sexta-feira, 31 de março de 2023

ditadura nunca mais

 

Eu tinha cerca de 12 anos e fazia o antigo ginásio. Era uma época difícil, sufocante...A  ditadura militar censurava, perseguia ,  prendia e torturava quem pensasse diferente do poder autoritário dominante.

Quem não passou por isso não faz ideia da violência, violência física e simbólica, da ditadura . Somente quem nela foi carrasco, cúmplice ou capitão do mato tem saudade daquela triste época.

Quando cresci e estudei história , aprendi que esses perseguidos pelo terror eram pessoas que sentiam que o mundo precisava ser mudado , e agiam para isso. Ainda criança, eu também sentia que o mundo dos homens estava errado , mas não encontrava nos livros lições que dissessem isso, pois pensar estava proibido. 

Àquela época, a escola não era um espaço de descobertas : a ditadura controlava tudo, e usava as cartilhas e   tabuadas como meios de adestramento.

Poesia e literatura? Só eram aceitos os parnasianos, como aquele poeta elitista autor do Hino Nacional que a gente não entendia  nada da letra , porém nos obrigavam  a cantar em posição  militar, rigidamente, batendo continência para a bandeira, como se ela fosse um general sisudo sobre o Monte Parnaso.

Até que chegou à escola uma professora nova de língua e literatura. Tudo nela era diferente: a roupa,  o jeito , o olhar , enfim, a pessoa. Foi a primeira vez que entendi de verdade o que era uma educadora e tudo o que a arte pode em termos de (auto)descoberta .

Em vez de adotar livros parnasianos para a gente ler decorando datas e palavras que a gente não entendia, palavras mortas que nada nos diziam a não ser: “obedeçam!”, ela adotou um livro diferente cujas palavras  a serem interpretadas eram letras de música  dos Festivais da Canção acontecidos recentemente.

Assim , foi como poesia que li , pela primeira vez, Chico Buarque, Caetano , Paulinho da Viola e Gilberto Gil. Antes de conhecer a música deles , eu me empoemei , ainda criança, com a poesia  sob a forma de letra. Algo em mim se horizontou e veio para fora: era eu mesmo,  ainda de mim desconhecido.

Foi a primeira vez que  experimentei  o que é ler, pois ler é ler-se. Eu não entendia todas as palavras , mas sentia que eram palavras vivas que me ensinavam  um sentido que eu sabia ser o mesmo que os milicos não queriam que a gente aprendesse, um sentido libertário da plural e popular poesia.

A querida professora transformava  a sala de aula  numa lúdica academia , uma academia livre de adestradoras cartilhas, onde  a gente era alfabetizado  no  pensar lendo a poesia de  Chico, Caetano, Gilberto Gil , Geraldo Vandré e Paulinho da Viola.

Ditadura nunca mais! Democracia sempre!








quinta-feira, 30 de março de 2023

presença e necessidade da filosofia

 

Quando alguém cobra dos políticos lisura  no trato com a coisa pública, este alguém está exigindo uma virtude ética: a honestidade. E Ética é uma disciplina da filosofia.

Quando alguém diz:  “O que esse cara fala não tem lógica! ”, quem assim critica  também está reconhecendo a importância da filosofia,  pois Lógica é uma disciplina filosófica.

Quando alguém ,sentindo, expressa: “ Essa música é bela !”, igualmente emprega um valor da filosofia  ,  uma vez que  o “belo” ( assim como o “cômico”, o “grotesco”, o “sublime”, etc)  é uma categoria da Estética, uma disciplina da filosofia.

Quando alguém fala : “Sou pragmático, odeio teorias”, este alguém também não escapa da filosofia , pois “Pragmatismo”  e “Utilitarismo” são   correntes da filosofia.

E mesmo quando alguém questiona : “para que estudar filosofia?”, este alguém também  está  a filosofar, dado que  questiona sobre a Teoria do Conhecimento ( ou Epistemologia), uma disciplina da filosofia.

E aqueles que precisam escrever Monografias, Dissertações de Mestrado ou Teses de Doutorado, mesmo que cursando “faculdades técnicas” , terão que estudar Metodologia Científica, uma disciplina filosófica.

Enfim, é impossível alguém existir  e não se colocar em algum momento questões  como: “O que é a vida ?”,  “O que é o tempo?”, “O que é a liberdade?”,  “O que é o amor?”, “Quem eu sou?...” Não apenas para  formular tais perguntas, mas também para vislumbrar respostas para elas, quem assim indaga igualmente  bate à porta da filosofia , mesmo que nunca tenha lido livros de filosofia,   pois essas são questões de uma disciplina da filosofia chamada “Metafísica”.

A filosofia não  está apenas nos  livros escritos pelos filósofos, ela se encontra    ainda mais   nas situações da vida que nos obrigam a pensar, já que  é impossível viver de forma digna e pensante sem se deparar com questões filosóficas. Cabe à escola e às faculdades, não importando de que curso seja,  despertarem o exercício  do pensar  , para que essa atividade vital não  atrofie por falta de uso.

As crianças são filósofas /questionadoras por natureza, a mesma natureza de que fala Espinosa. Infelizmente,   poderes  tolhedores  que cercam as crianças as afastam, com o tempo,  dessa natureza questionadora. 

Os tiranos de toda espécie   sempre temem o pensar, e fazem o máximo que podem para impedir que as pessoas, sobretudo os jovens, façam essa  descoberta do  pensar ,  ou se já o descobriram, não o exerçam . Não por acaso, Platão dizia que o tirano é o antifilósofo.

Pois exercer  o pensar é, antes de tudo,  aprender a governar a si mesmo , apesar das  “cicutas” , literais e simbólicas , com as quais  os obscurantistas tentam ameaçar aquilo que em nós é pensante.

Antes de estar nos livros, a filosofia está na vida, pois  pensar é uma exigência  da própria vida , e antídoto contra os inimigos da educação emancipadora  ( cuja  “cicuta” mais recente é  a tentativa de retirada da Filosofia, da Sociologia e das Artes do Ensino Médio).




 

 



domingo, 26 de março de 2023

Espinosa e o Absolutamente Infinito

 

Em Espinosa, Deus é a própria natureza. Cada ser que existe é um modo ou maneira de ser de Deus, que se expressa de infinitas maneiras, sendo cada maneira um modo singular de Deus se expressar.

Quanto mais se compreende Deus, mais essa compreensão é acompanhada de um afeto: o amor. Mas não se trata do amor cujo oposto é o ódio. Pois não tem contrário o  amor que nasce da compreensão do Absolutamente Infinito , pois não há nada contrário ao Absolutamente Infinito.

O Absolutamente Infinito não pode ser destruído, tampouco ser objeto de cobiças que ensejam disputas egoicas. Ninguém fala pelo Absolutamente Infinito, a não  ser aqueles em cuja voz se podem ouvir infinitas vozes, incluindo a voz do canto dos passarinhos e a voz daqueles que não têm voz.

Espinosa ensina que quem ama de verdade esse amor não fica à espera de ser amado por Deus. Pois ficar à espera de ser correspondido pelo amor que se ama é viver o amor que pode ser apagado pelo ódio , no caso da não correspondência.

Como somos modos de Deus, é Deus mesmo que se ama no amor que temos por ele. Quem vive à espera de ser amado por Deus, na verdade não se ama, tampouco é capaz de amar empaticamente  ao outro . É amando a Deus que amamos a nós mesmos no amor que Deus tem de si através de nós.

Como Deus é cada coisa, amar a Deus é amar cada coisa . Não no sentido piegas , mas no sentido de compreender que cada coisa existe por uma necessidade. E é essa necessidade de existir o outro nome do  amor. Quem ama esse amor não ama esperando ser amado em troca, pois ama por necessidade.

Uma necessidade que é idêntica à liberdade. Assim compreendida, a liberdade  não é fazer aquilo que o ego quer, liberdade é agir conforme a necessidade que se explica pelo Absolutamente Infinito , tal como ele se expressa em cada acontecimento singular aqui e agora, inclusive no acontecimento de amar o Absolutamente Infinito infinitamente.

O amor assim compreendido é um afeto ativo que tem por causa a ideia objetiva de Deus, o Absolutamente Infinito, na medida em que nos compreendemos como efeito dessa causa agindo não só externamente , mas sobretudo intimamente a nós.

Os homens  da imaginação dizem: “Deus te ama, desde que você siga nossa religião”. Mas Espinosa ensina que é pela compreensão da natureza que nasce em nós o amor por Deus e de Deus, enquanto Potência generosa e transformadora, ao mesmo tempo ética, clínica e política. 






 (Fachada do Paço Imperial /Rio de Janeiro: exposição sobre os heterônimos de Fernando Pessoa)





sábado, 25 de março de 2023

os "nadifúndios" do poeta

 

Há dois sentidos para a palavra “nada”. O primeiro deles vem do latim  “nihil.” Essa palavra é a origem de “niilismo”, um comportamento-sintoma que não deve ser confundido com o mero pessimismo ou negativismo, pois o niilismo reativo  pode se esconder sob máscaras as mais diversas  em comportamentos tidos aparentemente  como “positivos” , “normalizados”.

Além de “nihil” significar “nada”, nihil também significa “nulo”. No Direito, por exemplo , usa-se a expressão “nihil” para designar atos que são juridicamente nulos.

Assim, o niilismo não é um culto ao “Nada” ou ao “Nirvana”, o niilismo reativo é um comportamento cujo valor  para a vida é nulo, sem autenticidade .   

Por exemplo, os cultuadores do poder teológico-político vivem evocando a ideia de “Verdade”, porém essa ideia de “Verdade” na boca deles é nula , pois anula a própria ideia autêntica de verdade. A “Verdade” deles não é uma mentira, é uma “nulidade”: enquanto a mentira se explica no âmbito da linguagem, a nulidade-niilista é mais grave, uma vez que ela expressa uma estreiteza existencial .

Muitos espertalhões usam a palavra “Deus” como cabo eleitoral deles. Embora falem em Deus para combater o “ateísmo comunista”, esse Deus deles, porém, anula a própria ideia do que se espera que seja Deus: esses espertalhões anulam a ideia de Deus muito mais do que a negação feita pelos ateus.

O anarquismo critica a necessidade de partidos, mas não nega a política; já a extrema-direita fascista e os partidos  do “centrão” são nulos de ideias políticas. Uma coisa é criticar uma realidade, outra bem diferente é tornar nula uma realidade pela inautenticidade com a qual se a  pratica.

Se retirarmos as máscaras atrás das quais se esconde o niilista, veremos que sua “Verdade”, seu “Deus” e sua “política” são  apenas um coisa:  o dinheiro ( alguns deles preferem “joias”...).

Mas há outro sentido para a palavra “nada”, sentido esse  originado do latim “nata” ( raiz de “natal”: “lugar onde se nasce”). Esse sentido talvez explique o motivo de Manoel de Barros afirmar que sua poesia vem de suas “natências” ou “nadifúndios”, enquanto riqueza de vida que  nos protege das pobrezas existenciais niilistas.

 O saber que apreende esses “nadifúndios” chama-se : ignorãça. Ignorãça não é ignorar o nome das coisas, ignorãça é saber de coisas que ainda não têm nome : “As coisas que ainda não têm nome são mais ditas pelas crianças”, ensina o poeta.

Uma caneta de ouro na mão de um niilista ,mesmo que ele tenha poder e dinheiro, escreve só pobreza. Já o simples lápis do poeta retira do nada de suas natências a sua riqueza: “Na ponta do meu lápis tem apenas nascimento.”

Manoel  põe nascimento em seu lápis para que a gente, ao lê-lo, de vida se enriqueça : “Perder o nada é um empobrecimento” , afirma o poeta.

(obs: existe ainda o “niilismo ativo” mencionado por Nietzsche, “só podemos destruir sendo criadores”,  que nada tem a ver com o “niilismo reativo” que abordamos aqui).




 

Ao aniversariante da semana: Jorge Ben Jor ( que fez 84 anos!):



 

segunda-feira, 20 de março de 2023

o céu de Espinosa

 

Certa vez, eu estava explicando para uma turma um poema de Fernando Pessoa. Era uma turma muito simpática e atenciosa, que sempre pedia para eu tocar nesses temas poéticos-filosóficos , apesar de não caírem na prova...rs...

Quando terminei a narrativa, uma aluna  perguntou de repente  : “Professor, qual seu signo?” Quando respondi “touro”, ela ficou incrédula, e disse com humor : “professor, você não pode ser touro, os professores de touro gostam de ensinar apenas coisas utilitaristas sem poesia ...rs...”

Então, ela me pediu a data e hora do meu nascimento, incluindo os minutos,  ela queria fazer meu “mapa astral”. Como eu sabia esses detalhes,  passei a informação para ela. Na aula seguinte, ela entrou sorridente na sala e disse: “Sabia que havia alguma coisa diferente, você  é assim por causa de seu ascendente: Aquário!”

Em homenagem àquela turma simpática  ( e a todos que , presencial ou virtualmente, apoiam meu trabalho), elaborei um pequeno “horóscopo filosófico”, no qual o céu sob o qual nascemos expressa a atmosfera que irradia de  determinado filósofo .

Àquela época, eu morava perto de uma pracinha. De minha janela via as mães com seus filhinhos nos carrinhos de bebê. Deitados dentro dos carrinhos, os bebês ficavam o tempo todo  olhando para o céu. Pensei comigo: “se tudo nos influencia, ainda mais quando somos crianças, deve haver uma profunda influência dessa  primeira imagem do céu na alma e personalidade dos bebês”.

Assim, os que nasceram no verão veem um céu com  um sol intenso. Os bebês que trouxerem  esse sol para dentro deles se tornarão pensadores-artistas . Chamei esse céu de CÉU DE NIETZSCHE.

Os que nasceram no inverno, ao contrário, veem um céu cinza, e assim terão que buscar  criar um sol dentro de si . Os que nascem sob esse céu tenderão a ser mais introspectivos, buscando mais a “luz interior” . Chamei esse céu de CÉU DE SCHOPENHAUER.

Os que nasceram sob o céu da primavera veem um sol que é como uma grande semente que faz tudo germinar. Os que plantarem  dentro de si esse sol-semente   tenderão a ter uma crença inabalável na vida, acreditando que a vida pode de novo sempre brotar, apesar do deserto. Chamei esse céu de CÉU DE EPICURO.

Enfim, os que nasceram no outono veem um céu de um azul profundo porém transparente, onde o sol brilha vivamente mas sem ofuscar, um sol como parte do infinito sempre aberto para voos emancipatórios: “Eu tentei me horizontar  às andorinhas” (Manoel de Barros). Os que nasceram sob esse sol e céu , se aprenderem com esse sol e céu a se horizontarem, crescerão filósofos. Chamei esse céu de CÉU DE ESPINOSA.

Hoje começa o outono. Que a gente consiga   criar uma abertura na mente e no coração para que possam entrar a luz e o azul desse  “Céu de Espinosa”, e que a perseverança do pensar libertário desse filósofo  nos inspire e fortaleça diante de toda forma de treva.


(Imagem: “Outono”/ Monet)



 

 

Obs: Nesse “horóscopo-brincativo” ( “brincatividade” é ideia criada pelo poeta Manoel de Barros) poderíamos colocar outros filósofos ainda ao lado desses que mencionei para cada estação poético-existencial. Lucrécio e Sêneca, por exemplo, também são outono; Sartre é verão; Epicteto e Bergson, primavera; e Cioran, inverno.




 

quinta-feira, 16 de março de 2023

o ensino da filosofia

 

Como professor de filosofia, gosto  de trabalhar também com outras áreas e públicos. Porém, não é raro eu ouvir o seguinte comentário de quem é de uma área técnica: “Filosofia nada tem a ver com nossa área” , e assim insinuam que seria  perda de tempo ensinar filosofia aos alunos das  “faculdades técnicas” ( e do ensino médio “profissionalizante” a serviço  do mercado).

Sêneca[1] dizia que nenhuma prática humana é meramente técnica. Pois aquilo que as mãos fazem  tecnicamente depende da vontade que as guia. E a vontade se liga  ao caráter ( “éthos”), que por sua vez está relacionado ao modo como nos inserimos na realidade social.

Do ponto de vista técnico, um revólver opera da mesma maneira na mão de um bandido ou na mão daquele que deve zelar pelas regras da justiça. Um revólver não sabe a diferença entre bom e  mau,  justo e  injusto. Supor que uma prática humana é meramente técnica , é imaginar que ela possa ser feita independentemente de valores sociais e éticos.

A gramática é uma técnica a serviço da escrita enquanto expressão humana. Mas não é a gramática que tem o que dizer, quem tem o que dizer é quem se serve da gramática para escrever.

Supor que as faculdades “técnicas” e o ensino médio não precisam da filosofia ( bem como  da sociologia e das artes) , significa dizer que tais ensinos técnicos têm  a pretensão de serem  “neutros”, ou seja, indiferentes à realidade humana , social e planetária.

Desde a época de Sócrates, retirar dos jovens o contato com a filosofia sempre foi o projeto de tiranos . Não por acaso,  excluir  a filosofia e a sociologia do ensino médio, impondo à força o ensino técnico-militar, é o  projeto acefalizante dos tiranos de hoje.

O educador Paulo Freire fazia uma distinção entre a autêntica educação e  o mero “ensino bancário”.

A educação autêntica alfabetiza não apenas na leitura de textos e livros, ela visa alfabetizar , antes de tudo, na leitura crítica e criativa do mundo. Já na educação bancária  a informação  é “depositada” pelo “tutor” no aluno como se este fosse uma conta que precisa dar lucro. É um modelo quantitativista, tecnocrata e mercadológico do conhecimento, no qual o aluno é tratado como coisa e número, não como agente pensante .

Nietzsche dizia que por trás do “que” há sempre um “quem” ( por mais que esse “quem”  tente se dissimular usando como biombo a “neutralidade  técnica”). Assim, a quem interessa a retirada da filosofia, da sociologia e das artes na formação dos alunos?

Os computadores e a tecnologia nos mostram que a inteligência pode ser artificial ( como no Chat GPT), porém somente a filosofia pode nos ensinar que pensar é uma potência natural que precisa ser descoberta e desenvolvida, uma potência ao mesmo tempo ética , política  e existencial.

Inteligência e pensamento não são a mesma coisa, assim como não são o mesmo ensino e educação.

 

quarta-feira, 15 de março de 2023

Hesíodo e as cinco raças

 

                                          HESÍODO E AS CINCO RAÇAS[1]

 

 

A eternidade está longe:

brinca de tempo-será.

Manoel Bandeira

 

Os mortos e os vivos são pó.

A diferença entre eles?

Os vivos são pó que o vento levanta.

Vaidade é o nome desse vento.

Padre Antônio Vieira

 

                             

Segundo Hesíodo, há cinco tipos ou raças de homem. Cada tipo recebe como símbolo um determinado metal. O que vale , portanto, é o aspecto simbólico, não a referência material literal, empírica. Assim, há homens de ouro, de prata, de bronze, de ferro e  de barro.

Quando Hesíodo escreveu, há mais de 2. 700 anos, os homens de ouro e prata eram apenas lembrança -  uma lembrança poética, ética e mítica. No tempo em que viveu o poeta o homem de bronze já anunciava o seu ocaso, pois no horizonte próximo já vinha o homem de ferro, com seu pesado fardo a carregar. O homem de barro era anunciado pelo poeta para um futuro incerto.

O homem de ouro era aquele que vivia na companhia do divino. Não havia entre o plano humano e o divino um abismo: o homem aprendia a sabedoria sem precisar de livros. Sábio, mas não erudito, o homem crescia no corpo e no espírito: a passagem do tempo não era envelhecimento, e sim  ampliação de sua capacidade de estar à altura da companhia do divino.

Não havia escultura, pintura  ou outra arte, pois o artístico era a própria vida, que era feita mais de cores do que de formas. Os deuses ainda não tinham templo, uma vez que  a casa deles era a mesma dos homens de ouro: ambos habitavam a terra como chão e o céu como teto, sem paredes.

Porém, alguns desses homens não souberam honrar a companhia do divino: passaram a se achar seus representantes e falar por eles, com a intenção de obterem poder sobre os outros homens. Então os deuses se afastaram, e tais homens, sozinhos, desapareceram.

Os deuses criaram então os homens de prata. Estes viviam 100 anos como crianças apenas. Viviam brincando nos jardins onde nada faltava. E, cansados de tanto brincar, adormeciam e entravam em um sono sem sonhos, pois sonhos apenas existem para aqueles cuja realidade é frustrante, cabendo então ao sonho realizar o que o desejo desperto não obtém. Mas como os homens de prata de nada careciam, pois de nada sentiam falta, do sonhar dormindo não precisavam. Eles vivam na inocência de uma vida sem culpa. Após completarem 100 anos, os deuses deixavam enfim que os homens crescessem, para rapidamente envelhecer e morrer, sem dor, dormindo. Porém, nem todos se contentavam apenas com o lúdico, não poucos se tornavam tolos, caprichosos, egoístas, “infantis”: choravam pela presença dos deuses, exigindo que estes lhes fizessem favores e concedessem privilégios. Assim, o ciúme crescia entre os homens-infantis. Os deuses  novamente se afastaram, e tais homens pereceram.

Uma nova raça de homens  foi criada pelos deuses: os homens de bronze. Estes eram corajosos e destemidos, porém belicosos e querelantes. Ambicionavam o domínio, a posse , o poder. Mas como eram independentes e honravam os deuses, estes deixaram que crescessem em número e habilidades. Uma dessas habilidades se destacou: o engenho para criar armas. O homem de bronze se tornou o homem da guerra, da busca pela glória. Porém, tornou-se também o campeão da violência contra o  outro homem, fazendo os vencidos de escravos. Logo a pretensão também se tornou marca desses homens, de tal modo que quiseram guerrear com o próprio invisível onde morava o divino, revelando  assim que o poder os enlouquecera. Os deuses, sem piedade, exterminaram tais homens de bronze.

Foram criados então os homens de ferro. Estes nasceram sob a carga da necessidade: nus, precisavam cobrir o corpo; famintos, necessitavam achar alimentos; fracos , sentiram que precisavam se unir . Para tal, inventaram o Estado, as leis, as obrigações e o trabalho. Viviam mais ocupados com a terra do que com o céu. E todos os seus engenhos e conhecimentos estavam voltados para inventarem meios que amenizassem a penosa existência. Entre alguns deles , porém, não lhes satisfazia essa vida rasteira, rasa. Nesses insubmissos ao poder do mero  útil   nasceu uma fuga, uma "linha de fuga", que tomou a forma de uma metamórfica iluminação:  eles adquiriram então olhos e ouvidos para verem e ouvirem a dança e o canto das Musas Divinas. Conferindo um novo uso às mãos , não apenas para o trabalho  mas para a criação, esculpiram o que viram nas pedras, criando esculturas que davam a ver o invisível ; dando às palavras nova função, diziam por elas o que lhes cantavam as Musas, inventando assim a poesia. No meio da indigência nasceu o artista, o poeta, para com a arte "celestar as coisas do chão", conforme ensina Manoel de Barros. Hesíodo foi um desses celestadores.

Havia ainda uma quinta raça por vir , dizia o poeta. Nela não haverá mais a menor lembrança do divino, apenas imaginações parcas. Essa raça nascerá sob a marca do precário, do fugidio, do inconstante, do vazio, do "líquido" ( não enquanto fluxo poético heraclítico, mas semelhante à fluidez inconstante do Capital...) . O homem nascido nessa época será o homem de barro. Não o barro que pode ser modelado e se tornar receptáculo para o belo ou para o útil, como os vasos , ânforas e jarras; tampouco se trata do barro como meio de expressão do popular estilo, como nas pequenas estátuas modeladas pelas mãos do artista nordestino; nem são  os barros que Manoel traz como sobrenome, barros  do Pantanal onde a vida se modela vária e múltipla.    

Na mitologia, Prometeu fez o homem a partir do barro; porém a habilidade manual, a inteligência e sobretudo o coração, como sede do afeto da justiça, vieram dar vida ao peso morto. Mas o barro desse homem de barro de que fala Hesíodo é apenas o barro mesmo, barro  que apenas o vento, e não as virtudes e as ideias, põe de pé.

Das épocas de ouro e prata esse homem de barro  desejará apenas o metal, a parte material, ignorando o simbolismo. Tal homem de barro nutrirá  a mesma sanha belicosa dos homens de bronze, porém desconhecendo as virtudes guerreiras destes, sobretudo a honra. Dos homens de ferro os homens de barro herdarão as carências e necessidades, mas não a profundidade visionária de seus artistas. A principal marca do homem de barro, diz Hesíodo, será sua total insensibilidade a tudo aquilo que não seja seu próprio ego.

Eles talvez sejam os últimos dos homens, pensava Hesíodo. Porém não serão os deuses a destruí-los, pois os deuses  tais homens  terão destruídos antes,  de tal sorte que os templos que construirão  serão, na verdade, túmulos. E construirão muitos...E quanto mais vazio de deuses for tal túmulo, mais estátuas de ouro o preencherão como objeto de culto.

 Não serão os deuses que destruirão tais homens, serão eles mesmos a arma  de tal destruição, do barro ficando apenas o pó que o vento leva...

 



[1] Texto-aula elaborado pelo prof. Elton.         



                

terça-feira, 14 de março de 2023

Marielle

 

A palavra “museu” vem de “Musa”. Infelizmente, a ideia que se tem hoje de “Musa” é herdada do Romantismo, que via nas Musas entidades inacessíveis habitando no elitista Monte Parnaso. 

Porém, no seu sentido originário,  “Musa” significa: “conhecimento que vem das artes”. Pois as artes também ensinam: desse ensino participa não apenas a mente,  igualmente participam a sensibilidade e o corpo.

Museu  também era  o nome de um poeta. Segundo algumas versões, Museu era filho de Orfeu, o Poeta Originário.

Vítima de vingança, Orfeu  foi covardemente despedaçado pelas Fúrias, divindades ligadas  ao ódio e à barbárie , que assim imaginavam que calavam e venciam Orfeu.

Porém Museu recolheu  os fragmentos-obras  de Orfeu, depois os expôs   reunidos num espaço aberto ao público. Assim, Museu criou  a primeira exposição do mundo.

Por intermédio da exposição, Museu comemorava a vida e obra de Orfeu, dando-as a conhecer . “Co-memorar”: “criar memória junto”. Dessa maneira, Orfeu renascia  como conhecimento que afeta e transforma,  assim vencendo  a necropolítica  de seus  carrascos ( tal como o Museu de Bacurau que co-memora e mantém viva as lutas do povo nordestino).

Museu também tinha a potência  de fazer nascer fontes sobre a terra, mesmo onde a terra era infértil ou desértica. A fonte que brota e irriga a terra é uma das imagens arquetípicas da vida. Não por acaso, o poeta Manoel de Barros ensina que poesia é  o “fontanejar” de sentidos, ideias e olhares novos.

O Museu da Maré é um dos meus preferidos. Ele fica no Complexo da Maré, comunidade onde nasceu e cresceu Marielle Franco. É parte do  acervo do Museu da Maré a luta de Marielle.

Acervo vem de “cérvix”. Dessa palavra também se origina “cervical” :  a coluna que  sustenta não apenas nossa cabeça , como  também a conecta com nossos braços e pernas, para que as ideias que pensamos se tornem ação sobre o mundo. É a coluna cervical que nos mantém também  de pé.

Um acervo existe para pôr e manter de pé ideias, questionamentos, afetos, desejos,   valores . Integra o acervo do Museu da Maré a porta que fazia parte do gabinete da vereadora  Marielle. Porta que vivia  sempre aberta à pluralidade, ao outro , à dignidade e às lutas por uma sociedade mais justa e igualitária.  

 Hoje faz cinco anos que carrascos derrubaram  covardemente Marielle . Porém, através de  suas ideias   Marielle  persevera  ainda  de pé e fontaneja onde quer que exista luta e resistência a favor da vida digna e contra as  “Fúrias” de hoje e suas vilanias.




- A porta que fazia parte do gabinete de Marielle:




-Visita virtual ( imperdível) ao Museu da Maré/Exposição Marielle:




domingo, 12 de março de 2023

esquerda e direita

 

Certa vez , perguntaram ao filósofo Gilles Deleuze por qual razão ele nunca foi filiado a um partido, e aproveitaram  também para  indagá-lo  acerca do que é ser de esquerda.

O filósofo deu mais ou menos a seguinte resposta: antes de ser um posicionamento político-partidário, ser de esquerda expressa o modo como nos inserimos na existência.

A pessoa de direita parte, antes de tudo, do seu ego. Ela  vive no interior de um círculo no qual estão seus interesses, suas propriedades ( já  possuídas ou apenas desejadas), suas ambições, suas pretensões, suas opiniões...Mas também ocupam o círculo estreito do ego seus medos, seus ressentimentos , seus fantasmas, suas feridas mal curadas...

O homem de direita imagina que esse círculo estreito é o centro do mundo, de tal modo que tudo o que existe fora desse círculo, no espaço e no tempo, é para ele só “narrativa”. Daí seu desprezo pela ciência, pela história, pela sociologia e pela filosofia, e seu medo paranoico dos outros povos e suas maneiras diferentes de viver, medo esse traduzido na expressão “globalismo comunista”.

Pode parecer paradoxal, mas apenas seres que vivem num círculo existencial estreito adaptam-se a existirem  no interior de um rebanho ou massa. Pois rebanho não é um conjunto heterogêneo de singularidades, rebanho são indivíduos aprisionados a si mesmos e que se agregam em celas contíguas.

Ser existencialmente de esquerda, ao contrário, é partir daquilo que Espinosa chama de o Absolutamente Infinito. A percepção de esquerda se abre ao que não pode ser cercado ou contido, para   que a mente e o coração ligados a tal percepção permaneçam sempre abertos.

É a partir do infinito aberto que o ser existencialmente de esquerda  compreende que desse infinito  fazem parte o cosmos, o nosso planeta, as outras nações, o nosso país, a nossa cidade, o nosso bairro , o outro e, enfim, a sua pessoa.

Ser de esquerda é não se colocar como primeiro ou último numa concorrência, mas como parte singular  de realidades mais amplas e horizontadas (como ensina também  Manoel de Barros).

Ser de esquerda não é apenas compreender teoricamente isso, mas sobretudo agir a partir dessa percepção. E dessa percepção podem nascer  não apenas ações empáticas, solidárias, generosas , dignas , justas , corajosas e revolucionárias, pois dessa percepção também podem nascer poemas, músicas , artes e educação não menos revolucionárias.

 

(imagem: os filósofos Deleuze & Guattari e o livro que escreveram juntos)



 

 

Música de Piazzolla em homenagem à poeta revolucionária Violeta Parra:



 

sábado, 11 de março de 2023

quintal celestado

 

Além de poeta, Manoel de Barros é um grande pensador,  um dos maiores que já tivemos.

Às vezes um pensador cria uma ideia nova sem que exista ainda na língua uma palavra que corresponda a essa ideia nova. A ideia assim criada é como uma alma nova para a qual ainda não nasceu o corpo que possa abrigá-la.

Quando isso acontece , o poeta sente a necessidade de criar uma palavra nova para ser o corpo da ideia que  lhe nasceu.

O poeta cria então um neologismo. Essa palavra significa:  “novo logos”. Em grego , “logos” tem por sentido tanto palavra quanto pensamento.

Assim, o neologismo em Manoel não é apenas uma palavra nova, o neologismo é uma alma nova que nasceu no poeta, alma que ele parteja dando a ela um corpo, de tal modo que a palavra assim nascida se torne mais do que palavra, e seja para nós realidade transformadora e viva.

Manoel criou vários neologismos. Mas um deles me afeta particularmente: o neologismo “celestar”. O poeta ensina que “poesia é celestar as coisas do chão”.

Celestar não é apenas contemplar o céu distante e transcendente, celestar é, antes de tudo,  abrir um céu no olhar , para assim transvermos  a realidade próxima onde estamos e vivemos. Talvez seja o mesmo que ensina Espinosa: “Olhar as coisas que acontecem no tempo sob a  perspectiva da eternidade.”

Celestar não é querer subir ao céu, e sim produzir linhas de fuga que nos restituam  horizontes que abram caminhos para nossos pés sobre a  terra , aqui e agora.

Celestar é um verbo-acontecimento que se conjuga em vários tempos e modos, no singular e no plural,  e nos ajuda a resistir e vencer  as estreitezas.

Quando criança, em noites estreladas eu gostava de me deitar no quintal de casa   e ficar olhando o  céu. Eu ficava horas  interrogando com o olhar o céu , só me levantando quando  minha mãe me chamava para jantar.

Eu imaginava que naquele infinito aberto deviam existir   incontáveis e diferentes planetas, e que em cada planeta  havia  também uma criança  olhando e interrogando o céu.

Para cada criança dessas, no céu infinito que elas veem acima delas, é o  planeta terra que se encontra  no céu. Sob olhares cósmicos, tudo é parte do céu, até o nosso planeta  terra  no qual está o  chão do meu quintal.

Dessa experiência poético-filosófica na infância me  nasceram  duas certezas: não vamos para o céu depois que morremos, pois é enquanto vivemos que fazemos parte do céu; se tudo é céu, não existe inferno, a não ser dentro do coração dos maus.

 

 

 ( este livro é apenas uma sugestão de leitura)










quarta-feira, 8 de março de 2023

ao Dia Internacional de Luta das Mulheres

 

Nietzsche nos fala de três metamorfoses : a do burro ( ou “camelo”), a do leão e a da criança.

O burro é aquele que diz “sim” ao que está dado: ele aceita, passivamente, os valores estabelecidos. Sua forma de aceitação é “dar as costas” para carregar. É assim que o burro se sente “útil” : carregando o peso que em suas costas colocaram.

Todos nascemos mais ou menos burros, pois carregamos , desde a infância , os valores de um mundo que já achamos pronto, dado.

Quando o poder  diz que só se deve ensinar às crianças tabuada e gramática, e nada de artes e filosofia, o que ele quer é manter submissos seus carregadores também no futuro. Mas todos os valores que um burro carrega levam apenas a um lugar: o deserto infértil. 

O leão pode nascer do burro quando este sofre uma metamorfose, aprendendo a dizer “Não”. Ninguém sobe no dorso de um leão: ele  vê em tudo uma jaula onde querem prendê-lo.  O leão  é ferozmente  crítico e cético, imaginando que ser  potente é negar . O leão pode mais do que o burro,  porém  é incapaz de criar , pois para criar é preciso crer. E o leão em nada crê.  O leão imagina que  crer é ser como o burro que ele já foi.

Do leão pode surgir nova metamorfose:   a criança, aquela que redescobre a força do “Sim”. Pois o Sim da criança não é como o sim alienado  do burro. O Sim da criança sobreviveu ao não do leão, o incorporou como crítica, porém vai além dele, tornando-se afirmação de uma  potência criativa . A criança não carrega, como o burro; nem ruge e ameaça, como o leão. Ela libertou-se de todo peso, corre e dança, e há nela uma força mais poderosa que a dos dentes e garras.

O burro é refém dos valores do  presente que o esmaga e aliena; já o leão nasceu quando este presente virou passado que o leão não quer mais que se repita. Mas a criança é , ao mesmo tempo, metamorfose no presente e libertação do passado em razão de uma  crença ativa  no futuro , uma “linha de fuga”, como criação de novas possibilidades para a vida, a despeito das forças reativas que ameaçam retê-la.

 

Algumas traduções se referem a essa terceira metamorfose como  a  do  “Super-Homem”. Contudo, “Super-Homem”  é uma tradução inadequada para o que Nietzsche chama ( em alemão) de “übermensch”.

“Übermensch” não é o homem ainda mais forte , empoderado. Pois “über” tem o sentido daquilo que está “acima” ou “além”.

Mas não acima como o teto está acima  ou além do chão , ou o  céu acima e além  da terra. O “acima-além” que “über” expressa é como a borboleta que põe-se acima da lagarta, indo além desta em potência transmutadora  : como realidade nova expressando uma metamorfose enquanto  (auto)superação  criada.

Assim, a melhor tradução para “übermensch” é “Além-do-homem”  (inclusive do homem  enquanto “Padrão-Patriarcal-Falocrático”)


 



A foto original:





domingo, 5 de março de 2023

Sofias...

 

A palavra “filosofia” nasceu de um encontro. Isso serve para nos lembrar que ninguém se torna filósofo a partir do próprio ego, sozinho. A filosofia nasceu do encontro de duas ideias expressas nas palavras “philo” e “sophia”.

“Philo” não significa apenas amizade, philo também tem por sentido “amor”. Ou seja, na base da filosofia não estão teorias ou raciocínios abstratos, em sua base está o Afeto.

Espinosa dizia ser a “Alegria” o afeto mais filosófico; Heidegger e Sartre afirmam  ser a “Angústia”; já Aristóteles defendia  que é a “Admiração”; e Epicuro ensina ser o “Prazer” o afeto-base da filosofia.

Mas não existe filósofo que diga que a filosofia possa nascer  do ódio, do rancor ou do ressentimento. Ao contrário, esses sentimentos reativos nos afastam do pensar, do sentir e do agir emancipatórios.

Porém “philo” não é  o amor no sentido idealista ou romântico. Pois o amor-afeto que leva ao pensar nasceu da junção da letra “a” com função privativa ( como em “a-fasia”= “sem fala”) mais a abreviação da palavra “morte” ( “mor”). Assim, o amor pensante é  : “não morte”.

Quando lutamos pela democracia, é pela não morte dela que lutamos; quando agimos pela educação, é pela não morte da educação; quando nos indignamos frente à barbárie , é pela não morte da justiça; quando defendemos a vida digna, é pela não morte de nós mesmos, individual e coletivamente.

Assim compreendido, o amor não é apenas afeto subjetivo, ele também é potência atuante transformadora da realidade.

“Sophia”, a sabedoria,  é mais do que a mera   “Razão” . Em grego, "Razão" é "Logos", palavra masculina. Enquanto "Razão" é raciocínio, teoria e moral, Sophia também  é sensibilidade, criatividade, intuição e ética, assim unindo o pensar à prática.

“Sophia” não é apenas texto ou livro , pois a sabedoria  se mostra sobretudo no agir , na “eloquência da ação”, ensina Cícero.

"Sophia", ou "Sofia", também é o belo nome que muitos casais escolhem para assim nomearem a vida nova que nasceu do encontro amoroso deles. Pois é isto a sabedoria: um trazer à vida para afirmar a vida, resistindo àqueles que cultuam a ignorância e a morte, nos vários sentidos que a morte tem.

Não importa se o nome de batismo do filósofo  é Lucrécio , Deleuze, Foucault , Nietzsche , Marx, Bakunin ou Espinosa:  quando é libertário , todo filósofo se rebatiza “Sofia” quando pensa, age  e filosofa.  

“Razão” não é nome, embora muitos se autointitulem donos dela e se tornam dogmáticos: não por acaso,   inúmeras vezes a “Razão” serviu a posturas falocráticas e misóginas.

“Sophia” é nome  que expressa diferenças, singularidades, devires. Mas assim como um nome vem sempre acompanhado por sobrenomes, o nome completo da filosofia, a sua assinatura vital ,   é o nome Sofia  acompanhado pelos sobrenomes  Luta, Generosidade   e  Coragem.


( na semana do Dia Internacional de Luta das Mulheres,  estes livros são uma boa  sugestão de leitura)







Letra-poema de Violeta Parra: