Quando Zeus estava sob seus olhos, Hera ficava tranquila. Porém, bastava seu amado se ausentar, o que acontecia com frequência, para o sofrimento tomar-lhe conta. Seu ciúme pedia um instrumento, ele queria criar olhos ─ e assim ver, saber, tomar ciência. Hera precisava vencer a ignorância: ela desejava encontrar um meio de ver Zeus todo o tempo, sem que ela fosse, no entanto, vista. Um ver que lhe deixasse neutra, mas sempre presente, vendo.
Então, ela pede ajuda a Panoptes, cujo nome significa “visão por toda parte” ( “panóptico” se origina de panoptes). Para ceder ao pedido e ser os olhos da deusa vigiando Zeus onipresentemente , Panoptes se transformou então num animal: o pavão ( na cauda dos pavões há desenhos similares a olhos...).Quando este abria a cauda, incontáveis olhos se mostravam ─ vigiando, sem trégua, Zeus.
A esse olhar que vê onipresentemente, pretendendo impedir todo mistério, a esse olhar os gregos deram um nome: Theoria ( "theo" em grego é "ver"). Não raro, quem muito teoriza quer a tudo dominar com conceitos: a paixão pela verdade só não é doença se deixar livre a diferença.
Além disso, os olhos da teoria veem apenas as faces exteriores, seus olhos não veem dentro, no coração das coisas. Tais olhos não conseguem ver o que vê a visão fontana do poeta:“A palavra abriu o roupão para mim: ela quer que eu a seja” ( Manoel de Barros).
(fragmento da obra de Rubens: Zeus, Hera e o pavão)
Segundo Manoel de Barros, o poeta é aquele que possui visão fontana, uma visão que é fonte do que vê. Não é uma visão que constata o referente ou objeto; diferentemente, ela é uma visão que vê , antes, o sentido - que é a alma das coisas. Toda fonte se comunica com um fluxo invisível , que é de onde vêm as águas que nela nascem e fluem. Embora possam estar, hoje, sob o chão, tais águas já estiveram, outrora, no céu - do qual caíram como chuva; elas já circularam também no interior dos animais, como sangue e suor ; já desceram as montanhas quando a neve derreteu; já foram orvalho nas flores, seiva nos troncos e ,nos frutos, o doce sumo; já foram lágrimas de dor, lágrimas de alegria; já foram o meio que alimentou o feto no interior da placenta. Um dia tais águas sustentaram a Terra, como nos faz crer Tales; e Cristo fez delas vinho, o sangue de toda festa; sobre elas o Espírito, um dia, andou ;hoje sobre elas se surfa, se desliza, se mergulha. E todos, insetos e humanos, flores e animais, até mesmo a Terra, todos a bebem. É esse elemento que está em tudo , e que é a Vida de tudo em processo, é este elemento o que o poeta vê e sente , primeiro nele, como metamorfose e encantamento.
WORKSHOP: POESIA PODE SER QUE SEJA FAZER OUTRO MUNDO
Coord.: Elton Luiz Leite de Souza Horário: Sábado - 14 de abril - das 10h às 12h
A poesia de Manoel de Barros enseja uma original “desfilosofia”, isto é, um pensar que se faz não apenas com conceitos. O poeta ensina: “Eu escrevo com o corpo. Poesia não é para compreender, mas para incorporar”. Lê-lo é empoemar-se.Empoemando a palavra, Manoel nos empoema: há nesse processo uma singular “clínica”.
Elton Luiz Leite de Souza –Doutor em Filosofia, professor adjunto da Universidade federal do Estado do Rio de Janeiro, pesquisador ad hoc da Faperj, autor do livro: Manoel de Barros: A poética do deslimite, 7 letras/ Faperj 2010. Organizador e um dos autores do livro Poesia pode ser que seja fazer outro mundo, 7 letras, 2018. Autor de diversos artigos sobre Manoel de Barros.
Gratuito para membros da SPCRJValor do workshop para não-membros da SPCRJ: R$ 40,00Valor do workshop para estudantes de graduação: R$ 20,00
Lutar pela liberdade é realmente fazer a jurisprudência,
o que importa é a jurisprudência.
Deleuze
Quando
Zeus, o deus da justiça, venceu a tirania de Crono, percebeu que a luta contra
a tirania ainda não havia acabado. E se houvesse um tirano escondido no lugar
em que poucos procuram? Para aquele que vai exercer algum tipo de poder sobre
os outros, é nesse lugar que ele deve olhar primeiro, para ver se ali se
esconde um usurpador, um tirano. Então, Zeus resolve desposar Métis para que
esta o auxiliasse nessa procura, pois ela é a deusa que vai até esse lugar onde
os tiranos se escondem. Quando se diz: “fulano age meticulosamente”, usa-se a
raiz “métis”. Esta palavra significa “´prudência” ( em latim, “caute”, palavra-raiz da Ética de Espinosa ). Após a lua de mel, Zeus pede a
Métis que se transforme em uma árvore ( ela tinha o dom de metamorfoses). Métis
atendeu. Depois, Zeus pede que ela vire uma folha, Métis uma folha deveio. “Tenho
um último pedido”, disse Zeus, “que você vire uma gota de orvalho”. Quando Métis
virou tal gotícula, Zeus rapidamente a sorveu:
ao entrar, ela foi matando todos os germes de tirania que estavam dentro
de Zeus, e que ele desconhecia. Ele que já era o deus da justiça, ao trazer a
prudência para dentro de si fez nascer nova virtude ético-política: a
jurisprudência.
(trecho de artigo a sair na Revista Guavira Letras)
O
poeta precisa alcançar uma língua dos começos, que é sempre começo começando:
um começo que nunca termina, um começo que (re)começa a cada vez
que o poeta escreve: “Na ponta do meu lápis há apenas nascimento”.
Os
gregos que viveram antes de Platão tinham um nome para esse começo que é sempre
começo. Eles o chamavam de “physis”.[1] Convencionou-se traduzir physis
por natureza. Contudo, a palavra natureza está viciada por séculos de
pensamento objetivista, “coisal”, que parte sempre do já nascido, do já feito:
do meio-dia ou, no máximo, da manhã, nunca da aurora. Porém,
Durante as viagens sem rumo dos andarilhos
eles são instalados na natureza igual se fossem uma aurora.[2]
Originariamente, physis
significa “brotar” ou “desabrochar”. Uma fonte também pode ser uma imagem para
a physis, desde que a dessubstantivemos e a apreendamos como verbo: fontanejar. A rosa desabrocha, ela se
abre e se oferece à luz, e assim fontaneja. Não apenas as rosas, várias outras coisas
desabrocham, fontanejam.
Porém, a coisa que
desabrocha pode nos fazer esquecer do desabrochar, pode nos cegar para esse
processo quase imperceptível aos olhos que apenas veem o “acostumado”. Algo
desabrocha na flor que desabrocha, e esse algonão é a flor, é uma pré-flor, uma pré-coisa.
Se captarmos isso que desabrocha na flor, mas que não é flor, veremos nossos
próprios olhos desabrocharem, fontanejando, virando visão fontana.[3]
Se
virmos em nossa própria visão o desabrochar da visão que não é apenas a nossa,
seremos capazes de ver que tudo é desabrochar de um desabrochar que nunca
morre. Veremos fontanejar em nós uma “Canção do ver”.[4] A boca que fala
desabrocha, assim como a mão que escreve também fontaneja; igualmente desabrocha
a criança que nasce, o sol que se eleva, o afeto no peito, o conhecimento na
alma. Tudo desabrocha. Mesmo a alma em silêncio tem o silêncio a lhe
desabrochar. Mesmo o homem que morre faz desabrocharem lembranças que dele
teremos. Para quem o crê, o homem que morre desabrocha outra coisa.
Para
os gregos, a physis não é o desabrochar disto ou aquilo, mas o desabrochar que
se expressa nisto e naquilo, e somente pode mostrar-se desabrochando. A physis
desabrocha em cada coisa, desabrochando de si mesma, mantendo ligado a ela o
que dela desabrochou. A physis desabrocha não apenas na rosa, na boca que fala,
na criança que nasce...mas em tudo, no todo. A physis é o desabrochar que
permanece em si mesmo como desabrochar. A physis desabrocha de si mesma e se
mostra em cada coisa que dela desabrocha. Na rosa que desabrocha também
desabrocham a água que ela sorveu, os minerais do solo que ela sugou, a luz que
ela absorveu e também desabrocham através dela os bilhões de anos da terra que
a preparou.
[1] Cf Gerd Borheim, Os filósofos pré-socráticos. São Paulo:
Cultrix, 2001.
Quanto mais lados um polígono possui, mais próximo ele está do círculo. Um triângulo possui três lados, o quadrado possui quatro. O quadrado está mais próximo do círculo do que o triângulo. O hexágono está mais próximo do círculo do que o quadrado. O hectágono, polígono que tem cem lados, está mais próximo do círculo do que o hexágono. O megágono, polígono de um milhão de lados, encontra-se mais próximo do círculo do que o hectágono.Um bilhão de lados possui o gigágono,e isto o faz estar mais próximo do círculo ainda.Mas acima do gigágono existem ainda outros incontáveis polígonos com mais lados ainda, todos se superando em estar mais próximo do círculo.
Um círculo, porém, não possui um trilhão ou um quatrilhão de lados, pois ele simplesmente não possui lados.Por isso, a única maneira de um polígono alcançar o círculo é se tornando um, é coincidindo com ele.Um polígono somente pode alcançar o círculo se libertando do afã de ampliar seus limites, pois é isto o que acontece quando ele aumenta seus lados.Coincidir com o círculo é um deslimite, diria Manoel de Barros.
Comparado com um polígono que tem menos lados, o polígono de mais lados parece que está mais perto do circulo.Mas comparados com o próprio círculo, todos os polígonos lhe estão a igual distância, dado que o círculo é incomparável.
Como o círculo não possui lados, ele está além ou aquém da lógica dos lados e das quantidades. O círculo não tem lados em excesso, tampouco lhe faltam lados.
A inteligência é como o polígono: ela tenta alcançar a Vida aumentando as teorias, tal como o polígono que aumenta seus lados achando que assim alcançará o círculo.Física, química, biologia, matemática, sociologia, psicologia, etc., são os lados do polígono-inteligência. Contudo, mesmo que se aumente indefinidamente a quantidade cumulativa de tais ciências, nunca elas alcançam o todo da Vida, pois este todo é um processo, um devir. Diferentemente da inteligência, o pensamento é como o círculo:sua riqueza e multiplicidade não advém do aumento de teorias.
O pensamento coincide com a Vida.Ele já está nela, e ela já está nele, em sua imanência.No círculo absoluto da Vida , o pensamento , a poesia e a vida são a mesma coisa: produção, poiésis.
O círculo da Vida, porém, não tem centro ou perímetro determinados. Ele é um círculo cujo centro está em toda parte e cujo perímetro não está em parte alguma.
Todos os polígonos estão no círculo, ele que não é teoria, mas ideia ̶ ideia que também é Afeto.
Olhado apenas nele mesmo ( como Natura Naturante, diria Espinosa), o círculo é a coisa mais simples que existe. Porém quando intuímos todos os polígonos que estão compreendidos nele, o círculo nos aparece então como a coisa mais complexa que existe, pois é a mais variada, múltipla, rica, mas sem deixar de ser simples.Todos os polígonos estão no círculo, sem que isto o aumente ou exceda.
Não é aumentando ou diminuindo os lados que um polígono pode coincidir com o círculo.Não é aumentando a inteligência que se alcança a sabedoria, não é contando todas as estrelas que existem no universo que se compreende intuitivamente o que é o céu.Não é meramente aumentando o número de ações que fazemos que nos tornamos ativos, não é proliferando o número de palavras que dizemos que aprendemos a ter o que dizer. Mesmo que tivéssemos um trilhão de dias para viver isto não significaria que , somando esses dias, chegaríamos a viver a eternidade, pois esta somente a podemos viver se coincidirmos com ela.
Um polígono apenas pode coincidir com um círculo na medida em que se liberte do aumentar e do diminuir, isto é, quando não está mais refém da comparação quantitativa. Não é aumentando os lados que o polígono aumenta sua potência. O círculo é a figura de maior potência, exatamente porque esta não aumenta ou diminui, mas é plenamente, afirmativamente.