domingo, 31 de janeiro de 2021

os mercadores de gente

 

Os gregos diziam que a sociedade é composta por três classes: aqueles que a devem governar com leis e regras, os que são imbuídos da tarefa de  cuidar de sua segurança  ( subordinados à Constituição)  e os que vivem do comércio buscando obter lucro e dinheiro. O perigo que a sociedade corre é quando os comerciantes resolvem querer governar. Não há nenhum problema quando o comércio se exerce limitando-se no comprar e vender coisas . O risco supremo é quando da prática do comércio surge a “ideologia  de comerciante” querendo poder para se apropriar do   governo da sociedade. Pois quando essa ideologia  de comerciante domina   também o Estado ,  os que a propagam não mudarão seu  jeito, e assim continuarão  a fazer a única coisa que  sabem : comprar e vender. Dessa vez, no entanto, virarão objeto de comércio realidades  que não deveriam ter preço :como as leis , o ensino, as florestas, os mares, a saúde do povo,  o patrimônio público... ou seja, tudo isso que hoje está a rapinar  o entreguista Paulo Guedes.  Enfim, é o próprio povo, ou parte ingenuamente crédula dele,  que  será comprado e vendido por um preço que a ideologia de comerciante  se esforçará para ser o mais baixo, tirando do povo  direitos; pois quanto mais barato for comprado e vendido o povo,  maior será o lucro de tais  espúrios mercadores de gente,  sempre mancomunados  com os  vendilhões  da fé. Temendo a resistência  do povo que não se vende e luta por seus direitos, a ideologia de comerciante  sempre precisará da ideologia militarista , surgindo  assim a tirania do capital unido às armas que, ora comprando , ora ameaçando,  buscará cúmplices no parlamento, tribunais e  mídias vendidas.




sábado, 30 de janeiro de 2021

fortalezas, quilombos

 

A filosofia não é apenas conceito ou teoria ,  ela  também é desejo de produção de um modo de vida não conformista  e  “não acostumado”, diria o poeta Manoel de Barros. A filosofia assim compreendida tem um nome: filosofia prática. Mais do que lições acadêmicas, alguns filósofos enfatizavam certas condutas a aprender. Assim é, por exemplo, a "exortação" nos estoicos , ou o “cuidado de si”  em Epicuro, ou a “crítica” em Nietzsche, ou ainda a "fortaleza" ( “fortitudo”) em Espinosa ( na língua banto, “fortaleza” se escreve assim:   “quilombo”). Com a redução da filosofia à  academia, talvez tenhamos perdido essa dimensão vital e existencial da filosofia , de natureza mais “clínica”  e política  do que erudita  e livresca. De todas as condutas filosóficas , talvez a mais necessária seja a “edificação”. É o estoico  Epicteto quem  identifica a filosofia à prática de edificação: quando nos sentimos perdidos,    “sem chão e sem teto” , a edificação é a mais urgente e necessária  das artes a aprender, dela dependendo nossa sobrevivência em épocas de violência e barbárie, como  aquela em que viveu Epicteto, muito parecida com os dias tenebrosos de hoje. A ideia de “edificação” vem da arte de construir.  Em toda edificação, seja a de um “edifício” ou a de nós mesmos,  é preciso perseverança para pôr de pé mais do que paredes, pois edificar não é erguer muros que isolam . Edificar é pôr de pé um espaço onde se habita,  se resiste, se agencia,  se partilha  o alimento ( tanto o pão quanto as ideias): para assim criarmos memória   da luta de ontem e renovarmos as forças para as lutas  que precisamos lutar  hoje para haver um  amanhã.  Para Epicteto, "edificação" é o verdadeiro nome da educação autêntica, enquanto   arte de edificar-se de pé quando nos querem de joelhos.

Epicteto foi perseguido, aprisionado e  feito escravo em Roma , como aqui Dandara e Zumbi . A filosofia foi, para Epicteto, a sua Palmares: para a edificação de Quilombos dentro e fora da gente.






quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

sobre fascismo e ressentimento

 

Um dos sentimentos mais horrorosos da alma humana é o ressentimento. “Re-sentir”: sentir novamente e  dar vida a   um sentimento que deveria estar morto e superado. Nietzsche chega a dizer que o ressentimento é o sentimento que caracteriza o escravo, o escravo voluntário. Em geral, o ressentimento nasce de expectativas frustradas. Expectativas que têm por trás frustações acumuladas, quase sempre culpabilizando o outro. O ressentido sempre culpabiliza exclusivamente o outro por suas derrotas, fraquezas, infelicidades e até mesmo por suas mediocridades. Dentro do ressentido vão se acumulando ódios que ele sentiu e que ele alimenta para sentir de novo.  É por isso que todo ressentido é também um vingativo. Chega um ponto em que a vingança contamina sua mente e sua visão da realidade, sem falar na questão mais profunda , existencial, que explica ser o ressentimento um sintoma de ódio à vida e ódio a si mesmo.  Muitas pretensas  religiões nada mais são do que isto: ódio à vida. E hoje vemos esse ódio à vida se juntar no ódio à política. O fascismo hoje em curso no Brasil também  é isto: uma união doentia  de ressentidos para se vingarem do conhecimento, da arte, da educação , da cultura , do sexo, do amor, do planeta, da música, do cinema...Enfim, vingança contra  tudo aquilo que expressa liberdade , saúde, vida. Segundo Espinosa, não se vence o ressentimento com raciocínios apenas; se vence o ressentimento com  um afeto positivo que afirme a vida com o máximo de potência.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

roda viva

 

Quando eu fazia o antigo ginásio ( eu devia ter  10 ou 11 anos), a ditadura militar ainda dominava tudo com mão de ferro. Mas uma querida professora de Língua & Literatura conseguiu, apesar da censura e treva dominantes no país, essa querida professora conseguiu nos despertar para o pensamento crítico e criativo, adotando um livro que trazia letras de música para a gente ler e interpretar, eram letras que faziam sentir e pensar. Foi nesse livro que conheci a letra de canções  como "Janelas abertas nº 2" ,  "Construção" e  “Roda Viva” , antes de ouvi-las  tempos depois na voz dos cantores e cantoras. Canções   assim eram censuradas pelos sisudos milicos, que sempre me pareceram um tipo de ser que detesta música que faz a gente cantar junto.  Os milicos diziam , em tom de ameaça, que músicas assim  eram "subversivas" ( e eu, até ali, não entendia muito bem o que significava "subversivo"...). Então, foi como poesia que conheci essas letras. Na primeira vez que li essas letras-poemas naquela sala de aula de uma escola pública no subúrbio carioca, graças à resistência perseverante de minha querida professora, dentro de minha  cabeça aconteceu o que Deleuze chama de "noochoque" : um "choque de pensamento".

Foi a partir de então que a minha "pequena voz interior" , que ficava muda imaginando-se  sozinha naquele mundo de gente autoritária , essa minha voz encontrou na voz poética e pensante daquelas músicas o sentido e a força para cantar junto.  Foi ali que me entendi também  como um subversivo .

 

“Descanse  tranquilo onde cantam,

os maus não cantam. ” (Schiller)

 

“Poesia é subversão da linguagem.” (Manoel de Barros)






terça-feira, 26 de janeiro de 2021

os estoicos

 

A palavra “estoicismo” vem de “stöa”, que significa “porta” ou “portal”. Isso porque os estoicos escolhiam abrir suas escolas perto dos portões da cidade ( àquela época, as cidades eram muradas ). Ao contrário de Platão e Aristóteles, que abriram suas escolas no centro da cidade e perto do mercado, um lugar de comércio de coisas regido pelo dinheiro, os estoicos abriam suas escolas perto do lugar de abertura da cidade, para assim afirmarem outro tipo de troca: a troca de ideias entre os povos. Enquanto a filosofia de Aristóteles servia à polis grega e considerava “bárbaros” todos os não gregos habitantes do além muros, o pensamento dos estoicos se abria ao que eles chamavam de “cosmópolis”: a “cidade mundo” ( ideia essa que o ministro delirante das relações exteriores do Brasil lançaria no fogo se pudesse...).

Enquanto muitas filosofias servem às cercas (cercas físicas, lógicas ou simbólicas, como a cerca , às vezes farpada, que o ego egoísta coloca em torno de si para afastar a diferença e o outro ), o pensamento estoico ensina sobre a necessidade de construção de portas : portas para fora e, também, portas para dentro; portas para o cosmos e portas para o inconsciente; portas para o infinito e portas para o aqui e agora;  portas que muitas vezes precisam ser escavadas na rocha ou abertas nos muros que  escondem o horizonte e barram o  futuro.

 

( imagem: Magritte)










segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

sobre o direito a ter e emitir opinião

 

É comum vermos bolsonaristas dizerem, com a ignorância cheia de si característica, que eles podem “emitir opinião” favorável ao fechamento do Supremo, defenderem a volta da ditadura, ofenderem minorias, divulgarem mentiras difamatórias contra aqueles que eles julgam não serem “pessoas de bem”... Enfim, eles acham que podem até mesmo defender e querer ensinar às crianças que “a terra é plana”. Eles alegam , muitas vezes cinicamente, que cercear tais palavras deles é “censura que fere o direito a ter e emitir opinião”. Mas eles ignoram, muitas vezes espertamente,  que esse direito tem dois aspectos: um primeiro aspecto meramente  formal,  e outro  aspecto  mais importante relativo ao conteúdo. Ou seja, esse direito tem uma forma e um conteúdo. A forma desse direito diz: “todo mundo tem o direito de ter e emitir opinião”. Uma forma é sempre vazia, feita que é de palavras escritas no papel. Essa forma ganha concretude conforme o conteúdo que se coloca nela. Se alguém quiser valer-se dessa forma para nela colocar conteúdos fascistas, preconceituosos , mentirosos, delirantes e odiosos  à diferença e à democracia, tais conteúdos  já não são  mais apenas opinião , eles são crimes. E, como tais, precisam ser punidos .

A diferença entre ignorância e conhecimento vem do conteúdo que se coloca nas palavras  , pois é o conteúdo que revela a  mentalidade e intenção que estão por trás das palavras. Enfim, o conteúdo que alguém põe nas palavras diz não apenas palavras, diz também  o conteúdo que preenche a alma de alguém. Como diz Sêneca, é possível que alguém, para não parecer arrogante ou presunçoso,  esconda tudo o que sabe quando usa as palavras, porém é impossível ao ignorante, quando emprega as palavras, esconder sua ignorância. “Ignorância” , aqui, nada tem a ver com desconhecimento das regras de gramática ou não ter feito estudos escolares, a ignorância de que fala Sêneca  é, sobretudo,  a ignorância política.

domingo, 24 de janeiro de 2021

o poder teológico-político

 

A palavra “teologia” aparece entre os filósofos pré-socráticos. Antes deles , já existia a palavra “teogonia” , que nomeia o poema de Hesíodo. Nesse poema originário é narrada a origem dos deuses, a começar por Gaia, a Terra-Mãe.

 Mas o uso que se faz hoje da palavra “teologia” remete a três religiões calcadas  num texto considerado sagrado por elas: o Islamismo, o Judaísmo e o Cristianismo; o Alcorão, a Torá e a Bíblia. O estudo desses Livros é tarefa da teologia.

A “política”, por sua vez, vem do termo “pólis”, que significa tanto “cidade” como “organização” ( “pró-polis”: “ a favor da organização”, já que a própolis , como uma vacina, protege a colmeia enquanto “organização” das abelhas). Pólis é a organização conjunta das liberdades, para assim construir o viver em comum, preservando a heterogeneidade dos viveres. No centro da pólis não estão Castelos ou Templos, embora a base de toda pólis também seja um livro. Um livro que também é objeto de uma “fé”, não uma fé religiosa, mas uma fé na liberdade, na criatividade, na ciência, na cultura , na educação, pois essas atividades também são “instituições”. Ao contrário dos Textos Sagrados, o texto que serve de base à pólis pode ser reformado ou até mesmo abandonado em nome de outro texto mais libertário, desde que assim decida a sociedade, após debate, argumentação,  divergência dialogada e votação. O  texto que fundamenta a pólis  é a Constituição. Essa palavra significa: “o que é instituído junto”, e que apenas por um querer junto, afirmador da pluralidade, pode ser destituído. A Constituição deve preservar a diversidade, inclusive a diversidade de crenças religiosas, além de proteger também aqueles que não têm crenças religiosas.

O poder teológico é um poder que tem seu campo de atuação restrito ao templo. Porém, acontece  por vezes de tal poder usurpar esse espaço de culto, querendo se tornar também poder político. É assim que nasce o que Espinosa chama de poder “teológico-político”. Para triunfar, esse tipo de poder perseguirá como inimigo tudo aquilo que a Constituição democrática simboliza. É por isso que o poder teológico-político somente pode perdurar cooptando exércitos e polícias. Esse tipo de poder também costuma se juntar aos que fazem do Capitalismo e do Mercado um Deus, a tal ponto que a “prosperidade”  econômica individual passa a ser  valor  cultuado como se fosse um Dogma.

Mas é do inimigo que esse poder mais persegue que também vem a maior força que resiste a ele: o pensar, o pensar que enseja ações coletivas para proteger a vida comum.


“Onde há o perigo, cresce também o que salva. ”( Hölderlin)

 

( imagem: “O geógrafo”, de Vermeer. Segundo alguns, o personagem do quadro é o próprio Espinosa, assim retrato como um “geógrafo do pensamento”, pois “geografia”  originariamente significa :   “escrita de Gea / Gaia.”)





sábado, 23 de janeiro de 2021

desfantasmar...

 

O poeta e filósofo  Lucrécio, mestre de Espinosa,  dizia que tudo é  feito de átomos e vazio. Os corpos que vemos são átomos reunidos. Dos corpos se desprendem átomos muito sutis que  mantêm a forma do corpo do qual se desprenderam. É graças a esses átomos sutis  que podemos perceber os corpos. Nunca percebemos diretamente os corpos, percebemos apenas os átomos sutis que eles emitem, e que guardam semelhança com a fonte de onde provieram. Lucrécio dá o seguinte nome a esses   átomos sutis : “simulacro”.  Os simulacros são imagens que  simulam a fonte de onde vieram. Quando a gente se lembra de alguém que vimos ontem, evocamos dentro de nossa mente um simulacro da pessoa, não a própria pessoa. Se a gente sonha com ela, vemos o simulacro dela, não a fonte do simulacro.

Porém, acontece de os simulacros às vezes se tornarem “independentes” dos corpos de onde vieram, como se adquirissem “vida” própria. É assim que, dos simulacros, podem  nascer os “fantasmas”. Os fantasmas são simulacros que levam a mente a imaginá-los tão ou mais reais do que suas fontes . Quando os fantasmas dominam a mente, adquirem vida própria enfraquecendo o poder de pensar da mente, que assim se aliena negando a ciência, a filosofia e a própria natureza.

São três os principais tipos de fantasmas: os oníricos, os eróticos e os teológicos. Os fantasmas oníricos são os do sonho. Muitos imaginam que os sonhos são mensageiros do “além”, e que eles seriam uma realidade mais verdadeira do que a que vemos com os olhos despertos. Isso vem da ignorância acerca da verdadeira fonte desses fantasmas, que são os simulacros que os corpos emitem. Os fantasmas eróticos  nascem das fantasias sexuais narcísicas  que substituem o amor real por prazeres egoicos  , tornando-se sintoma de  uma impotência de amar enfraquecedora da natureza  compósita de eros, o amor . Os fantasmas teológicos surgem quando se imagina Deus  como um tirano sentado num trono   nos ameaçando com castigos  ou dando “prêmios” aos obedientes . As intolerâncias  religiosas , os delírios negacionistas , as fantasias  narcísicas e as superstições  da ignorância  vêm desses três fantasmas ou da combinação deles ( por trás dos  moralistas fantasmas teológico-políticos sempre há um fantasma erótico reprimido...).

Nele mesmo, o fantasma não tem vida. A vida que ele adquire vem da  imaginação alienada que ignora  como é a natureza, seus corpos e simulacros. Lucrécio define a filosofia como a prática de “desfantasmar” a nós mesmos e ao mundo , para assim reencontrarmos a natureza e nos libertamos dos fantasmas que geram superstição, ignorância e servidão.

Os átomos são capazes de um “desvio” que  subverte o “mesmal”  das linhas retas. Lucrécio chama de “clinâmen” a esse desvio libertário, expressão em nós de um pensar que redescobre novos caminhos.  Múltipla e heterogênea, a natureza se parece mais  com um poema a ser recitado do que com ordens de um tirano a querer nos impor  obediência e medo.

 (neste livro  há um   artigo sobre Lucrécio)




                    ("Os átomos todos dançam🎼..." verso da música de Caetano)


sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

carreatas fora bolsonaro

 


Informações disponíveis na página: @uffpelademocracia


Segue uma lista das carreatas :


*FLORIANÓPOLIS*

24 de janeiro às 16h

Concentração no Koxixo’s - Beira Mar

*BH*

https://twitter.com/forabolsonarobh

23 de janeiro às 16h

Concentração no Mineirão

*GOIÂNIA*

23 de janeiro às 16h

Concentração na Praça Universitária

Saída 17h até a Praça Cívica

*JOÃO PESSOA*

23 de janeiro às 14h.

Concentração na Praça da Independência, término no Largo da Gameleira.

*PALMAS*

23 de janeiro 17h

Concentração no Eixão Norte

*RIO DE JANEIRO*

https://fb.me/e/1ghD97pxk

23 de janeiro às 10h

Endereço: Avenida Presidente Vargas, Centro, Rio de Janeiro - Monumento Zumbi dos Palmares

*SÃO PAULO 1*

23 de janeiro 16h

Encontro na Alesp

Av. Sgto Mário Kozel Filho

*SÃO PAULO 2*

24 de janeiro às 11h

Praça Charles Miler - Pacaembú

*BRASÍLIA*

31 de janeiro às 9h

Concentração na Praça dos Buritis em direção à Esplanada dos Ministérios.

*CAMPO GRANDE*

23 de janeiro às 10h

Concentração na Cidade do Natal


quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

sherazade

 

Havia uma aldeia onde um Sultão  resolveu vingar-se das mulheres. Seu ressentimento era devido ao fato de que nenhuma mulher o amava espontaneamente, apenas à força. Rico e poderoso , ele conseguia ter tudo, menos amor.  Valendo-se de seu poder, e querendo se vingar, o Sultão  resolveu obrigar  todas as mulheres solteiras da aldeia a se casarem com ele , uma a uma. Seu plano era, após a  lua de mel, tirar a vida de cada uma.  Ele juntou as mulheres numa ampla sala de seu palácio . E antes que ele escolhesse uma para ser sua primeira vítima , tomou a frente de todas e ofereceu-se  uma jovem chamada  Sherazade. Quando o Sultão a levou para o quarto  e ordenou que ela fosse para a cama, Sherazade pediu: “Posso lhe contar uma história?”. E ouviu como resposta: “uma história a uma hora dessas!? Conte, mas seja rápida: a morte te espera...”. Mas quando Sherazade começou a narrar a história, o Sultão ficou tão absorvido que não reparou o passar do tempo. Quando já estava amanhecendo, Sherazade disse: “não consegui terminar a narrativa, posso recomeçar amanhã?”.  “Sim, mas de amanhã você não passa!” , ameaçou  o Sultão . Na noite  seguinte, Sherazade  prosseguiu com a história e logo a emendou com outra, com várias outras. O Sultão estava sendo vencido por  um poder que ele desconhecia: o poder da  palavra  que cria mundos. O Sultão imaginava, ao contrário, que poderosa era  a palavra que  censura e ameaça de morte outras  palavras dela diferentes.  Mas a palavra de Sherazade , potente e múltipla, dava   voz e vida  às falas coletivas abafadas pelo autoritário Sultão. Como Ariadne ,   Sherazade  tecia suas histórias mais do que com palavras: ela as tecia com o fio da vida, para com esse fio  bordar  linhas de fuga para a vida ameaçada. Era  a palavra de  Sherazade que desfazia a escuridão da noite e fazia amanhecer o dia . A narrativa durou uma, duas, dez, cem... mil e uma noites: “inventar aumenta o mundo”, já dizia o poeta Manoel de Barros.  Sherazade simboliza a vida que se expressa   nas escolas, museus, teatros, cinemas e livros, nascida que é de uma voz  múltipla e libertária, apesar dos Sultões de ontem e de hoje que ameaçam calá-la.

 

  “Poesia é afloramento de falas.” (Manoel de Barros).

 

  (imagem: “Sherazade”, obra-instalação de Sami Hilal  . Os livros se agenciam num mesmo fluxo, como um  rio inaprisionável. Esse fluxo lembra as águas dos versos de Manoel que coloquei acompanhando a imagem )









 



domingo, 17 de janeiro de 2021

o que pode a arte

 

Tempos atrás, o Teatro do Oprimido , de Augusto Boal, foi fazer uma apresentação na Uerj.  Na primeira cena ,  um jovem da elite entra sorrateiramente   no quarto da mãe , surrupia  um relógio caro e vai  trocá-lo por drogas. Ao se dar  conta do furto,  a dona do relógio   grita: “Maria!!!” . Mal a trabalhadora  doméstica entra,  já a fere um grito acusador: “Cadê meu relógio!?”Por ter feito faculdade, a patroa empregava sua destreza   com as palavras  para fazê-las de arma a serviço do preconceito e do ódio . No auge da violência simbólica,  entra o Boal e diz: “parem a cena!”, e pergunta  à plateia de estudantes (sendo eu um deles ) : “alguém quer tomar o lugar do oprimido para  tentar vencer o opressor?” Uma estudante de psicologia levantou a mão, foi até  ao Boal  e pegou a vassoura da personagem (a vassoura  era o elemento cênico a simbolizar o oprimido). Como não havia roteiro, a estudante poderia interromper o fluxo verbal da opressora quando quisesse. Porém, a atriz-patroa, extremamente hábil e agressiva, pôs abaixo com facilidade as táticas psicológicas da estudante.  A aluna pediu para  sair... Outro estudante levantou o braço ,  um estudante de direito.  Boal passou-lhe a vassoura , recomeçou a peça. O garoto argumentava bem , era confiante. Mas ele tinha um ponto fraco: comportava-se  mais como um advogado, não como a vítima de fato. Ele não sabia o que era ser mulher, pobre, negra, explorada...Também não resistiu. Ninguém mais levantava a mão, fez-se um silêncio. Pensei comigo: “Será que a teoria nada pode contra a ignorância armada com palavras?”

Até que olhei para trás e vi, na entrada do banheiro feminino, a faxineira de verdade da Uerj espreitando a cena.  Ela estava “invisível” a todos.  Quando  o Boal perguntou se deixaríamos a opressão vencer,   a faxineira  tomou coragem e gritou: “eu vou enfrentar ela!”, e  foi atravessando de vassoura na mão por entre os alunos . O Boal a recebeu com um sorriso, perguntando o nome dela.  “Maria da Anunciação ”, respondeu nervosa.  Boal deu-lhe a vassoura da personagem  e  Maria passou ao Boal a vassoura que era seu ganha pão. E as vassouras, a da arte e a da vida, eram exatamente iguais! Quando a peça recomeçou, a elitista retomou seus protofascismos. Maria ficou em silêncio, mas não de resignação. Ela segurou firme a vassoura , seu “ganha pão”,  e fez dela também seu instrumento de  indignação e "ira santa":  Maria saiu dando vassouradas na opressora casagrandista... E batia de verdade! Foi preciso toda a equipe para segurá-la,  Maria era forte, muito forte... Explicaram para ela que era tudo de mentira. Maria respondeu: “Mentira!? É que isso não acontece com vocês!”. Aos poucos ela foi se acalmando, pediu água com açúcar, já sorria. Todo mundo sorria. E de vassoura na mão voltou Maria  para seu trabalho  passando  sorrindo diante da gente como uma professora que acaba de dar  uma excelente aula.






- Quando me tornei professor, uma das maiores alegrias que tive foi levar , com a ajuda de alunos, o grupo MARIAS DO BRASIL para se apresentar no teatro da faculdade onde eu lecionava. O grupo MARIAS DO BRASIL  foi criado pelo Boal e por um grupo de empregadas domésticas , para assim pensarem e agirem , de forma transformadora, a realidade em que vivem. Link para a página do grupo MARIAS DO BRASIL  no facebook:

sábado, 16 de janeiro de 2021

a lagarta e sua arte

 

Muito se fala, com razão, das borboletas. São exaltadas sua beleza,  cores e destreza alada. Na Grécia, por exemplo, as asas das borboletas eram consideradas símbolos de Eros, o Deus do Amor.

Porém, pouco se fala da lagarta nesse processo. Muitos a tratam como uma roupa velha e carcomida ,  abandonada pela borboleta que voa  colorida. Considero isso uma  injustiça contra essa artista. Sim, pois a lagarta é uma artista , uma artista que trabalha em silêncio, longe dos holofotes e das vistas, como Espinosa cuidadosamente polindo as lentes que fabricava , até poderem ser lunetas  mirando  as  estrelas infinitas  . 

De tudo o que ingere da natureza, a lagarta depura e destila um fio de seda. Com esse fio, sem que ninguém  veja , ela vai bordando dentro de si uma arte, um rascunho de vida futura, como a natureza cheia de vida e cores que Maud Lewis criou com sua pintura, apesar das imensas dificuldades físicas e sociais que sofria. O fio de seda  é ,para a lagarta, o mesmo que as cores são  para a artista : linha de fuga e liberdade. Com o fio das cores,  a artista reinventou-se gato, borboleta, flores, paisagens...vida expressa de forma singular e  variada, simples e complexa. Com arte e cores também se afirma e se luta.

Pois  chega enfim o dia em que a arte fica  pronta, a lagarta não pode mais esconder de ninguém a artista que é por dentro . Confiante , ela parteja a si mesma do casulo-útero que fabricou , vestindo-se  com a arte que agora também é sua pele verdadeira  . Já não há mais contradição consigo mesma : agora,  ela é por fora como já era por dentro, todo mundo agora vê a borboleta. E com as asas que bordou com o fio de seda, ensina a reinventar-se, para que assim , quem sabe, a gente também seja.


“Penso renovar os homens usando borboletas.” (Manoel de Barros)


( imagem: “O gato ”, obra de Maud Lewis )






- outras obras:










- filme sobre a vida e obra de Maud Lewis:




- Manoel de Barros na voz de Luiz Melodia:


sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

sobre a indignação

 

A “indignação” é uma das ideias mais importantes da filosofia política de Espinosa. A “indignação” é um “afeto”. Como tal, não é uma ideia meramente teórica que exige leituras de livros para ser compreendida, pois a capacidade de indignar-se é um afeto que quase todos são capazes de compreender, desde que a sintam. Assim, nem todos são capazes desse afeto, embora possam teorizar livrescamente sobre ele ( soltando “Notas de Repúdio” protocolares, como adora fazer o Rodrigo Maia).

 A raiz desse afeto é a palavra “dignidade”. Só é capaz de sentir indignação que age pela dignidade, uma vez que a indignação nasce quando vemos o poder ameaçar a dignidade da vida. Geralmente, os tiranos são os que mais ameaçam a dignidade , não apenas a tirania da força armada, também a tirania do Capital inumano-predatório   propagador de desigualdades ( Capital esse que une o Maia, o Alcolumbre e os jornalistas da mídia comercial-golpista ao Guedes, peça  fundamental desse governo indigno).

Assim, a indignação é uma reação nascida quando presenciamos  os atos de um poder inumano  que põe a dignidade humana  em risco. Essa reação somente é possível naqueles que, antes, tem amor à dignidade nos seus  variados sentidos. Esse amor primeiro não é uma reação, mas uma ação, uma potência. Os que não têm esse amor-potência não ficam de verdade indignados, apenas sentem indignação-protocolar ,  como os personagens citados acima,  cúmplices desse sistema que a cada dia asfixia literalmente a dignidade, deixando-a sem oxigênio e ar, como a intolerável situação de Manaus.

Mas Espinosa também argumenta que a indignação é apenas a fagulha, uma fagulha que aborta e se apaga  se dela não nascerem  ações agenciadas que se afirmem contra o poder da tirania. Para nós, a situação é ainda mais grave, já que ainda não podemos ir às ruas, que seria o meio mais potente de fazer nascer, da indignação, ações efetivas em defesa de nossa dignidade. Por isso,  é vital que nossa indignação permaneça viva, que não se apague , pois indignação apagada também adoece. Filosofia, poesia , arte...nada são se não servirem para manter a indignação também acesa, para que a treva  não vença.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

os bem-te-vis, os pardais e o carcará

 

Por morar em andar bem alto, de minha janela tenho uma ampla visão. Apareceu por aqui recentemente  um imenso carcará. A cor e a forma das plumagens do carcará  lembram uma farda  . Por ser pouco ágil voando, o carcará caça vasculhando os terraços . Ele fica à espreita de ninhos de pombos construídos sem o devido cuidado e proteção. Quando o carcará  acha um desses ninhos, ceifa com o bico o futuro que mal saiu do ovo. De longe ficam a olhar  os pombos , conformados. Os pombos são muitos, porém não se unem para afugentar o carrasco. Eles aceitam, lamentam, ficam resignados.

Porém, tudo muda quando chega um casal de bem-te-vis. Mesmo o ninho não sendo deles, o casal de bem-te-vis fica sobrevoando e dando voos rasantes sobre o carcará , muitas vezes acertando sua cabeça, até o carcará  parar seu banquete macabro. Os bem-te-vis têm menos da metade do tamanho do carcará , e são menores inclusive que os pombos, porém em audácia e coragem os bem-te-vis são gigantes .  Às vezes, um bando de pardais se une aos bem-te-vis  e põem para correr o carcará fardado, perseguindo-o pelos céus até o predador de ninhos  sumir das vistas.

Depois, os bem-te-vis e os pardais pousam juntos na antena do prédio mais alto do bairro, onde costumam pousar gaviões  e carcarás para espreitarem  suas presas. Lá de cima, enchendo de ar livre o peito, um dos  bem-te-vis começa a cantar um canto bem forte e alto, um canto que parece   dizer: “ Predadores, não temos  medo de vocês!”.

Quando tudo enfim fica calmo,   como verdadeiros aliados  que se uniram  para enfrentar o perigo, gratos uns aos outros, bem-te-vis e pardais se despedem e voltam para seus ninhos.

(neste incrível livro de Manoel de Barros dedicado a pássaros libertários/libertadores, há um belo poema chamado “Bem-te-vi”)








sábado, 9 de janeiro de 2021

fio do afeto, fio da arte

 

Os filósofos e poetas antigos falavam do “Destino”. Na mitologia ,  o Destino era representado por três sinistras irmãs : as Moiras. Elas eram cegas, porém  tinham à mão um estranho olho de vidro com dom de ver passado, presente e  futuro. Esse olho é o tataravô das “bolas de cristal” , nas quais  se crê antever o que os nossos  dois olhos  não veem. Uma das Moiras puxava o fio da vida, outra o esticava, enquanto a terceira o cortava rindo e zombando , como se cortar o fio da vida  fosse uma diversão macabra. Com o fio, as Moiras fabricavam uma “ordo”, uma “urdidura” ,  isto é, uma “Ordem” da qual ninguém conseguia escapar. A “ordo/urdidura”  era feita com linhas retas na horizontal e na vertical, como as grades de uma prisão.

Muito diferente era o fio de Ariadne: fio do Afeto, fio da Arte. Enquanto o fio das Moiras estava preso a uma roda ( a “Roda da Fortuna”), o fio de Ariadne era puxado   de um novelo, e assim libertado  . Quanto mais se confia nesse fio, menos as Moiras conseguem cortá-lo.  “Con-fiar”: “fiar junto”, pois fia junto quem tece novos elos ( “novelo”: “novo elo”). O fio de Ariadne é puxado de uma potencialidade que se desdobra em novos elos a serem tecidos e ousados.  Enquanto o fio do Destino é “ordo”, “Ordem”, o fio de Ariadne serve para tecer tramas. A trama é feita de linhas transversais formando curvas , desvios, “clinâmens”, espirais...Toda trama borda    uma linha de fuga que afirma a liberdade a despeito da malha férrea da Ordem. As Moiras  puxavam o fio da roda, o esticavam , para enfim cortá-lo. Elas eram incapazes de bordar, pois bordar é tecitura da arte enquanto força que estende ao máximo o fio da vida, vencendo  aqueles que o querem cortar. Toda bordadura parte de uma Ordo/Ordem, porém lhe acrescenta tramas criadoras de caminhos que nos fazem transpassar as grades (grades físicas ou simbólicas).

A gramática é urdidura , mas trama é a poesia; urdidura é a família,  porém trama é o amor; a lei é ordo, contudo trama é a justiça; cartilhas são urdiduras, mas pensar é trama que confia em sua força libertária.

As Moiras  cobriram Bispo do Rosário com  lençóis que mais pareciam mortalhas , porém Bispo do Rosário desfez o fio dessas grades  e com ele bordou sua  linha de fuga sob a forma de manto e asas. Apesar da  “Moira Social” que o urdiu louco,  Bispo do Rosário teceu  sua transversal, e assim tramou sua criativa  lucidez como fuga da  normalidade  reta dos que pensam igual. Embora toda trama parta de uma urdidura, nenhuma urdidura pode determinar que trama se inventará a partir dela.

“A reta é uma curva que não sonha.” (Manoel de Barros)


(foto: Bispo do Rosário e suas asas)

 

























quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

pátria a[r]mada

 

No antigo primário, quase todo dia nos obrigavam a cantar o Hino Nacional. Era uma ordem dos milicos da ditadura. Alguns professores  simpatizantes do autoritarismo  adoravam esse ritual . A gente não gostava desses professores autoritários, eles não tinham poder sobre nós em sala de aula (refiro-me ao poder que nasce da admiração : um poder que não domina, liberta). Mas durante o hino  eles tinham enfim poder sobre nós , um poder repressivo, e isso parecia preencher  certo vazio psicoafetivo neles. Eu achava muito estranho cantar algo que eu não entendia, até pensava que o Hino era outra língua ( como o tal “inglês” que a elite e os milicos idolatravam...). Hoje sei que não entendiam a letra  99% dos adultos que nos obrigavam a cantar aquela   língua  morta  . O inspetor  cantava e , ao mesmo tempo, intimidava   com olhar policialesco  quem não estava cantando. O rosto dele  parecia o de um inquisidor  que nos vigiava por fora para ver se havia dentro de nós algum subversivo escondido.

O Hino Nacional  nasceu como   “marcha militar” sem  letra. A letra  foi criada apenas em 1909 pelo poeta parnasiano Osório Duque-Estrada, vencedor do  concurso para a escolha  da letra, um concurso com  júri simpatizante dos militares . Em geral, o parnasianismo esconde a banalidade de suas ideias atrás de um malabarismo verbal meramente formal,  que impressiona exatamente porque não é entendido : o poema se quer  objeto de culto , e não meio para nos fazer pensar  .  Assim é a tal “Pátria a[r]mada”  do hino: somente a cultua, teológico-politicamente,  quem  nada sabe de empatia e  amor genuíno. O hino se diz o “brado do povo”, porém desse “povo” estavam ausentes os negros, as mulheres , os índios.

Quando cresci e passei a entender  a  letra do Hino Nacional ,  compreendi que ela  não narra fatos históricos, e sim versões elaboradas pela   elite  militarista fingindo encarnar a “voz do povo”. Aliás, o povo é o grande ausente dos fatos históricos que o hino   pomposamente retrata em língua que o povo não fala e nem entende, como o latim da missa.  Depois fiquei impressionado quando ouvi os hinos de outras nações , sobretudo daquelas cuja independência foi obra real  do povo. Quando é popular, a poesia nasce primeiro cantada, com as cores da fala popular, e somente depois passa a viver na palavra escrita.  Nesses hinos, a  letra é escrita  imitando a fala popular. Os acontecimentos cantados   o povo se lembra deles, reconhecendo-se como o autor de sua história. Hinos assim o povo   canta  abraçado e lado a lado ( pois é lutando  lado a lado  que venceram os tiranos) .  Muito diferente são as marchas militares sisudas que exigem formação rígida,  obrigando-nos    a olhar  para a bandeira  como  soldados batendo continência  para um general. Era esta a impressão que me causava o hino lá na escola: como um rebanho traçado com régua rígida , nos queriam uns atrás dos outros  numa obediente fila ,    não lado a lado.




domingo, 3 de janeiro de 2021

felicidade-travessia

 

Nessa época do ano, a palavra que mais dizemos ou ouvimos é “felicidade”, seja a desejando aos outros ou recebendo dos outros esse de desejo de felicidade, quando nos dizem  “Feliz Ano Novo” .  Na Grécia ,  a  “felicidade” não era um “estado psíquico” ou algo apenas interno , e sim uma “travessia” que não se faz apenas sozinho. Havia uma palavra que designava tanto “felicidade” quanto “travessia”: era a palavra “eudaimonia”, que significa “estar na companhia de um bom Daimon”. Só o bom Daimon auxilia na travessia.  O Daimon era representado com asas de borboleta, e não com asas de pássaro. Pois os pássaros já nascem com asas, já as asas da borboleta somente nascem após a metamorfose de um ser que rasteja: a lagarta. O caminho que leva da lagarta à borboleta não é reto e nem está sinalizado, tampouco o ensinam cartilhas. Entre a lagarta e a borboleta  há uma metamorfose.  Uma metamorfose nada tem a ver com uma mera transformação. “Trans-formar” significa: “passar de uma realidade menos desenvolvida a uma mais desenvolvida dentro de uma mesma forma”, como a criança que se desenvolve em adulto dentro da forma humana. “Metamorfose”, ao contrário, significa: “conquistar  uma realidade nova que não estava contida na antiga forma”. A metamorfose ensina que a antiga forma nada mais era do que prisão que nos acostumava a ser lagarta. O Daimon não habita o Céu ou o Olimpo, ele vive nessa zona que somente se pode atravessar em metamorfose. Manoel de Barros chama de “deslimite” a esse devir-borboleta. Deleuze intitula “linha de fuga”. Linha de fuga não é fugir de algo, mas fazer fugir de uma forma uma potência que ali era sufocada. Para os gregos, a felicidade não advém do ter ou do possuir, mas do “estar com”, agenciado, em um encontro com um ser que nada oferece, a não ser desterritorializações, linhas de fuga, horizontamentos. A mais necessária das travessias não se faz sobre caminhos já prontos e asfaltados, mas na conquista de uma nova realidade que não existe antes de ser inventada. Essa “felicidade” nem sempre se mostra de forma evidente, às vezes ela é “clandestina”, como nos ensina Clarice; pois onde  o ódio e a tristeza têm poder e dominam , a felicidade precisa ser clandestina para  manter viva em  nós a sua subversão.


“Borboleta é uma cor que avoa. ”(Manoel de Barros)
















                                                             ( música de Belchior)