quarta-feira, 30 de setembro de 2015

fantasia, inventividade, criatividade e imaginação

          



As ideias estão no chão:
a gente tropeça e acha a solução.
Titãs

Sonhar é acordar-se para dentro.
Mário Quintana


Eu simplesmente sinto
com a imaginação.
Não uso o coração.
Fernando Pessoa
                                                                                               



Filósofo, artista plástico, arquiteto , pensador da linguagem visual ...Bruno Munari  é múltiplo, heterogêneo, por formação e questões. Ele consegue falar de coisas múltiplas porque ele é, de corpo e espírito, múltiplo, heterogêneo. Somente os múltiplos, plurais, conseguem ver o heterogêneo e, didaticamente, nos ensinar a também vê-lo e, quem sabe, nos vermos igualmente  como parte da heterogeneidade que é a vida, desde a vida social até a vida mental, passando pela vida cósmica, natural e ,também, pela vida multifacetada que é a comunicação.
Nesse caminho, algumas ideias se apresentam e se impõem. São ideias que a academia tem dificuldade de pensar, embora tais ideias estejam tão vivas nos artistas, poetas e conceituadores em geral, movendo fortemente aquele que cria, que experimenta, que pensa,  enfim, aquele que não apenas teoriza ou que tão somente  faz, mas que pensa o que faz, que faz o que pensa e que, sobretudo, sente o que faz e o que pensa, posto que também acredita, crê, na potência de criar e inventar, com todos os riscos que isso envolve, pois nada mais arriscado do que ousar  singularizar-se, construir um estilo.
Esse pensador múltiplo, heterogêneo, exerce a arte das distinções e sutilezas. Pois é isto que é encontrar a essência de algo: estar atento aos pequenos movimentos que alteram uma coisa e a fazem se transformar em outra, seja essa coisa que muda uma ideia, uma cor, um espaço ou uma pessoa. E não há como compreender a mudança sem compreender onde a mudança nasce, onde ela é produzida.
Falar em mudança é evocar quatro termos: fantasia, inventividade, criatividade e imaginação. Não raro, tanto na teoria acadêmica quanto no senso comum há confusão acerca do significado desses termos, que são realmente próximos, porém diferentes. Munari não deseja dar uma resposta definitiva sobre esses temas; ele fabrica e maquina  uma perspectiva, uma proposição.
Fantasia envolve o que não existe, e que nunca existirá ou será real, mas que pode ser pensado e “visto” pela imaginação. Nosso pensamento por vezes se torna o útero de seres que só existem nele, que encontram no próprio pensamento seu alimento, sua paisagem, seu mundo. Quanto mais fantasioso é um pensamento, mais o comportamento daquele que o tem tende a ser pouco compositivo, pouco agenciador. Quando a fantasia prepondera de maneira exagerada ou mórbida ,instala-se uma ruptura entre o pensamento que fantasia e  o mundo : o próprio pensamento se separa da sua expressão motora associada a uma situação cotidiana. Nesses casos,pode-se evidenciar um isolamento que, por vezes, poderá ser também manifestado de forma violenta ou agressiva, ou então catatônica, melancólica. Não por acaso, de "phantasia" nasce o termo "phantasma"...A produção fantasiosa mais típica é o sonho noturno, aquele que temos de olhos fechados,  à noite. Freud chega a dizer que todos nós, durante quase 1/3 do dia, exatamente quando dormimos e sonhamos, durante essas horas somos "loucos", pois a loucura que vemos no chamado “doente mental”  é um sonho de olhos abertos. Esta é a característica da fantasia: um sonhar de olhos abertos, mas sem saber que se sonha.Quando está sob o domínio de um forte ciúme , o ciumento fantasia e passa a crer no que fantasia, deixando-se levar pelo que somente existe em seu pensamento. A criança também fantasia haver um monstro debaixo da cama, e isso a fará tremer de medo real, embora não exista o monstro a não ser em sua mente (mas se a criancinha, brincando, finge que ela ou o pai são um  monstro, isso não é mais fantasia, isso é criatividade, que é a base da fabulação/criação literária...A criatividade não é um sonho de olhos abertos, mas um abrir os olhos da imaginação para ver diferente o que chamamos de realidade).O sonho é fantasia...Essa fantasia é inacessível ao outro:  somente podemos comunicá-la com palavras, depois que acordamos, embora nunca a narrativa verbal consiga alcançar o que foi de fato o sonho. A fantasia nasce dessa pátria inacessível, incognoscível , e que é para as imagens mentais o que o sol é para os dias.Vivemos sob o dia, nascemos para ele e nele vivemos, mas ninguém pode viver lá no sol, diretamente sobre ele.
Inventividade é o que não existe, mas que pode se tornar real do ponto de vista técnico. O automóvel, por exemplo, é uma invenção. Antes de existir como objeto ou coisa, o automóvel nasceu como uma ideia ainda confusa, não ainda individuada e separada de uma névoa espessa que o envolvia dentro do pensamento de seu inventor.Assim como a fantasia, a invenção nasce do pensamento. Porém enquanto a fantasia vive refém do mundo onde nasce ( podendo ela mesma tornar refém dela o pensamento de onde nasceu), a inventividade inventa coisas que logo farão parte do mundo, serão objetos que despertarão o desejo e os valores do mercado, de tal modo que o próprio mundo poderá esquecer ou ignorar que foi do pensamento inventivo que tais coisas nasceram.
Já a criatividade é o que não existe também, mas que pode se tornar real do ponto de vista artístico, simbólico, humano. Por exemplo, um poema, um quadro, uma música, etc., são frutos da criatividade. Onde viviam os girassóis de Van Gogh antes de este os pintar? Viviam nos campos? Se eles existiam em algum lugar, esse lugar não poderia estar separado do ser inteiro de Van Gogh, inclusive de seu corpo, de seu inconsciente. É por isso que os girassóis pintados são também Van Gogh - renascido, reinventado, tornado tinta e durando como sensação materializada em cores. Se Van Gogh não os passasse para as tintas, tais seres de sua fantasia morreriam quando morresse o ser pessoal de Van Gogh, e ninguém os teria conhecido, visto, experimentado...E , dessa maneira, não saberiam que neles também há o mesmo jardim, “Jardim das Delícias”, onde germinam girassóis e outras flores, mesmo que flores do mal, como as que cultivava Baudelaire.
Os frutos da inventividade e da criatividade nascem de uma árvore: o pensamento. Todavia, as raízes dessa árvore não estão fincadas no “Ser”, como pensava Descartes, o racionalista. As raízes dessa árvore estão suspensas, não se agarram a nada,  a não ser em si mesma.Aristóteles dizia que Deus é um Pensamento que se Pensa, um Pensamento que é sua própria realidade, uma Realidade Perfeita. Mas esse Pensamento Perfeito, exatamente por sê-lo, somente pode existir fora da matéria, da mudança, do devir e das imperfeições da existência no tempo. Não é esse o pensamento do qual nascem a inventividade e a criatividade. Não se trata do  pensamento racional, reflexivo, lógico. Esses aspectos do pensamento se voltam para fora, para a conquista do mundo externo. Mas há uma parte do pensamento que nunca se volta para fora: ele se volta apenas para si mesmo, numa espécie de narcisismo absoluto, como uma ostra na qual muitas vezes as próprias pérolas apodrecem sem ninguém as conhecer, e sem que elas mesmas conheçam a luz do sol (embora esse mesmo mundo interior por vezes tenha um sol tortuoso, fantasmático, como os que brilham em Turner , Munch ou Goya) . Nesse sentido, tal pensamento não é totalmente “do” homem, é um pensamento da vida em seu impulso  para afirmar-se. E esse impulso, mais inconsciente do que consciente, precede a prática consciente do conhecimento da chamada "realidade objetiva".
A fantasia permanece enredada nesse mundo, ao passo que a inventividade e a criatividade nascem dele, vindo então para fora, para o mundo, o enriquecendo, mudando, alterando. Inventividade e criatividade  também podem se combinar. Por exemplo, a tecnologia de hoje às vezes contribui  para  aumentar a riqueza criativa do cinema, ao mesmo tempo que muitas obras criativas inspiram inventores na produção de objetos tecnológicos.
 Todavia,  os homens se esquecem que tudo o que hoje domina a vida, sobretudo os aparatos tecnológicos, nasceram de uma nebulosa inextirpável instalada no coração do homem, que é a fonte de toda invenção.É por isso que tudo aquilo que é fruto da invenção, como a tecnologia de um automóvel ou computador, por exemplo, pode virar um objeto fantasmático da fantasia, de tal modo que o homem procurará nessas coisas uma satisfação alucinatória para questões que são de outra ordem, de ordem afetiva.Assim, o capitalismo vive de usar a invenção e a criatividade para pô-las a serviço da fantasia de um homem cada vez mais pobre de inventividade e, sobretudo, de criatividade, pois estas se tornaram capturadas pelo próprio sistema capitalista, em um circuito que se retro-alimenta, narcisicamente. Aliás, o próprio capitalismo tem sua fantasia: ser o sistema definitivo da sociedade humana, e que nenhum outro sistema poderá suplantar. Enfim, o delírio do capitalismo é se achar a própria natureza.                                                             
E a imaginação?Fantasia, inventividade e criatividade são pensamentos indeterminados, não formados ainda. Já a imaginação é uma percepção, uma ação de ver imagens. Ver imagens, e não coisas prontas. Ou melhor, ver a imagem como uma coisa. Quando Da Vinci quis inventar o protótipo do helicóptero, passando a desenhá-lo no papel, tal ser não nasceu no desenho apenas, pois antes de desenhá-lo o inventor já imaginava tal helicóptero sob a forma de uma imagem que sua imaginação via. Antes de criar um poema, a imaginação do poeta vê cada verso através de sua imaginação criativa. O músico também vê a música no sentido de ter um percepto ( o “ver” aqui não é apenas visão restrita aos olhos).O inventor inventa realidades tecnológicas novas, o artista cria sentidos novos para as coisas. O inventor e o criador adquirem a capacidade de ver coisas que ainda não existem, a não ser no próprio pensamento que as concebe.
Mas nem todas essas coisas assim vistas se tornam realidade. A fantasia, por exemplo, nunca pode se tornar real: ela não pode ser inventada ou criada, e é por isso que o risco da fantasia é quando ela se torna mórbida, e aquele que fantasia crê que o imaginado é real, entrando assim no delírio. O delírio mórbido não é, como se imagina, uma exacerbação da imaginação, mas tão somente a sua cegueira, a sua incapacidade de ver a fantasia como fantasia, tomando-a como realidade.O surrealismo não é o delírio restrito a uma subjetividade , mas imaginação que , artisticamente, cria imagens surreais. A fantasia é individual e sempre permanecerá individual. A inventividade e a criatividade nascem de uma subjetividade individual que, através da imaginação, torna coletivas suas produções.Nise da Silveira conseguiu tirar os loucos que ela tratou da fantasia louca que os dominava e os fazia sofrer. Pintando, esculpindo, os loucos começaram a despertar os olhos da imaginação artística, de tal modo que eles se tornaram  capazes de diferenciar o que fantasiavam do que pintavam, criando a noção de que o que pintavam era arte, e que o que fantasiavam era uma incapacidade de criar, inventar, viver.Pode haver, e quase sempre há, tristeza e melancolia nas fantasias, dado a expectativa seguida de frustração que as acompanha; mas o que distingue a criatividade é sempre a alegria: alegria espinosista de aumentar o poder de agir, o sentimento de existir.
A imaginação vê o que a inventividade e a criatividade apenas pensam de forma  indeterminada, sem ter ainda existência. Assim, pela prática da imaginação inventamos ou criamos, e dessa forma aumentamos o que chamamos de realidade. “Inventar aumenta o mundo”, já dizia o Manoel de Barros.Não existe uma oposição entre realidade, criatividade e invenção, a não ser para aquele que tem a imaginação muito embotada. Mesmo a ciência precisa da inventividade e da criatividade; logo, da imaginação.
 Uma exposição, por exemplo,  tem frutos da inventividade técnica ( luminotecnia, design, arquitetura, dispositivos tecnológicos, cenografia) e da criatividade poética. Ela é a combinação dessas duas atividades da imaginação orientadas pelo saber-fazer museológico-museográfico.
Assim, criar e inventar não é apenas fantasiar. Contudo, não há como se erradicar da alma humana a fantasia , e  nem se deve querer   isso.Todas as crianças nascem muito fantasiosas. Entretanto, para elas se tornarem inventivas e criativas são necessárias outras coisas. A fantasia se confunde com a própria liberdade subjetiva da alma.  Os inventores e criadores das mais diversas áreas são aqueles que não apenas fantasiam, como fazem os neuróticos que consomem artes meramente escapistas ou clicherosas, ou então os psicóticos fechados em seu mundo, pois suas atividades criativas e inventivas (re)inventam e (re)criam sentidos para o que chamamos de realidade, que nada mais é do que aquilo que fazemos dela. A fantasia às vezes pode se transformar em fuga da realidade, ao passo que a criatividade e a inventividade são práticas de mudar uma realidade, vislumbrar outras, enfim, tornar o impossível possível. Ou ao menos tentar, ousar, propor.
Talvez a maior fantasia, a mais perigosa, seja aquela que , ignorando-se, se toma como a própria realidade em si, como  “objetividade ou essência das coisas”,  passando a se impor como modelo àquilo que dele se difere, tentando submetê-lo ou destrui-lo. Tal é a fantasia do “Poder”, da “Verdade”, da “Pureza”. Quando isso acontece, tal fantasia poderá se armar com os frutos da inventividade, como as tecnologias. Não nos esqueçamos que “leis” e “livros” também são frutos da tecnologia, ou melhor, são tecnologias  jurídicas e intelectuais. Muitas leis e livros se colocam a serviço de fantasias fascistas ou assemelhadas.Contudo, a parte que sempre resiste é a da criatividade. Hitler, em sua fantasia, sonhou ser um grego. Ele empregou a inventividade da tecnologia bélica e arquitetural para construir para si uma Nova Atenas. Mas a criatividade grega não nasce do mármore, e sim do pensamento livre , democrático, poético. Há na criatividade  um elemento de resistência que nos livra das fantasias que põem em perigo a pluralidade da realidade.  A fantasia mórbida pode escapar de uma subjetividade louca , configurar-se como especulação política, moral ou mesmo religiosa, propagar-se por outras subjetividades com o auxílio de tecnologias e inventividade, também as tornando loucas, mas de uma loucura que se quer “normal”. Quando isso acontece, não será tolerada a criatividade; ou esta , se tolerada, será reduzida ao clichê de si mesma. Por que isso? A inventividade produz apenas coisas; e as coisas , por não possuírem desejo, podem ser empregadas a serviço de uma fantasia mórbida que obtém poder, ao passo que a criatividade inventa ideias, e estas são a saúde do pensamento.Em todo totalitarismo , não importando se político , comportamental ou acadêmico,são sempre os criativos os que sofrerão as maiores consequências.E são sempre eles, e neles, que nascem e perseveram as resistências.
A  mentira, por exemplo, lança suas raízes na fantasia, ocultando realidades; já a criatividade produz a ficção como perspectiva sobre uma realidade.Através dessa perspectiva criada,porém, aprendemos sobre a realidade, inclusive acerca da realidade da própria linguagem. E nesse aprendizado aprendemos coisas que a mera razão não sabe...
A lição da criatividade é nos tornar criativos, e para isso não existem regras ou cartilhas. Supor que se aprende a ser criativo  lendo cartilhas é fantasia de uma pedagogia sem imaginação. É nos tornando criativos que  aprendemos, criando,  o sentido singular, às vezes estranho, da realidade intangível do próprio pensamento.

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Nota sobre a ideia de fantasia na filosofia


Pensai que tudo o que pode alcançar-se por vias químicas 
é acessível por outros caminhos...
...Oh psicodelia.
Deleuze

David Hume, o filósofo empirista, dizia que as ideias nascem das sensações. Não há  ideia que não tenha nascido da sensação. Depois, ele precisa seu pensamento e diz: não há oposição entre a ideia e a sensação, pois a ideia nada mais é do que uma sensação enfraquecida, desvitalizada. Mas quando a ideia “entra” em nossa mente ela não penetra em uma casa vazia. Nossa mente não é uma casa vazia. Assim como uma casa pré-determina o percurso que faremos dentro dela em razão dos compartimentos ou cômodos que ela tem, quando a ideia entra em nossa mente ela se submeterá a certas exigências da nossa mente.
Nossa mente não consegue, por sua natureza, lidar com duas  coisas: o imprevisível e o caos. E aqui está o problema: a origem das ideias, segundo Hume, é imprevisível, pois vem de algo que existe fora da mente. Então, para controlar essa natureza imprevisível e caótica da ideia, a mente tem uma arma: as regras. É com as regras que a mente luta contra o caos das sensações e com a imprevisibilidade de tudo o que existe fora dela e que ela não tem como dominar, dado que a mente se percebe existindo em um mundo que não depende dela para existir, embora ela precise desse mundo para ser uma mente, apesar de ela não saber o que esse mundo é em si. Para proteger-se do caos, para não ser ela própria um, a mente se arma com regras. Estas não legislam sobre as coisas tais como elas são, elas se aplicam apenas às ideias, que são a existência mesma, porém enfraquecida. Digamos que a ideia não é o corpo que a roupa veste, mas a roupa sem o corpo. Deste ela mantém apenas a forma, o vestígio, a semelhança. As regras da mente apenas valem para o caos que se enfraqueceu e se tornou ideia, mas nunca as regras poderão um dia transformar totalmente o caos em objeto transparente às regras de nossa mente. Todavia, como a existência humana se dá na superfície das coisas, e não na sua profundidade , as regras modelam nosso mundo, e cremos que nosso mundo é “o” mundo.
São três as principais regras que constituem nossa mente, e por meio das quais a mente conformará as ideias: causalidade, identidade, espaço/tempo.Fora da mente não existe causalidade, identidade, espaço e tempo. Porém, essas regras são “vazias”. Para elas ganharem vida, elas precisam ser preenchidas com um conteúdo,  esse conteúdo são as ideias. É aqui, e não antes,  que surge a  percepção. Ter percepção não é a mesma coisa que ter sensações. Estas antecedem aquela. As sensações são as ideias mesmas.  A ideia  é , ela mesma, uma sensação que se enfraquece e deixa de ser o que ela é para se transformar em outra coisa dentro da mente, quando então a sensação enfraquecida se conforma às exigências de haver regras, causas, identidades, sucessão temporal e contiguidade espacial. Nela mesma, a ideia é a sensação mesma, e esta não é uma coisa.Então, a ideia não é ideia de algo, mas enfraquecimento de algo que se torna então ideia, e como  ideia pode entrar em uma mente e ser regrada, tornando-se assim representação de uma coisa, de um  objeto.Quando a sensação enfraquecida é “domada” pelas exigências da mente, somente aí nasce o que chamamos de “percepção”:  percebemos então uma cadeira, um homem, uma coisa, enfim, percebemos o que julgamos ser “a inquestionável e sacrossanta realidade cotidiana”, que somente os filósofos, os loucos e as  crianças teimam em não aceitar como óbvia, natural. Além disso, a ideia que nasce da sensação é sempre ideia singular,simples, ao passo que, submetidas às regras, as ideias simples se unem a outras, formando ideias compostas. “Cadeira”, por exemplo, é uma ideia composta de outras ideias. Tudo o que percebemos , e que chamamos de realidade objetiva, são já ideias compostas, isto é, ideias que se unem a outras segundo a regra da identidade, sobretudo.
 Nossa percepção é construída, não é natural. As regras da mente são projetadas para fora como se pertencessem à  própria natureza das coisas. As regras da mente não são individuais, e nem apenas biológicas. Segundo Hume, o natural e o social se confundem. O que hoje julgamos natural não o era para os homens de sociedades passadas. E o que hoje julgamos natural  não o será para as sociedades que virão. O homem medieval julgava que a bruxa era a causa da peste. Hoje o homem julga que são os germes a causa. Há algo em comum entre o medieval e o homem de hoje: a crença na ideia de causa. Talvez, quem sabe, no futuro se julgue que as doenças têm outras causas, mas ainda assim haverá a crença de que há uma causa. Essas regras valem não apenas para o âmbito do conhecimento, elas valem também para o mundo das práticas.Por exemplo, em toda época, em qualquer sociedade, os homens sempre acharam que a felicidade tem uma causa. Para alguns, a felicidade estava na contemplação do Bem; para outros, na posse de muitas mulheres; há ainda os que dizem que a causa está no acúmulo de bens. A ideia de causa define o que os homens acreditam ser  “o normal”.O que caracteriza toda época é que cada época julga ser sua normalidade o normal de todas as épocas.E a época mais terrível é aquela que julga que todas as épocas  que a antecederam eram apenas esboços para se chegar a ela, e que ela é a época definitiva, além da qual não haverá nenhuma outra, pois ela é  o próprio "fim da história".
O artista, porém, parece escapar do mero domínio das regras da mente, e é por isso que ele é um extemporâneo, alguém que escapa aos determinismos comportamentais de sua época histórica.Mais do que histórico, o artista é um devir. Nunca o artista se contenta com a felicidade dos “normais” de sua época histórica, sobretudo com a felicidade e sucesso daqueles que são considerados os "artistas normais " de sua época, os quais a mídia explora e vende.Ele quer ir além das regras da mente, para assim viver/experimentar o perigoso lugar onde as ideias nascem. Ou melhor, ele quer fazer o caminho contrário ao das ideias. Estas nascem das sensações, elas são as sensações mesmas, porém enfraquecidas, e que se tornam ideias dentro da mente, ou “representações” das coisas que imaginamos perceber fora de nós como "mundo objetivo". O artista desce o caminho , ele o refaz. Primeiramente, ele precisa abandonar a certeza lógica e social das regras. Ele precisa vencer a causa, duvidar das identidades...E não raro esse “vencer” toma ares de perda, de fracasso, de insucesso ( para aqueles que vencem graças às identidades, às causas e aos valores dominantes de dada sociedade). Tampouco o  artista  é um refém da fantasia que torna a mente paralela ( “esquizo”) à realidade, pois ele vai além da mente socialmente conformada, ele busca o ponto que antecede o enfraquecimento da ideia, pois ele quer a potência, ele quer a vida mais viva, mesmo que para isso lhe faltem ideias.
Ele sai da representação, e segue a ideia em direção ao seu nascimento, ele quer ver onde ela nasce: saindo da casca oca do universal,  ele vai ao singular...Retirando a roupa, ele quer ver o corpo nu das coisas.À medida em que ele se aproxima do singular, a sensação vai ganhando força, existência, intensidade....E quando  chega nesse ponto,  ele faz a mais estranha das descobertas, uma descoberta alucinante, fantástica, que desarma  nossa mente lógica e suas regras, tanto as regras lógicas quanto as sociais. O artista descobre que seu caminho de ir para fora da mente é, ao mesmo tempo, uma vereda para se aprofundar ainda mais dentro da mente....E que a origem da ideia é a origem da própria mente.Ou seja, não há origem como ponto inicial , há apenas meio , processo. Somente quando a mente está sob regras, socialmente determinada, é que ela tem a ilusão, ilusão científica e do senso comum, de que existe uma oposição entre a mente e uma realidade pronta que existe fora dela. Contudo, quando o artista explora e se explora, ele descobre que o extremo do mundo externo  e o extremo do mundo interno se tocam e embaralham suas fronteiras, formando assim uma terra incógnita.E o que vemos aí? Não vemos mais regras.
Qual o valor das regras? Estabelecer critérios para a combinação ou síntese das ideias. Por exemplo, pela regra da causalidade estabeleço uma conexão entre duas ideias: vejo a ideia de calor, depois percebo a ideia do evaporar, e sintetizo uma ideia com a outra, emitindo um juízo: “o calor é causa da evaporação(efeito)”. Quando vamos a esse ponto obscuro onde mente e matéria  são indistintos, as  ideias não deixam de se combinar, porém elas se combinam aleatoriamente, sem regras. Tudo se torna possível....Torna-se possível uma pedra falar, uma serpente voar, uma nuvem ter olhos...Segundo Hume, esse é o mundo da fantasia. A fantasia é uma combinatória sem regras. Logo, a mente não tem o poder de controlar e regrar a fantasia.E é isto o caos: não a desordem, mas uma combinatória de elementos sem a menor causalidade, sem a menor identidade, sem antes, durante ou depois, ou sem estar em algum lugar.
Phantasiaphantasma. Na mitologia havia um personagem chamado Phantaso, que era o ser responsável pela produção  das imagens do sonho.Da mesma raiz vem o termo “fenômeno”: aquilo que aparece. No sentido filosófico, a diferença entre fantasia e fenômeno está no fato de que o fenômeno aparece para a consciência desperta, ao passo que a fantasia aparece para a consciência adormecida, sonhante. Logo, é a consciência, ou mente, que difere fantasia e fenômenos. Neles mesmos, se retirarmos a relação que eles estabelecem com a consciência, não existe diferença entre fantasia e fenômenos. Para a fenomenologia, por exemplo, fenômeno é tudo aquilo que aparece para a nossa mente como sendo a realidade que percebemos ( é o mundo que o senso comum chama de realidade , enfim, a própria  “Matrix”).
O artista vai ao caos e volta, e retorna de olhos vermelhos, pois foi ao sol que ele foi, para assim ver/sentir onde nasce o dia. Ele nos faz pensar/sentir  o que não o consegue a mente socialmente regrada: pensar o singular, o acaso, as  formas de duração não redutíveis ao tempo, as diferenças que não cabem na forma geral da identidade...


                          
                             ( Hieronymus Bosch, Jardim das Delícias)


                                                             
                                                     (Arthur Bispo do Rosário)















sexta-feira, 25 de setembro de 2015

manoel de barros: "o chão é um ensino"




(trecho do livro)

No "Livro de pré-coisas" , na prosa poética intitulada "Agroval", Manoel de Barros descreve um acontecimento ordinário do pantanal. “Ordinário”, aqui, significa a mesma coisa que comum ou regular. À idéia de “ordinário” costumamos opor a noção de “extraordinário”. Vale a pena lembrar a origem matemática desses termos. Na matemática, os “pontos ordinários” de um triângulo são os inumeráveis e indistintos pontos que ocupam cada um dos lados da figura, ao passo que seus três “pontos extraordinários”, ou singulares, localizam-se em cada ângulo do triângulo. Em uma reta, por sua vez, os pontos extraordinários são dois: aqueles que ocupam os extremos da linha.
Todavia, a diferença entre ordinário e extraordinário mostra toda a sua riqueza quando examinamos o círculo. Aparentemente, tal figura geométrica é destituída de pontos extraordinários ou singulares. Mais do que uma linha reta, geralmente costuma-se afirmar que nossa vida é um círculo: o círculo de nossa vida. Então, estaria o círculo de nossa existência destituído de momentos singulares? Estaria nossa vida refém do ordinário?
Mas o círculo guarda um segredo, tanto na matemática como na vida: qualquer ponto ordinário seu pode metamorfosear-se em ponto extraordinário, se por ele passar uma tangente. No encontro da tangente com o círculo, ambos dividirão o mesmo ponto, abrindo assim o círculo a uma força que vem de fora de seus limites e contornos.A tangente é uma linha de fuga que a tudo transforma em forma em rascunho. Quando o ordinário se converte em extraordinário, acontece o deslimite -renovando-se a vida.
Assim, entre o ordinário e o extraordinário não existe uma diferença intransponível: é no seio do ordinário que o extraordinário acontece. “Cada coisa ordinária é um elemento de estima”, afirma o poeta. Pois, complementa, “é no ínfimo que eu vejo a exuberância”. Em "O Guardador de águas", ele revela ainda: “No achamento do chão também foram descobertas as origens do vôo.” É no ordinário do chão que o extraordinário, como vôo, é “achado”. Enfim, “o chão é um ensino”:

"O que eu descubro ao fim da minha Estética da Ordinariedade , afirma o poeta,é que eu gostaria de redimir as pobres coisas do chão".




quinta-feira, 24 de setembro de 2015

eros & psiquê



Afrodite ( A Deusa da Beleza): "- Como!? Existe entre esses seres efêmeros , que mais parecem um pó rasteiro que o vento leva, existe entre os homens alguém mais  bela do que eu? Como pode!?E que nome estranho esse ser tem : Alma (Psiquê)...Como a alma pode ser mais bela do que eu, que sou o Corpo!Só em mim pode haver beleza, já que beleza só existe para os olhos! E são os homens mesmos que me adoram com os olhos!Não apenas os homens me adoram.A prova disso é que meu servo maior é o Amor, que não tira os olhos de mim e me cobiça para ser posse exclusiva sua. Mas eu não cedo e jogo com ele, uso ele para reinar sobre todos.Essa Alma não pode ser mais bela do que eu! Mas não quero ir conferir ou ficar em dúvida..."
(Afrodite manda chamar então Eros, o Deus do Amor)
(Dirigindo-se a Eros, Afrodite ordena) :"Quero que você vá onde vivem os homens, encontre uma jovem chamada Alma e atravesse o coração dela com sua flecha . Faça ela se apaixonar pelo homem mais pobre, burro e feio que houver em toda Grécia..."

E lá veio Eros procurar Psiquê, lá veio o Amor buscando achar a Alma. Ele nunca a tinha visto antes. Ele não sabia o que ia encontrar. Guiava-o a memória da Beleza do Corpo, pois tal Beleza era Afrodite. Nada do que seus olhos vissem fora dele poderia ser mais belo do que a recordação que vivia em sua memória, assim pensava o Amor antes de encontrar-se com a Alma.Afrodite era a coisa mais bonita que ele vira, e essa verdade o completava , desde que ele estivesse perto dela.
Porém, nem o Amor e nem o Corpo sabiam o que podia a Alma, sobretudo quando a vemos, quando nos encontramos com ela.Ouvir apenas falar dela não é conhecê-la. A Alma somente pode ser conhecida diretamente, sem intermediários.
Então, o Amor achou  a Alma, Eros conheceu Psiquê.O Amor sentiu nascer dentro dele um outro, esse outro era um amor novo,  que era o Amor mesmo,  porém renovado, potencializado, mais amor do que nunca. Esse amor pela Alma não era uma negação do antigo amor ao Corpo, mas o conhecer algo novo que afirma mais o que já somos. Enquanto o amor pelo Corpo submetia Eros a caprichos e prazeres exigidos pelo ser amado, como se fosse um preço a ser pago, esse amor nascido do encontro com a Alma o fazia voltar-se para si mesmo e descobrir uma graça nascida de um desejo que não se esgota na posse e no imediato .O Amor percebeu então que ele podia ser reinventado, experimentar uma nova maneira de ele ser . E que ele próprio, o amor, desconhecia tudo o que o amor pode. Ele viu que se desconhecia e que havia nele potencialidades de amar que somente poderiam se tornar reais se ele se unisse à Alma.A união dele com o Corpo era exterior ; contudo, o Amor sentia que para ele se unir à Alma ele deveria morar dentro dela: cada um seria no outro, sem carência ou falta. Mas o que é a Alma? Ela é invisível, intangível, mas como tem realidade e potência para quem a conhece! E quem a vê nunca mais a esquece.E ela não está nos céus, nem no Olimpo, ela vive dentro do homem.O Amor é eterno, mas não o é a Alma. Ela nasceu ninguém sabe como, pois onde menos se esperava , ali  nasceu ela. Ela não nasceu divina, nasceu humana. Sua divindade seria conquistada por Justiça, e não por nascimento ou aparência. Só uma divindade pode gerar uma divindade. Mas a Alma, embora não fosse divina,   fez nascer no Amor um ser novo, que era o Amor mesmo com  olhos outros, diferentes,capazes de verem  o que se esconde de belo nos homens, apesar de toda feiura que eles frequentemente são, dizem  e fazem.

Foi Zeus, o Deus da Justiça, que, convencido por Eros, tornou a Alma capaz de se eternizar. Nela, portanto, a eternidade não seria uma natureza ou essência, mas algo que ela deveria conquistar, provar de ser merecedora. Disse a Justiça à Alma: “Sempre a eternidade será tua se na companhia do Amor você sempre estiver."




"No princípio era apenas o Caos, e do Caos nascem Gaia (a Terra) e Eros..."
Hesíodo,Teogonia.








segunda-feira, 21 de setembro de 2015

manoel de barros e paul klee: as desaprendizagens ( 2)





Uma influência especial em Manoel de Barros: Paul Klee. Manoel de Barros se apropria, à sua maneira, da Máquina de Chilrear de Klee, e a faz de ferramenta de sua oficina poética . Este pintor ensinou-lhe a necessidade de "aprender a desaprender" - que define muito bem o que aqui chamaremos de devir-criança*, e que tão presente está na obra de Manoel de Barros: “palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria”. Por isso, completa o poeta,


Palavras
Gosto de brincar com elas.
Tenho preguiça de ser sério.


De sua parte, Paul Klee impôs a si mesmo uma espécie de “desaprendizagem”. Embora ele desenhasse de forma precisa e técnica, esta mesma precisão e técnica tornou-se uma fôrma e prisão para as imagens que ele queria exprimir. Uma fôrma/prisão que precisava ser quebrada para que , livres, as imagens pudessem fluir. Então, ele passa a desenhar com a mão esquerda ( desaprendizagem semelhante fez Miró...). O artista descobriu-se novamente criança nesta mão: cada desenho era o desenhar de novo nascendo ─ fazendo-se como novidade, experiência e descoberta. Ao desaprender as formas e códigos da mão direita, Paul Klee redescobriu a pintura e a ele mesmo: reencontrou a alegria da criança cujo brincar e inventar é a coisa mais séria e verdadeira. Assim como a arte de Paul Klee,


A poesia tem a função de pregar a prática 
da infância entre os homens.


***
[ *Nota sobre o devir-criança:Quando alguém se torna adulto, a criança que ele foi está no passado;quando tal adulto era criança, o ser adulto era seu futuro.O adulto é o futuro da criança enquanto esta é um estado com uma identidade que lhe prescreve uma definição, um contorno; de maneira análoga, a criança é o passado do adulto enquanto este representa a si mesmo como um estado circunscrito por uma identidade.Sob esta perspectiva,"criança" e "adulto" são estados que se opõem pelas suas respectivas identidades.O devir não possui passado ou futuro: ele é, como dizem Deleuze e Guattari,antimemória. Ou melhor, se ele nos dota de uma memória, trata-se de uma memória como a que têm os anjos : memória que nos liga à eternidade.
O devir está sempre no meio: ele não é uma linha que liga dois pontos, ele é linha que passa entre dois pontos, uma linha transversal( as linhas transversais nunca se fecham em contornos).O devir não é exatamente a diferença entre o adulto e a criança,mas Diferença que está entre o adulto e a criança, e que os faz se comunicarem pelas suas diferenças, criando um contágio, um Afeto. É a História ( pessoal ou coletiva) que possui o passado e o futuro como pontos que o presente liga, ao passo que o devir está sempre no meio. Porém, ele não é uma média, ele é meio : ele é zona indiscernível que constitui a vizinhança entre o adulto e a criança. O presente do devir não é o presente cujos termos complementares são o passado e o futuro, uma vez que o presente do devir é o presente da metamorfose: esquecimento que cura dos fantasmas do passado, criação do novo que nos liberta de todo sentimento de esperança em relação a um futuro que nos deixa passivos.A criança do devir-criança não está no passado: ela co-existe com o adulto, mas não é feita de lembranças psicológicas deste.Ela é uma "criança molecular", imperceptível à percepção que só vê o já visto.
Segundo Deleuze-Guattari,molecular é aquilo que é, ao mesmo tempo, elementar e cósmico:elementos mínimos, heterogêneos,conectados ao absoluto.Intensos, tais elementos singulares não podem estar contidos em uma forma:seus limites são limiares trabalhados por dentro por uma Vida que de si mesma transborda.O devir-criança não é uma regressão ao estado de criança, tampouco ele é um mero imitar, infantilmente, uma criança.Quando devimos criança, tornamo-nos algo que a "forma adulto" nos impede de ser, ao mesmo tempo que a criança torna-se outra coisa que a criança definida em oposição ao adulto.No pintor Klee, por exemplo, a criança do devir-criança que ele inventa torna-se uma criança feita de linhas e cores,ao mesmo tempo que ele próprio se torna outra coisa , coisa esta que a obra testemunha e dar a ver.Esta criança que vemos na tela, e que é o produto de uma metamorfose, de um devir, não é menos real do que a criança que vive na nossa memória pessoal.Sua realidade é aquela que a arte engendra, libertando a Vida dos limites estreitos de nossas vivências pessoais. Quando devimos criança, captamos o que na criança há de intempestivo e eterno, cujo futuro não é virar adulto, mas produzir no adulto uma criança que não é a que ele foi. A criança do devir-criança não está no passado, tampouco somos o futuro dela: ela co-existe com nosso presente, libertando este do passado que ele imagina prolongar e do futuro em relação ao qual ele crê ser uma continuação daquilo que hoje é.Como dizia Espinosa, a criança do devir-criança não é um estado, mas uma atividade de re-generar-se, isto é, de nascer de novo para o novo.Devir é revir. Devir é retornar.Mas o retornar do devir não é um revir ao passado. Trata-se de retornar ao hoje, a este mesmo hoje do qual a imaginatio sempre nos afasta. Devir é retornar ao hoje para nele intuir o eterno que nunca é o mesmo a cada vez que a ele retornamos: muda ele, mudamos nós nele, como parte dele.]

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deslimite pode ser compreendido como um processo ao mesmo tempo estético e existencial, no qual vida e poesia se mostram como as duas faces de uma mesma Vida a qual não se pode impor uma forma ou limite . Esta Vida somente se deixa apreender em uma experiência de devir. O devir não é uma forma ou algo de determinado, mas um processo no qual os seres atingem seus deslimites (conforme veremos ao longo do estudo) .
Atingir o deslimite não significa destruir-se ou negar-se. Ao contrário, é o limite que destrói a invenção que se pode e se deseja. O deslimite , portanto, é uma experiência com a Vida, e não com a morte ( nos vários sentidos que essa palavra pode ter).
Embora seja uma experiência eminentemente poética, isso não significa que ela seja suscitada apenas pela leitura de poesia. A essência de tal experiência é exatamente nos ensinar a alargar a compreensão do que seja poesia, como faz Manoel de Barros, para que a vejamos em todas as coisas que, rompendo seus limites, deixam ver a Vida.




Paul Klee, Travessura.



sábado, 19 de setembro de 2015

alvoradas



Fala-se muito sobre o lado oculto da lua.
Nesta face sempre escura muitos especulam
que igual também é a alma do homem.

Mas e o outro lado do sol?
O que haverá atrás do sol?
Talvez uma luz que se esconde,
como no homem às vezes o bem.


***   ***   ***

O Ser também tem seu Outro,
assim como João e José
são o outro um do outro.

O Outro do Ser é o Devir.
Eles nasceram juntos, do mesmo útero.
E foi num par-ou-ímpar                               
que a briga começou:
o Ser não aceitou a Diferença.
Ressentido, o Ser nunca mais brincou:
sério, sisudo, esconde-se do mundo  nos livros.

***   ***   ***









segunda-feira, 7 de setembro de 2015

didáticas da invenção

MANOEL DE BARROS:UMA DIDÁTICA DA INVENÇÃO
(artigo publicado na Revista Brasileiros, em parceria com Paulo Vasco)

A primeira vez que ouvi falar de Manoel de Barros foi em uma aula de filosofia ministrada por um professor pelo qual eu tinha uma imensa admiração, o filósofo Cláudio Ulpiano. Este citou um verso do poeta para ilustrar uma ideia da filosofia. Eu tinha pouco mais de 20 anos. Uma outra pessoa “desabriu em mim”. Nunca mais parei de comungar com seus versos, seus pensamentos, suas visões comungantes. Ele me terapeutou. Parte dessa “terapia” foi me curar de uma propensão acadêmica de pouco olhar para o Brasil. Ficamos com os olhos teóricos na França, na Alemanha...e não vemos o nosso quintal. O poeta me ensinou a “desaprender os saberes que vêm em tomos”.
 Dessa terapia verbal ousei escrever um livro sobre o poeta.  O próprio poeta foi meu primeiro leitor, pois enviei os rascunhos, as “formas em rascunhos”, para ele. Eu pedia sua autorização para publicação. Obtive o endereço do poeta com sua filha, a Martha Barros, em 2008.Ela me orientou a não telefonar para ele e muito menos escrever-lhe e-mails. Eu deveria escrever para o poeta à mão, pois assim ele veria, além da letra, o espírito. Fiz o recomendado. Enquanto não vinha a resposta do poeta, fiquei com o coração na mão. Um dia, recebi uma carta com letrinha miudinha, parecendo caminho de formiga. Com generosidade e atenção, ele autorizou a publicação do livro. “Voei fora da asa” de tanta alegria. No livro, foram com essas simples palavras que terminei a apresentação que fiz do querido e inestimável poeta:
 “Mais do que um poeta, Manoel de Barros é um pensador, um pensador brasileiro. Empregamos aqui ‘brasileiro’ no sentido mais genuíno e rico que esta palavra pode ter, pois ser brasileiro é ser, em essência, ‘mestiço’. Não nos referimos, claro, a uma mestiçagem baseada em cores de pele, mas na mistura singular de almas heterogêneas    que fazem nascer em uma única alma a capacidade de falar e sentir por muitas. Só a mestiçagem de almas pode dar nascimento   a um estilo ao mesmo tempo singular e plural, poético e filosófico, autóctone e estrangeiro.” (Manoel de Barros: a poética do deslimite, Rio de Janeiro, Editora 7letras/FAPERJ, 2010). 

link para texto completo:
http://brasileiros.com.br/2015/01/manoel-de-barros-uma-didatica-da-invencao/

versão impressa:







sábado, 5 de setembro de 2015

manoel de barros: voz de fazer nascimento





A importância de uma coisa não se mede com fita métrica  nem
com balanças nem com barômetros etc. (...) A importância de uma coisa
há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós.

Manoel de Barros


(trecho do livro)

“Não sou biografável”, disse certa vez Manoel de Barros.  E nos confessa ele ainda que suas memórias são inventadas.Sem dúvida, é difícil capturá-lo em uma apresentação biográfica habitual, pois ele se aloja em uma região imperceptível aos olhos daqueles que só percebem o já visto, o etiquetado.
Ser imperceptível não é ser invisível. A imperceptibilidade é a maneira de ser daqueles que, como diz Deleuze, emprestam seus nomes para assinar acontecimentos, idéias, sensações. Ser imperceptível é um caso de devir: devir imperceptível. Tornar-se imperceptível é pôr em questão os mecanismos que, de forma a priori, determinam a percepção, fazendo-a submeter-se a um já dado que nos cega diante daquilo que é diferente.
Quando o nome próprio conquista a potência de expressar acontecimentos e sentidos, despe-se da pessoa que até então designou , uma vez que aquele que o porta atinge a mais necessárias das artes: a de se tornar impessoal. “Palavra que eu uso me inclui nela” afirma Manoel de Barros. Para haver essa inclusão, esse devir, é preciso aquela arte. Assim, diz Deleuze a esse respeito, descobre-se “sob as aparentes pessoas a potência de um impessoal, que de modo algum é uma generalidade, mas uma singularidade no mais alto grau.” No poema intitulado “Ninguém”, Manoel de Barros escreve:

Falar a partir de ninguém faz comunhão com as árvores
Faz comunhão com as aves
Faz comunhão com as chuvas
Falar a partir de ninguém faz comunhão com os rios,
com os ventos, com o sol, com os sapos.
Falar a partir de ninguém
Faz comunhão com borra
Faz comunhão com os seres que incidem por andrajos.
Falar a partir de ninguém
Ensina a ver o sexo das nuvens
E ensina o sentido sonoro das palavras.
Falar a partir de ninguém
Faz comunhão com o começo do verbo.

Tornar-se impessoal, “Ninguém”, é conquistar o estatuto de um agente coletivo de enunciação: sua voz já não diz “eu” , mas “nós”. E neste “nós” inclui-se sobretudo o que não tem voz, mas que a poesia faz falar: “Queria ser a voz em que uma pedra fale”,uma voz que já não manifesta um eu pessoal :

Tenho abandonos por dentro e por fora.
Meu desnome é Antônio Ninguém.

Pela voz poética de Manoel de Barros também se tornam sujeitos,mas sujeitos larvares, uma quantidade infindável de seres: lagartixas, girinos, bocós,pedras que dão leite, patos atravessados de chuva, arames de prender horizonte,tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma... enfim, o que não se pode vender no mercado:“coisas se movendo ainda em larvas, antes de ser idéia ou pensamento”. Manoel de Barros nos diz ainda:

Quem atinge o valor do que não presta é, no mínimo,
Um sábio ou um poeta.
É no mínimo alguém que saiba dar cintilância aos
seres apagados.
Ou alguém que possa freqüentar o futuro das palavras.

Mais do que tudo, o que por sua voz fala é a própria língua que, despida da forma da gramática, “voa fora da asa”:

Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer
nascimento
 O verbo tem que pegar delírio.


Este “fazer nascimento” referido pelo poeta inunda a poesia com a potência de um germe: na imanência deste, o verbo, como logos, liberta-se dos substantivos e das substâncias; devém ele próprio experimento com o sentido, e nos ensina: “Poesia é voar fora da asa”: “a poesia é a loucura da palavra”.

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

as esferas celestes





Meus olhos têm apenas
três centímetros de diâmetro,
como pode neles caberem os céus?

Eles têm a cor da castanha terra,
como podem eles entenderem  o Azul?

Neles estão o que viram meu pai
e o pai do meu pai,
gente simples sem abstração,
 como podem meus olhos verem como viu Platão?

Diz Espinosa que os olhos do espírito nunca fecham...
E que somente  eles veem  claro
o que  fechados e dormindo
 os nossos olhos sonham.