Há uma passagem da vida de Édipo , o
personagem grego, na qual ele luta contra um oficial fardado mais velho que
ele. Édipo consegue matar esse oficial. Quando o oficial cai no chão, Édipo tem a sensação de que o conhece mas não sabe
de onde. Sem que Édipo conscientemente soubesse, aquele oficial era o pai dele. Dessa
maneira , aquele mesmo ato tinha dois sentidos: o primeiro deles era objetivo e factual, o fato de ele
ter matado alguém; e havia também um sentido implícito, latente, subjetivo,
explicável pela “memória inconsciente” de Édipo ( pois , de acordo com a
profecia, Édipo iria matar seu pai). Às vezes, o gesto que alguém faz só fica
claro se nós compreendermos os aspectos inconscientes que envolvem o ato. Por exemplo
, se A vem sempre visitar a casa de B, e
C adquire a memória disso (sendo C o porteiro) , assim que A aparece C o associa a B, ainda
que , naquele dia, A diga que vai à casa de D. Assim, o consciente de C ouvirá a informação nova, mas sua mão inconsciente escreverá no registro : “A vai à
casa de B”. Como ensina o meu querido ex-professor Luiz Alfredo Garcia-Roza em
seus romances policiais cujo detetive se chama exatamente “Espinosa”, tenhamos cuidado e cautela com investigadores
e procuradores que só se fiam nas
aparentes “objetividades” e, fiando-se nelas, arquivam apressadamente um caso.
quinta-feira, 31 de outubro de 2019
terça-feira, 29 de outubro de 2019
o menino espinosa
Desde
adolescente Espinosa ajudava o pai, que era comerciante. Certa vez, o pai de
Espinosa lhe pediu que fosse cobrar uma dívida bem atrasada de uma senhora que
tinha posses, porém sempre atrasava nos pagamentos, e isto quando pagava...O
ainda menino Espinosa bateu à porta da tal senhora, ela apenas entreabriu, viu
que era o menino-filósofo e disse, com
um tom de voz meio teatral: “um momento, estou terminando de ler a Bíblia”.
Após algum tempo ela abriu a porta, já
passando apressadamente um envelope a Espinosa, dizendo: “ eis o pagamento.
Desculpe a demora, primeiro sempre a religião. Nunca se esqueça, meu filho:
Deus acima de todos”. Mal sabia aquela senhora que o pai de Espinosa mandou o
garoto , e não outro filho mais velho, porque o menino filósofo tinha a arte de
ler o que alguns tentam esconder dissimulando na alma, mas que se torna visível nos gestos do corpo, para quem os sabe ler. O menino
recebeu educadamente o envelope, porém o abriu antes de ir embora e
contou as notas, apenas para confirmar o que ele já sabia , dizendo então com
firmeza : “minha senhora, o valor está incompleto, está faltando .” Sem dizer
nada, mas fechando a cara, a senhora tirou um punhado de notas que escondia no
vestido e , com ódio, o passou a Espinosa, logo em seguida batendo a porta.
Antes de ir, o menino filósofo ainda ouviu a mulher gritar: “esse menino é o
demônio!...”
"Um livro forjado no inferno", era assim que os detratores e perseguidores de Espinosa se referiam ao livro "Tratado teológico-político", no qual Espinosa argumentava acerca dos imensos perigos para a democracia quando religião e política se unem para se apoderarem do Estado, para assim usarem a força policial para perseguir quem pensa diferente:
sábado, 26 de outubro de 2019
a porta de Marielle
No
Museu da Maré há um espaço dedicado a
Marielle Franco. Na exposição que leva seu nome, foi escolhido um objeto singular para nos fazer lembrar a vereadora: nada mais nada menos do que a porta do seu gabinete .Enquanto era parte de
seu gabinete, a referida porta era muito diferente de uma porta habitual, pois Marielle costumava colar mensagens nela, além de sempre mantê-la aberta àqueles que vinham procurar por sua
ajuda.
Pela
ação de Marielle , aquela porta continha uma potencialidade de sentidos. E
“potencialidade de sentidos” é o outro nome pelo qual atende a poesia enquanto prática de ressignificar as
coisas e o mundo. Pois poesia não é só versos: poesia também é produção de
sentidos que podem transformar uma
simples porta em um agente coletivo de
enunciação . Quando um objeto é parte da
produção de sentidos, ele deixa de ser
coisa inerte e se torna expressão de um mundo, ao mesmo tempo objetivo e
subjetivo, tangível e intangível. Transportada então para o interior do Museu
da Maré, aquela porta se tornou um símbolo-mensagem do próprio ser de Marielle:
porta aberta, receptiva, como seu sorriso.
Não
por acaso, na mitologia era sob uma porta aberta, espaço de travessias, que se manifestava
Hermes, a divindade associada à
comunicação das mensagens que requerem a
prática da interpretação. Em grego, “interpretação” se escreve “hermenêutica”:
“atividade relativa a Hermes”. Mensagem não é a mesma coisa que informação. “A
capital do Brasil é Brasília”, “dois mais dois é igual a quatro”, tais coisas
não são mensagens. Mensagem é tudo aquilo cujo sentido requer a atividade de
interpretação: “A palavra abriu o roupão para mim: ela quer que eu a seja”,
este verso de Manoel de Barros não é informação, é mensagem. “O homem é um
animal político”, outra mensagem. Mensagem não é para se decorar ou reproduzir,
mensagem é para despertar nosso pensar e nosso sentir para aprendermos a ler
mais do que frases ou palavras, e assim lermos também o mundo. Nem sempre
mensagens se vestem com palavras, às vezes as mensagens vêm inscritas
nas coisas ou são as próprias coisas portando sentidos a serem
interpretados. Enquanto objeto exposto , a porta de Marielle é mensagem que
simboliza o sentido da travessia e da abertura ao outro, sobretudo ao outro que é marginalizado, injustiçado, explorado,
perseguido.
Os
Museus Casa são espaços que já foram residência, quase
sempre palácios e mansões, em geral de
gente oriunda da elite. O museu Casa de
Rui Barbosa, por exemplo, foi a casa de verdade de Rui Barbosa. Mas pessoas do
povo como Cartola, Nelson Sargento, Lima Barreto, Maria Carolina de Jesus, e tantos outros, não tiveram casa para ser
patrimônio musealizado. A casa deles é a favela, a cultura popular, a
resistência, a criatividade e a inventividade do povo que luta. A porta de Marielle
é parte de uma casa assim: uma casa plural, aberta, heterogênea.
Os
assassinos de Marielle obstruíram covardemente seus passos. Mas a porta que ela
simboliza , enquanto abertura à justiça, à educação e à cultura, esta porta nós
não podemos deixar fechar.
sexta-feira, 25 de outubro de 2019
quarta-feira, 23 de outubro de 2019
a clínica de Espinosa
Só confie naqueles que te dão amor sem hesitar.
(provérbio grego)
A obra de Espinosa é múltipla e vária. Físicos, biólogos, poetas, psicólogos , pensadores da política...são muitos os saberes e práticas que encontram em Espinosa um intercessor no auxílio para um pensar e agir que façam frente a esses tempos distópicos . A Ética de Espinosa é inseparável de uma clínica , ao mesmo tempo medicina mentis e medicina corporis. Não se deve entender “mentis” ou “corporis” apenas como a mente e o corpo individuais, pois a sociedade também possui seu corpo e sua mente, expressos como sua vida econômica-material e seu sistema de ideias. Em Espinosa , a saúde da mente individual não pode ser conquistada se a mente coletiva estiver doente. Sua clínica não é um ódio à doença, mas um amor à saúde ( nos vários sentidos que as palavras amor e saúde têm). A saúde da mente individual é o pensar criativo e livre ( a filosofia), ao passo que a saúde do corpo social é a justiça, sendo a democracia a saúde da mente coletiva.Em Espinosa, portanto, ética, política e clínica são nomes diferentes para um mesmo pensamento e prática de desadoecer a vida( pessoal e coletiva).
Obs.: este texto é parte da fala que farei no evento Espiral dos Afetos, na Uff, dia
31/out. O evento começa neste domingo:
- imagem:
Espinosa. A paleta de Espinosa não se reduz ao preto ou branco, azul ou
rosa: a paleta de seu pensar é multicor.
terça-feira, 22 de outubro de 2019
sobre os fios
Há uma rica simbologia acerca da
ideia de “fio”. Em primeiro lugar, não se deve confundir um fio com uma linha
que se traça com réguas. Linhas traçadas
com régua partem de um ponto, o seu início, e terminam em outro ponto dito
final. Entre esses dois pontos, encontra-se uma quantidade indefinida de pontos
, todos exteriores uns aos outros. O mesmo não acontece com um fio. Todo fio
possui uma extremidade visível, tangível, assim chamada de “ponta”, ao passo
que a outra extremidade do fio se encontra enrolada em um novelo do qual
puxamos o fio. Todo novelo é uma virtualidade que se desdobra em fio. Não
importa se é o fio de um cabelo, o fio de uma narrativa, o fio do tempo ou o
fio de uma vida: todo fio nasce de um novelo-fonte, de um novelo-nascente, tal
como os rios que nascem de um minadouro ou os fios de luz que se desprendem do
sol. Ao contrário da linha traçada com régua, cujo ponto inicial é precedido
por nada, todo fio permanece sempre ligado “à origem que renova”(Manoel de
Barros) , de tal modo que seu desdobrar nunca acaba.
Um fio não é feito de pontos
descontínuos , mas de uma força ou potência contínua que persevera brotando de
si mesma. Na mitologia, o “Fio de Ariadne” é o símbolo arquetípico de todo fio.
Em grego, “Ariadne” significa “Aranha”. Assim como a aranha puxa o fio de seda
de dentro de si mesma, o fio de Ariadne , fio do afeto, é puxado do seu ventre
sempre fértil. O fio de Ariadne é necessário para aqueles que precisam vencer
labirintos e produzir “linhas de fuga”, como diz Deleuze. O fio de Ariadne
também é o fio do sentido que liga uma palavra à outra, para assim narrar
mundos. Um fio parece pouco, quase nada, mas às vezes é ele que nos salva
quando estamos perdidos, com régua na mão.
Há casos em que o fio se encontra
escondido, sendo preciso redescobri-lo. Arthur Bispo do Rosário, enquanto
interno de um hospital psiquiátrico, era vestido com uniformes homogêneos. Mas
certa vez ele desfez a forma dos uniformes até achar o fio de que eles eram
feitos. Com esse fio primordial e ancestral, Arthur Bispo do Rosário bordou sua
história, conseguindo expressar o que tinha de singular e vivo. Cada bordadura
reatava o fio de sua existência ao novelo da experiência humana, e assim Arthur
emendava o fio que a loucura e o poder cortaram. “Novelo” significa “novo elo”.
Fios existem para possibilitarem novos
elos e agenciamentos, para assim irmos
além do isolamento ensimesmado dos pontos-egos.
“Pensamos em novelo” (Maria Gabriela Llansol)
(texto publicado originalmente no
site Ateliê de Humanidades : https://ateliedehumanidades.com/2019/08/31/fios-do-tempo-sobre-os-fios-por-elton-luiz-leite-de-souza/).
-Museu Bispo do Rosário:
http://museubispodorosario.com/?fbclid=IwAR2RmKgQgCqPVQugtc6AfrZ9fgZNpVjF6k113pOFV43SyDh3N7La4Uxpybk
sábado, 19 de outubro de 2019
o gentileza
Vestido com uma longa bata branca, barba
e cabelos grisalhos , um
sorriso simpático no rosto, a todos ele dizia, ao mesmo tempo oferecendo flores:
“GENTILEZA GERA GENTILEZA”. As pessoas o
chamavam de “Gentileza”, o Profeta Gentileza. Ele não anunciava o fim do mundo,
ao modo dos profetas a serviço do poder
teológico-político , mas como o mundo poderia recomeçar: por intermédio da gentileza em seus vários sentidos.
"GENTILEZA GERA GENTILEZA”. Este era seu
mantra, seu ritornelo. Alguns riam dele e o supunham louco; outros o tinham por
sábio. Mas a todos ele ofertava, sorrindo, as flores: sem nada pedir em
troca...Ele nos ofertava flores e nos pedia apenas gentileza. Não gentileza com
ele, pois ele já a possuía e doava. Ele pedia gentileza para com os outros e
para com a gente mesmo, gentileza com o planeta, gentileza com o conhecimento, gentileza
com o cosmos, gentileza com Deus ,incluindo a gentileza de parar de fazer dele
cabo eleitoral...
“Gentileza” provém de “gentil”. “Gentil”, “gente” e “generoso” procedem de
uma mesma raiz: "gens", que significa exatamente gerar - como a
gentileza que gera gente generosa. Espinosa, por sua vez, dizia que a filosofia
é uma espécie de medicina que visa produzir uma “regeneratio” , uma
regeneração. “Re-generar” também tem por
raiz “gens”, e significa: gerar de novo vida no que parecia morto.
Ser gentil não significa ser
"bonzinho". O vaidoso é "bom" com quem o lisonjeia, o
avarento é "bom" com quem lhe deixa migalhas , o tirano é
"bom" com os obedientes. Tais "bondades" e outras afins nada
têm a ver com gentileza. O oposto da
gentileza é a vileza. Há "bondades"
vis, porém a gentileza é sempre nobre, mesmo quando critica ou diverge,
como Deleuze divergindo de Foucault.
O que impede a gentileza? O Profeta
respondia: “O que impede a gentileza é o capetalismo”. O “capetalismo” não é
apenas o capitalismo enquanto sistema
econômico. O “capetalismo”, dizia ele, destrói o planeta, ao mesmo tempo
destruindo o que há de nobre no homem,
deixando só a vileza. Pois o “capetalismo” também é o ódio, a ignorância cheia
de si, o preconceito , o culto ao Mercado...E ele dizia tudo isso sem ódio ,ele
o dizia nos entregando flores , sem perder a gentileza. Os milicos da ditadura
o tinham por subversivo, pois em um mundo
onde o ódio e ignorância dominam, outrora
como hoje, a gentileza também pode ser
uma forma de resistência contra a vileza.
(imagem: capa do belo livro do amigo
Leonardo Guelman)
terça-feira, 15 de outubro de 2019
ao dia dos professores 2
Dia desses, numa manhã muita bonita, vi passar um senhor bem idoso, porém firme e altivo. Vê-lo fez reviver dentro de mim uma palavra que há muito eu não dizia. Foi a “potência-alegria” de que fala Espinosa o que senti ao saber que tal palavra ainda em mim vivia , à espera de reencontrar aquele a quem ela designa e nomeia. Essa palavra não estava escrita no meu cérebro onde se acumulam teorias, ela estava guardada em meu coração ,lugar do Afeto, junto à lembrança dos seres que conheci e que me tornaram o que sou. Foi então do coração que a palavra veio subindo, já com pleno sentido, embora ainda sem se vestir com o som. Quando ela chegou à minha boca, tornou-se voz e chamou: “Mestre!!!”. Aquele senhor era um querido professor que tive há muito tempo. Ele me reconheceu , sorriu e estendeu a mão para mim, encontrando a minha que já lhe estava estendida desde a primeira aula dele que assisti . Não sei ao certo quanto tempo conversamos, o durar do afeto não o mede relógios. Quando nos despedimos, fiquei parado vendo-o ir, e pensei: ”Será que ele sabe o quanto foi importante em minha vida?” Antes de ele ir, olhei seu rosto e tive a impressão de que ele também estava a recordar-se do mestre que teve e que o inspirou a ser mestre, e por isso ele entendia minha gratidão. E esse outro mestre do mestre, se vivo estiver, também deve estar se lembrando, hoje, daquele que o fez mestre. Pois hoje é dia não exatamente de nos lembrarmos de nós mesmos , mas daqueles que nos fizeram ser o que somos, professores. É sempre o aprender que vem primeiro. O autêntico professor gosta de ensinar porque, antes, amou aprender com aquele que lhe ensinou lições que não estão apenas em livros. Creio que nos tornamos professores quando o mestre que nos fez mestre não vive apenas fora, ele passa a viver dentro da gente, e com ele continuamos a aprender mesmo enquanto ensinamos. Assim, apenas sob certa perspectiva aquele meu antigo mestre se afastava de mim, sob outra perspectiva ele nunca de mim saiu desde que , com suas aulas, em minha vida entrou , passando a viver na companhia de outros queridos mestres que igualmente entraram em mim e me tornaram o que sou : a Professora Nadir ( minha primeira professora de filosofia e quem me libertou), o inesquecível Cláudio Ulpiano, o generoso Luiz Alfredo Garcia-Roza , o grande Gerd Bornheim e o sábio Junito Brandão : “O melhor de mim sou Eles”(Manoel de Barros)
ao dia dos professores
Tempos atrás, um amigo me perguntou se eu aceitaria
lecionar filosofia para seus dois filhos, um de 10 anos e outro ainda mais
jovem. Aceitei. O curso era para durar 1 mês, acabou durando 1 ano. O mais
velho se chamava Alexandre, carinhosamente rebatizado Xandinho. Certo dia , ele
e o irmãozinho estavam brigados. Aproveitei para dizer ao Xandinho: “você sabia que ‘Alexandre’ significa
‘protetor da humanidade?’”. Ao ouvir isso, ele
olhou para o irmãozinho e, sem dizer nada, o abraçou com cuidado . Naqueles encontros,
eu “ia até à infância e voltava”, como diz Manoel de Barros, e aquele que ia
não era o mesmo que retornava. E o que voltava vinha de lápis de cor na mão, e
aprendia que as ideias que valem a pena ensinar
se deixam desenhar com lápis de
cor. Algumas ideias eu ensinava falando, outras eu desenhava para eles
colorirem: a forma era minha, mas as
cores eram eles que escolhiam para pintar, com as mãos livres . E eles coloriam
sempre multicoloridamente, nunca em
preto e branco.
Perto do fim do ano, houve um
feriadão. Toda a família desse amigo viajou para Londres, incluindo os dois
meninos. No retorno, assim que entrei no apartamento, o pai pediu para o
Xandinho me narrar o que aconteceu em
Londres, mas o menino saiu correndo,
como se tivesse feito uma arte, uma “peraltagem”, diria Manoel de Barros . Eles foram ver,
entre outras coisas, a cerimônia na qual a Rainha da Inglaterra passa à frente do público, e
todos se ajoelham em reverência, olhos no chão. Então , o pai mesmo me contou o que aconteceu: quando a Rainha
, cheia de pompa e ouro, passou diante deles, todos se ajoelharam diante de seu
poder, exceto o Xandinho. Ele ficou em pé, de braços cruzados, firme, olhando
diretamente para a Rainha, que virou a cabeça para olhar , espantada, o pequeno insubmisso. Quando a mãe indagou ao
menino porque ele não se ajoelhou como todo mundo, ele respondeu : “Não ajoelho
diante de quem é igual a mim”. Ao ouvir isso, a mãe disse ao pai: “acho que já
está na hora de nosso filho parar de ter aulas de filosofia...”. Nesse mesmo
dia em que ouvi o relato, dei minha última aula aos garotos. No fim, o menino
da peraltagem me perguntou: “Vai ter
prova?”. Respondi: “Não , você já está aprovado. Com dez.”
(para a querida Professora Nadir, que
lecionou filosofia para mim no 2º grau, a primeira professora que me ensinou a ficar de pé)
domingo, 13 de outubro de 2019
devir-lunar
Segundo Heidegger, o mundo atual confunde o “diminuir a distância” com o “criar proximidade”. A técnica diminui as distâncias, sem dúvida. Contudo, uma coisa é diminuir as distâncias entre seres no espaço, outra bem diferente é criar proximidade com o sentido. O telescópio diminuiu a distância entre a lua e meus olhos, isso é certo. Mas quando leio um poema sobre a lua, de que lua se trata? O poema não põe a lua mais perto espacialmente de mim, porém ele pode pô-la a tal ponto próxima que a descubro dentro de mim, como o devir-lunar que me torno.
a própolis e o formol
O nascer é um acontecimento que
apenas o verbo pode dizer. Os anos que vivemos parecem que vão nos afastando
daquela origem, e chamamos a isso, equivocadamente, de "crescimento".
Pois quando vamos nos tornando adultos, aumentamos em matéria e substância por
fora, não necessariamente em inauguramentos criativos por dentro . Talvez seja
por isso que o poeta Manoel de Barros tenha dito: “Quando crescer vou virar
criança."
Contudo, a força que nos faz nascer e
nos conserva no viver não são duas, elas são a mesma, única – como viu
Espinosa. A força que conserva é a mesma que cria: somente o que é criado,
nascido, pode ser conservado. Seria absurdo querer conservar apenas a mesa que
o carpinteiro produziu, descuidando do próprio carpinteiro e sua potência
criativa de produzir mais mesas, inclusive de produzir mesas diferentes
daquelas que até hoje ele criou. É no produtor, e não no produto, que criar e
conservar andam juntos: o que se deve conservar é o ato de produzir o novo, e
não apenas o produto pronto desse ato. É isto, por exemplo, que faz a própolis:
ela conserva a vida da colmeia, para que esta se proteja das doenças que querem
, de dentro, fragilizá-la ; e, ao mesmo tempo, a própolis é força que ajuda a
colmeia a se manter viva, reinventando-se, perseverando na vida.
Criar e conservar se tornam ideias
antagônicas quando se quer colocar o conservar antes do criar, vendo no criar
algo que ameaça uma “Ordem” rígida , paranoica. Um conservar assim é o que faz
o formol: serve para conservar apenas o que já está morto e não se reinventa mais.
Arte, filosofia, educação são própolis; protofascismo fundamentalista é formol.
sábado, 12 de outubro de 2019
AO DIA DAS CRIANÇAS ( que possamos [re]inventar devires-crianças)
O poeta Manoel de Barros já passava
dos 80 anos quando um editor pediu que
ele escrevesse três memórias: da
infância, da vida adulta e da velhice. Afinal, quem chega aos 80 anos parece
que tem muito a falar de si...Depois de
algum tempo, o poeta enviou ao editor o seguinte livro: “Memórias da primeira
infância”. Meses depois, nova publicação: “Memórias da segunda infância”. Após
novo intervalo, outra obra nasceu: “Memórias da terceira infância”. Como as
memórias da vida adulta e da velhice não apareciam, o editor indagou Manoel a respeito, e assim o poeta respondeu: “ só tive infância, não tive velhez”.
A “velhez” não é uma idade, “velhez” é quando os dias vividos se tornam um peso curvando nossas costas, não importando a idade
que se tenha; e se teme pelo amanhã com
medo de não se suportar mais esse fardo .
“A única coisa que carrego é meu
chapéu: moro debaixo dele”, explica-se o andarilho-poeta. “Chapéu” é como Manoel
nomeia as ideias que protegem os
pensamentos que dão caminho às pernas: “sobre
o meu chapéu um casal de pardais fez um
ninho: há nele ovos sendo chocados, como dentro de mim dias
novos”.
A "velhez" é um tipo de vida, individual ou coletiva,
que se perdeu de seu "embrião", de seu começo . O começo ou embrião
não está num passado remoto e morto. Mesmo o imenso rio amazonas tem seu
embrião lá no alto dos Andes: mesmo há muitos anos a correr , o rio ainda está a nascer agora,
umbilicado às águas novas. O que para o
rio são as águas, para o poeta são as fontanas palavras de seu
“devir-criança”: “A palavra até hoje
me encontra na infância : na ponta do meu lápis tem apenas nascimento”
(Manoel de Barros).
quinta-feira, 10 de outubro de 2019
exterminadores do futuro...
Quando esse governo protofascista
abre a boca , doem nossos ouvidos...Arma da barbárie, sua motosserra sangra as
árvores , ao mesmo tempo que sua caneta ignorante assina sentenças de morte
contra o pensar livre. À sombra da lei, sua milícia negocia e mata à solta,
enquanto seus piratas engravatados assaltam os bens públicos e os vendem a
preço de banana, acobertados pela capa sonsa do ex-juiz vendido. Precisamos
reagir, transformando indignação em ação que tenha potência, força. Não são
disputas verbais entre nós para ver quem tem mais razão que podem nos tirar
desse pesadelo que asfixia nosso presente . Para nos ajudar a sair da inércia e
avançar, talvez precisemos que nos empurrem pelas costas as mãos dos nossos
antepassados que , outrora, enfrentaram as forças do atraso e se fizeram
exemplo de luta contra a Casa-grande. Pois à nossa frente, em um futuro
ameaçado, nossos descendentes ainda nem nascidos esticam suas mãos em nossa
direção e esperam que as alcancemos , para que os defendamos de serem
exterminados.
(na foto, após driblar a truculenta
segurança, jovem estudante entrega o “troféu exterminador do futuro” ao
“ministro” do meio ambiente desse governo protofascista que ameaça de
extermínio a vida que ainda nem nasceu )
terça-feira, 8 de outubro de 2019
sofias...
A palavra “filosofia” nasceu da
reunião de “philo” e “sophia”. “Philo” significa tanto “amor” como “amizade”,
enquanto afetos potencializadores da vida. Assim, a filosofia não é só teoria ou
conceito, ela também é Afeto. “Sophia” , por sua vez, significa “sabedoria”. “Sophia”
não é só lógica e razão, ela também é Sensibilidade . “Sophia” também pode ser um
nome próprio feminino. "Sophia", ou "Sofia", é o belo nome
que muitos casais escolhem para assim chamarem a vida nova que nasceu do
encontro amoroso deles, ao passo que “Razão” não é nome, quase sempre “Razão” é um conceito
falocrático, um Padrão, a serviço do poder do Homem.
“Sofia” não é Padrão, “Sofia” é nome que expressa diferenças, singularidades. Mas
assim como um nome vem sempre acompanhado por sobrenomes, à sabedoria sempre acompanham a generosidade, a justiça e a coragem.
( imagem:Sofias)
domingo, 6 de outubro de 2019
nomos & diké
“Nômade” vem de
“nomos”. “Nomos” também está presente em “auto-nomia”: “governar a si mesmo”.
Pois este é o sentido original de “nomos”: “governar-se” , individual ou
coletivamente. O oposto de “nomos” é o poder autoritário que violenta e
tiraniza. Na mitologia, Nomos era um Daimon. O Daimon não habita o Oceano (
Poseidon) , o Subsolo ( Hades) ou o Céu (Zeus). O Daimon habita espaços de
travessias sobre Gaia, a Terra. O Daimon-Nomos expressa a necessária travessia da
injustiça à justiça, do cativeiro à liberdade, da passividade à ação, da
tristeza à alegria, como ensina Espinosa em sua política. O Nomos andava junto
de outro Daimon: Diké. Em latim, Diké é Dictio, “Dizer”. Esta palavra está na
raiz de “jurisdictio” ou “jurisdição”: “dizer o que é justo”. Não é o juiz o
titular da Diké. A Diké é um dizer coletivo, social, e nunca a voz de um só,
por maior que seja o poder desse um só. Quando a lei vira objeto de comércio ou
poder, o Nomos precisa ganhar voz e se tornar Diké: voz que clama por justiça.
Voz que é mais forte quando dita por vozes unidas, nas ruas e praças. A voz da
tevê , a voz do rádio, a voz da mídia não são Diké. Nem a voz do congresso é
Diké ( muito menos a voz dos juízes togados...).Diké é voz de um “demos” , como
origem da “democracia”. Diké é voz da rua, voz esta que soa mais forte quando
aprende a dizê-la aqueles a quem o poder cala. Não por acaso, em grego
“felicidade” se escreve “eudaimonia” : “estar na companhia de um bom Daimon”.
Para o grego, assim como para os índios, não existe felicidade apenas privada
ou sozinha, pois felicidade é travessia agenciada por uma voz que luta por
felicidade coletiva. Diké é mais do que voz jurídica , pois ela também é dizer
poético que Manoel de Barros, em versos, ensina: “Poesia pode ser que seja
fazer outro mundo”.
"Poesia pode ser que seja fazer outro mundo" é um verso do próprio Manoel presente neste livro:
Inspirados nesse verso do poeta, organizamos e escrevemos este livro:
sábado, 5 de outubro de 2019
- fontanejar -
Os filósofos
pré-socráticos chamavam a natureza de “physis”. Originariamente, physis
significa brotar ou desabrochar. Uma fonte
pode ser uma imagem-símbolo para a physis, desde que a dessubstantivemos e a
apreendamos como verbo: fontanejar. A rosa desabrocha, ela se abre e se oferece
à luz, e assim fontaneja. Não apenas as
rosas, várias outras coisas desabrocham, fontanejam. A boca que canta
desabrocha, assim como a mão que escreve também fontaneja; também desabrocha a
criança que nasce, o sol que se eleva, o
afeto no peito, o conhecimento na alma. Tudo desabrocha, fontanejando. Mesmo a
alma em silêncio tem o silêncio a lhe desabrochar. Mesmo o homem que morre faz
desabrocharem lembranças que dele teremos. Para quem o crê, o homem que morre
desabrocha outra coisa.
Para os gregos,
a physis não é o desabrochar disto ou daquilo isoladamente, mas o desabrochar
que se expressa em cada coisa diferente , e somente pode mostrar-se
desabrochando, pondo em cada coisa movimento, vida. A physis desabrocha em cada
coisa, desabrochando de si mesma, mantendo ligado a ela o que dela desabrochou.
A physis desabrocha não apenas na rosa, na boca que canta, na criança que
nasce...mas em tudo, no todo . A physis é o desabrochar que permanece em si
mesmo como desabrochar. A physis desabrocha de si mesma e se mostra em cada
coisa que dela desabrocha. Na rosa que desabrocha também desabrocham a água que
ela sorveu, os minerais do solo que ela sugou, a luz que ela absorveu e também
desabrocham através dela os bilhões de anos da terra que a prepararam.
O poeta Manoel
de Barros nos fala que a poesia é a
linguagem dos inauguramentos....A poesia desabrocha em versos, em palavras
escritas. Mas o estado poético, que é o estado de “inventar comportamentos”,
nunca é plenamente um estado, mas um processo de empoemamento. O poeta vê mais
do que o desabrochar das coisas, ele vê o desabrochar enquanto olhar que nele
fontaneja, para assim levá-lo a ver mais do que aquilo que no presente está
dado. Quando tudo parece perdido e
estagnado, de seu olhar uma “linha de
fuga” fontaneja: “Sou água que corre
entre pedras: liberdade caça jeito.”(Manoel de Barros)
terça-feira, 1 de outubro de 2019
psiquê & pneuma
Em grego, há vários nomes para a
“alma”. O mais original deles é “Psiquê”.
Não por acaso, na mitologia Psiquê era o
nome próprio de uma jovem. Diferentemente do nome “Razão”, princípio masculino , Psiquê não é o
nome de apenas uma parte da alma, mas da
alma inteira. Psiquê não era somente raciocínio e teoria. Ela era isso também e
mais sensibilidade, intensidade, beleza , generosidade , coragem, coração e
poesia. Enquanto a Razão tem a pretensão de existir e pensar sozinha ( exemplos disso são
o racionalista Descartes, com o seu ensimesmado “Penso, logo existo”, e
o rígido Kant com sua “Razão Pura”) , Psiquê só se viu
inteira quando encontrou sua companhia. A companhia de Psiquê é Eros, o Amor.
Esta palavra é a reunião da partícula “a” com função privativa ( como em
“a-fasia”, “não fala”) mais a abreviação da palavra morte ( “mor”). Assim, no seu sentido
original, “amor” é “não morte” ( nos vários sentidos que a morte pode ter). É
na companhia de Eros , agenciada com ele, que Psiquê resiste à morte; e é na companhia de Psiquê que Eros aprende que
ele mesmo não sabe tudo o que pode.
A
“alma” possui ainda outro nome:
“pneuma”. Esta palavra costuma ser traduzida por “sopro”. Em latim, “spiritus”.
Porém pneuma, ou spiritus, não é o sopro
que a gente expira ( quando
colocamos o ar para fora). Pois pneuma designa o ar que a gente inspira, puxando o ar para dentro
de nós . Quando a gente expira, é a gente que sopra; mas quando a gente inspira
é a própria vida que sopra
dentro de nós. Quando o bebê sai do ventre e nasce, o ato que inaugura seu respirar é o
inspirar que o desperta para a vida.
Esse inspirar inaugural não é feito apenas pelo seu pequenino pulmão, mas por
todo seu corpo. Este é o sentido original de “inspiração”: “encher-se de vida
para intensificar a vida que vive em nós”, para assim não sufocarmos. Na
verdade, a tradução mais correta de “pneuma” não é “sopro”, e sim “brisa
úmida”, como aquela que , vinda do oceano, ao deserto vivifica.
"Por toda parte , estremecendo, sentimos o mesmo Sopro gigantesco que, escravizado, luta por libertar-se" ( Nikos Kazantzákis)
"Por toda parte , estremecendo, sentimos o mesmo Sopro gigantesco que, escravizado, luta por libertar-se" ( Nikos Kazantzákis)
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