Olá, a APROFFIB (Associação dos/as Professores/as de Filosofia e Filósofos/as do Brasil) publicou em seu site um texto que escrevi . Caso alguém queira ler, é só acessar o link. Abraços fraternos .
sexta-feira, 29 de setembro de 2023
sábado, 23 de setembro de 2023
o cacto e sua primavera
Muito se fala, com razão, das flores.
Rosas, girassóis, crisântemos, margaridas...Essas e outras flores já foram
homenageadas em poemas , músicas e pinturas. E
elas são sempre lembradas em
datas como hoje: o primeiro dia da Primavera...
Mas pouco se fala das flores que o
cacto também sabe produzir. Considero essa omissão uma injustiça com esse artista da
resistência.
Na dele, sem chamar a atenção ou
fazer propaganda de si, o cacto é capaz de atos que expressam dignidade e generosidade, atos ainda mais
potencializados pela beleza que ofertam
sem nada pedir em troca.
Assim age esse perseverante
resistente: o cacto é a planta que possui a maior raiz. Em alguns cactos, a extensão de sua raiz chega a nove ou dez
vezes o tamanho do corpo do cacto que vemos à superfície do chão!
Quem mede o cacto apenas pela sua
parte visível, e pensa que a parte que vê é todo o ser do cacto, por certo
ignora o que o cacto é capaz de fazer. O cacto cria imensas raízes para sondar
o subsolo , não se deixando vencer pela aridez que o cerca.
As raízes do cacto tateiam procurando
veios d’água metros abaixo da paisagem seca. Ele persevera procurando no
coração da Mãe Terra a água que o Céu lhe nega.
Quando encontra a água, o cacto
anuncia sua descoberta brotando flores: em pleno árido , ele inaugura uma
primavera, não importando que mês seja. Então, ele sorve o líquido e se
intumesce , de água fresca ficando grávido. Basta um pequeno furo para a água
jorrar matando a sede dos necessitados.
Foram os cactos do sertão nordestino
que, no passado, não deixaram morrer de sede a rebeldia de Lampião ; e a flor
que Maria Bonita punha no cabelo também floresceu de um cacto : o mandacaru,
símbolo da força do povo nordestino.
O cacto mandacaru matou a sede de Lampião e deixou a
Maria ainda mais Bonita.
Os cactos nos ensinam que resistência
também se faz com poesia e beleza. Tal lição foi aprendida pelo poeta nordestino João Cabral de Melo Neto, que
dizia: “Quando não pode ser cristal, a poesia vale pelo que tem de cacto.”
E não podia faltar Manoel de Barros...rs...,
que assim empoema: “Eram os passarinhos que colocavam primaveras nas palavras.”
( Imagem: apesar da aridez em torno,
o cacto mandacaru produz , perseverante, a sua primavera...)
E quinta foi o Dia da Árvore. As mentalidades
obscurantistas sempre desprezam a natureza, já nos ensinava Espinosa. Esse desprezo é um sintoma de ódio
à vida. Pois natureza não é apenas a ecologia do natural, natureza também envolve
a ecologia mental ( a ecosofia), na qual certas ideias são como as árvores:
produzem oxigênio. Mas mentes poluídas , como as dos obscurantistas, só exalam ideias que envenenam... Como homenagem
às árvores tão ameaçadas, assim como os povos das florestas , um devir-árvore
do poeta:
CANÇÃO DA PRIMAVERA / de Mário
Quintana
Primavera cruza o rio
cruza o sonho que tu sonhas.
Na cidade adormecida
primavera vem chegando.
Catavento enlouqueceu,
ficou girando, girando.
Em torno do catavento
dancemos todos em bando.
Dancemos todos, dancemos,
amadas, mortos, amigos,
dancemos todos até
não mais saber-se o motivo…
Até que as paineiras tenham
por sobre os muros florido!
quarta-feira, 20 de setembro de 2023
Paulo Freire & Espinosa
Ontem foi aniversário do
educador Paulo Freire. Ele faria 102
anos. Alguns se referem ao “método Paulo Freire” como se fosse uma técnica. Mas a palavra “técnica”
não se aplica adequadamente à práxis pedagógica de Paulo Freire.
A
prática de Paulo Freire é uma poética da autonomia , um processo de singularização que nunca pode ser reduzido a
uma fórmula ou padrão ( fórmulas e padrões são
instrumentos de um poder que desautonomiza).
A poética educacional de Paulo Freire
dialoga também com Espinosa. Ambos convergem no seguinte ponto: o educador que deseja ensinar deve
compreender, antes de tudo, que o aprender vem antes do ensinar.
O autêntico educador deve conhecer
seus educandos não como seres a serem
adestrados para o mercado, e sim como
agentes que dão sentido ao mundo em que vivem. Mundo esse a ser transformado
pela educação emancipadora .
Mesmo que não saibam ler ou
escrever, homens e mulheres dão sentido ao mundo em que vivem por
intermédio de palavras-ferramentas, as quais Paulo Freire chama de
“palavras-geradoras”.
No caso da alfabetização de adultos,
as palavras-geradoras atestam que, mesmo sem saber ler livros , aqueles que as
produziram já sabiam ler o mundo.
“Geradora”, “generosidade” e “gente”
são palavras com a mesma raiz semântica. Por isso, palavra-geradora é palavra
generosa que nos potencializa como gente, tanto ao que ensina quanto ao que
aprende.
A poética freireana auxilia o
educando a partejar as outras palavras que vivem na imanência da palavra
geradora. Com isso, é a própria mente do educando que também aprende com a
palavra que sua fala já dizia, palavra essa que , desdobrada, também revela a
riqueza de seu mundo. Não riqueza medida em dinheiro, mas riqueza que se
expressa no conhecimento que autonomiza.
As palavras-geradoras, autênticas
palavras-potências, desenvolvem e explicam o sentido que nelas está implicado.
Pois elas não são apenas palavras, elas são também ideias, percepções,
cantares, repentes, sons ancestrais...
O contrário da educação potencializadora é o “ensino bancário”, no qual o
conhecimento é “depositado” pelo professor no aluno como se este fosse uma
conta que precisa dar lucro. É um modelo quantitativista, tecnocrata e
mercadológico do conhecimento, no qual o aluno é tratado como coisa, não como
gente . O ensino bancário reproduz
a lógica do dinheiro e seu poder
concentrador e excludente.
As palavras-geradoras não pertencem a
cartilhas, elas pertencem às falas populares que o poder dominante cala ou não
deixa que sejam ouvidas.
A palavra-geradora me lembra as
palavras geradas do lápis do poeta Manoel de Barros, que dizia: “Na ponta do
meu lápis tem apenas nascimento”.
O contrário da palavra-geradora é
qualquer uma que, mera palavra-destruidora, venha da boca de um fascista.
“A justiça social tem que vir antes
da caridade.” (Paulo Freire)
“Aprendo com o povo sintaxes tortas.”
( Manoel de Barros)
sábado, 16 de setembro de 2023
Nise & Espinosa
Nise da Silveira dizia que nossa saúde mental , ou a falta
dela, depende mais do que fazemos com
nossas mãos do que daquilo que teorizamos com nossa mente .
Esse pensamento de Nise me lembra
Espinosa . Depois de filosofar sobre o Infinito empregando a potência de sua
mente, Espinosa sentia a necessidade de
empregar suas mãos para polir
cuidadosamente lentes, como um simples
artesão.
Vinha gente de longe para comprar as
lentes, tal a qualidade delas. Mas Espinosa vendia somente o necessário para
sua sobrevivência: suas mãos eram felizes em polir, não em contar dinheiro.
Creio que isso também explica a
famosa frase de Espinosa: “Ninguém sabe tudo
o que pode um corpo.” Não apenas o corpo cuja uma das partes é a mão,
pois o corpo de que fala Espinosa tem um sentido amplo e variado.
Por exemplo, o corpo do palavra: ninguém
sabe tudo o que pode o corpo da palavra antes de ela ser empregada como veículo de expressão educadora-emancipadora.
Ninguém sabe tudo o que pode o corpo
social quando se agencia , democrática e coletivamente, para não se deixar
dominar por tiranias.
Ninguém sabe tudo o que pode um
corpo, seja ele qual for, até alguém
ousar criar realidade nova empregando esse poder, essa potência.
Ninguém sabe tudo o que pode um fio,
um simples fio aprisionado em um tecido, na forma acostumada de uma roupa, de
um uniforme. Consegue descobrir tudo o
que pode o corpo de um fio aquele que
não veste uniformes e tem a alma nua, às vezes ao preço da dor, como Arthur Bispo do Rosário.
Desfazendo a forma das roupas e
uniformes com os quais o poder excludente o vestia, Bispo do Rosário desconstruiu
essas fôrmas , fôrmas físicas e simbólicas, até (re) descobrir o fio
livre que ali estava preso.
Com sua mão sendo o instrumento para
libertar criativamente sua mente, Bispo
do Rosário reinventou um Fio de Ariadne
para bordar sua linha de fuga: e por esse fio , Fio do Afeto, nossa mente também se liberta , horizonta e
sara.
( Lembrando que um dos abomináveis
atos do inelegível no âmbito da educação
foi vetar o projeto que, como forma de homenagem e reconhecimento, sugeria inscrever o nome de Nise da Silveira no livro dos “Heróis
e Heroínas da Pátria”, livro distribuído nas escolas. O ladrão de joias alegou que , por ter sido
“comunista”, Nise não era digna de ser lembrada pela pátria. Isso me lembrou o
que dizia Plotino: quando a treva quer apagar a luz, é a própria treva que assim revela sua nulidade, seu nada...)
( imagem: belíssimo livro que relata
o encontro de Nise & Espinosa, dois libertários que sempre incomodaram os
tiranos de ontem e de hoje. Nise & Espinosa : inspiradores de uma “Mátria Antifascista”)
quinta-feira, 14 de setembro de 2023
a lâmpada do poeta
Sonhei ontem que eu ia visitar um
querido amigo-poeta. Quando entrei em sua residência , reparei que os fios
elétricos saíam de vários lugares e se juntavam formando um feixe. Parecia que meu
amigo-poeta estava fazendo uma reforma
elétrica em sua casa , mas na verdade ele estava juntando energia, reunindo
forças.
Perguntei : “Amigo, esses fios que
saem de todas as partes e se juntam num feixe, para onde eles vão?” Ele então
me mostrou que aquele feixe intensificado de energia estava conectado a uma
lâmpada que se encontrava sobre sua
escrivaninha , seu lugar de estudo, leitura, escrita, trabalho e criação.
Ele
resolveu acender a lâmpada para
eu ver como era sua luz: a lâmpada irradiou uma luz tão vívida e intensa , que pela sua potência doadora de vida parecia a luz do próprio sol, e pelo seu
mistério e luminescência se assemelhava também à luz transmutadora da lua.
E ambos, sol e lua, razão e poesia,
ciência e arte, clarividência e mistério, Apolo e Dioniso... irradiavam juntos suas energias para iluminar
o lugar no qual o poema é criado e , como
gente, vem à luz.
(este texto é para todos os poetas que,
empoemando, fazem essa luz acesa pelo sonho iluminar e transfigurar também a
realidade externa, como energia libertária que resiste
à obscuridade e toda forma de treva)
(Imagem : o poeta Manoel de Barros em sua escrivaninha . Manoel chamava sua escrivaninha
de “Oficina de Transfazer Natureza”. A escrivaninha hoje se encontra no Museu Casa-Quintal Manoel de Barros)
A escrivaninha do poeta vista de outra perspectiva ( mostrando
a luminária do poeta e sua lâmpada...):
domingo, 10 de setembro de 2023
manoel monumentado
Em
“Crime e castigo”, pela boca de um dos personagens do livro, Dostoiévski dizia
que o corpo de Napoleão parecia ser
feito não de carne e osso , mas de bronze.
Assim,
quando Napoleão morreu ele se tornou finalmente
o que sempre foi: uma estátua dura e fria , um monumento de bronze erguido à loucura
desmedida da ambição.
Curiosamente,
quando pediram certa vez a Manoel de
Barros para que definisse sua poesia, o poeta disse: “Meus poemas são
tentativas para monumentar passarinhos, arraias, ninhos, caracóis, formigas,
coisinhas do chão...”
Em
Manoel, monumentar não é exaltar Napoleões, mas dar dimensão existencial ampla
a tudo o que é pequenino: “as grandezas do ínfimo”, explica-se o poeta.
Se
em Napoleão o corpo é de bronze e a alma é bélica, em Manoel o corpo é
potência poética acompanhada de uma
alma que fortalece a nossa para
outras batalhas, nas quais se luta por educação, arte e vida digna.
Ao
monumentar seus seres poéticos-pequeninos, o
poeta se engrandece, se monumenta
e permanece entre nós: não como estátua
morta, e sim enquanto criatividade que potencializa nosso pensar e sentir, auxiliando a monumentar tudo aquilo
que o poder das armas , do dinheiro e da ignorância tenta destruir.
(
Imagem: Manoel também
foi “monumentado” na companhia de dois “pequeninos” : um passarinho no ninho
e um caracol . O poeta agora se
encontra numa simpática pracinha sob frondosa árvore. Enquanto o Napoleão
belicoso parecia ter o corpo frio do bronze,
Manoel-monumentado faz até o
bronze sorrir como gente , expressando
um coração generoso que a todos
recebe e aquece)
quinta-feira, 7 de setembro de 2023
Interdependências...
Na maioria dos países democráticos, a
festa da Independência é um acontecimento que expressa os diversos segmentos da
sociedade, sendo vivida como uma festa cultural plural , pois toda
independência deve ser comemorada em alegria .
No Brasil, os milicos se apropriaram da data da
Independência, como se eles fossem os tutores e donos, ontem e hoje, de nossa
Independência.
Segundo o filósofo Espinosa, um
processo de independência , seja a independência de um indivíduo seja a
independência de uma coletividade, nunca é um processo acabado e absoluto. Todo
processo de independência autêntico vem acompanhado de dependências também.
Por exemplo, o aluno depende inicialmente
do professor para conquistar sua autonomia do pensar próprio; e o professor,
por sua vez, depende do aluno para partilhar seus conhecimentos; o amigo
depende do amigo para viver a amizade e crescer como pessoa; o Brasil depende
de outros países para trocas comerciais e culturais; enfim, a humanidade
depende da água, do ar, do clima, das
florestas, enfim, do planeta terra.
Indivíduos ou nações, não somos seres
isolados existindo como um todo à parte,
e é por isso que sempre haverá alguma forma de dependência.
Mas há dois tipos de dependência: a
dependência que serviliza e rouba a autonomia de uma das partes, cujo modelo é
a relação tirano-servo (Espinosa nomeia esse tipo de dependência como “mau
encontro”) , e existe a dependência na
qual há trocas, mútuas ajudas, partilhas, agenciamentos, de tal modo que ambas
as partes se autonomizam juntas, sem servilismos e tirania ( são os “bons
encontros”).
Nos maus encontros são gerados
tristezas, ódios, preconceitos, ignorâncias, enfim, impotências; já nos bons
encontros são produzidos conhecimentos e autoconhecimentos, alegrias, saúdes, ideias, enfim, potências.
A opinião de que a independência é um
processo absoluto e de que nada depende, é uma visão narcísica, egoica; no plano das nações, tal
ideia de independência ensimesmada alimenta a paranoia entre as nações, prato
cheio para os nacionalismos militaristas.
A humanidade interdepende de si mesma
para construir-se autônoma, uma autonomia que se exerce também com
solidariedade e cooperação.
Uma festa que seja realmente de uma
Independência conquistada e alimentada cotidianamente pelas nossas práticas ,
deveria ter um desfile não com canhões , tanques e milicos sisudos marchando uniformizados ( que
fomentam, na verdade, servis dependências...).
Uma festa da Independência realmente
democrática deveria ter um desfile semelhante ao das Escolas de Samba, porém reinventado; no
qual as alas seriam compostas por povos
indígenas, quilombolas, moradores das periferias, educadores e educandos, os
diversos movimentos de minorias, artistas... E
os únicos uniformes seriam apenas
os das crianças representando as escolas públicas.
segunda-feira, 4 de setembro de 2023
Compreensão e interpretação em Espinosa
Para Espinosa, o
entendimento nunca interpreta, e sim compreende. Compreender e interpretar são
atividades diferentes da mente. Compreender é atividade do entendimento ,
interpretar é atividade da imaginação.
Toda interpretação incide
sobre signos. Um signo é um tipo de realidade que não extrai seu sentido de si
mesmo, mas de outra coisa. Uma palavra escrita, por exemplo, é um signo que
remete ao autor que a escreveu; uma pegada na areia , por sua vez, é uma marca-signo que aponta para
alguém que por ali passou.
Um signo , portanto,
sempre remete a outra coisa que ele mesmo: entre ele e essa outra coisa há um
intervalo, um espaço, uma ausência. É a
imaginação que vem ocupar esse espaço-ausência, e aqui reside o perigo que pode
haver em toda interpretação, uma vez que imaginar não é conhecer, não é pensar.
O entendimento, ao
contrário, apreende as próprias coisas , seus movimentos e relações , e não os signos que elas deixam . O entendimento se instala no que é, e não em
ausências.
O risco da imaginação é quando aquele que interpreta imagina que está conhecendo as próprias coisas, não percebendo dessa maneira que sua interpretação é apenas uma interpretação. Quem não percebe que imagina, delira que sua interpretação é um acesso único e privilegiado às próprias coisas, não admitindo assim interpretação diversa da sua. E isso é ainda mais perigoso quando essa interpretação imaginativa-delirante ambiciona poder político, ou melhor, poder teológico-político.
O homem da imaginação delirante imagina Deus por intermédio de signos que requerem obediência, já Espinosa compreende a Natureza Naturante como Causa Imanente de tudo o que existe, assim aumentando nossa potência de pensar livre, sem obediência e submissão a poderes delirantes. A imaginação delirante propaga medo e superstição, o entendimento que compreende desperta amor e alegria.
A interpretação-imaginação somente atinge sua plena potência e positividade na arte, quando interpretamos um poema, um
filme, uma exposição, enfim, uma obra de arte que a gente , antes de tudo, sente pensando, pensa sentindo. Aqui, compreendemos a própria potência
da imaginação como arte de preencher vazios e dar sentido às nossas experiências/vivências, uma vez que na arte os signos não remetem à outra
coisa, mas à potência que eles têm de expressarem, criando,
o sentido.
Na filosofia e na ciência, o entendimento pode até se valer da imaginação e suas imagens como auxiliar didático. Porém, na filosofia e na ciência é sempre a compreensão que vem primeiro , e se coloca como meio que orienta o interpretar da imaginação ; ao passo que na arte o interpretar se mostra como potência da imaginação ativa , que assim expressa, por imagens, sons e cor, aquilo que o entendimento compreende por meio das ideias.
sábado, 2 de setembro de 2023
a Diké Originária
“Nômade” vem de “nomos”. “Nomos” também está presente em “auto-nomia”:
“governar a si mesmo”. Pois este é o sentido original de “nomos”: “governar-se”
, individual ou coletivamente.
O oposto de “nomos” é o poder autoritário que violenta e tiraniza. Na
mitologia, Nomos era um Daimon. O Daimon não habita o Oceano ( Poseidon) , o
Subsolo ( Hades) ou o Céu (Zeus). O Daimon habita espaços de travessias sobre
Gaia, a Mãe-Terra.
O Daimon-Nomos expressa a necessária travessia da injustiça à justiça, do
cativeiro à liberdade, da passividade à ação, da tristeza à alegria, como
ensina Espinosa em sua política.
O Nomos andava junto de outro Daimon: Diké. Em latim, Diké é Dictio,
“Dizer”. Essa palavra está na raiz de “jurisdictio” ou “jurisdição”: “dizer o
que é justo”. Não é o juiz o titular da Diké. A Diké é um dizer coletivo,
social, e nunca a voz de um só, por maior que seja o poder desse um só.
A voz da tevê , a voz da mídia não são Diké. Nem a voz do congresso é
Diké ( muito menos a voz dos juízes togados...).Diké é voz de um “demos” , como
origem da “democracia”. Diké é voz da rua, voz essa que soa mais forte quando
aprende a dizê-la aqueles aos quais o
poder quer calar.
Não por acaso, em grego “felicidade” se escreve “eudaimonia” : “estar na
companhia de um bom Daimon”. Para o grego, assim como para os nossos povos
originários, não existe felicidade apenas privada ou sozinha, pois felicidade é
travessia agenciada por uma voz que luta por felicidade coletiva.
Diké é mais do que voz jurídica , pois ela também pode ser dizer poético que Manoel de Barros, em versos,
ensina: “Poesia pode ser que seja fazer outro mundo”.
Quando a lei corre riscos de virar
instrumento do poder ganancioso e depredador dos “homens brancos” , ameaçando a
existência da natureza e dos povos, o
Nomos precisa ganhar voz e se tornar Diké Originária: voz que , unindo a cidade
às aldeias, clama por justiça dos povos originários.
Não ao Marco temporal!