Como se sabe, a diferença de
posicionamento político entre direita, centro e esquerda vem da Revolução
Francesa. Tomando como referência a mesa
na qual se sentavam os dirigentes que comandavam as assembleias, eram “de direita” então os que ficavam
à direita da mesa, “de esquerda” os que se situavam à esquerda e “de
centro” os posicionados à frente da mesa. Mas e a própria mesa, em qual lugar ela
fica ? Alguns com pretensão à “neutralidade” dirão: a mesa não é de esquerda,
de direita ou de centro, ela seria um
lugar politicamente neutro, como uma espécie de divindade pairando “acima de
todos”, transcendentemente . Mas será mesmo isso possível? A mesa a partir da
qual se exerce o comando da política é mesmo neutra? Tanto Deleuze quanto
Foucault chamam de “lugar do poder” a esse pretenso lugar neutro da mesa. Espinosa,
por sua vez, designava de “potestas” (poder) a esse lugar da mesa para diferenciá-lo da “potentia” ( potência)
enquanto heterogeneidade social. Esse
lugar da mesa, portanto, nada tem de neutro: ele simboliza toda forma de poder, sobretudo o
poder do Estado. Assim, a diferença entre
a direita e a esquerda somente aparece de verdade quando uma delas, vitoriosa
no voto, vem ocupar o lugar da
mesa-poder para assim governar. A direita manterá o mito ideológico de que o
lugar da mesa é neutro, para assim dissimular os interesses egoístas aos quais
serve, alardeando que age “sem viés
ideológico”. Já a esquerda deve assumir que o lugar da mesa não é neutro, para
assim escolher governar para os mais pobres
e injustiçados, potencializando as minorias e cuidando para que tenha voz também
à mesa a diversidade dos que não estão sentados nela, os marginalizados. A
direita cultua as mesas retangulares ,
como aquelas que ocupavam o centro da
sala da Casa Grande, nas quais os poderosos se sentavam à cabeceira para serem
servidos e se locupletarem ; já a esquerda precisa amar as mesas circulares ,
isto é, mesas sem cabeceira e lugares
privilegiados, para que nelas se sentem e sejam alimentados os que têm fome. Não apenas fome de alimento,
como também fome de justiça, fome de dignidade, fome de
conhecimento, fome de arte.
"É nessa multidão que penso
quando me refiro à maneira pela qual Gilles Deleuze caracterizava a diferença
entre esquerda e direita - uma diferença de natureza, ele salientava, não de
convicção , porque a esquerda ( no sentido sempre traído pelos partidos ditos
de esquerda ) tem necessidade , necessidade vital, de que as pessoas pensem ,
ou seja , imaginem , sintam, formulem suas próprias questões e suas próprias
exigências, determinem as incógnitas de sua própria situação." Trecho do
livro "No tempo das catástrofes : resistir à barbárie que se aproxima",
de Isabelle Stengers:
A servidão involuntária é aquela na
qual um tirano impõe à força sua vontade a alguém ou a um povo , cuja liberdade
é assim roubada. Acontece algo diferente com a servidão voluntária: ela não é a
liberdade roubada, ela é a liberdade alienada . A servidão voluntária tem
várias formas e maneiras de acontecer. Ela ocorre quando alguém se submete a um
tirano por livre vontade , porém com a expectativa de também poder ser tirano e
exercer poder autoritário sobre a vida dos outros. Muitas coisas podem servir
de tirano para os que têm pendão para a servidão voluntária, mas nada faz hoje
tantos servos quanto o cassino financeiro e seus juros, o protofascismo e a
ignorância digitalizada. Há ainda os que se dizem “servos de Deus” somente para
ter poder político e exercer tirania sobre os outros. O mecanismo psicológico e
político da servidão voluntária não é querer ser servo , e sim tirano. Todo tirano
imagina que ser forte é encontrar alguém mais servil e medíocre que se ponha de
joelho diante de sua opinião, credo ou farda. A tirania é , no fundo, uma
fraqueza de ideias, de argumentos, enfim, uma fraqueza de vida que muitas vezes
se esconde atrás da violência e da intolerância. Desconfiem sempre daqueles que
dizem “sou servo da Lei” ou “ sou servo da Verdade” , pois o que estes querem
na realidade é ser tiranos de toga ou de dogmas. Além disso , dizer-se servo da
Lei ou da Verdade não significa a mesma coisa que ter amor à Justiça ou às
ideias, pois amar o que liberta é o
que dá força e justifica o desobedecer que enfrenta a servidão.
“É servo aquele que não se pertence.
É aos escravos, e não aos homens livres, que se dá um prêmio para os recompensar
por se terem comportado bem.” (Espinosa)
Espinosa dizia que ninguém é livre apenas
pensando teoricamente , sem agir ; tampouco é livre quem imagina que
pode agir livremente sem pensar o que
faz. Para Espinosa, quando a gente pensa de forma livre ( isto é, potente)
desse pensar nasce necessariamente um agir que não tem por motor apenas a vontade, mas todo o corpo,
incluindo nosso desejo e aquilo que em nós ainda tem força para se indignar.
Quem apenas pensa ideias libertárias porém não age a partir delas, na verdade
não pensa: apenas imagina que pensa.
O filósofo Hume distinguia dois tipos
de crença: a “legítima” e a “ilegítima”. Segundo ele, não é a razão o alicerce
do conhecimento, o alicerce é a crença. Em palavras simples, assim Hume explica
seu argumento : temos a memória do que aconteceu ontem e a percepção do que acontece hoje, agora. Por exemplo,
ontem o sol se levantou: esse fato vive em nossa memória. Hoje, vemos o sol se
levantar, conforme atesta nossa percepção. Porém, não podemos ter experiência
do que vai acontecer amanhã: o futuro não pode ser experimentado. O que nos
leva então a ter a expectativa de que o
sol nascerá amanhã e tratar essa expectativa como se ela fosse uma certeza
inquestionável? Segundo Hume, não são apenas
a memória do passado e a
percepção do presente que sustentam essa
nossa expectativa, pois tal expectativa
é determinada por um mecanismo psicológico profundo : a crença. A crença
é o fundamento de todo conhecimento, e não a “Razão” ou a “Verdade”. Existe a
crença porque a mente está sempre voltada para o futuro , para o que vai
acontecer, gerando nela expectativas. A crença deixa de ser uma expectativa de
nossa mente e se torna um fato quando a natureza comprova nossas expectativas:
vem um novo dia, e o sol nasce. Não é nossa mente que faz o sol nascer, quem o
faz nascer é a natureza: pela ação da natureza, a expectativa se torna então
realidade. Para Hume, mesmo a ciência está apoiada na crença. Porém a ciência é
uma crença legítima: a autoridade a qual ela obedece é a natureza e nada mais. Ou
seja, a crença legítima pode ser refutada. E quem a comprova ou refuta é a
mesma autoridade: a natureza. Pois toda lei científica nasceu de uma hipótese
que a natureza confirmou ( e inúmeras hipóteses não viraram leis porque a
natureza as refutou).Já a crença ilegítima é aquela que se apoia em “verdades”
que prescindem da comprovação da natureza. São verdades, portanto, que ninguém
pode refutar: nem a natureza, tampouco a ciência. Tais “Verdades” não se
sustentam na argumentação ou na experiência: elas se impõem exigindo obediência . Como toda crença, a ilegítima
também se explica pela mente humana , quando a mente humana ignora seus
limites , imaginações e fantasias. Ela se torna ilegítima não por ser uma crença, mas por usurpar o limite que lhe é próprio, querendo tomar o lugar da filosofia e da ciência. Segundo
Hume, não há problema em si na crença ilegítima, desde que ela se limite a um
espaço privado de culto e pratique como sua verdade o amor
ao próximo . O problema é quando as autoridades cujo poder vem da crença
ilegítima querem também ser autoridade política. Nesse caso, correrá risco não
apenas a democracia, cuja essência é o debate público e livre, também correrá
perigo a própria ciência. Quando a crença ilegítima se apodera do poder do
Estado e sua polícia, as consequências disso serão a censura, as perseguições,
a intolerância e a estigmatização de quem pensa diferente .
O AMOR (poema de Maiakóvski adaptado por Caetano Veloso) Talvez quem sabe um dia Por uma alameda do zoológico Ela também chegará Ela que também amava os animais Entrará sorridente assim como está Na foto sobre a mesa Ela é tão bonita Ela é tão bonita que na certa eles a ressuscitarão O século trinta vencerá O coração destroçado já Pelas mesquinharias Agora vamos alcançar Tudo o que não podemos amar na vida Com o estelar das noites inumeráveis Ressuscita-me ainda que mais não seja Porque sou poeta E ansiava o futuro Ressuscita-me Lutando contra as misérias do cotidiano Ressuscita-me por isso Ressuscita-me Quero acabar de viver o que me cabe Minha vida para que não mais existam amores servis Ressuscita-me para que ninguém mais tenha de sacrificar-se por uma casa, um buraco Ressuscita-me Para que a partir de hoje A partir de hoje A família se transforme E o pai Seja pelo menos o Universo E a mãe Seja no mínimo a Terra A Terra A Terra
"E ENTÃO, QUE QUEREIS?..."( poema de Maiakóvski) Fiz ranger as folhas de jornal abrindo-lhes as pálpebras piscantes. E logo de cada fronteira distante subiu um cheiro de pólvora perseguindo-me até em casa. Nestes últimos vinte anos nada de novo há no rugir das tempestades. Não estamos alegres, é certo, mas também por que razão haveríamos de ficar tristes? O mar da história é agitado. As ameaças e as guerras havemos de atravessá-las, rompê-las ao meio, cortando-as como uma quilha corta as ondas.
-Também estão sumindo a beleza, a justiça , a honra , a dignidade...e outras ideias assim.
- Talvez tenham ido em bando, juntos, os pardais e as ideias: foram atrás de jardins que aqui já não florescem mais.
- Quem sabe se nas amendoeiras das ruas suburbanas ou no interior das almas das pequenas crianças possamos encontrar o ninho dos pardais e das ideias. Vamos procurar? - Começaremos por onde? - Por dentro de nós mesmos, onde em nós houver subúrbios e crianças...Quem sabe se aí não encontraremos também , ainda que dentro do ovo, embriões de ideias e rascunhos novos de nós mesmos .
O escritor argentino Jorge Luís Borges conta a seguinte história (que interpreto mais do que reproduzo): havia uma aldeia que era parte de um país. Nessa aldeia existia uma corporação poderosíssima de cartógrafos. Eles faziam mapas, isto é, cópias ou representações da realidade. Mas eles eram poderosos apenas para imitarem ou simularem algo já dado ; para criarem algo novo , como faz o artista, eles eram impotentes. Eles eram tão poderosos em simularem que certa vez fizeram um mapa da aldeia do tamanho da aldeia. Não satisfeitos , depois fizeram um mapa do país do tamanho do próprio país... A confusão então se instalou : muitos trocavam a realidade pela mera simulação dela. Parecia já acontecer ali o que hoje se chama de “pós-verdade do mundo digital”. A simulação era tão perfeita que os passarinhos no início se confundiam e voavam para as árvores de mentira do mapa. Mas rapidamente os passarinhos descobriam, graças ao tino de que lhes dotou a vida , o logro daquela realidade fingida, e nela não construíam seus ninhos. Porém o mesmo não aconteceu com certos homens que , depreciadores da vida e suas mudanças, deliravam encontrar uma realidade enfim estática . Assim, eles tomaram por verdade uma realidade artificialmente fabricada , como aqueles que hoje creem em realidades fakes na tela de seus celulares . Mas logo o mapa se tornou passado, como um retrato estático em relação à pessoa viva da qual ele foi tirado. As pessoas mudam e se transformam, ficam diferentes, como tudo o que vive sob o tempo, mas os retratos, assim como os mapas, permanecem sempre os mesmos. Porém os homens conservadores viam nisso uma virtude, pois consideravam a mudança um demoníaco pecado. E era de lá, desse país na mentira conservado, que eles condenavam toda realidade nova não aprisionada naquele mapa . Eles só não esperavam que tal realidade fake, tida por eles como “Verdade Eterna”, começasse tão cedo a rasgar...
- Nem tudo na vida se pode medir... Como alguns já disseram,talvez as coisas mais essenciais fujam ao que podem medir as réguas e números...
- Como assim?
- Pense numa semente: a de um abacate, por exemplo.
- Estou pensando... E daí?
- Você diria que a semente em questão é una ou múltipla?
- Como assim!? É evidente que ela é una!
- Mas será que é mesmo evidente?...
- O que você quer dizer exatamente?
- Se essa semente for plantada, nascerá dela um abacateiro, certo?
- Como não dizer que isso é evidente!?
- Calma, prossigamos... Quantos abacates nascerão desse abacateiro?
- Impossível precisar: serão muitos...
- Mas não há dúvidas de que em cada novo abacate uma nova semente surgirá...
- Acho que já sei o próximo passo que você quer dar: se essas novas sementes forem plantadas...
- Pois é...novos abacateiros nascerão.
- Isso faz sentido, mas é muito irreal e abstrato!
- Irreal talvez seja o pensamento que só vê o abacate e o abacateiro,porém é cego para ver o processo que os produziu. O que quero dizer é que não existe o indivíduo de forma isolada com uma identidade que nunca muda. Dentro de cada semente existe uma floresta inteira: o finito é prenhe do infinito. Mas este só nasce se a semente for plantada e cultivada.
- Acho que compreendi, embora seja muito difícil de entender...
- E digo mais: a alma individual também é uma semente. Potencialmente, dentro de cada alma está a alma da humanidade inteira... Talvez esteja até mesmo a alma daquilo que não é humano. A alma infinita não é feita da mera soma matemática de almas finitas, pois ela já está presente, inteira, na mais simples alma singular. Mas para essa alma maior nascer, é preciso que a alma individual seja plantada e cultivada. Assim, de certo modo, é morrendo que ela, a alma/semente finita, renasce (pois talvez o verdadeiro morrer , e do qual não se renasce,seja aquele de uma alma/semente que nunca foi plantada e cultivada, e que deixa definhar dentro de si as múltiplas possibilidades que ela mesmo desconhece). Dentro da mais simples alma, a de um garoto de rua por exemplo, está a alma de um Machado, de um Cartola, de um Gláuber, de um Guimarães ,de um Pessoa...e, também, a minha alma e a tua na alma do garoto de rua estão. Sobretudo, está em todos a alma infinita que não tem nome, e que só se torna íntima daqueles que conseguiram ir além de sua própria pessoa. E estes só foram o que foram porque souberam encontrar dentro de suas almas a pequena alma de uma criança de rua, ou a alma de um povo inteiro, ou a de um louco, ou a de um índio, ou a dos que os saberes constituídos e opiniões estabelecidas dizem não possuírem alma... Ao encontrarem essa alma infinita dentro de si, após talvez vários desencontros não destituídos de dores, sofrimentos e descrenças , encontraram por fim a si mesmos, de tal modo que conseguiram expressar, com suas respectivas almas , a infinita alma que faz a alma finita germinar. Souberam, antes de tudo, se tornar a terra onde a alma infinita pôde se plantar; e assim se plantaram eles mesmos nessa alma que se plantou neles : cultivando-a, cultivaram-se, mesmo sabendo que seus frutos não seriam para eles mesmos.
- E as almas de um Hitler, de um Mussollini, de um assassino... também estão dentro da alma individual de cada um?
- Mas dentro da semente também não estão as forças que querem destruí-la? A semente também pode ser alimento para o mal, mas este não tem semente.
- Como o inseto que devora a semente?
-Pode-se dizer que sim.
- Como você sabe que cada alma finita tem a alma infinita?
- Procure-a nos olhos de quem você olha; olhe para cada um com os olhos dela.
A palavra “Símbolo” significa: “união das partes”. “Sim” tem o
sentido de “união”, “composição”, “agenciamento”; e “bolos” significa “partes”.
Tudo o que é autenticamente simbólico
vive do agenciamento de partes em razão de um todo. A Constituição, por
exemplo, deveria ser uma realidade simbólica na medida em que ela não é apenas forma jurídica, nem suas verdadeiras partes são apenas letras no papel ou os ministros do
supremo: suas partes de verdade são os
cidadãos que lutam pela justiça e igualdade. Um símbolo é um agente de um agenciamento.
Tudo o que é autenticamente um símbolo não tem valor em si mesmo, isoladamente,
pois sua função é servir de elo ou ponte para que façamos parte de um todo, mesmo que seja um
todo aberto, a fazer-se ( como realidade comum livremente instituída). Quando
os indivíduos agem movidos apenas por seus interesses, eles somente empreendem : tornam-se apenas “empreendedores” ou “indivíduos econômicos” alienados da política. Mas quando agem
ativamente como partes de um todo, cada um se torna um agente da economia política . O contrário de “simbólico” é “diabólico”,
que significa: “separar a parte do todo”. Também pode significar
“esquartejamento” ou “despedaçamento”, como gostavam de fazer os torturadores
idolatrados por esse governo energúmeno. Assim, diabólico é tudo aquilo que
separa, divide , esquarteja, põe existindo sozinho, isolado, como um ego ou gado. O diabólico impede os
agenciamentos, obstrui os caminhos, impede as trocas e contágios. Porém nada é mais diabólico do que um poder que
separa a sociedade daquilo que ela pode , reduzindo-a ao pior dela mesma , como faz esse governo obscurantista ,
este sim diabólico...
Há forças dominantes e dominadas. A
diferença entre dominante e dominada se estabelece em razão da quantidade de
força. As dominantes têm mais força, as dominadas o têm menos. Força em relação a quê? Força como
capacidade de dominar outra força, fazendo-se “vencedora”. Assim, o estado
natural das forças é estarem em luta.
Esse modelo quantitativista vale
para tudo o que é força, incluindo as
forças políticas e até mesmo as forças psíquicas, pois certas ideias dominam
nossa mente pela força que têm em vencer outras ideias. Mas uma ideia que vence
pela força , como “ideia fixa”, não significa exatamente que ela nos torna
pensadores...
Dessa diferença quantitativa entre as
forças surge uma distinção qualitativa: as forças dominantes serão chamadas de
“ativas”, ao passo que as dominadas serão as “reativas”. Mas asreativas-dominadaspodem enfraqueceras ativas-dominantes , contaminando-as com
reatividade : é o que acontece na política quando um partido que se pretende
libertárioédominado pelos partidos reacionários com os
quais negocia “alianças”. A busca pelo poder alterna, às vezes com tons de
comédia noutras de tragédia, dominantes e dominados.
Seriaisto então ser “poderoso”: ser dominante a todo custo, não importando
por quais meios? Apotência nãoé a mera força. Para que a força se
metamorfoseie em potência é preciso que nela nasça um querer,um “minadouro do criar”, como diz Manoel de
Barros. A potêncianão équantidade ou qualidade: ela é intensidade, e
aprende a doar força aos que não a tem,sem pedir força-obediência em troca, pois força não lhe falta,
transborda. Esse querer que metamorfoseia o mero poder em potênciaprecisa ser , no entanto, conquistado: ao
modo como um pintor conquista as tintas, ou um músico os sons, ou o albatroz o
ar sobre o qual aprende a voar. Não raro, é ao preço de derrotas que se
conquista essa força-potência : "A força de um artista vem das suas
derrotas", ensina Manoel de Barros.
“Na democracia, o povo elege seus governantes; e esse mesmo
povo, ou seus representantes, tem o poder de dissolver um governo . Nos
totalitarismos, quem está no governo elege apenas parte do povo como sendo o 'seu' povo , e tenta dissolver o restante da maioria do povo .” (Brecht)
Virou uma opinião comum hoje falar em
“amores líquidos”, “amizades líquidas” e até mesmo em “ensino líquido”...
Nostálgicos de "valores sólidos", os conservadores de toda espécie atacam
a "volubilidade" desses nossos dias, e bradam por uma ordem rígida a
qualquer custo. Porém, esse “líquido volúvel” nada tem a ver com a água
poetizada por Manoel de Barros: “Sou água que corre entre pedras: liberdade
caça jeito”. Tal fluxo poético-existencial é fluido, mas não é sem força ou
volúvel; ele é firme, possui consistência, porém não é rígido; ele é nômade,
andarilho, mas sabe aonde ir, “horizontando-se”. Ele é o fluxo da liberdade
criativa que os obstáculos, físicos ou simbólicos, não conseguem reprimir ou deter,
por mais que tentem. Nem todo líquido é fluxo. Os líquidos se amoldam à forma
de seus recipientes, e assim são “capturados”; já os fluxos ou inventam seus
caminhos ou secam e morrem.
Em “O guardador de águas”, Manoel diz
que “guarda águas”. Guardar também é cuidar. O poeta cuida de fluxos. Fluxos
dentro e fora dele. Cuidar dos fluxos é o oposto de construir represas, muros,
gramáticas, ordens rígidas. Não se pode "passar régua" nos fluxos. Só
se pode guardar fluxos sendo também um. O rio amazonas nasceu da geleira no
alto dos Andes, mas da geleira devindo fluxo, correndo, fluindo. Os fluxos
somente podem ser guardados em espaços abertos, "horizontados"; seja
esse espaço horizontado o pantanal, a mente , o coração ou a pólis democrática.
O sólido talvez nada mais seja do que
um líquido que enrijeceu dogmaticamente até virar uma identidade que não aceita
a diferença; o líquido talvez seja um fluxo que perdeu sua consistência, sua
crença em si mesmo, e vai tanto para lá como para cá,como as águas de um lago sob a ação do vento.
( imagem da capa: “Passeio no Azul”,
de Martha Barros)
Espinosa dizia que a filosofia não é
uma reflexão sobre a morte, e sim sobre a vida, a pluralidade e potência da
vida. Então, me esforçando para seguir o que prescreve Espinosa, penso
sempre na continuidade da vida, mesmo quando ela parece ter tido um fim. A minha vida, por
exemplo, gostaria que ela continuasse, mas não em outra vida no “Além”, e sim numa
vida que vicejasse aqui, como a vida verdejante de uma árvore. Amo livro e
árvores. O livro é para a árvore o mesmo
que a borboleta é para a lagarta: pois
o papel que um dia foi árvore no livro
ele ganha as asas da palavra .Nos livros
, porém, para quem escreve um , a continuidade conquistada é apenas “letral”,
ao passo que devir uma árvore é fazer
parte do livro da Vida. Como amo viver, espero
que ainda esteja muito distante o meu “desacontececer” ( “desacontencer” é um verbo criado por Manoel
de Barros ). Mas quando ele vier, não desejo ir para debaixo da terra. Prefiro que envolva
meu corpo o fogo de que fala Heráclito ,
fogo-arquetípico da própria Vida . Assim, não é ao nada das cinzas que serei reduzido, e sim ao que houver em mim
de sumo e adubo. Depois quero ser lançado nas raízes de uma amendoeira e ser
sorvido por ela. Pois a amendoeira é a árvore de que mais gosto. A amendoeira é
prima das oliveiras, e dizem que veio clandestina do oriente , com uma semente
sua incrustada na madeira de uma nau
portuguesa que atravessou os oceanos. Lá no oriente a amendoeira era conhecida
como a “árvore mais resistente”. Não
quero ser lançado , porém, nas raízes de
uma amendoeira vivendo em terreno cercado
com dono e proprietário, nem quero que seja uma amendoeira perto de estradas por onde
passam carros neuróticos e apressados. Também prefiro que não seja uma amendoeira inalcançável e isolada. Queria
então que fosse meu novo corpo uma amendoeira que fizesse parte da Floresta
da Tijuca, um espaço amplo sem cercados. Não queria que fosse , contudo, uma amendoeira
perto de trilhas muito frequentadas, prefiro uma amendoeira que somente poderá ser encontrada por aqueles que amam explorar: e que a estes a
amendoeira possa oferecer sombra e
proteção .
Entrarei pelas raízes e atravessarei
o tronco; me multiplicarei depois pelos galhos até alcançara verdez dos brotos. Quero estar perto dos ninhos, sobretudo os de
bem-te-vis e pardais, para quem sabe me
tornar um deles.E que a lápide a dizer quem fui não traga meu nome ou datas:
que a lápidesejaapenas a amendoeira florescendo em maio, mês
em que nasci.
"Por coisas singulares entendo
coisas que são finitas e têm existência determinada. E se vários indivíduos
concorrem em uma ação de forma que todos juntos são causas de um efeito,
considero-os todos, nesta medida, como uma coisa singular."(Espinosa)
-Crônica de Drummond:
FALA, AMENDOEIRA
(Carlos Drummond de Andrade )
Esse ofício de rabiscar sobre as coisas do tempo exige que
prestemos alguma atenção à natureza – essa natureza que não presta atenção em
nós. Abrindo a janela matinal, o cronista reparou no firmamento, que seria
de uma safira impecável se não houvesse a longa barra de névoa a toldar a linha entre
o céu e o chão – névoa baixa e seca, hostil aos aviões. Pousou a vista,
depois, nas árvores que algum remoto prefeito deu à rua, e que ainda ninguém se
lembrou de arrancar, talvez porque haja outras destruições mais urgentes. Estavam
todas verdes, menos uma.Uma que, precisamente, lá está plantada em frente à
porta,companheira mais chegada de um homem e sua vida, espécie de anjo vegetal
proposto ao seu destino.
Essa árvore de certo modo incorporada aos bens pessoais,
alguns fios elétricos lhe atravessam a fronde, sem que a molestem, e a
luz crua do projetor, a dois passos, a impediria talvez de dormir, se ela fosse mais
nova. Às terças, pela manhã, o feirante nela encosta sua barraca, e ao entardecer,
cada dia, garotos procuram subir-lhe o tronco. Nenhum desses incômodos lhe
afeta a placidez de árvore madura e magra, que já viu muita chuva, muito cortejo
de casamento, muitos enterros, e serve há longos anos à necessidade de sombra que
têm os amantes de rua, e mesmo a outras precisões mais humildes de cãezinhos
transeuntes.
Todas estavam ainda verdes, mas essa ostentava algumas folhas
amarelas e outras já estriadas de vermelho, gradação fantasista que
chegava mesmo até o marrom – cor final de decomposição, depois da qual as folhas
caem. Pequenas amêndoas atestavam o seu esforço, e também elas se preparavam
para ganhar coloração dourada e, por sua vez, completado o ciclo, tombar
sobre o meio-fio, se não as colhe algum moleque apreciador do seu azedinho. E como
o cronista lhe perguntasse – fala, amendoeira – por que fugia ao rito de
suas irmãs, adotando vestes assim particulares, a árvore pareceu explicar-lhe:
- Não vês? Começo a outonear. É 21 de março, data em que as
folhinhas assinalam o equinócio do outono. Cumpro meu dever de árvore,
embora minhas irmãs não respeitem as estações.
- E vais outoneando sozinha?
- Na medida do possível. Anda tudo muito desorganizado, e,
como deves notar, trago comigo um resto de verão, uma antecipação de
primavera e mesmo, se reparares bem neste ventinho que me fustiga pela madrugada,
uma suspeita de inverno.
- Somos todos assim.
- Os homens, não. Em ti, por exemplo, o outono é manifesto e
exclusivo. Acho-te bem outonal, meu filho, e teu trabalho é exatamente o
que os autores chamam de outonada: são frutos colhidos numa hora da vida que
já não é clara, mas ainda não se dilui em treva. Repara que o outono é mais
estação da alma que da natureza.
- Não me entristeças.
- Não, querido, sou tua árvore-da-guarda e simbolizo teu
outono pessoal. Quero apenas que te outonizes com paciência e doçura. O dardo
de luz fere menos, a chuva dá às frutas seu definitivo sabor. As folhas caem, é
certo, e os cabelos também, mas há alguma coisa de gracioso em tudo isso:
parábolas, ritmos, tons suaves... Outoniza-te com dignidade, meu velho.
Os piores inimigos da democracia,
segundo os gregos, não eram os Persas ( a antiga Pérsia ficava onde hoje está o Irã). Os piores inimigos da
democracia estavam na própria Grécia. O
pilar da democracia era a seguinte ideia: o homem é um “animal político”, um
“ser da pólis”. A palavra “pólis” é mais do que a mera cidade enquanto espaço
físico. A pólis é a comunidade humana na qual quem é comandado também comanda,
diretamente ou por intermédio de um representante seu, que pode ser destituído
caso não respeite as regras estabelecidas em comum. Mas os inimigos da
democracia não aceitavam tal “igualdade natural” entre os homens. Para esses
inimigos, o homem não seria um ser capaz
de autogovernar-se ; o homem seria, segundo eles, um “animal de rebanho”. Como todo animal de
rebanho, o homem precisaria de um “pastor” ( na Grécia, a ideia de pastor
simbolizava uma forma de poder político não democrático que almeja submeter a
praça pública ao templo). É o pastor quem ordenaria o que o homem deveria fazer, pensar, dizer,
enfim, ser. Sem o pastor, o homem se perderia: precisaria estar então nas mãos
de um pastor o comando da política. Ao
ouvir certa vez um crítico da democracia defendendo que o melhor governante não
é a Constituição mas um pastor, um
filósofo que apreciava mais as praças e
ruas do que a teórica academia , assim indagou:
“na democracia, podemos destituir um mau governante, mas o rebanho não pode
destituir um mau pastor. Na democracia, é a defesa da liberdade e da justiça o
que une os homens livres; já o pastor mantém
o rebanho unido fomentando o medo e o ódio aos lobos.
Mas o pastor cuida do rebanho porque tem um interesse que escamoteia : ele
quer tosquiar o rebanho e depois vender sua carne no mercado. Quem é o pior predador: o que preda apenas o
corpo , como o lobo, ou o que preda o corpo e a alma?” . Ameaçando, o
antidemocrata perguntou: “qual teu nome!?”
O filósofo respondeu: “Sou Diógenes, a quem chamam ‘Cão’, pois farejo
toda espécie de lobo, mas minha especialidade é achar os lobos dissimulados que
se vestem de pastor para enganar e explorar o povo.”
- propostas nazistas para a cultura : ontem e hoje...
As duas margens do rio prendem e
limitam o fluxo das águas. Mas o rio possui ainda uma terceira margem . Essa
terceira margem ora é nascente , “minadouro”, do qual o rio nasce, ora é o
oceano no qual o rio se torna. A terceira margem nos mostra que rio, oceano,
chuva, suor e lágrima...tudo é metamorfose diferente de uma mesma água fontana.
A gramática é as duas margens que contêm a palavra. Porém a poesia é nascente da qual o sentido jorra, fluindo até o aberto onde se horizonta.
A
cisterna contém,
a
fonte transborda.
W. Blake
Poeta
é quem possui visão fontana.
Manoel
de Barros
O tempo e a eternidade são
radicalmente diferentes, porém não estão separados. O tempo é um rio que corre
entre duas margens: o futuro e o passado . O presente que passa liga as duas
margens, ao mesmo tempo que as separa. A eternidade é a terceira margem do rio:
quem vai daqui para lá a atravessa , mas quem está lá já não pode para cá
atravessar. O outro lado da terceira margem parece às vezes o passado, como um retrato que não recebe mais retoque ou novo traço. O outro lado da terceira margem às vezes parece o
futuro , como a terra nova com a qual sonham utópicos tratados. Mas ninguém sabe o que está do outro lado da terceira margem, tampouco sabe o barco que , imóvel, atravessa para o outro lado. Quando
se é criança, a terceira margem parece estar lá no horizonte muito distante.
Quando vêm os cabelos brancos, porém, vemos
a terceira margem cada vez mais próxima: e do barco que um dia também será nosso, de lá nos acenam os que nos geraram.
Virou um lugar comum falar em “amores líquidos”, “amizades líquidas” e até
mesmo em “ensino líquido”... Não são poucos os que, nostálgicos de valores
sólidos, maldizem a "fluidez" desses nossos dias.Porém, esse
“líquido” carente de consistência nada
tem a ver com a água manoelina que vence os obstáculos: talvez essa "água
que corre entre pedras" tenha a mesma fonte que o fluxo
poético que Heráclito chamou de eterno rio - sem começo ou fim, apenas
meio. O fluxo poético, como "liberdade caçando jeito" (para inventar
seu estilo e afirmar sua diferença), é fluido, mas não é sem força ou volúvel; ele
é firme, possui consistência, porém não é rígido; ele é nômade, andarilho, mas
sabe aonde ir. O modelo do atual
“volúvel mundo líquido” , ao contrário, é a liquidez volátil do Capital
colonizando os espaços subjetivos.
Ser líquido não é ser fluxo: líquido
é um estado contrário ao sólido, que nega o sólido;assim como o sólido,
enquanto estado, também é uma negação do líquido. Apesar de opostos, sólido e
líquido são estados, isto é , enfraquecimento ou despotencialização do fluxo:
por enrijecimento de uma identidade , no caso do sólido; por tornar a diferença
um clichê , no caso do líquido.
Quando a água se torna líquida, ela
não é menos um estado do que quando se torna sólida ( ao virar gelo). O fluxo é
mais do que o líquido: ele é o ser mesmo do que nunca é um estado ou um
"acostumado" , diria Manoel de Barros.
Enfim, os líquidos às vezes se
amoldam à forma de seus recipientes, e assim são “capturados”( mesmo a tela do
computador pode se tornar uma fôrma ou
molde);os fluxos , ao contrário, ou inventam seus caminhos ou secam e
morrem.
Segundo Heidegger, o mundo atual confunde o “diminuir a distância” com o “criar proximidade”. A técnica diminui as distâncias, sem dúvida. Contudo, uma coisa é diminuir as distâncias entre seres no espaço, outra bem diferente é criar proximidade com o sentido. O telescópio diminuiu a distância entre a lua e meus olhos, isso é certo. Mas quando leio um poema sobre a lua, de que lua se trata? O poema não põe a lua mais perto espacialmente de mim, porém ele pode pô-la a tal ponto próxima que a descubro dentro de mim, como o devir-lunar que me torno.
O cacto é a planta que possui a maior
raiz. A extensão de sua raiz chega a
nove ou dez vezes o tamanho do corpo do cacto que vemos à superfície do chão.
Quem mede o cacto apenas pela sua
parte visível, e pensa que a parte que vê é todo o ser do cacto, por certo ignora o que o cacto é capaz de fazer. O cacto cria imensas raízes para sondar o subsolo ,
não se deixando vencer pela aridez
que o cerca. As raízes do cacto tateiam procurando
veios d’água metros abaixo da paisagem
seca. Ele persevera procurando no coração da Mãe Terra a água que o Céu lhe nega. Quando encontra a
água, o cacto anuncia sua descoberta
brotando flores: em pleno árido , ele
inaugura uma primavera. Então, ele sorve o líquido e se intumesce , de água
fresca ficando grávido. Basta um pequeno furo para a água jorrar matando a sede dos necessitados. Foram os cactos do sertão nordestino que, no
passado, não deixaram morrer de sede a
rebeldia de Lampião e seu cangaço ; e a flor
que Maria Bonita punha no
cabelo também floresceu do cacto. No Nordeste , o cacto é o mais
forte símbolo de resistência da vida . E ainda matou a sede de Lampião e
deixou a Maria ainda mais Bonita.
“Quando não pode sercristal, a poesia vale pelo que tem de
cacto”(João Cabral de Melo Neto)
( enfeitando a capa do livro de João
, cactos do Nordeste)
Certa vez, quando eu passava por um
momento muito difícil , sonhei que seria operado do coração. Eu estava
angustiado, pensava que não sobreviveria à operação. Não sei como fui parar
ali, por quais caminhos andei ou fui levado. Sabia apenas que haveria uma
operação e eu era o paciente a ser operado. De repente, adentra a sala de
cirurgia o cirurgião. Ao vê-lo, meu medo desaparece, pois o médico que me
operaria era nada mais nada menos do que o poeta Fernando Pessoa! No princípio, achei estranho . Mas depois percebi que fazia sentido ser um poeta o cirurgião de um coração angustiado. Sem
demora, o cirurgião-poeta abriu meu peito, mas não com bisturi : não sangrou ,
nem houve dor. Ele enfiou uma das mãos, porém não foi suficiente. Somente as
duas mãos do poeta conseguiram tirar meu coração do peito : "Ele está
pesado como um paralelepípedo! Preciso extrair o que lhe pesa”, diagnosticou o
cirurgião-poeta. “O que lhe pesa não é coisa física, o que lhe pesa é a mágoa
com o passado, a decepção com o presente , o medo do futuro e a descrença nos
homens”, disse-me ele enquanto extraía tudo isso. Quando olhei para a mão do
poeta , meu coração estava minúsculo,
parecendo a semente sem a casca do fruto. Protestei: “poeta, com esse coração
pequenino não vou sobreviver!” O cirurgião-poeta então respondeu, terminando
sua arte, sua “clínica”: “Ele está assim pequeno porque deixei apenas o coração
da criança.” Após ouvir isso acordei, e não apenas daquele sonho, já amanhecia . Queria registrar o sonho e me virei para pegar caneta e papel. Então,
algo que estava sobre meu peito caiu ao meu lado na cama, era um livro que
adormeci lendo: “O Eu Profundo e os outros Eus”, de Fernando Pessoa.
Conforme argumenta Espinosa em seus
livros sobre política, um dos maiores inimigos da democracia é o poder
teológico-político. O que caracteriza o teológico é que ele se apoia em um
livro que considera sagrado: o Alcorão, para os muçulmanos; o Talmud, para os
judeus; a Bíblia, para os cristãos. O que fundamenta um Estado livre, ao
contrário, é que seu poder emana de uma Constituição laica livremente
instituída , podendo ser emendada ou substituída por outra mediante uma
assembleia constituinte, obra humana, fato este que não pode acontecer com o
Texto que fundamenta a teologia. O poder democrático nunca é teológico, porém o
poder teológico, saindo de sua esfera própria, pode ambicionar ser político,
mas nunca será democrático. Ao contrário, o poder teológico-político verá na
democracia um inimigo a ser destruído em nome de Deus. Mas qual Deus? De qual
religião? E aqui está o que revela a impossibilidade de um poder
teológico-político se manter a não ser com a força ( não a de Deus, mas a das
armas bem humanas, demasiado humanas...). Na democracia, a Constituição é um
texto que todos seguem , mesmo os que pensam diferente, como liberais e
socialistas. Mas judeus, cristãos e muçulmanos seguem livros sagrados
diferentes que lhes conferem uma identidade religiosa incomunicável com a
religião diferente da sua . Então, quando um poder teológico quer se tornar
também poder teológico-político, ele quer na verdade não apenas desfazer a
essência da política, que é pautar-se em uma Constituição livremente instituída
que preserva a diversidade, como também afirmar-se como religião única. Assim, quando o poder
teológico, saindo da esfera que lhe é própria ( a esfera subjetiva-privada) , quer se tornar também poder político , correm
risco não apenas a democracia e os partidos, como também as outras religiões
que, mais cedo ou mais tarde, também serão perseguidas . O poder
teológico-político , quando alcança o poder, traz para este certos dogmas
inspirados em “gurus” ou “iluminados” que se creem governados diretamente por
algum Deus abstrato, vingador, um Deus cheio de ódio, nunca o Deus do amor (
como aquele que São Francisco dançou...). Além disso, tal poder exigirá a força
bélica de polícias e exércitos a serviço de seu delírio, pois um dos traços do
poder teológico-político é a paranoia: eles se acham “eleitos” e, ao mesmo tempo,
perseguidos. São ideias delirantes e paranoicas assim que movem o governo
Bolsonaro e sua “política externa” de alinhamento automático com o terrorismo
de Estado de Trump.
Havia uma aldeia onde um Sultão resolveu vingar-se das mulheres. Seu
ressentimento era devido ao fato de que nenhuma mulher o amava espontaneamente,
apenas à força. Rico e poderoso , ele conseguia ter tudo, menos amor. Valendo-se de seu poder, e querendo se
vingar, ele resolveu obrigar todas as
mulheres solteiras da aldeia a se casarem com ele , uma a uma. Seu plano era,
após a lua de mel, tirar a vida de cada
uma. Ele juntou as mulheres em uma ampla
sala . E antes que ele escolhesse uma para ser sua primeira vítima , tomou a
frente de todas e ofereceu-se uma jovem
chamada Sherazade. Quando o Sultão a
levou para o quarto e ordenou que ela
fosse para a cama, Sherazade pediu: “Posso lhe contar uma história?”. E ouviu
como resposta: “uma história a uma hora dessas!? Conte, mas seja rápida: a
morte te espera...”. Mas quando Sherazade começou a narrar a história, o Sultão
ficou tão absorvido que não reparou o passar do tempo. Quando já estava
amanhecendo, Sherazade disse: “não consegui terminar a narrativa, posso
recomeçar amanhã?”. “Sim, mas de amanhã
você não passa!” , ameaçou o Sultão . No
dia seguinte, Sherazade prosseguia com a
história e logo a emendava com outra. O Sultão não conseguia ficar imune a esse
poder que ele desconhecia: o poder da
palavra que cria mundos (o Sultão
imaginava, ao contrário, que poderosa é a palavra que ameaça de morte) . Naqueles momentos ao menos , o Sultão
curava-se de si próprio, desabrindo
nele um outro . Quando o dia amanhecia e
Sherazade precisava interromper a narrativa, o Sultão agora lamentava e até pedia:"Não vá se atrasar amanhã!". Como Ariadne , Sherazade
tecia suas histórias mais do que com palavras: ela as tecia com o fio da
vida, e a este estendia como linha de
fuga . A narrativa durou uma, duas, dez, cem... mil e uma noites: “inventar
aumenta o mundo”, já dizia o poeta Manoel de Barros. Sherazade simboliza a vida que se
expressa múltipla nas escolas,
museus, teatros, cinemas e livros,
apesar dos Sultões de hoje que ameaçam calá-la: “poesia é afloramento de falas” (Manoel de
Barros).
(imagem: “Sherazade”, obra-instalação
de Sami Hilal. Os livros se agenciam em
um mesmo fluxo, como umrio
inaprisionável :"Sou água que corre entre pedras, liberdade caça jeito”,
Manoel de Barros)