quarta-feira, 29 de setembro de 2021

manoel de barros: agroval, fortitudo, quilombo

Na rica  fala do povo do pantanal, “agroval” significa:  “lugar onde se cultiva a vida”. “Agroval” também é o nome que Manoel de Barros escolheu para  um de seus mais belos  poemas.

O poema narra o que faz uma imensa  arraia quando as águas do pantanal secam e põem a vida em perigo: a arraia abre suas grandes asas  e pousa no barro, retendo parte da água abaixo de si.

Com arte e cuidado, a arraia recria um  pequeno pantanal entre seu abdômen e o chão úmido , para que nesse espaço  protegido o coração do pantanal possa habitar e perseverar  , vivo. Generosa, a arraia deixa tudo o que  corre perigo  vir morar sob suas asas, fazendo delas abrigo.

Migram  para debaixo das asas da arraia não apenas bichos, instalam-se  também sementes  de futuras flores e frutos, de tal modo que nesse pantanal em rascunho  tudo o que vive devém embrião da arraia-útero.

 Sob a proteção de tal Gaia-Pachamama, a vida continua, resiste, fortalece-se; acontecem agenciamentos, contágios, enamoramentos da vida por ela mesma, una e múltipla. Até mesmo uma festa se esboça, feito uma  Kizomba a celebrar a vida salva pela Vida.

Pois quando as águas do pantanal  vão secando , aumenta a lama e vai sumindo o oxigênio.  Os predadores   sorrateiros e oportunistas  lucram com a desolação  e   ficam à espreita para predar a vida que sufoca .

Mas a arraia é resistente: quando o oxigênio falta às águas, a arraia aprende a sorvê-lo do ar para  partilhá-lo como “Pneuma” . Na Grécia antiga, “Pneuma” é um dos nomes da alma, assim como “Psiquê”. 

Pneuma é o sopro que dá  vida ao corpo e forma com ele um único e singular ser. Em latim,  “Pneuma” é traduzido por “Spiritus” : “sopro que dá vida”.

Apesar dos perigos em torno, nunca a arraia  se entrega ou desabraça a quem prometeu proteger. Quando as águas novamente  caem do céu e  a vida pode recomeçar, a arraia levanta as asas e  parteja  os seres que salvou do perigo, como uma utopia que enfim sai das teorias e  livros  para ser criada na prática.

Não seria tal ação da arraia o modo como a própria  natureza nos ensina o que é a virtude ético-política  que Espinosa chamava de “fortaleza”? Não seria tal comunidade de resistência  pela vida a expressão na natureza daquilo que nossos ancestrais ,em luta  contra a tirania,   nomearam  Quilombo?

 

 

 

“Poesia pode ser que seja fazer outro mundo.”(Manoel de Barros)

 

“Se roubam a liberdade de um poeta, ele escapa por metáforas.”(Manoel de Barros)

 

“Toda multiplicidade é composta não por coisas prontas, mas por realidades intensivas, pré-individuais, como o embrião de uma realidade nova.” (Deleuze)

 

 

( o poema “Agroval” , que aqui interpreto, faz parte do “Livro de pré-coisas”, cuja capa é de Martha Barros, filha do poeta)







Luiz Melodia & Manoel:



terça-feira, 28 de setembro de 2021

décadas de atraso

 

O governo fascista contabiliza   os dias desde que ele começou ; nós, ao contrário, contamos quantos dias faltam para ele acabar.

Em sua conta, ele chegou aos mil dias. Nós contamos diferente: contamos quantos dias faltam para ele terminar.

Se nada fizermos, ainda faltam longos e duros 459 dias para esse governo fascista acabar. Mas o que legitima nossa luta para tentar abreviar o máximo possível esse governo  é a certeza de que ele nem deveria ter começado, não fossem o golpe , as fake news e as negociatas da Casa-grande togada associada à mídia comercial e ao mercado.

Cada dia a mais do fascismo não   o põe mais perto do futuro, e sim aumenta de quantos dias será feito seu passado. Cada dia a mais dele aumenta o tamanho de um obscuro passado que muito nos doerá lembrar no futuro.

Pois os mil dias propalados, na verdade são décadas que regredimos em atraso.



sábado, 25 de setembro de 2021

o cacto

 

Com a chegada da primavera, muito se fala, com razão, das flores. Rosas, girassóis, crisântemos, margaridas...Essas e outras flores já foram homenageadas em poemas , músicas e pinturas.

Mas pouco se fala das flores que o cacto também sabe produzir. Considero essa omissão  uma injustiça com esse artista da resistência. Na dele, sem chamar a atenção ou fazer propaganda de si, o cacto é capaz de atos que trazem a beleza da generosidade.

Assim age esse perseverante resistente: o cacto é a planta que possui a maior raiz. Em alguns cactos,  a extensão de sua raiz chega a nove ou dez vezes o tamanho do corpo do cacto que vemos à superfície do chão!

Quem mede o cacto apenas pela sua parte visível, e pensa que a parte que vê é todo o ser do cacto, por certo ignora o que o cacto é capaz de fazer. O cacto cria imensas raízes para sondar o subsolo , não se deixando vencer pela aridez que o cerca. As raízes do cacto tateiam procurando veios d’água metros abaixo da paisagem seca. Ele persevera procurando no coração da Mãe Terra a água que o Céu lhe nega.

Quando encontra a água, o cacto anuncia sua descoberta brotando flores: em pleno árido , ele inaugura uma primavera. Então, ele sorve o líquido e se intumesce , de água fresca ficando grávido. Basta um pequeno furo para a água jorrar matando a sede dos necessitados.

Foram os cactos do sertão nordestino que, no passado, não deixaram morrer de sede a rebeldia de Lampião e seu cangaço ; e a flor que Maria Bonita punha no cabelo também floresceu de um cacto : o mandacaru, símbolo da força do povo nordestino.

O cacto mandacaru expressa a resistência da vida, uma resistência que também se faz com poesia e beleza, apesar da aridez que a cerca. O mandacaru matou a sede de Lampião e deixou a Maria ainda mais Bonita.

Nessa época do ano, lá no sertão nordestino , os mandacarus anunciam que já vão começar a florir.

 

“Quando não pode ser cristal, a poesia vale pelo que tem de cacto.”(João Cabral de Melo Neto)

 

( imagem: “flor do mandacaru)








sexta-feira, 24 de setembro de 2021

o cercadinho fascista

 

Diariamente, vemos o genocida fazer discursos ameaçadores e delirantes diante daquele “cercadinho” em Brasília , no qual estão arrebanhados  seus adeptos. Esse cercadinho   é a imagem externa de um outro  “cercadinho”: o da limitação de ideias.

Às vezes, uma única imagem revela toda uma mentalidade. Esse “cercadinho” é a imagem visível de uma limitação externa que revela uma estreiteza interna.

Não sei se vocês  já repararam, esse cercadinho está ficando  cada vez mais apertado . Como vem diminuindo o número de adeptos, e para não mostrar o vazio no centro desse cercadinho, o fascista manda diminuir o diâmetro do cercadinho, para assim dar a ilusão de que ele está cheio. Ou seja, para dar a ilusão de coesão , estreita-se ainda mais o cercadinho.

Quanto menos gente tem, mais o cercadinho fica apertado. Se continuar assim, no último dos adeptos veremos a verdade do que esse cercadinho realmente é, pois esse cercadinho estará  colado no último alienado  como uma camisa de força.

Não por acaso, o termo “fascismo” vem de uma palavra italiana que significa exatamente “feixe”. A imagem do fascismo é esta: um feixe de hastes de madeira amarrados rigidamente , formando assim um todo homogêneo sem lugar para a diferença.

As cordas que amarram o feixe é a Ordem fascista, Ordem rígida como cordas de aço, instrumentos de tortura física e simbólica. O feixe está amarrado junto ao cabo de um machado, símbolo da violência   destrutiva  que derrubou as árvores heterogêneas da floresta e as transformou em hastes homogeneizadas pelo cercadinho da Ordem.  

Essa situação me lembrou o que aconteceu com Robinson Crusoé. Quando Robinson Crusoé se viu sozinho na ilha, ele passou a ter uma dificuldade estranha :  a dificuldade em ficar de pé. O espaço aberto e horizontado parecia dificultar   ao Robinson  ficar ereto.

Até que Robinson compreendeu que, ali na ilha, era a primeira vez que ele de fato estava apoiado nas próprias  pernas. Ele se deu conta  que vivera apenas ancorado nos  outros que também estavam ancorados nele, como  gados apertados em cerca estreita. Os gados às vezes são  conservados  num imobilismo extremo  para  atrofiarem as pernas e aumentarem o peso visando o abate.

Na ilha, Robinson aprendeu, enfim, a ficar de pé e a caminhar sobre as próprias pernas.  Mas ele somente aprendeu a dançar quando  encontrou na ilha o  Sexta-Feira, o indígena livre que veio da incercável floresta.


(este excelente livro  é apenas uma sugestão de leitura)



 

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

nietzsche , espinosa , o morro e o trem

 

Tempos atrás fui convidado para dar um curso de Direitos Humanos para as forças policiais da Bahia. Àquela época, essas forças policiais  eram consideradas as mais violentas do Brasil. Os policiais não estavam no curso porque queriam, e sim em razão de receberem benefícios ( frequentar o curso aumentava o soldo deles)  .

Quando entrei na sala no primeiro dia de aula, reparei que a maioria estava  armada , pois muitos vinham de operações policiais ou estavam indo para uma. Antes mesmo de eu me apresentar, uma agente de segurança me fuzilou com uma pergunta : “O senhor já subiu uma favela?” 

Respondi indo ao quadro para escrever  uma  frase de Nietzsche, que usei como escudo para me proteger daquele  fuzilamento feito com palavras preconceituosas.

Foi esta a frase de Nietzsche  que escrevi no quadro:  “Quando queremos lutar contra as monstruosidades que existem no mundo, devemos tomar o máximo cuidado para que nós mesmos não nos tornemos monstros.”

Depois respondi que não só já subi o morro de uma favela , como também já morei no alto  de uma: morei no Morro dos Macacos, em Vila Isabel, terra da Escola de Samba Vila Isabel, berço de poetas. Morei lá quando era estudante de filosofia na Uerj, que fica ali perto. Também disse que várias vezes li Nietzsche e Espinosa no interior de um trem da Central do Brasil, e várias vezes também subi o morro com Nietzsche e Espinosa na mão, pois são essas as armas nas quais acredito , e é com elas que luto.  

E terminei dizendo que esses filósofos agora me acompanham na sala de aula, na minha fala de professor. E que eu acreditava que potencializou ainda mais suas filosofias o fato de   Espinosa e Nietzsche   terem andado de trem e subido o morro  .

 A monstruosidade de que fala Nietzsche não é apenas a violência física , a monstruosidade também é a brutal e desumana  injustiça social que produz a opulência gananciosa de riqueza para poucos, ao mesmo tempo  condenando milhões à miséria. A monstruosidade também é a falta de creche e escola para as crianças da favela, roubando-lhes o futuro; monstruosidade também é a milícia que veste uniformes da polícia. Monstruosidade maior é um presidente miliciano-genocida.

Quando o curso terminou, senti que muitos me apoiaram , isto é,   se desarmaram. Um deles, inclusive, me mostrou um quadro de aviso que ele havia feito com um pedaço de lousa  de  mais ou menos um metro quadrado . Ele me disse que ia afixar o quadro no mural de avisos da delegacia dele. No quadro feito por ele estava escrito: “Quando queremos lutar contra as monstruosidades que existem no mundo, devemos tomar o máximo cuidado para que nós mesmos não nos tornemos  monstros.”


"O contato com a realidade dada faz a vida dormir;

 somente a arte desperta a vida e a mantém acordada," (Nietzsche)




quarta-feira, 22 de setembro de 2021

o retorno de Perséfone

 

Segundo a mitologia, Hades é a divindade  que habita a região escura muito abaixo da superfície da terra. Nesse lugar nenhuma luz entra.

Certa vez, porém, Hades ouviu risos vindo da superfície. Ele subiu e viu Perséfone... Ela estava com sua mãe , a deusa Ceres. De “ceres” vem “cereal”, pois Ceres é a divindade do plantio e colheita dos cereais.

 Ceres , por sua vez, é filha de  Cibele, a divindade  da fertilidade. Cibele é o Feminino Ancestral ( os povos originários da América a chamam de Pachamama).

 E foi em sua neta Perséfone que a fertilidade de Cibele se tornou uma força criativa semelhante àquela que vemos no artista, pois Perséfone é a divindade  cuja arte é fazer nascer flores: múltiplas e heterogêneas, flores de todas as cores.

Perséfone mata outra fome diferente daquela que Ceres mata: Perséfone mata a fome de arte, de poesia e de criatividade.

Hades se apaixonou pelas flores e quis levá-las para enfeitar sua noite eterna. Foi uma imensa surpresa,  ninguém imaginava que pudesse nascer no taciturno  Hades um desejo por cores.

Num ato condenável, Hades raptou então Perséfone para fazê-la morar lá embaixo . Porém, naquele mundo carente de luz , de Perséfone nasciam rosas só com espinhos , sem as pétalas, flores da dor que elas eram.

Enquanto isso, sentindo a falta de Perséfone, Ceres ficou deserta : o grão não mais germinava nela. Havia agora fome de pão e de beleza, de pão e de poesia, e ninguém sabia qual das duas fomes doía mais: a primeira esvaziava o estômago, a segunda ao coração secava .

A pedido de Ceres, Zeus interveio e foi feito então um acordo. Durante parte do ano Perséfone viveria lá embaixo com Hades : sua ausência entre nós recebeu o nome de inverno.

Até que vem o ansiado tempo em que Perséfone sobe de volta  e enche de vida a terra :  tudo recomeça , renovado.

Hoje, a treva não está somente lá embaixo,  treva pior  nos ameaça aqui em cima.  Apesar disso, nada detém  Perséfone: hoje, 22 de setembro, começa a  primavera, tempo em que Perséfone chega para florir de vida  a terra.

 

  

“O céu da teoria é cinza;

mas sempre verdejante é a árvore da vida.” (Goethe)

 

“Eram os passarinhos que colocavam

primaveras nas palavras.” (Manoel de Barros)

 

(imagem: “Primavera”/ Monet)




"Leito do Sena na primavera"/ Van Gogh :



sábado, 18 de setembro de 2021

centenário de Paulo Freire

 

Amanhã será o centenário  do pensador da educação Paulo Freire. Alguns se referem ao “método Paulo Freire” como se fosse uma  técnica. Mas as expressões “técnica” e “método” não se aplicam adequadamente à práxis pedagógica de Paulo Freire. Pois “técnica” e “método” são meios para aplicação de fórmulas , ao passo que a prática de Paulo Freire é uma poética da autonomia , isto é, um processo de  singularização que nunca pode ser reduzido a uma fórmula ou padrão , pois fórmulas e padrões são  instrumentos de um poder que desautonomiza.

A poética educacional de Paulo Freire dialoga também com Espinosa. Ambos convergem no seguinte ponto:  o educador que deseja ensinar deve, antes de tudo, compreender que o aprender vem antes do ensinar.

Assim, o autêntico educador deve conhecer seus educandos não como objeto, e sim como agentes que dão sentido ao mundo em que vivem. O educador deve buscar conhecer a comunidade onde vivem seus educandos, e daí extrair as palavras que , em potência, trazem aquela comunidade e  a expressam.

Essas palavras são chamadas por Paulo Freire de "palavras geradoras". Essas palavras não valem apenas pelo aspecto formal-linguístico, pois elas são potências geradoras de sentidos nascidos das práticas concretas.

As palavras geradoras geram outras palavras que, virtualmente, vivem dentro delas. Não são palavras de dicionário ou livro, são palavras que o próprio educando fala, com as quais   dá sentido ao seu mundo.  

A poética freireana auxilia o educando a partejar as outras palavras que vivem na imanência da palavra geradora. Com isso, é a própria mente do educando que também aprende com a palavra que sua fala já dizia, palavra essa que , desdobrada, também revela a riqueza de seu mundo. Não riqueza medida em dinheiro, mas riqueza que se expressa no conhecimento que autonomiza.

As palavras geradoras, palavras-potências, desenvolvem e explicam o sentido que nelas está implicado. E esse sentido não é apenas o de uma palavra, mas do mundo no qual se produz um  modo de vida. No caso da alfabetização de adultos, as palavras geradoras atestam que, mesmo sem saber ler as palavras, aqueles que as produziram já sabiam ler o mundo.

“Geradora”, “generosidade” e “gente” são palavras com a mesma raiz semântica. Por isso, palavra geradora é palavra generosa que nos potencializa como gente, tanto ao que ensina quanto ao que aprende.

O contrário da educação potencializadora   é o “ensino bancário”, no qual o conhecimento é “depositado” pelo professor no aluno como se este fosse uma conta que precisa dar lucro. É um modelo quantitativista, tecnocrata e mercadológico do conhecimento, no qual o aluno é tratado como coisa, não como gente . O ensino  bancário reproduz a  lógica do dinheiro e seu poder concentrador e excludente.

As palavra geradoras não pertencem a cartilhas, elas pertencem às falas populares que o poder dominante cala ou não deixa  que sejam  ouvidas.

 

"A justiça social tem que vir antes da caridade.” (Paulo Freire)

“Aprendo com o povo sintaxes tortas.” ( Manoel de Barros)




sexta-feira, 17 de setembro de 2021

o poeta e o monturo

 

Há um poema de Manoel de Barros no qual o poeta   descreve o que aconteceu  num monturo que  ele encontrou  no meio de um  caminho ermo.

Monturo não é exatamente um monte de lixo. Num  monturo estão coisas que já deram sentido a uma vida, coisas que eram   partes de um todo,mas que agora são apenas fragmentos que a natureza recolheu sem julgamento ou desprezo.

No monturo podiam ser  vistos:  os cacos do que sobrou de uma taça que outrora já esteve repleta de vinho  ; os restos de um diário cujos dias anotados há muito viraram passado   ;  a metade de uma concha que talvez já tenha guardado uma pérola dentro; as penas que já voaram  no céu aberto como partes de uma asa; a casca seca de uma cigarra que já encheu de cantos a floresta; a mortalha  de folhas amarelas que vicejaram  verdes  na primavera; os  ponteiros parados de um relógio que já marcaram horas apressadas ; um pé de chinelo solitário e  roído pelos anos em  seu solado gasto ; um álbum de retrato cujas fotos  o esquecimento apagou.

Junto a esses restos  também estavam: cacos de certezas que pareciam inquebrantáveis ; farrapos de verdades que pareciam eternas...

Mas debaixo do monturo aconteceu uma surpresa, um “milagre poético”: sob os cacos e pedaços, uma semente ainda estava inteira . E depois de a chuva regar o monturo e o sol o aquecer, o tempo sarou o monturo e deu à semente forças para germinar.

 Da semente brotou  um caule em  rascunho  . O caule   se enroscou e subiu por um pequeno raio de sol que furou a noite do monturo. E do túmulo que o monturo era, a semente fez dele um útero do qual nasceu uma flor: um lírio.

 

“Poeta é ser que vê semente germinar.

Nas fendas do insignificante ele procura grãos de sol.”(Manoel de Barros)

"Não é por fazimentos cerebrais que se chega ao milagre estético.”(Manoel de Barros)



- Trecho do filme "Língua de brincar", de Gabraz Sanna:




- Nova música de Caetano:



 



quarta-feira, 15 de setembro de 2021

nise & espinosa

 

Nise da Silveira cita Bachelard quando este dizia que nossa saúde mental , ou a falta dela, depende  mais do que fazemos com nossas mãos do que daquilo que teorizamos com nossa mente .

Talvez  por isso  , depois de filosofar, Espinosa se dedicava a fabricar e  polir  cuidadosamente lentes, como um simples artesão .

Após abstratos raciocínios lógicos, Wittgenstein fechava  os livros para ir plantar  flores no jardim de uma escola, feito um jardineiro.

Deleuze costumava desenhar linhas de fuga entre as aulas, nisso se assemelhando a um cartógrafo.

Plotino deixava  seus solitários  estudos metafísicos para  ir alimentar com as próprias mãos pequenos órfãos, como se fosse um cozinheiro.

Depois de escrever  profundas páginas que , segundo dizem, até lhe arrancavam lágrimas ,   Heráclito construía lúdicos   brinquedos de madeira para as crianças,  reinventando-se carpinteiro.

Sobretudo para aqueles cujo pensamento ousa ir muito longe em busca de terras novas, para ele não se perder, é bom mantê-lo unido a mãos que tocam, transformam ou cuidam da realidade próxima.

São essas mãos solidárias que também nos protegem   da “mão invisível” do mercado (que  apenas sabe contar dinheiro, sem se importar eticamente de onde ele veio); e é igualmente  de mãos dadas com essas mãos libertárias  que podemos mais  do aqueles  que, querendo nos pôr medo,  imitam com a mão uma arma  fascista , para nós apontada.

Enfim, somente  mãos que conduzem, cuidam ,alimentam ou transformam  podem ser    a afetiva âncora do pensamento no aqui e agora, sem fazê-lo perder o horizonte aberto  para o qual sempre se desterritorializa e decola .


“Poesia é Oficina de Transfazer a natureza.” (Manoel de Barros)


“Em minha Ética,  quero explicar aquelas coisas que possam nos conduzir, como que pela mão.” (Espinosa)


( imagem:  o gatinho da Nise chamado “Carlinhos”, ela própria e Espinosa multicolorido)




domingo, 12 de setembro de 2021

rizomas

 

Sempre achei que as plantas plantadas num vaso se assemelham a passarinhos presos numa gaiola. Na mitologia, Urano, o Céu, foi gerado por Gaia, a Mãe-Terra: antes de brilharem no céu, as estrelas  foram sementes gestadas no ventre da Terra.

 Nas plantas, as raízes  se assemelham ao que nos passarinhos são asas, pois são com as raízes  que  as plantas   voam no seio da Terra . Do mesmo modo que o céu horizonta os passarinhos , a Terra horizonta as raízes que se alimentam e se expandem  no seio dela.  Como ensina o poeta Manoel de Barros, os horizontes são telas para a gente pintar liberdade nelas.

Assim como numa  gaiola que  tolhe o voar do passarinho, num vaso as raízes ficam atrofiadas, não se ampliam  tudo o que podem.

E assim também é a mente humana: quando plantada no vaso estreito de cômodas certezas, fica atrofiada.

Hoje, bem cedinho,  tomei a decisão: libertei  uma planta que eu cuidava, a retirei  da gaiola do estreito vaso e a soltei , plantando,   num imenso  quintal.

Tomei essa libertária decisão inspirando-me em Espinosa, que  nos tira de todo vaso estreito e nos enraíza , como rizoma liberto,    na infinita e horizontada  Terra.

E hoje pela manhã também  li uma notícia que faria sorrir Espinosa: os cientistas descobriram que , quanto mais potente e saudável é uma floresta,  entre as árvores não há competição por luz  ou disputa com uma querendo ser maior do que a outra,  pois nas florestas saudáveis e potentes as   raízes das árvores se encontram debaixo da terra , formam rizomas coletivos e se fortalecem  mutuamente, como  quem  luta junto  dando as mãos.




sábado, 11 de setembro de 2021

a cirurgia

 

Certa vez, quando eu passava por um momento muito difícil , sonhei que seria operado do coração. Angustiado, eu pensava que não sobreviveria à operação. Não sei como fui parar ali, por quais caminhos andei ou fui levado. Sabia apenas que haveria uma operação e eu era o paciente a ser operado.

 De repente, adentra a sala de cirurgia o cirurgião. Ao vê-lo, meu medo desaparece, cheguei até a sorrir...Pois o médico que me operaria era nada mais nada menos do que o poeta Fernando Pessoa!

No princípio, achei estranho . Mas depois entendi que fazia sentido ser um poeta o cirurgião de um coração angustiado.

Sem demora, o cirurgião-poeta abriu meu peito, mas não com bisturi : não sangrou , nem houve dor. Ele enfiou uma das mãos, porém não foi suficiente. Somente as duas mãos do poeta conseguiram tirar meu coração do peito .

 "Seu coração  está pesado como um paralelepípedo! Preciso extrair o que lhe pesa”, diagnosticou o cirurgião-poeta. “O que lhe pesa não é coisa física, o que lhe pesa é a mágoa com o passado, a decepção com o presente , o medo do futuro e a descrença nos homens”, disse-me ele enquanto extraía tudo isso.

Quando olhei para a mão do poeta , meu coração estava minúsculo, parecendo uma semente salva de um fruto que perecia. Indaguei : “poeta, com esse coração pequenino como vou sobreviver!?”

O cirurgião-poeta então respondeu, terminando sua arte, sua “clínica”: “Ele está assim pequeno porque  deixei apenas o coração da criança.”

Após ouvir isso despertei, e não apenas daquele sonho. Olhei pela janela: já amanhecia . Queria registrar o sonho e me virei para procurar  caneta e papel. Então, algo que estava sobre meu peito caiu ao meu lado na cama, era um livro que adormeci lendo: “O Eu Profundo e os outros Eus”, de Fernando Pessoa.


                               "As terapias verbais me terapeutam." (Manoel de Barros)






sexta-feira, 10 de setembro de 2021

o bilhete do carrasco

 

Segundo Espinosa, é uma ilusão imaginar que um homem autoritário  poderia se tornar um homem justo se assim o quisesse, como se a passagem da tirania  à justiça   dependesse  de um ato de vontade de tal homem.

 É ilusão ainda maior imaginar que quem promove a morte e a ignorância um dia mudará e passará a cultivar a vida e o conhecimento. Esse tipo  de ilusão é comum aos que se colocam  como “neutros” politicamente, além de ser a máscara esperta  dos dissimulados que tiram proveito comercial da ignorância e da necropolítica , porém posam de indignados em “notas de repúdio”  cínicas.

Essa ilusão psicológica, que se torna trágica no campo da política, nasce da  crença que se alimenta de uma passionalidade emotiva, que abdica de agir e passa a “esperar” que, enfim, o carrasco se tornará um amigo empático ao nosso sofrimento.

Publicamente,  o carrasco até finge que mudará, mas entre os seus ele ri e zomba enquanto afia seus instrumentos de tortura. Se um homem autoritário , perverso e torturador   não consegue se tornar alguém diferente,  é porque disso ele não é capaz, ou seja, essa incapacidade é uma amostra pública não da  impotência  de sua  vontade, mas da natureza vil de seu caráter, um caráter de torturador sádico.

Se olharmos para aquilo que ele de fato  é,  e  não com  esperanças cegas  de como ele deveria ser, veremos que o torturador tem uma vontade bem determinada. Determinada não em mudar, e sim  determinada em continuar a  torturar: a nós, aos doentes, a democracia.

Se um homem alcançou o poder por intermédio do voto não escondendo  de ninguém que é autoritário, genocida, preconceituoso, misógino...é uma ilusão achar que ele mudaria de natureza exatamente quando chega ao poder , como pensavam que  mudaria,  e ainda pensam que  vai mudar  , setores da mídia golpista e parte do judiciário que apoiaram e ainda apoiam , por cumplicidade, covardia  ou conveniência,  o genocida. Bastou o genocida escrever ontem  , a quatro mãos com o golpista Temer, um bilhete ambíguo se dizendo um arrependido, bastou isso para a bolsa subir e o mercado voltar a estender a mão para o fascismo, sinalizando estar disposto  a pagar qualquer preço que impeça a vitória de um projeto   popular e progressista em  2022.

Segundo Espinosa, a obtenção de  poder nunca tornará um tirano democrata, a não ser em palavras, enquanto ele ganha tempo para melhor planejar na surdina suas vilezas. A obtenção de poder tornará esse homem ainda mais despudorado  em ser como ele é , ao mesmo tempo que conseguirá reunir com mais submissão gente ao redor dele, gente que é como ele  , mas que tinha vergonha de assumir sua ignorância e baixeza  em público.

Por outro lado, isso também deixará mais evidente quem é diferente dele e de seu rebanho lunático , e a eles resistirá - com ideias que nos agenciem  e  gerem ações  firmes.

quarta-feira, 8 de setembro de 2021

poetas da tribo

 

Quando entrou em contato pela  primeira vez com a mentalidade do homem branco, o pensador indígena  Krenak disse que a ideia mais incompreensível para ele era de que o mundo estava condenado a um fim, a um “Juízo Final”. Ele não entendia  como  essa visão destruidora podia ser  a base de uma religião que se dizia do Amor.

Além disso, essa visão de que a terra, a Mãe-Terra, teria um dia fim parecia legitimar que o homem branco  já começasse a destruí-la   desde agora, derrubando suas florestas, poluindo seus mares e rios, enfim,  ameaçando de extinção os povos da floresta.  

Mas os povos da floresta têm um antídoto que os protege da mentalidade branca niilista.  Esse antídoto não está no cacique , o “chefe político”, ou no pajé, o “chefe religioso”; esse antídoto está naquele que é chamado de   “pessoa coletiva”.

Nos povos da floresta a “pessoa coletiva” não é alguém com “muitos eus” ou “personalidades”. Diferentemente, a “pessoa coletiva” é aquela que diz narrativas que expressam o “nós” da comunidade.

A própria linguagem ensina que não existe apenas uma pessoa  , mas seis : eu, tu, ele, nós, vós, eles. Enquanto o branco imagina  ser o “eu” a única pessoa, os povos da floresta pouco dizem “eu”, pois conjugam seu mundo na primeira pessoa do plural: o nós da pessoa coletiva.

Somente sendo uma “pessoa coletiva” se pode ser uma singularidade. A “pessoa coletiva” não profere ordens e nem cultos, ela tece narrativas. São as narrativas de uma “pessoa coletiva” que potencializam a comunidade para enfrentar as ameaças de fim de mundo.

A “pessoa coletiva” é o poeta da comunidade. Entre os povos da floresta, o poeta não tem nome próprio designando um ego, pois seu nome é “pessoa coletiva”.

O poeta da tribo expressa um poder  diferente daquele que exerce o cacique, o poeta   promove curas para enfermidades que o pajé não consegue  curar, e trava guerras cujas armas não são lanças ou flechas, pois sua guerra é a resistência por intermédio  da palavra que não deixa morrer um mundo, o mundo dos povos da floresta. 

 A “pessoa coletiva” é um “agente coletivo de enunciação”, diriam Deleuze e Guattari; e nela fontaneja um “afloramento de falas”, tal  como aflora na  pessoa coletiva Manoel de Barros, um dos poetas da nossa tribo. Segue um trecho do livro de Krenak:


"Como os povos originários do Brasil lidaram com a colonização, que queria acabar  com o seu mundo? (...)Vi as diferentes manobras que os nossos antepassados fizeram  e me alimentei delas , da criatividade e da poesia que inspirou a resistência desses povos.(...)Muitas dessas pessoas não são indivíduos, mas 'pessoas coletivas', células que conseguem transmitir através do tempo suas visões sobre o mundo." (Ideias para adiar o fim do mundo, p. 28)




 



segunda-feira, 6 de setembro de 2021

o pastor e a sábia indígena

 

Minha querida avó sempre dizia que o orgulho não é coisa boa. Mas creio que ela me perdoaria acerca de um orgulho profissional que nutro. Pois tenho orgulho de ter sido demitido pelo pastor Malafaia. Eu era bem jovem à época , estava começando a dar aulas de ética e filosofia,  e esse senhor era um dos donos, não sei se ainda o é, de uma faculdade privada onde eu lecionava.

De forma autoritária, ele queria se intrometer nos conteúdos e na maneira como deveríamos dar aula. Ele queria ser também nosso dono. Como não aceitei, fui demitido.

Hoje vejo que aquela demissão não foi uma perda, mas uma vitória do ponto de vista da ética e da filosofia, apesar do preço ter sido alto do ponto de vista pessoal e material , pois fiquei desempregado.

E sei que minha querida avó, já falecida à época, com seu sangue indígena de alguma forma me ajudou a ter coragem.

a expressão democrática

 

A liberdade de expressão e opinião é um dos pilares da democracia. Na Grécia democrática, por exemplo, essa prática acontecia na ágora, o coração da pólis.

“Ágora” vem de “agon” , que significa “conflito” ou “disputa” . A ágora era a praça pública.  Na ágora não aconteciam disputas armadas, pois na ágora a disputa era realizada mediante palavras  que expressassem perspectivas, razões, argumentos -  sempre visando o bem comum da pólis.

A palavra “pólis” significa “cidade” ou “organização”. Este  sentido   está presente em “própolis”:  “ a favor da pólis”, pois a colmeia é uma pólis, uma organização. Na ágora, a palavra democrática era a própolis para fortalecer a pólis e sua pluralidade de perspectivas.

Em latim, “pólis” será traduzida por “civitas”,  “civilização”. Assim, o centro da pólis-civilização não é o templo ou o quartel, tampouco o mercado e sua avidez por juros e lucros. O centro da pólis-civilização é a praça, um espaço aberto e plural, sem dono ou proprietário .

As praças são espaços abertos às ruas democráticas que conectam o centro à periferia , onde gritam por dignidade  os excluídos e excluídas, muitos já quase sem comida em casa.

Muito diferentes são as ruas  suspeitas  que partem  de condomínios fechados onde se escondem carrascos que enriqueceram com o crime  . Foi de uma rua sinistra assim   que partiram os assassinos milicianos de Marielle. Hoje, um vizinho e amigo  desses  milicianos quer pôr na rua seu bando para tentar assassinar  a democracia.

A liberdade de opinião e expressão é um direito garantido pela Constituição. Mas esse direito é apenas uma forma . E uma expressão nunca é apenas uma forma, pois “expressão” vem de  “ex-pressio”: “trazer para fora” o que cada um tem dentro.

A expressão opinativa é prática discursiva que põe um conteúdo numa forma. Se o que alguém cultua dentro de si  é apenas  ódio, ignorância, idiotia, enfim, incivilidade, são esses conteúdos que serão trazidos para fora de sua obscura alma  .

 O discurso teológico-político expressa essa mentalidade de trevas. E quem tem mentalidade assim não consegue esconder: basta abrir a boca que a incivilidade se revela.

Quando esses conteúdos obscurantistas se convertem em ameaças à vida plural e democrática , já não se trata mais de opinião, religião ou pátria,  e sim de crime . Um crime mais grave  e perigoso  do que os cometidos contra  a propriedade,  que são os crimes que  levam à cadeia os pobres.

Histórica e  politicamente,  a praça e a rua não são dos fascistas  e nunca serão, por maiores que sejam suas ameaças. As ruas e praças pertencem, por direito e não por violência,  à expressão democrática.

Devemos ter cuidado, sempre . Mas nunca temer . Pois , como diz Espinosa, uma das maneiras que todo projeto de  tirano tem de parecer mais  forte é tentando nos provocar tristeza e medo que nos imobilizem e calem.




sábado, 4 de setembro de 2021

o tato

 

Dos cinco sentidos que possuímos , o tato é o mais ancestral. Muitos seres vivos não têm olhos e nem ouvidos, porém possuem algum tipo de tato. Pois não existe ser vivo que não possua tato. É pelo tato que o ser vivo toca e é tocado.

De tato  vem “contato” ( “con-tato”). Não só os corpos fazem contato quando se abraçam, também fazem contato as almas quando se entendem mutuamente.

A palavra “afeto” se origina de um verbo latino que significa “ser tocado”. Assim, o afeto é uma questão de tato: tato consigo, tato com os outros, tato com o universo. Muitas vezes, não basta ter olhos e ouvidos para compreender uma situação, é preciso ter tato.

Empatia, solidariedade, tolerância, justiça, o conviver democrático das diferenças...Tudo isso pressupõe , primeiramente, tato social.

De tato também vem “intuição”. Enquanto a “dedução” é um procedimento lógico-abstrato, a intuição é um contato imediato e concreto com a realidade, tanto as externas quanto as internas.

Todos os outros sentidos vieram do tato. O gosto, por exemplo, é o segundo sentido mais ancestral, e nasceu também do tato. Pois o gosto nasce quando algo toca/afeta nossa língua e boca. Não por acaso, “saber” vem de “sabor”. Há ideias que a gente consegue sentir o gosto delas, se são alimento ou veneno. E ninguém descobre a importância do ler e do pensar se não desenvolver, antes, o gosto pela leitura e pelo pensar. Pois o gosto não é algo meramente teórico, o gosto está envolvido com nossa vida e nossas ancestralidades  corpóreas .

Mesmo a visão, tida como o sentido mais intelectual e espiritual, mesmo ela nasceu do tato! Isso aconteceu há milhões de anos , e tem por personagem  um ancestral nosso que vivia debaixo d’água. Ao ser afetado/tocado pela luz, esse ancestral conseguiu fazer com que parte da pele dele se especializasse em sintetizar as ondas luminosas. Ele passou essa capacidade  para seus descendentes e, com a evolução, surgiu  uma abertura ao mundo visível:  nasceu a visão. Sem a inventividade desse ancestral submerso nas cristalinas águas, não teria podido  surgir Platão e sua contemplação do Mundo Celeste...

Ninguém melhor do que Clarice Lispector compreendeu essa potência  inesgotável do tato enquanto “(re)descoberta do mundo”. Ela dizia que escrever não é retirar de dentro da cabeça ideias prontas  já conhecidas e pensadas. Escrever é pôr-se na ponta dos pés, elevando-se o máximo possível , mas sem perder o con-tato com a terra. Depois , esticar os braços e mãos o máximo que pudermos , para  com a ponta dos dedos do pensamento tocar e colher, com o afeto-tato, o fruto que nasceu da árvore mais alta, e que parecia, aos olhos,  inalcançável.


"O mais profundo é a pele." (Paul Valéry)






quinta-feira, 2 de setembro de 2021

Espinosa e o cuidado

 

Em sua Ética, Espinosa coloca o “cuidado” como prática fundamental, sem a qual não há filosofia, poesia, cultura, liberdade, democracia, enfim, vida. A palavra cuidado vem do latim “caute”. 

Cuidado não é a mesma coisa que medo. Pois medo é um receio de agir, ao passo que o cuidado é um agir mais do que necessário diante de tudo aquilo que é frágil e depende de nós, de nossa ação.

Frágil não é a mesma coisa que fraco. Frágil é tudo aquilo que traz em sua imanência uma potencialidade ainda a aflorar. Por exemplo, a criança é frágil, ela não é fraca. A criança é frágil porque há nela uma potencialidade que precisa de cuidados para crescer e frutificar. Educação, cultura, amor, o lúdico...Tudo isso são cuidados dos quais a criança precisa para que dela cresça um  adulto que  também exercerá a prática do cuidado.

A semente igualmente é frágil: ainda por nascer, há em sua imanência uma árvore da qual surgirão  frutos com novas sementes dentro . Mas essa potência somente se tornará real se for cuidada. Calor, água, terra fértil...São os meios com os quais o jardineiro  cuida da semente.

Fraco, ao contrário, é tudo aquilo que põe em risco a prática do cuidado e os seres que o cuidado potencializa. Fraco é o que somente sabe destruir, por isso seu culto às armas e às motosserras, físicas ou simbólicas. Os fracos querem sempre destruir essa virtualidade em nome de um presente reativo e cultuador  de um  passado obscuro. Fraqueza é ressentimento e espírito de vingança;  enfim, fraco é o autoritário que quer se impor gritando, ameaçando, apontando armas.

Assim, o cuidado é prática ética, pedagógica  e política para proteger tudo o que é frágil, em nós, nos outros, na sociedade, na natureza. Mas a prática do cuidado enquanto tal não pode ser frágil. A semente depende do amanhã para virar árvore e floresta, a criança depende do amanhã para se tornar adulto, porém a prática do cuidado não pode esperar pelo amanhã, pois ela é sempre necessária no aqui e agora, já.

O cuidado é prática que se faz no presente garantindo que haja futuro , a despeito das forças do passado que sempre querem  a regressão, o atraso, o retrocesso.

Por isso, a prática do cuidado tem que ser a mais potente possível, a mais firme, sem medo, com coragem, sem receio, perseverante.