sábado, 31 de agosto de 2024

Para ser grande

 

Há um poema de Fernando Pessoa no qual ele nos ensina o que é preciso fazermos para “sermos grandes”.

Segundo o poeta, para sermos grandes de verdade não precisamos comprar ou acumular coisas, tampouco ambicionar ser o primeiro lugar em pódios

O poeta diz mais ou menos o seguinte: “Para sermos grandes , devemos fazer como a lua que nunca se recusa a refletir-se inteira na mais simples poça do caminho”.

 A lua é grande porque ela não rejeita a poça julgando-a indigna de receber sua presença: ao contrário, é a presença da lua na poça que dignifica a poça. A lua engrandece a poça sem ser diminuída.

A lua não se reflete pela metade ou em parte na poça, ela se coloca por inteiro, nos ensinando o que é ser íntegra.

 Não é o tamanho daquilo no qual ela se reflete que faz a grandeza da lua, é a grandeza da lua que engrandece a realidade na qual ela se reflete.

A primeira vez que li esse poema foi numa aula de filosofia no antigo segundo grau.

A palavra “afeto” significa: “ser tocado”. Nem tudo que nos toca de imediato e potentemente a gente consegue compreender intelectualmente na hora. E foi assim que fiquei após a leitura: preenchido, mas sem saber pelo quê.

A querida professora que apresentou o poema disse que o sentido dele levaria tempo para se compreender,   e que eu  o compreenderia  quando dentro de minha mente houvesse um clarão. Poemas assim a gente lê para  ler-se.

Já era noite quando saí do colégio . Caíra uma tempestade durante  a tarde . No asfalto ,  aqui e ali , poças que a chuva deixou.

Eu caminhava de cabeça baixa : me pesavam, como chumbo,  as decisões que urgentemente   eu precisava tomar . O vestibular se aproximava , eu queria fazer filosofia, mas  havia o perigo que significava fazer filosofia numa época de chumbo  ainda sob   ditadura militar; também me preocupava   como eu sobreviveria materialmente com filosofia,  eu era  de  família pobre, sem recursos. 

Eu caminhava  olhando para o chão, com a cabeça  tomada  pelo peso dos  problemas, ao mesmo tempo pensando no poema.

De repente,  vi numa poça d’água a lua :  era uma lua cheia indescritível, intensamente  iluminada, linda...

A lua conseguiu abrir  uma brecha entre as nuvens  de chumbo  que ainda cobriam o céu. E de lá do alto ela  me alcançou empregando como meio uma simples poça no chão . Às vezes, realidades elevadas nos alcançam usando como meio as coisas mais inesperadas...

Quando vi a lua refletida na poça, de imediato ergui a cabeça e os olhos em sua direção   , vencendo o peso que mantinha meu pensamento aprisionado no chão.

A lua  horizontava a poça , a transformava num oceano de descobertas  e a fazia de trampolim para meus olhos se alçarem, empoemados.

E foi com os olhos assim que  vislumbrei , apesar da noite, o caminho que eu deveria seguir, pois por dentro me iluminou um clarão.




 Este belo livro descreve o clarão que pode nascer também da leitura de Espinosa:




Hoje, as redes digitais acefalizantes, como as instrumentalizadas pelo Musk, “abduzem” as mentes incautas levando-as a visões de mundo servis. O corpo dessas pessoas está aqui, porém a mente delas é abduzida   pelo tecnopoder algoritmizado que as ausentifica da vida, apequenando-as.  Sobre a “abdução” das mentes pelo uso irrefletido das tecnologias digitais, este livro é uma boa referência ( sobretudo os capítulos “Smartphones”, “Selfies” e “Inteligência artificial”).









quinta-feira, 29 de agosto de 2024

o autoconhecimento em Espinosa

 

Segundo Espinosa , todo autoconhecimento visa conhecer a ideia que somos. A ideia  que somos , porém, não pode ser encontrada ou buscada fora de nós mesmos. Pois se a ideia  que  somos estivesse fora de nós mesmos, como saberíamos se , ao encontrá-la fora de nós, tal ideia seria, no entanto, a ideia de nós mesmos? Ideias que estão em livros entram em nós por nossos olhos , quando as lemos;  ou na voz do professor, quando com ele aprendemos ,  escutando-o. Porém, a ideia que somos não pode estar em livros, por mais instrutivos que sejam, nem na voz do professor , por mais didático que o professor seja.

Então, como encontrar e autoconhecer a ideia que somos? A semente do abacate está dentro da fruta-abacate, e faz da fruta-abacate o que ela é e não outra coisa. A semente que está dentro da fruta-abacate é para ela o mesmo que é para nós a ideia que somos. A  fruta-abacate não precisa sair procurando a semente do abacate fora dela para conhecer-se fruta-abacate.  A fruta-abacate e a semente que está nela não são duas coisas, assim como não são duas coisas, mas uma só ,  a alma e o corpo que fazem ser o que somos. Assim, conhecer a ideia  que somos é conhecer algo que sempre esteve onde estamos : quando temos dificuldade de sabermos o que somos, essa dificuldade não se deve à ausência da ideia que somos , mas devido à ausência de nós em relação a nós mesmos.

Uma ideia nunca vive sozinha, diz Espinosa. Assim , a natureza de toda ideia, inclusive da nossa, é , quando se acha, no mesmo instante compreender-se unida a outras  ideias diferentes dela, tal como a semente do abacate que , sem perder sua singularidade, liga-se à árvore da qual proveio e  à árvore que nascerá dela. Tal como a semente, a ideia que somos é uma potencialidade, e não algo pronto.

Além disso, conhecer a si mesmo não é ensimesmar-se no ego, uma vez que, para Espinosa, conhecer a si mesmo é também conhecer o Infinito do qual somos uma parte, um modo.

Parecendo dialogar com o filósofo, o poeta se (auto)explica: "Poeta é ser que vê semente germinar." (Manoel de Barros)





terça-feira, 27 de agosto de 2024

Ideias, afetos e diamantes

 

Heidegger[1] dizia que assim como muitos objetos que fabricamos e empregamos são feitos de minérios extraídos do ventre da terra , as ideias mais essenciais que pensamos também dependem de um “minério” a partir do qual são criadas e pensadas. Esse “minério” é o Afeto.

Quanto mais valioso é o objeto, mais raro e nobre  é o minério do qual ele é feito. Quanto mais vital e potencializadora é uma ideia, mais singular e raro é o afeto do qual ela proveio. O afeto é o minério nobre do qual são feitas as ideias que nos são  mais necessárias , ideias que também afetam.

Há afetos que são diamantes, cristais, rubis, esmeraldas...Requerem perseverança  para serem extraídos do corpo sensório  enraizado na Vida e aberto ao mundo , à terra. Esses afetos  também requerem lapidação e polimento, trabalho sobre si, como Espinosa polindo com cuidado as lentes de sua mente.

E as ideias que criamos como expressões desses afetos trazem uma característica que as distingue:  elas brilham e reluzem ,  preciosas .



[1] A referência a Heidegger está em:  Byung, Não coisas, pág. 73.




sábado, 24 de agosto de 2024

O cacto

Muito se fala, com razão, das flores. Girassóis, crisântemos, margaridas...Essas e outras flores já foram homenageadas em poemas , músicas e pinturas. Flores também são empregadas como símbolos: o lírio é símbolo da pureza e Iluminação; a rosa vermelha, das revoluções igualitárias.

Mas pouco se fala das flores que o cacto também sabe produzir. Considero essa omissão  uma injustiça com esse artista da resistência. Na dele, sem chamar a atenção ou fazer propaganda de si, o cacto é capaz de atos que expressam  rara beleza e simbolizam  generosidade.

Assim age esse perseverante resistente: o cacto é a planta que possui a maior raiz. Em alguns cactos,  a extensão de sua raiz chega a nove ou dez vezes o tamanho do corpo do cacto que vemos à superfície do chão!

Quem mede o cacto apenas pela sua parte visível, e pensa que a parte que vê é todo o ser do cacto, por certo ignora o que o cacto é capaz de fazer. O cacto cria imensas raízes para sondar o subsolo , não se deixando vencer pela aridez que o cerca. As raízes do cacto tateiam procurando veios d’água metros abaixo da paisagem seca. Ele persevera procurando no coração da Mãe Terra a água que o Céu lhe nega.

Quando encontra a água, o cacto anuncia sua descoberta brotando flores: em pleno árido , ele inaugura uma primavera. Então, ele sorve o líquido e se intumesce , de água fresca ficando grávido. Basta um pequeno furo para a água jorrar matando a sede dos necessitados.

Foram os cactos do sertão nordestino que, no passado, não deixaram morrer de sede a rebeldia de Lampião e seu cangaço ; e a flor que Maria Bonita punha no cabelo também floresceu de um cacto : o mandacaru, símbolo da força do povo nordestino.

O cacto mandacaru expressa a resistência da vida, uma resistência que também se faz com poesia e beleza, apesar da aridez que a cerca. O mandacaru matou a sede de Lampião e deixou a Maria ainda mais Bonita.

Como ensina o grande poeta nordestino: “Quando não pode ser cristal, a poesia vale pelo que tem de cacto.”(João Cabral de Melo Neto)

( e como vimos recentemente na  passagem do inelegível pelo Nordeste, talvez seja  o néctar produzido pela flor do cacto  o alimento  antiautoritário que  nutre as    abelhas nordestinas e as enche de coragem para aferroar e expulsar  os antidemocráticos...)

 



 

 

Uma parceria de Tom Zé, Arnaldo Antunes & Grupo Corpo ( o nome da música é "Xique-xique", um cacto do sertão nordestino) :



  

sábado, 17 de agosto de 2024

Clínicas...

 

Gosto muito da palavra “clínica”, bem como da necessária prática que ela suscita. O sentido originário dessa palavra tem íntima relação com  filosofia ,  artes, educação e até a mesmo com a política. Pois clínica não é apenas algo individual, também há a necessidade de uma clínica coletiva que potencialize a vida digna.

Em seu sentido original, “clínica” significa: “chegar perto”. Não chegar perto por mera curiosidade, mas chegar perto para envolver de cuidados.

O bom médico é sempre um clínico, ao passo que o mau médico mantém o paciente à distância como se fosse   mera “coisa”,  objeto.

Uma filosofia, uma obra de arte , um  gesto ou  uma palavra   se tornam clínicas quando nos auxiliam a nos aproximarmos de nós mesmos: toda clínica cria proximidade.

Criar proximidade não é o mesmo que diminuir a distância no espaço. O telescópio, por exemplo, diminui a distância entre nossos olhos e a lua; porém o telescópio , enquanto aparelho inventado pela técnica, fica entre nossos olhos e a lua, mantendo a lua externa a nossos olhos.

Mas quando lemos num poema a lua retratada em versos, a poesia põe a lua  próxima de nós. Porém é uma lua que somente nossos olhos criativos podem ver, nunca a consegue alcançar um telescópio, por mais poderoso que seja. Não em razão de a lua do poema estar longe, mas sim por  ela estar de nós  próxima enquanto sentido que nos afeta e toca.

A lua do poema fica tão de nós próxima, que experimentamos em nós um devir-lunar que põe amplidão de céu em nós. A técnica mantém a lua como objeto exterior a nós, mas a poesia põe a lua em nós como clínico afeto que ilumina, apesar da noite em torno.

Assim como o poderoso telescópio  James Webb nos faz ver o nascimento de galáxias e  berçários de estrelas, um potente poeta ou filósofo nos faz ficar próximos daquilo que em nós  é um berçário  de possibilidades.

Enfim, arte e filosofia também são formas de clínica. Quando leio Clarice Lispector, por exemplo,  sinto como se ela fosse uma pneumologista que nos ajuda a respirar ar puro vital  para não sufocarmos .

Deleuze e Cláudio Ulpiano são  oculistas que potencializam nossos olhos a verem melhor infinitos mundos, tanto os mundos de fora  quanto os mundos de dentro.

Manoel de Barros e  Fernando Pessoa são cardiologistas que vitalizam o coração que por todo nosso corpo pulsa.

E Espinosa é o clínico geral. Com ele aprendemos que a melhor maneira de vencermos  as  doenças, incluindo as doenças que infestam o  meio político,  não é ficando com medo delas ou as odiando reativamente; a melhor maneira de vencermos toda forma de doença é amando   a saúde, sobretudo a saúde do espírito, e agir a favor dela com a máxima potência que pudermos.

Para a luz dissipar a treva,  basta a luz acender a si mesma.

 



(Imagem: “Noite sobre o Ródano” / Van Gogh).




Na voz de Billie Holiday, a lua fica ainda mais próxima ...

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Espinosa : a essência íntima

 

A essência singular  é definida  por Espinosa como essência íntima ( cf. Deleuze, Cursos sobre Espinosa). Há um íntimo na essência em sua realidade singular; ou melhor, a essência singular é um íntimo  não psicológico. Mas íntimo com o quê? Primeiramente,  com ela mesma, uma vez que a essência é um íntimo, não exatamente um interior. Íntima a si, a singularidade é íntima a Deus, à Natureza.O íntimo não é um dentro, pois em todo dentro há um fundo. O íntimo abra-se a um Fora mais próximo que todo interior. Quanto mais entra neste íntimo, quanto mais o afirma,  mais a essência se torna apta a expressar o exterior. A essência singular conhece o mundo externo não a partir da ação deste sobre ela, pois de tal ação nascem as paixões, que são ideias confusas; a essência singular conhece o mundo externo apoiada  na compreensão da Natureza enquanto produtora da existência dela e  do mundo exterior  : a Potência Produtora da Natureza somente pode ser conhecida do interior , jamais mediante  o padecer de uma ação externa.

A singularidade da essência é um íntimo em relação ao processo que a produz. Este processo não lhe resta exterior, mas lhe é imanente. A singularidade é íntima a um processo eterno de autoprodução. A esse íntimo, porém, poucos têm acesso, uma vez que a maioria vive instalada em uma interioridade meramente psicológica, uma interioridade alimentada pelas imagens, cujo fundo é um buraco negro de ideia fixas e confusas acerca de si, do outro e da natureza. A intimidade psicológica se alimenta de elementos fantasmáticos originados das afecções, cuja externalização assume a forma de confissão ou confidência  privada, feita ao padre, ao psicanalista ou ao amigo de copo. dade psicolerca de si, do outro e da natureza. nterioridade meramente psicol

A essência singular está ligada à existência de partes extensivas exteriores umas às outras, estas lhe pertencem efetuando sua relação característica. Nosso corpo é uma relação de corpos, assim como nossa ideia é uma relação de ideias. O íntimo da nossa ideia é a Ideia da qual ela é uma dobra, um modo. Quanto mais a essência singular se afirma como expressão singular da Ideia, mais ela aumenta a relação de ideias que ela é. Esse aumento de ideias com as quais a ideia singular se relaciona não significa um aumento de dependência dela para com as  ideias com as quais ela se relaciona; ao contrário, esse aumento é de potência: as ideias passam a existir em seu íntimo como potências que multiplicam a sua potência de pensar.

As  partes extra partes não têm íntimo, elas são pura exterioridade, ao passo que uma essência íntima entra em contato  com outras essências íntimas em seu próprio íntimo: cada essência íntima é íntima de outra, e todas são íntimas da Potência que age em seus íntimos, e nunca de fora. Este íntimo das essências íntimas é uma comunidade de essências, conforme nos mostra Matheron.

Para a Natureza, não há exterior.Cada essência singular é um grau diferente dessa Potência. As essências singulares possuem graus de realidade e potência distintos: umas são mais potentes, outras o são menos. Para que uma essência íntima compreenda qual essência singular tem mais ou menos potência que ela, qual lhe é superior ou inferior, é necessário que ela saiba qual sua potência; do contrário, ela poderá imaginar que pode mais do que pode, ou que pode menos do que pode. Para que a essência não caia nessas inadequações, não é preciso que ela conheça, uma a uma, cada grau de potência; na verdade , é preciso que ela conheça a Potência da qual cada essência singular é um grau. Mas para ela conhecê-las, é necessário que ela conheça a si mesma enquanto grau da Potência que possui infinitos graus de realidade e perfeição.

As essências são partes intra partes, íntimos íntimos a íntimos, cada qual aberto à Potência que não possui nada que lhe seja exterior ou que lhe exista à parte. As partes extra  partes constitutivas da existência não existem à parte da Natureza, elas existem à  parte umas das outras: elas disputam, guerreiam , rivalizam, matam-se; e assim  ignoram que são   Obra  do Produtor que só produz Vida.

A amizade e o amor talvez sejam exercícios para viver com outro ser  tal íntimo singular, ampliando-o “horizontalmente”, constituindo o comum produzido pelo bom encontro e que, por sua vez, também produz a este: quanto mais compreendemos nossa essência íntima, mais nos tornamos aptos a fazer bons encontros. Mesmo com aquilo que nos decompõe conseguimos fazer um bom encontro quando de tal ser não ficamos mais  reféns, escravizados; desse modo, para o homem livre tudo é ocasião para ele ser ele mesmo, ao passo que para o escravo tudo é ocasião para ele não ser ele próprio, sobretudo quando ele emite opiniões, e briga por elas, rivaliza e entra em choque tentando impô-la, o que só produz mais ódio e tristeza.  O homem livre será livre mesmo na prisão, ele se apoiará no amor mesmo diante de quem o odeia, e com o amor  vencerá o ódio, a impotência, sem destruir aquele que  sente o ódio  e assim se diminui. É o ódio que precisa ser destruído, não aquele que o sente. Ódio aumenta ódio. Só o amor destrói o ódio. Não o amor àquele que nos odeia, mas amor ao conhecimento que cria uma espécie de escudo que nos protege. A ilusão do passional triste é que ele crê que pode vencer se diminuindo, o que sempre o leva a diminuir tudo. Se ele buscasse se aumentar, sobretudo se aumentar em seu íntimo, não mais dependeria do ódio e da tristeza. Só há a constituição do comum onde se busca o aumentar mútuo, ao passo que o ódio se instala quando um imagina que sobe fazendo descer o outro.

 O comum é um íntimo que duas ou mais essências singulares produzem para si. O sábio é, antes de tudo, íntimo à Natureza: íntimo a si, ele  se torna íntimo a tudo, e é sempre pela amizade e amor que ele aos outros  se liga . Íntimo a si, à sua essência, o sábio constitui sua existência de tal modo que seu corpo exerça ao  máximo o poder de ser afetado de alegria, uma vez que o poder de ser afetado não é se tornar  indiferente ao que nos acontece, mas extrair de cada parte do corpo a compreensão de sua necessidade, o que somente se faz com a alegria do pensar e do compreender. Embora cada parte do corpo permaneça exterior à outra, cada uma delas se integra à essência íntima que compreende o que lhes acontece, impedindo que uma queira dominar ou destruir a outra, de tal modo que o sábio produz amor mesmo onde os outros só vivem o ódio (quando se compreende a causa do ódio, tal compreensão faz nascer um amor: amor não ao ódio, mas à compreensão enquanto potência da alma). Esse íntimo a morte não destrói, pois a morte sempre vem de fora. Quanto mais o sábio afirma e vive conforme esse íntimo, mais ele se torna íntimo de  outros íntimos, e nestes permanece como aquilo que os afirma também. O sábio torna esse íntimo a sua maior parte, de tal modo que é sempre por dentro que ele conhece , e é por isso que não o determinam as imagens, pois é ele que as ordena, e nelas descobre a Graça.




sábado, 10 de agosto de 2024

Música , poesia e não velhez...

 

Caetano fez 82 anos nesta semana. Também já passaram dos 80  Gil, Chico, Tom Zé, Paulinho da Viola e, em breve, Bethânia. O níver de Caetano me lembrou uma história envolvendo o poeta Manoel de Barros.

Quando fez 80 anos,  Manoel recebeu pedido   de um editor para que escrevesse três memórias: da infância, da vida adulta e, sobretudo, da velhice. Aos 80, o editor supunha que o  poeta teria muito a dizer sobre si e aconselhar aos outros, principalmente aos jovens.

Passado algum tempo, o poeta enviou ao editor o primeiro livro: Memórias da primeira infância.  Em todos os sentidos, o livro foi um sucesso. Tempos depois, Manoel enviou novo livro ao editor: Memórias da segunda infância. Como diz Manoel, poesia é saber que      “não vem em tomos” . Assim, a segunda infância não era uma sequência da primeira , não era  uma infância posterior . A segunda infância era uma segunda ida do poeta à infância sempre primeira.

Manoel reservava ainda fôlego para uma nova ida à infância, e assim enviou ao editor um terceiro livro: Memórias da terceira infância.

O tempo passou, o poeta nada mais enviou ao editor, que tomou coragem e indagou: “Poeta, suas três memórias da infância são extraordinárias, porém onde estão as memórias da vida adulta e, sobretudo,  da velhice?”

 Manoel respondeu : “Só tive infância”. E completou: “Nunca tive velhez. Só narro meus nascimentos”.

Essa infância, enquanto antídoto à “velhez”, não é uma determinada idade. Pois ela também é a infância da linguagem, o seu fazer-se novidade para dizer o que ainda não foi dito: “As crianças sabem dizer palavras que ainda não têm idioma”.

“Velhez” também  é quando os dias vividos se tornam um peso curvando as costas, não importando a idade que se tenha. “Velhez”   é a  vida  prostrada, de joelhos, sem forças para caminhar e avançar. Às vezes, é a própria sociedade que sofre de “velhez” : quando seu futuro , ainda nem chegado, já parece extinto...

“A única coisa que carrego é meu chapéu: moro debaixo dele”, explica-se o andarilho-poeta. “Chapéu” é como Manoel nomeia as ideias que protegem os pensamentos que dão caminho às pernas : “O poeta-andarilho abastece de pernas as distâncias”. Sobre o  chapéu do poeta  um casal de pardais fez ninho: há nele ovos sendo chocados, assim como ,  dentro do poeta, auroras .

Manoel e  Caetano nos ensinam que a velhice nada tem a ver com a velhez. E que criatividade e potência de vida não dependem da idade, desde que se descubra o que na criatividade há de absoluto. “Ab-soluto”: “o que não é soluto, o que não se dissolve”.

Fascismo ,  ignorância e  idiotia são reatividades da velhez que a tudo quer dissolver com seu negacionismo. Mas arte, criatividade, educação....são potências críticas e criativas que tornam a vida absoluta nas ideias que aprendemos e ensinamos, nos versos que lemos ou escrevemos, enfim, nas canções que, juntos ou sozinhos, cantamos.




 




“As coisas migram e ele serve de farol..”

terça-feira, 6 de agosto de 2024

a filosofia e seus fundamentos

 

Uma das ideias principais da filosofia é a de Fundamento. Cada período da filosofia afirma e se apoia em um Fundamento. Tanto na filosofia grega clássica como na filosofia medieval o fundamento tinha por referência a noção de Objeto[1]. Exatamente por isso, o método filosófico em ambos os períodos era a Contemplação. “Con-templar”: entrar no “templo” enquanto morada do divino.  Em Platão, o divino são as Ideias: são as Ideias o Objeto da razão. É das Ideias que irradia a luz que ilumina os “olhos da razão”, possibilitando assim o conhecimento da Verdade. Esse Objeto do Pensamento é transcendente em relação ao mundo sensível que nosso corpo tem acesso.  

Podemos apresentar a seguinte fórmula para representar o processo de conhecimento na filosofia grega : O → s. A ênfase repousa no Objeto , e por isso está escrito com “O” maiúsculo  : é dele que parte a seta do conhecimento e atinge o sujeito[2], que é escrito com “s” minúsculo em razão de ele não ser o polo principal do processo.

No mundo dos Objetos Transcendentes ( o Mundo das Ideias) de Platão, existe o Homem, a Árvore , o Animal , etc., como Objetos do conhecimento. Contudo, como cópias desses Objetos Transcendentes existem os objetos com “o” minúsculo, que são aqueles que percebemos com nossos órgãos da sensibilidade: este homem, aquela árvore, aquele animal... Estes objetos com “o” minúsculo são como que duplos imperfeitos, ou meras aparências,  dos Objetos com “O” maiúsculo, estes sim os verdadeiros Objetos do conhecimento, pensava Platão.

Quando passamos para a filosofia moderna o polo se inverte: a ênfase agora estará no Sujeito, escrito com “S” maiúsculo. O método filosófico desse período também se altera: não mais a contemplação , mas a reflexão. Enquanto que na contemplação a Razão buscava fora de si o seu Fundamento, na reflexão ela encontra em si mesma, em seu interior, o Fundamento que lhe serve de alicerce. A reflexão é um “dobrar-se sobre si”. Por exemplo, é mediante o método da reflexão que Descartes encontra no interior da Razão as “Ideias Inatas”, que não vieram da experiência e nem foram adquiridas. E são elas, as Ideias Inatas, a base da filosofia e da nova ciência que surgem na modernidade.

A fórmula da filosofia moderna pode  ser  assim apresentada : S → o[3] . O “S” maiúsculo representa a ênfase no Sujeito ( a “res cogitans” de Descartes, ou a “Razão Transcendental” de Kant) , ao passo que o objeto passa a girar em torno do Sujeito , e por isso sua grafia com “o” minúsculo. Em Kant, por exemplo, o “objeto” se torna mero fenômeno: aquilo que aparece para o Sujeito e é determinado pelas Formas interiores ao Sujeito ( Tempo, Espaço e Conceitos).

Contudo, assim  como o Objeto na filosofia antiga pressupunha um duplo ou cópia representado com “o” minúsculo, na filosofia moderna surgirá um sujeito com “s” minúsculo, um sujeito empírico fenomênico.[4] Será esse sujeito com “s” minúsculo o suporte dos sonhos, dos desejos, das “paixões”; também é ele que está submetido ao tempo e ao espaço, unido que está , de forma indissociável, ao corpo.

Na filosofia contemporânea essa fórmula entra em crise e, com ela, a ideia mesma de Fundamento. Freud, por exemplo, apontará que existe um “isso” ( o “id” ou “inconsciente”) que escapa totalmente ao Sujeito e o determina. Marx, por sua vez, mostrará que esse Sujeito com “S” maiúsculo nada mais é do que uma construção ideológica representando o sujeito burguês. Inspirando-se na famosa “dialética do senhor e do escravo”,  de Hegel, Marx argumenta que essa relação entre Sujeito  ( com “s” maiúsculo) e sujeito ( com “s” minúsculo) encobre uma luta de dominação que impede que o trabalhador ( que é historicamente excluído do lugar de “Sujeito do Conhecimento”) se veja como classe , para assim reinventar novas formas e processos de conhecimento.

Mais recentemente, o Estruturalismo também pôs em crise a ideia de “Sujeito”, enfatizando a noção de “estrutura” como instância que determina o sujeito .

Em Deleuze, noções como “rizoma” , “agenciamento”, “multiplicidade” , o par “virtual-atual”, também escapam àquela fórmula cujos polos são Sujeito e Objeto. Ao trazer a questão do Ser, Heidegger também se move em um espaço de pensamento que não se deixa reduzir às noções de Sujeito ( o “dasein” não é um Sujeito) e Objeto ( o “Ser” não é um Objeto).

Mas essa “crise dos Fundamentos” também pode significar um novo horizonte ( de problemáticas, de questões, de temas...) para a filosofia, retirando a referência exclusiva à Grécia e à Europa, e a (re)conectando com filosofares produzidos na África, no Oriente e na América Latina. Não por acaso, um  dos capítulos norteadores do livro O que é a filosofia?, de Deleuze & Guattari, tem exatamente por título “Geofilosofia”.






[1] Na filosofia medieval esse “Objeto” é Deus ( daí a subordinação , naquele período, da filosofia  à teologia).

[2] Na Grécia Clássica ainda não havia a ideia do sujeito como polo principal do conhecimento: toda a ênfase recaía no Objeto: Ideia, para Platão; Substância, em Aristóteles. Para saber mais: “Esboço da vontade na tragédia grega”, Jean-Pierre Vernant ( capítulo do livro: Mito e tragédia na Grécia Antiga).

[3] Contudo, essa fórmula não se aplica , por exemplo, a Espinosa ( o que revela sua atualidade). Em Espinosa,  o Fundamento também é o Objeto: a Natureza enquanto Potência Absoluta . Porém, esse Objeto não é Transcendente, ele é Imanente, sendo o sujeito uma parte , expressão, modo ou maneira de ser da Natureza

[4] Uma excelente introdução a esse assunto é o texto de Foucault “O empírico e o transcendental”, capítulo do livro As palavras e as coisas.

sábado, 3 de agosto de 2024

o passarinho-utopia

 

Ouvi essa história  numa belíssima aula de filosofia do saudoso professor Cláudio Ulpiano, quando eu era seu aluno . Cláudio nos explicava que  o tordo é um passarinho canoro possuidor de três tipos de canto.

 O primeiro ele canta quando quer marcar um território. Nesse caso, sempre acontece uma disputa, com dois ou mais tordos  rivalizando pelo  mesmo território. Sem precisarem brigar , o tordo de canto mais potente vence e toma conta   do território, sem que os outros tordos fiquem  ressentidos ou queiram se vingar.

O segundo canto o tordo canta quando deseja conquistar uma fêmea. Esse segundo canto é mais harmonioso e sutil,  entremeado por silêncios eloquentes acompanhados de posturas sedutoras. Mas no final é sempre a fêmea que escolhe qual tordo será seu companheiro amoroso.

O terceiro canto o tordo canta em dois momentos do dia: quando o sol nasce e quando o sol morre . Na aurora, é canto de boas-vindas; no fim da tarde, é canto de despedida.   É um canto de gratidão ao sol: quando o sol se vai, por ter havido aquele dia, não importando  o que nele aconteceu;  e quando um novo sol chega, por trazer com ele um novo dia.

 Enquanto os galos cantam apenas  o dia que vem,  o  tordo também canta grato à vida  que recebeu do dia que  vai, como os estoicos nos ensinando o  “Amor Fati” .

O canto de território e o canto amoroso  são explicáveis pelo instinto  ,porém o misterioso terceiro canto parece ser movido por um afeto que vai além dos limites orgânicos do instinto, como se o tordo  desejasse  um território e amor infinitos, e seu canto fosse um poema que nos conduzisse  à utopia, transportando-nos como só a arte nos transporta e salva.

 Nesse terceiro canto, o tordo sobe  ao galho mais alto da mais elevada árvore de seu território ,  para assim horizontar sua visão  e de lá cantar às cores e luz  do sol ,  fonte da Vida.

Esse terceiro canto, porém,  coloca o tordo sob perigo. Pois nesses períodos fronteiriços entre o dia e a noite a soturna coruja fica alerta , à espreita para ver onde está o tordo e  fazê-lo de   presa .

A mesma arte  que  singulariza o tordo, também o põe à  mostra. Porém, mesmo correndo riscos,  o tordo não se esconde ou  cala : ele persevera no seu cantar à vida , com o máximo de potência que pode.

 

“Inventar uma tarde a partir de um tordo”.( Manoel de Barros )

 

“Não há nunca outro critério senão o teor da existência,

a intensificação da vida”. ( Deleuze & Guattari, “O que é a filosofia?”)


"As coisas  da arte são sempre resultado de ter estado a     perigo, de ter ido até o fim em uma experiência, até  um    ponto que ninguém consegue ultrapassar".  (   Rilke )

 

( Imagem: “Passagem” ou “Transportado pelo passarinho-utopia” / escultura de Fredrik Raddum)

 


 


Neste breve vídeo, o grande maestro e compositor Messiaen vai à floresta para ouvir e anotar o canto de um tordo, com o passarinho  aprendendo . No vídeo, ele se refere ao canto do tordo como um canto "imperioso de grande autoridade", autoridade no sentido de algo que se impõe não pela força física, mas pela presença de sua potência criativa e afetadora.