia indígena”, explicando que o termo “mitologia” é empregado às vezes de forma pejorativa em contraposição à noção de “história”, como reveladora da “verdade dos fatos”. Mas esse tipo de oposição vale para a sociedade branca-europeia, cuja história se pretende hegemônica. No caso dos povos indígenas, não há separação entre a fabulação narrativa e seu ethos originário. Assim, chamar essas narrativas de “mitologia” seria colocá-las no  mesmo lugar subordinado em relação à história dominante europeia.




sábado, 25 de julho de 2020

espinosa, o geógrafo


O escritor Maurice Blanchot faz uma comparação para questionar os que defendem a “neutralidade” como atitude “justa” para se posicionar diante dos perigos que ameaçam a sociedade e a vida. Tal “neutralidade apolítica” se parece com a atitude de quem quer conhecer um quarto   colocando-se fora dele, atrás da porta, olhando para dentro pelo buraco da fechadura. O “neutro” imagina descrever assim apenas os fatos e tão somente os fatos que vê: sem “paixões” e envolvimentos , apenas a “razão pura”. Esta é a contradição existencial de tal visão: querer colocar-se fora da vida para melhor ver a vida. Blanchot  chama esse olhar de “o olhar da morte” , pois é de uma espécie de morte  que se trata : a morte de perspectiva. Um olhar assim é até  capaz de descrever e analisar, porém é incapaz de achar uma saída. Pois toda saída começa a ser construída , primeiro, do lugar onde se está. A vida nunca é neutra : ela sempre toma partido a favor daqueles que a querem mais viva e por ela se arriscam, mesmo correndo o risco de perdê-la. O oposto desse olhar que vê a  vida apenas pela fechadura, ou por uma tela de tevê ou celular , o oposto disso é fazer-se vivamente presente, mas sem perder de vista a janela . Se não houver janela, quebrar a parede para inventar uma , fazendo-se abertura por onde entrem luz e novo ar, para não sufocar .
A imagem que ilustra a postagem é “O geógrafo”, de Vermeer. Dizem que é o próprio Espinosa esse geógrafo de compasso aberto na mão e  a olhar para fora dos limites do quarto, parecendo buscar horizontes. Envolve Espinosa uma veste azul com uma barra em vermelho cobrindo-lhe o peito. O azul é a cor do céu, é a cor que “celesta”, dizia Manoel de Barros; já o vermelho é cor da vida intensa. A composição dessas duas cores faz nascer o violeta, considerada a cor que veste por dentro os sábios, pois  “violeta é  a cor do  pensar libertário”, ensinava Cláudio Ulpiano.  Vermeer retratou Espinosa como um “geógrafo do pensamento”. “Geo” significa “terra”. Não a terra que  donos  cercam  para    manterem seus  gados , mas a terra que se abre em todas as direções como espaço horizontado.  
Além da luz do mundo que entra transversalmente pela janela, também chama a atenção no quadro a luminosidade que emana do mapa aberto onde o cartógrafo desenhou suas ideias, como se no papel o pensador também abrisse uma janela : para fazer  do conhecimento uma potente  luz contra   as trevas.


 “Poesia é horizontamento.” (Manoel de Barros)

“Nas mãos a ferramenta de operário,
e na cabeça a coruscante ideia.” (versos do poema “Spinoza”, de Machado de Assis)

“Em Espinosa, tudo é luz.” (Deleuze)











( a música "Libertango", de Piazzolla, tem um verso que diz: “Minha liberdade é tango que dança em dez mil portas.")

quinta-feira, 23 de julho de 2020

linhas de fuga


“Ariadne” significa “aranha”. Como a aranha, Ariadne é produtora de um fio: o “fio de Ariadne”. Enquanto as Moiras tecem urdiduras  com o férreo fio do Destino, e são elas que também cortam o fio da vida para assim trazer a morte, o fio de Ariadne é meio para    quem  quer inventar novos caminhos, novas tramas. O fio de Ariadne tem a cor vermelha. Ele se desprende de um novelo tal como o sangue se desprende do coração que o bombeia. O fio de Ariadne não nasce de um ponto e termina em outro, como as linhas traçadas com régua. O fio de Ariadne nasce de um novelo do qual é puxado. “Novelo” significa: “novo elo”. O  novelo é um ventre potencial para novos elos. Quem tem dentro de si um tal novelo nunca fala e age só com o ego,   mas sempre a partir de uma ancestralidade cheia de vozes unida a um berçário de falas novas que ainda nem sabem balbuciar idiomas. Não que nesse novelo tudo já esteja dito: ao contrário, é esse novelo que nos faz ter o que narrar e dizer. Esse novelo é fonte para um “afloramento de falas”, diria Manoel de Barros. Riqueza não é ter dinheiro ou propriedades, riqueza é achar dentro de nós esse novelo  para com ele  criarmos  novos elos; e assim vencermos, quem sabe, esse funesto destino nos quais as Moiras de hoje querem nos ver atados e presos.
Ariadne tinha um par: Dioniso. Ao contrário do Minotauro ,  a “besta” do labirinto que aprisiona , o labirinto de Dioniso era produzido  de seu deambular sempre criador de direções novas. É por isso que de seus caminhos não há mapa ou estradas prévias, como todo caminho libertário .  Somente o fio de Ariadne traça e acompanha a liberdade de caminhos de Dioniso-Nômade-Andarilho.
Certa vez, Teseu quis entrar no labirinto para matar o Minotauro. Teseu representa a racionalidade masculina que teme a vida e quer dominar os instintos à força, já Minotauro simboliza as pulsões que ameaçam a nós mesmos quando ficam presas e reprimidas. A “sede de sangue”  do Minotauro não vem do herbívoro touro, essa sede de  violência vem da parte humana acéfala, essa sim a “besta”. A  luta de Teseu contra o Minotauro simboliza o confronto entre uma cabeça teórica sem corpo contra um corpo sem cabeça. Nessa luta,  quem  sempre  perde é a vida que está no homem, seja pela neurose , quando a cabeça vence, seja pela barbárie , quando quem vence é o acéfalo.
Ariadne simboliza o fio da Vida ; Dioniso, o avançar da arte. A composição de ambos cria linhas de fuga que transmutam as energias pulsionais em impulso para a vida avançar sempre mais.

“O andarilho abastece de pernas as distâncias.” (Manoel de Barros)



Obs.: A palavra latina "occursus" que aparece  na capa do livro aqui acima tem sua origem na "Ética" de Espinosa . “Occursus”  foi traduzida como "encontro". Espinosa dizia que existem os bons e os maus encontros. Os bons encontros nos potencializam, enquanto os maus nos entristecem e despotencializam. Mas a palavra "occursus" também significa "circuito". E esse sentido talvez explique ainda melhor o que é um encontro em Espinosa: o bom encontro cria um circuito onde energias passam, ideias fluem, afetos são partilhados, ações são construídas juntos; já o mau encontro é , literalmente, um curto-circuito que ameaça a nós mesmos.









domingo, 19 de julho de 2020

nise & espinosa: conduzir pela mão


Nise da Silveira cita Bachelard quando este dizia que nossa saúde mental , ou a falta dela, depende  mais do que fazemos com nossas mãos do que daquilo que teorizamos com nossa mente . Talvez  por isso  , depois de filosofar, Espinosa se dedicava a polir  cuidadosamente lentes, como um simples artesão, além de definir sua filosofia como um “conduzir pela mão” agenciado; Wittgenstein fechava  os livros para ir plantar  flores, feito um jardineiro;  Deleuze costumava desenhar entre as aulas, nisso se assemelhando a um cartógrafo; Plotino deixava  seus profundos estudos metafísicos para  ir alimentar com as próprias mãos pequenos órfãos, como se fosse um cozinheiro; depois de escrever  sobre o devir sem culpa  da natureza ,   Heráclito fabricava com as mãos lúdicos   brinquedos para as crianças.
Sobretudo para aqueles cujo pensamento ousa ir muito longe em busca de terras novas, para ele não se perder, é bom mantê-lo unido a mãos que tocam, transformam ou cuidam da realidade próxima, mãos que nada têm a ver com a “mão invisível” do mercado que  apenas sabe contar dinheiro, sem se importar eticamente de onde ele veio.  Somente  mãos que conduzem, cuidam ,alimentam ou transformam  podem ser    a afetiva âncora do pensamento no aqui e agora, sem fazê-lo perder o horizonte aberto  para o qual sempre se desterritorializa e decola .

“Poesia é Oficina de Transfazer a natureza” (Manoel de Barros)






imagens: cartunista israelense Yuval Robichek.





Segundo algumas interpretações, o termo “Gnossienne” deriva de “gnose” , “conhecimento”. Não qualquer conhecimento, mas aquele que une teoria e prática , conhecimento  e afetividade. Satie teria criado  esse nome inspirado no mito de Ariadne, que ensina a Teseu como entrar e sair do labirinto sem se perder: com o fio do afeto conduzindo a mão. Satie é citado por Manoel de Barros como um dos seus compositores preferidos.








sábado, 18 de julho de 2020

o fazedor de amanhecer


Futuro, presente e passado são nomes que não traduzem totalmente o sentido existencial do amanhã , do hoje e do ontem. O passado e o futuro às vezes ficam bem longe do presente, porém nunca se afastam do hoje o ontem e o amanhã . O ano de 1800 e o ano de 2200, por exemplo, representam um passado e um futuro muito distantes do presente, e ninguém que hoje é vivo viveu aquele passado ou viverá aquele futuro. Já o amanhã e o ontem estão sempre próximos ao hoje, dando-lhe sentido. Ontem é um tempo vivido, o amanhã é um tempo que se espera viver, enquanto o hoje é o acontecimento de estarmos existindo. Só existe ontem para quem hoje está vivo, e assim se recorda dele. Recordar é “re-cordis”: “trazer de novo ao coração”. Mas um passado remoto é lembrado apenas na data fria dos livros. Dizem que os deuses vivem num Presente Eterno, porém não os inveja quem segue o conselho do poeta : “carpe diem” ( “aproveite o hoje”) .O passado , o presente e o futuro do calendário são apenas números . Porém o ontem, o hoje e o amanhã são sentidos que preenchem nossa temporalidade existencial . Passado, presente e futuro são tempos da narrativa histórica, ao passo que o ontem, o hoje e o amanhã compõem a duração viva das narrativas novas que podemos construir agora . Mas dessas três dimensões da temporalidade viva, a mais necessária é o amanhã. Não quando ele é visto daqui de hoje, como pura possibilidade ainda, e sim quando ele está para nascer. Ontem, hoje e amanhã são advérbios de tempo. Desses três advérbios, porém , apenas o amanhã é capaz de fazer-se também verbo : amanhecer. Não existe “ontear” ou “hojear”, porém existe amanhecer. O amanhecer é o amanhã que está vindo a ser. Não apenas o amanhã amanhece , pois o amanhecer é verbo que empresta seu sentido a tudo aquilo que se renova: quando os olhos veem de forma nova , os olhos amanhecem. Quando aprendemos uma ideia diferente, é a nossa própria mente que amanhece. Mesmo da noite pode amanhecer um sentido novo, quando suas estrelas são pintadas por Van Gogh. Quando achamos uma direção, o caminho amanhece; quando vencemos a resignação, a ação amanhece. Nada é mais antagônico a esse amanhecer do que o “future-se” a serviço do passado ditatorial que durou 21 anos.
O amanhecer de um dia é o sol que traz. Mas o amanhecer que muda o sentido de um dia é a criatividade questionadora quem faz.

“O meu amanhecer vai ser de noite.” (Manoel de Barros)



sexta-feira, 17 de julho de 2020

assobios...


Aprendi a ler antes de entrar para a escola. Eu tinha por volta de seis anos. Queria muito  aprender a ler porque um grande amigo meu , o Edinho, lia para mim as histórias dos gibis. Edinho tinha dez anos e, além de meu melhor amigo, era  apaixonado por gibis. Ele era o irmão mais velho que não tive (eu era primogênito). Então, minha mãe me colocou  para ter aulas particulares de alfabetização com uma professora vizinha. Eu me lembro até hoje: ela morava em uma casa com um imenso quintal. No meio do quintal havia um grande viveiro de passarinhos  cantando o tempo todo. Havia especialmente um passarinho azul que me marcou profundamente. Ele não era o maior de todos fisicamente , porém  seu canto era muito singular e potente . A mesa da professora ficava perto da janela. Então, na minha imaginação eu ali tinha dois professores: a que com cuidado e atenção me ensinava as letras da língua, e o passarinho que também com cuidado me ensinava outras línguas. Eu amava ser aluno dos dois. A língua que a professora me ensinava eu ainda não conseguia ler, porém a língua do passarinho parecia que já estava dentro de mim. Às vezes, enquanto a professora tentava me alfabetizar na língua dos homens,  na língua do passarinho eu  até já me arriscava a falar, quando então eu assobiava no meio da aula. A professora olhava para mim e sorria. Eu voltava para  casa assobiando a lição poética que aprendi do mestre  passarinho azul.
Quanto à língua dos homens, eu já sabia que “b” + “a” formava “ba”, e que “l” + “a” era “la”, mas eu não conseguia ler o todo que elas formavam quando se juntavam  na palavra “bala”. Eu ia das letras  às sílabas, porém não conseguia passar das sílabas à palavra. Via apenas as partes, não via o todo, e o todo é sempre maior do que suas partes. À noite antes de dormir, eu abria um gibi e  ficava olhando as imagens e identificando as letras e sílabas. Até que houve uma noite em que, de repente, enquanto assobiava inocentemente,  vi a palavra “bala”. Foi instantaneamente que ela apareceu, como um raio. Ela sempre estivera ali, eu é que não a via. Não que me faltassem os olhos do corpo, eram outros olhos que ainda não estavam abertos em mim . Pulei de uma palavra à outra, depois às frases, e destas à história inteira, para depois ficar pensando como ela foi criada. E achei que criar tinha a ver com a lição do mestre passarinho...Perdi o sono aquela noite, com medo de dormir e esquecer o que aprendi. A querida professora me ensinou a gramática, mas creio ter sido aquele passarinho que me ensinou a ler mais do que palavras, e é o canto dele que ainda ouço em todo libertário, como Espinosa e  Manoel.

“Sei falar a língua dos pássaros: é só cantar.” (Manoel de Barros)











quinta-feira, 16 de julho de 2020

horizontamentos...


Certa vez uma pessoa me perguntou de  qual verso do poeta Manoel de Barros eu mais gosto. Respondi indagando se eu poderia citar quatro. Sorrindo, a pessoa disse: “pode”.
O primeiro  verso é este que coloquei como apresentação aqui da página : “Sou água que corre entre pedras: liberdade caça jeito.” Apenas apontar as pedras em nada ensina, em nada  potencializa , em nada serve ao avançar.  Quem apenas aponta as pedras, e encontra nelas  justificativas para parar, chorar, lamentar... também  empedra-se. E as pedras mais difíceis de ultrapassar são aquelas que colocamos para nós mesmos. A liberdade inaprisionável  sempre caça um jeito de correr e suplantar  pedras. E prefere secar tentando do que deixar as pedras fazerem nela uma represa de mágoas.
O segundo  verso é: “A palavra abriu o roupão para mim: ela quer que eu a seja.” A palavra só abre o roupão a quem demonstra cuidado e amor por ela, mesmo quando a  emprega como instrumento de indignação e crítica contra os  que violentam  não apenas as palavras.  Mas a palavra só abre o roupão para quem, por intermédio dela, não dirá ou escreverá somente palavra. A palavra também só abre seu roupão para quem  igualmente se desnuda de todo conhecimento pronto, de toda opinião acostumada e da pretensão de ser o dono exclusivo da verdade.
O terceiro verso é: “Poesia é o que horizonta.” Poesia não é construção de muros ou cercas, poesia é sentido que horizonta. Poesia não é só poema, poesia também é política, educação, filosofia, enfim, existência que se pensa e que se cria,  agenciada . Horizontar-se é conectar-se para construir rizomas. Os rizomas são plantas cujas raízes crescem horizontalmente, sem hierarquias ou centros . Os rizomas se movem verticalmente apenas  quando encontram um muro pela frente: como se fossem pernas, suas raízes escalam o muro , descem do outro lado e seguem adiante.
O quarto verso é: “Na ponta do meu lápis tem apenas nascimento.”  O poeta disse isso quando já estava com quase 80 anos !  Seu lápis é ferramenta lúdica e libertária contra a “velhez”.  “Velhez” não é uma idade, “velhez” não é uma vida perto do fim , velhez é uma vida que , antes de nela morrer o que é velho, morreu o que é criança.

“Não cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas”. (Deleuze)




quarta-feira, 15 de julho de 2020

um pouco de possível...


Os gregos tinham alguns nomes para a alma. O mais famoso desses nomes é Psiquê. Mas a alma às vezes também era chamada por outro   nome : Pneuma ( “Spiritus”, em latim) . Pneuma é “sopro”  ou  “brisa úmida”. Não qualquer sopro ou brisa, mas a brisa úmida que vem do mar e vivifica o deserto.  Pneuma é sopro da vida , diziam os  gregos. Quando o recém-nascido sai do ventre da mãe, ele sai como se estivesse em sono profundo,  a vida nele ainda dorme. Não por acaso, os gregos diziam que Hipnos, o deus do sono, é irmão gêmeo de Thânatos, o deus da morte. Essa semelhança  entre o sono e a morte fica visível na criança que sai do ventre: ela não está morta, porém ainda não está viva, ainda não respira. Até que o parteiro dá pequenas batidas no corpo da criança para ela despertar pela primeira vez. Antes de abrir os olhos, a criança se faz abertura para sorver o ar. Pois ela  não respira  esse  ar inaugural apenas com o nariz, ela o respira  também com a boca, de tal modo que esse ar é seu primeiro alimento, antes mesmo do leite materno. Esse primeiro ar não vai apenas encher os pulmões, ele também acorda as células, as fibras, os nervos e o coração; acorda também o cérebro e os neurônios para o seu primeiro pensar desperto. Esse ar também  imanta o sangue e o faz  circular. Quando a criança abre pela primeira vez os olhos, o Pneuma  se torna igualmente olhar sobre o mundo, o mundo do qual proveio enquanto parte da respiração da própria Gaia, a Terra.  Pneuma é o ar que se aspira ou inspira, o ar que se puxa para dentro para despertar e manter viva a vida . Enquanto Psiquê é a alma sozinha, Pneuma é a alma enquanto sopro que forma com o corpo um único e singular ser vivo. “Meditar” tem a mesma raiz de “medicar”, e talvez seja por isso que as técnicas de cura meditativa consistem em fazer a gente prestar atenção não exatamente na respiração  mas no Pneuma, para despertarmos como desperta , respirando, um recém-nascido . O Pneuma  também pode ser respirado de livros, músicas, artes , enfim, de ideias libertárias. Pois se as ideias  não contiverem  Pneuma,  tornam-se apenas abstração ressequida. E creio ser esse o sentido do que disse Foucault: “Um pouco de possível senão sufoco”, um pouco de Pneuma para não sucumbirmos a esse deserto que  nos cerca.  

“Queria transformar o vento.
Dar ao vento uma forma concreta e apta a foto.” (Manoel de Barros)



















terça-feira, 14 de julho de 2020

interpretação e mensagem


“Interpretar” é uma das atividades mais importantes dentro do processo de ensino e aprendizagem. A prática da interpretação também tem uma dimensão política, revelando o modo como alguém se posiciona diante da realidade que o cerca. Certos modelos conservadores de ensino querem  fazer da tabuada e da cartilha  os únicos conteúdos a serem ensinados. E quem assim pensa, como o atual ministro da educação,  quase sempre tem em uma das mãos a tabuada ou a cartilha, enquanto a outra mão  segura uma palmatória , literal ou simbólica, para punir os insubmissos aos adestramentos. Em filosofia da educação há uma diferença entre “instruir” e “educar”. “Instruir” se faz com cartilhas , inclusive cartilhas que querem  subordinar o ensino  ao “Mercado”, ao passo que a educação é prática de , entre outras coisas, dotar o estudante da capacidade de interpretar.Interpretar é saber ler  não apenas livros. Interpretar também é saber ler a realidade de forma ativa: não apenas criticamente, mas também criativamente.
A interpretação é prática que se aplica sobre “mensagens”. “Mensagem” não é a mesma coisa que “informação”. Por exemplo, “dois mais dois é igual a quatro”, essa frase é uma informação, não é uma  mensagem . “O número é a alma das coisas (Pitágoras)”, esse é um exemplo de mensagem . Embora fale do mesmo objeto que o da informação, a mensagem transforma  esse objeto em questão  a ser pensada , sentida, enfim,  interpretada : “O que Pitágoras quis dizer ao afirmar que o número é a alma das coisas?” Não basta apenas saber matemática para interpretar essa mensagem, é preciso se indagar também acerca do que é uma alma.
Em grego, “interpretação”  se escreve “hermenêutica” : “ arte  de Hermes”. Na mitologia, Hermes é o “deus mensageiro, o deus que guarda e transporta mensagens”. Mas Hermes não é “neutro”. Certa vez, quando Dioniso foi despedaçado por seus carrascos, uma das versões desse acontecimento diz ter sido Hermes que salvou  e guardou o coração de Dioniso , o deus das artes. Hermes guardou o coração de Dioniso não como alguém que guarda tesouro em  cofres para torná-lo inacessível. Hermes  guardou o coração de Dioniso ao modo como a terra guarda a semente , ou o ventre ao feto: para mantê-lo vivo. Quem escreve ou lê uma informação não mostra ao outro a  pessoa que é (ao contrário , pode até mesmo esconder-se...).  Mas quem escreve  mensagens sempre coloca o coração que tem naquilo que escreve, assim como quem lê uma mensagem sempre a interpreta conforme  o coração que tem.

“Quem descreve não é dono do assunto, quem inventa é.” (Manoel de Barros)

(Manoel se formou em Direito, porém exerceu por pouco tempo a advocacia. Seu último cliente foi um comerciante acusado de roubar no peso das mercadorias. Na primeira e última conversa que teve com o comerciante, Manoel perguntou: “é verdade o que dizem: que você é desonesto?” O  acusado respondeu: “ é verdade, mas vamos inventar uma mentira que me inocente. Fique tranquilo : pago bem.” Manoel se despediu do mau comerciante e foi imediatamente falar com o dono do escritório: “ estou abandonando o caso...A invenção de que gosto é outra”, disse o poeta)


( Obs.: A atividade da interpretação, porém , deve ser precedida pelo esforço da pesquisa. Assim, melhor se interpreta um mito quanto mais se pesquisa/estuda acerca da mitologia como um todo. Não apenas a mitologia grega, mas as diversas mitologias dos povos diferentes. Mas apenas a pesquisa não garante a boa interpretação, assim como o mero condicionamento físico não faz a boa bailarina. Uma boa bailarina sempre é bem condicionada fisicamente, porém não é o bom condicionamento apenas que a torna uma boa bailarina. É por isso que interpretar não é apenas uma técnica, também é uma arte)




segunda-feira, 13 de julho de 2020

o poder democrático e o poder teológico-político


Espinosa nos fala de dois tipos de exercício do poder. O primeiro é o exercício democrático. O exercício democrático se caracteriza por ser a expressão daquilo que Espinosa chama de “multitudo”. É muito difícil traduzir essa palavra, ela não é bem uma “multidão” , muito menos uma “massa amorfa”. A  multitudo é a multiplicidade de singularidades  . “Indivíduo” é um termo sociológico que se opõe à noção de sociedade, como se indivíduo e sociedade  fossem duas realidades diferentes e às vezes antagônicas, como se vê no liberalismo-individualista e no socialismo  . Mas singularidade e multiplicidade  não são duas realidades, elas são uma só, ao mesmo tempo una e múltipla. Na multitudo a singularidade se vê fazendo parte de uma realidade múltipla e plural da qual a outra singularidade também é parte .A multitudo geralmente se manifesta em situações nas quais a liberdade de pensar se vê em perigo. Rebanhos são feitos de indivíduos dóceis, ao passo que a multitudo é a construção de um existir coletivo afirmador de uma sociedade aberta. A multitudo não cabe em nenhuma forma, seja a forma do rebanho, a  forma de uma classe ou a forma de um partido. As palavras “fORma” , “ORdem” e “nORma” têm uma origem comum : o termo “or”, que significa “padrão”. O termo “urdidura” também possui essa origem . E é por isso que quem tece tecidos ou bordaduras precisa mais do que urdiduras: também precisa construir tramas. As tramas são abertas e múltiplas, às vezes transversais noutras vezes curvas, ao passo que a urdidura é sempre reta.
Já o segundo tipo de exercício de poder é o “teológico-político”. “Teológico-político”, aqui, não é apenas a mistura de religião e política. É também isso, porém é mais coisas. Um poder se torna teológico-político quando a política se torna refém de alguma outra instância que é então tratada como se fosse um “Deus” . “Deus” no sentido de algo que requer obediência, sem questionamento. “Deus”  no sentido de uma “Ordem” ou “Norma” inquestionáveis, Ordem e Norma essas que , hoje, são cinicamente identificadas com  uma “Normalidade” rebanhesca de templos, incluindo os templos do consumo. Assim, o poder teológico-político também é aquele que faz do “Mercado” um Deus. É por isso que o poder teológico-político que prega a “prosperidade” individualista combina  tão bem com  o poder econômico-financista que tem no Capital o seu Deus. Ambos não aceitam outros deuses. Por isso, perseguem outras religiosidades, como as de matriz africana e os pajés; bem como veem como demoníacos os que agem em favor dos direitos dos excluídos, dos índios, dos pobres, dos trabalhadores e das minorias.

A multitudo, por ser potência, não pode ser reduzida ao poder instituído de uma forma determinada. A democracia se expressa em determinadas formas ( parlamento , instituições, partidos, etc), porém ela vai além do aspecto formal-representativo. A multitudo é esse aspecto da democracia que não se deixa formalizar totalmente.  A diferença entre as formas democráticas ( incluindo partidos) e as não democráticas reside no fato de que as não democráticas tendem a se enrijecer em formas que se fecham à mudança e à multiplicidade imanentes à multitudo . Os partidos democráticos são abertos à multiplicidade imanente constituinte da sociedade.A novidade de Espinosa, e ao mesmo tempo sua dificuldade, é que ele defende a democracia como uma dimensão também ontológica , e não apenas político-representativa. Não que a multitudo não caiba em ideias, porém ela só cabe na sua ideia própria: plural , aberta e heterogênea. Parafraseando Manoel de Barros: não se pode passar régua na multitudo.. Régua é "existidura de limite", ao passo que a multitudo não tem limites, e é por isso que ninguém pode determinar que "acabou a história" ou que "uma mudança não é mais possível". Não por uma questão de otimismo político, mas de consistência e afirmação ontológica





sábado, 11 de julho de 2020

deleuze & guattari : os intercessores


Costuma-se dizer que o pensar é solitário.  É por isso que é  tão surpreendente quando nos deparamos com um pensar agenciado, tal como produziram Deleuze & Guattari . Deleuze tem um estilo próprio muito singular, porém não menos singular é o estilo de Guattari. Deleuze & Guattari explicaram  certa vez como escrevem juntos: como dois rios que se juntam para formarem uma mesma corrente.
 Platão dizia que o filósofo é o “amigo da sabedoria”. Contudo, uma rivalidade pode instalar-se quando um filósofo  se julga mais amigo da sabedoria do que  outro filósofo , tal como aconteceu com o próprio Platão e seu antigo discípulo Aristóteles, que rompeu com Platão se dizendo mais amigo da sabedoria do que seu antigo mestre. Talvez por isso Deleuze & Guattari expliquem que são amigos um do outro, porém não escreveram juntos apenas  por serem amigos, e muito menos para pretenderem ser ainda mais “amigos da sabedoria” juntos do que seriam sozinhos. Para produzir um pensar agenciado, é preciso que do amigo nasça um “intercessor”. Um intercessor é aquele que “intercede a nosso favor”. Interceder é colocar-se “entre”, para assim fazer-se porta, abertura, fenda. O intercessor “nos desabre”, diria Manoel de Barros, tornando-se porta entre nós e o cosmos, entre nós e as ideias, enfim, entre nós e nós mesmos.
O senso comum diz que é  preciso, primeiro, que cada um seja amigo de si mesmo, pois somente sendo amigos de nós mesmos nos tornamos aptos para autêntica amizade com os outros. Mas nunca ninguém pode ser o intercessor de si mesmo, pois um intercessor é sempre um outro : uma diferença. Um intercessor nunca é quem intercede a favor de si mesmo, mas sempre a favor de um outro que o tem como intercessor. É o intercessor que  nos auxilia a sermos mais do que amigos de nós mesmos: ele nos ensina um “devir-outro”,  para desegoizarmos a nós mesmos . Amizades às vezes são desfeitas. Porém nunca é desfeita a abertura que  nos abriu um intercessor, como  desterritorialização para criarmos um território novo. A não ser que nós mesmos , por resignação ou medo, recuemos e fechemos  a porta que o intercessor abriu . Uma desterritorialização abandonada no meio , diz Deleuze, assemelha-se a um triste aborto.
Deleuze foi o intercessor de Guattari, ao mesmo tempo que Guattari foi o intercessor de Deleuze. Cada um deles foi, para o outro, a produção de um devir-outro. A obra que criaram é um potente intercessor-desabridor a favor de pensares diferentes , intensos, outros.
O rio amazonas não nasceu rio amazonas: ele nasceu do agenciamento de seus afluentes. O rio amazonas é o devir-outro de seus afluentes. Mas o rio amazonas também é um intercessor: ele abre aos afluentes uma porta para o oceano.

“Os Outros: o melhor de mim sou Eles.”( Manoel  de Barros)