domingo, 29 de outubro de 2023

conversações

 


 

“A universidade deveria ser uma instituição puramente filosófica , uma faculdade única. Todo o sistema universitário deveria tender para estimular e exercer, de uma maneira apropriada, a faculdade de pensar.”

                                                                       Novalis


Oriundo do grego, o termo  “logos” pode significar “palavra”, “discurso” e “dizer”. “Lógica”, enquanto dizer ou discurso da razão, nasce de “logos”. As palavras socio-logia, antropo-logia , museo-logia e  psico-logia , por exemplo,  também têm “logos” em sua grafia e semântica, pois “logia” igualmente se origina de “logos” e significa “estudo” ( enquanto discurso científico sobre um objeto ou realidade).

 Assim, “diálogo” é  : “dois dizeres que trocam” ( o prefixo “dia” também pode significar “através de”, já que  em um diálogo ideias passam   de um logos a outro através do discurso). Já “monólogo” tem por raiz “mono” :  “um” ( tal como em “mono-grafia”: “escrita sobre um tema”). De maneira geral, o  monólogo não é algo ruim. Inclusive, monólogo pode ser um gênero literário-teatral. O monólogo se torna  negativo  quando quer ser  uma fala, uma opinião ou um dizer que se quer impor como se fosse “verdade única” que reprime outros dizeres diferentes. Enfim,  um monólogo se torna perigoso quando quer ser e exercer  monopólio de fala.

 Um diálogo se torna ainda mais rico quando vira uma “conversa” ou “conversação”. Essa palavra tem por raiz o termo latino “vertere”: “voltar-se para”. Assim, conversar é: “voltar-se junto” , para olhar e ter uma perspectiva sobre determinado tema. Ou seja, uma conversa ou conversação pode implicar mais do que dois, sendo a prática de convivência e cultivo  de perspectivas diferentes sobre um mesmo tema. Por isso, uma conversação sempre enriquece um tema, nunca o diminui ou nega.

Autoritários querem sempre  impor monólogos , já os que  defendem a  liberdade individual do eu e do tu exigem diálogo “liberal”. Porém, educadores exercitam sempre conversações emancipadoras ,  das quais fazem parte não apenas o eu e o tu, mas também o nós enquanto pluralidade social de perspectivas que podem convergir sem virar seita, que podem divergir sem gerar ódio.

Platão imortalizou sua filosofia sob a forma literária do “diálogo”. Contudo, muitos acusam Platão de disfarçar  monólogos sob a forma de um aparente diálogo, uma vez que é Platão que está por trás dos diálogos que ele escreve, sempre fazendo prevalecer sua perspectiva ( que está subtendida mesmo nos chamados “diálogos aporéticos”, nos quais aparentemente não se chega a uma resposta ou certeza).

Deleuze propõe um meio de expressão filosófico  diferente: a conversação.  É como conversação, inclusive, que a filosofia encontra pontos em comum com a literatura, nos quais um personagem literário levanta questões   que também podemos achar em um filósofo, ou filósofos que criam conceitos que um personagem literário parece também pensar, sentir e viver.




 

sábado, 28 de outubro de 2023

o delírio ôntico

 

Esta história se encontra em La Fontaine ( que aqui interpreto): Atena  ( a Razão)  entrou em conflito com Eros (o Amor ).  Em La Fontaine,  Atena é identificada à Razão que apenas conta, mede e calcula.

Eles brigaram porque , ao decidirem andar juntos, Atena só dava um passo adiante se pudesse   ver, antes , o caminho;  já o Amor gostava de ir por onde não havia trilhas: se à frente havia  um abismo, Eros  abria suas  asas e o atravessava ,  confiando em sua força alada ( em grego, "eros" significa "amor" e também "asas").

Atena, sempre com os  pés no chão, não aprovava esses ímpetos e voos. Desentendidos, a Razão e o Amor brigaram, romperam...

Os deuses do Olimpo  ficaram do lado de Atena. Como punição, Eros foi privado de ver a Luz do Olimpo, tornando-se cego. A luz do Olimpo era como um sol a iluminar o mundo visível onde vivem os homens com suas opiniões e certezas.

Afrodite interveio e pediu a Zeus que fosse dado a Eros ao menos uma bengala para ele poder caminhar. Zeus assim respondeu : “É indigno ao Amor viver apoiado em bengalas e outros tipos de amparo  que não sejam suas próprias pernas e asas.”

Dinheiro, posses, dogmas, poder, segurança...Se o Amor se sustentar nessas coisas, nessas “bengalas”,  atrofiam suas asas.

Zeus não mandou, portanto,  uma bengala para o Amor, e sim um guia:  a “Loucura” . Os gregos chamavam de “Mania”, ou “Loucura Divina”, essa Loucura que guia o Amor.

Embora cego, o Amor passou a ver a partir do coração, pois foi no coração do Amor que a Loucura Divina se instalou. “Divino”, aqui, não significa “religioso”, e sim  algo que transmuta,   potencializa e “empoema” ( diria Manoel de Barros).

 Essa Loucura empoemada deu ainda mais coragem a Eros para  abrir suas asas ( “coragem”: “ação que vem do coração”). Pois  essa   “Loucura” não é uma enfermidade mental negadora da Razão; ao contrário,   ela é  uma força  transmutadora que guia o Amor  a achar  caminhos que a própria  luz da Razão não consegue encontrar sozinha.

É essa mesma “Loucura-Coragem” não resignada   que  guia tanto o poeta  como , no campo pedagógico-político, o revolucionário. Nada muda, indivíduos ou sociedades, sem uma  coragem assim.

O poeta  Manoel de Barros assim chama essa “Loucura”: “delírio ôntico” . Em grego, “on” é “ser”. Enquanto o delírio mórbido, delírio por poder,  é negação da razão,  da vida e da multiplicidade do ser, o delírio ôntico, delírio poético, é afirmação e criação de novos  sentidos para as mil possibilidades que a vida pode ter.

Como também ensina Clarice Lispector: “Se uma pessoa fizesse apenas o que entende, jamais avançaria um passo.”

 

( o livro de Clarice é apenas uma sugestão)







- A canção original:


sexta-feira, 27 de outubro de 2023

filosofia como doença, filosofia como clínica

 

Wittgenstein dizia que a função principal da filosofia é a de terapêutica ou cura : cura da própria filosofia. Somente a filosofia nos pode curar da filosofia, diagnosticava Wittgenstein. Mas de qual doença a filosofia é, ao mesmo tempo, o agente patológico e o médico? A  doença da linguagem metafísica. Segundo Wittgenstein, a metafísica é uma doença que acomete a linguagem filosófica, que assim ignora os seus limites: delira.

Autores como Sêneca, Epicuro e  Epicteto também prescreveram a filosofia como sendo, antes de tudo, uma terapêutica[1]. Porém  eles foram médicos mais clínicos e acurados que Wittgenstein. De certo modo, eles são médicos que talvez pudessem curar Wittgenstein de Wittgenstein...

Pois Sêneca, Epicuro e Epicteto nos falam de uma linguagem primeira , uma linguagem que antecede essa a qual se refere Wittgenstein. Enquanto Wittgenstein se refere ao discurso externo que toma por objetos realidades que somente a ciência poderia  conhecer adequadamente e sem “metafísicas”,  os clínicos originários se situam no âmbito do discurso interno, aquele no qual a alma deve aprender a conversar consigo mesma. Não apenas falando a partir da razão , mas também falando e ouvindo a partir sobretudo do corpo, da sensibilidade, do inconsciente... É nesse registro imanente que um discurso pode ser saúde ou doença.

 Wittgenstein considera a linguagem da perspectiva de fora e em relação aos seus objetos, ao passo que os clínicos originários pensam a linguagem como meio de expressão da realidade dos pensamentos , dos desejos e quereres. Talvez nasça de um querer adoecido , fruto de um pensamento que não sabe conversar consigo, a opinião  que crê ser a filosofia uma doença...

Para aqueles clínicos originários, a filosofia é o remédio , o conversar consigo é o tratamento e a (auto)ignorância é a principal    doença a ser vencida.

 



[1] De uma perspectiva diferente, esse tema é tratado por Pierre Hadot no Prefácio que escreveu ao livro La philosophie como thérapie de l’âme, de André-Jean Voelke .





quinta-feira, 26 de outubro de 2023

gesto-mensagem

 

Na mitologia , Hermes é considerado  o “deus mensageiro”: é ele que leva as mensagens.

Porém, a expressão “Deus” ( ou “Divindade”) não é adequada para traduzir o universo poético-criativo dessas narrativas originárias, uma vez que a expressão “Deus” é carregada de sentidos teológicos que não se aplicam à fabulação poética dos gregos.

A ideia de “Deus”  pressupõe a separação entre o artista (Deus) e sua obra ( a natureza): Deus teria criado o mundo do nada, pois ele existia antes de sua obra.

Mas tal visão não se aplica à invenção poética dos gregos. O Amor , por exemplo,  não existia antes de Eros nascer: Eros é o Amor mesmo em suas variadas formas, a inseparabilidade do artista e sua obra ; do mesmo modo, não existiam mensagens antes de Hermes  surgir : Hermes expressa a mensagem e os vários sentidos que ela pode ter.

Na religião, Deus cria sua obra do nada; na poesia originária, diferentemente,  as divindades são potencialidades que nos ajudam a vencer as forças  reativas que , ontem e hoje, querem reduzir a cultura e a educação a nada.

Por isso, em vez de “Deus”, a expressão mais adequada é “Potência”: Eros, Hermes, Dioniso, Atena...são a Potência do Amor, das Mensagens, das Artes e do Conhecimento enquanto processos que podem ser reinventados, pois nunca se reduzem a uma forma única presa no passado.

Mas as mensagens que Hermes carregava não eram feitas apenas de palavras , pelo seguinte motivo :  quando era ainda criança , Dioniso   foi  vítima do  ódio e da vingança  , sendo despedaçado pelos seus carrascos.

Hermes então recolheu e guardou o coração de Dioniso, antes que os vingativos e ressentidos o esmagassem. Desde então, Hermes só  transporta mensagens que aceitem ter um coração dentro.

Suas mensagens não trazem apenas  meras informações utilitárias, mas sentidos emancipadores que educam, sensibilizando. Nunca tais mensagens  se prestam ao ódio ou ao preconceito, e sim à  gentileza e ao cuidado, mesmo quando criticam.

Isso também significa que toda mensagem tem um coração, que é o seu sentido, e cada um interpreta esse sentido conforme o coração  que tem. Se o coração de alguém for generoso, enriquecerá o sentido; se o coração for mesquinho, apequenará o sentido.

Vencendo a barreira da prosa, tais mensagens também se expressam no verso e no canto. Elas também podem ser ditas em gestos , objetos e  em obras de arte, desde que sejam para defender e potencializar a vida, para assim resistir e  lutar contra tudo aquilo que quer despedaçá-la.

São mensagens assim  que o poeta deseja também escrever, quando diz: “Na ponta do meu lápis há apenas nascimento” (Manoel de Barros).

Essas potências criadoras-poéticas  existem para serem achadas também em nós, e reinventadas.

 

 (foto: em protesto contra a violência hedionda, moradores da comunidade da  Maré resistem por meio de um gesto-mensagem: plantam flores , potência de vida, nos buracos das balas)



quinta-feira, 19 de outubro de 2023

a besta...

 

Em seu comentário ao livro “A besta humana”, de Zola, o filósofo Gilles Deleuze fala de alguns  comportamentos hediondos , de ontem e de hoje, identificáveis à  “besta”.

A besta não é um animal determinado da zoologia. A besta é uma espécie de “fundo indeterminado” propagador de (auto)destruição e morte, uma espécie de “buraco negro” que suga e extingue toda forma de luz.

Os instintos  protegem os animais  desse “fundo indeterminado”. Nenhum animal é capaz de cometer ato hediondo ou barbárie inexplicável, pois todos os seus comportamentos são explicáveis pelos instintos.

 A ferocidade do leão, por exemplo, não é maldade ou crueldade, mas um comportamento explicável por sua natureza de leão. Conhecendo essa natureza, podemos agir para evitarmos que essa ferocidade nos atinja.

No homem, o instinto não tem força suficiente  para protegê-lo desse fundo indeterminado . Tampouco pode a inteligência, sozinha, vencer esse “buraco negro”, o ninho onde dorme a besta.

Pois a inteligência , com suas teorias e invenções tecnológicas, é voltada para o domínio do mundo externo, de tal modo que a besta sempre se esconde às suas costas, como uma sombra.

Pode acontecer de a besta se servir dos frutos da inteligência e usá-los como  doentias armas suas : “mísseis  inteligentes”, por exemplo, são a inteligência a serviço da besta e sua necropolítica de extermínio que não poupa nem crianças...

O mundo digital, apesar de fruto da tecnologia avançada, também pode servir à mentalidade obscurantista e atrasada da besta.

Quando a besta toma a mente e a boca do homem, nasce então a “besteira” como antifilosofia, antieducação e anticonhecimento.  A besteira é a besta empregando a palavra para destruir o próprio universo simbólico.

Para quem sabe ouvir, crianças nunca dizem besteiras; somente os adultos que são uma besta  podem dizer besteiras que torturam os ouvidos do espírito .

 A besta pode até mesmo se servir da religião, tal como no fanatismo teológico-político  armado de intolerância. A besta pode dominar o Estado, nascendo assim o Leviatã Fascista raivosamente militarizado e genocida.

Quando a besta toma o homem, este se torna um ser irreconhecível , virando um bicho imprevisível que nem  a natureza  explica mais...                                                                                                                                                                                             

Na mitologia, a “Besta” era representada pelo Minotauro: metade touro, metade homem.  A besta morava num lúgubre labirinto que prendia a todos e parecia não ter saída.

Mas a bestialidade do Minotauro, sua “sede de sangue”,  não vinha do touro, que é herbívoro. A bestialidade vinha da  parte humana  acéfala e doentia ,  que usava a seu serviço a força bruta do touro  .

Além da inteligência, a  vida criou o pensamento. Os instrumentos do pensamento são as ideias e os afetos. O pensar redireciona e amplia a inteligência , tornando-a   também  (cons)ciência planetária.

O pensamento é luz vital que ilumina por dentro e por fora,  brotando da mesma energia que os instintos da vida, porém se potencializando pelo cultivo social  da empatia que agencia , da cooperação que congrega  e da indignação que une os que lutam pela justiça.




domingo, 15 de outubro de 2023

ao Dia dos Professores e Professoras

 

Dia desses, numa manhã muita bonita, vi passar um senhor bem idoso, porém firme e altivo. 

Vê-lo fez reviver dentro de mim uma palavra que há muito  eu não  dizia. Foi a “potência-alegria” de que fala Espinosa o que senti ao saber   que tal palavra  ainda em mim  vivia , à espera  de reencontrar aquele a quem ela designa e nomeia.

Essa palavra não estava escrita no meu cérebro onde se acumulam teorias, ela  estava guardada em meu coração ,lugar do Afeto,  junto à lembrança dos seres que conheci e que me tornaram o que sou.

Foi então do coração que a palavra veio subindo, já com pleno sentido, embora ainda sem se vestir com o som. Quando ela chegou à minha boca, tornou-se voz e , com carinho, chamou: “Mestre!!!”. 

Aquele senhor era um querido  professor que tive há muito tempo. Ele me reconheceu , sorriu e estendeu a mão para  mim, encontrando  a minha que já lhe estava estendida  desde a primeira aula dele que assisti .

 Não sei ao certo quanto tempo conversamos, o durar do afeto não o mede relógios. Quando nos despedimos, fiquei parado vendo-o ir, e pensei: “Será que ele sabe o quanto foi importante em minha vida?”

Antes de ele ir, olhei  seu rosto e tive a impressão de que ele também estava a   recordar-se do mestre que teve e que o inspirou a ser mestre, e por isso ele entendia minha  estima e gratidão.

E esse outro mestre do mestre, se vivo estiver, também deve estar se lembrando, hoje,  daquele que o fez mestre. Pois hoje é dia não exatamente de nos lembrarmos de nós mesmos , mas daqueles que nos fizeram ser o que somos: professores e professoras.

 É sempre o aprender que vem primeiro, ensina Deleuze. O autêntico professor gosta de ensinar porque, antes, amou aprender com aquele que lhe ensinou  lições que não  estão apenas  em livros.

Creio  que nos tornamos professores quando o mestre que nos fez mestre não vive  apenas fora, ele passa a viver  dentro da gente, e com ele continuamos a aprender mesmo  enquanto ensinamos.

Assim,  apenas  sob certa perspectiva aquele meu antigo mestre se afastava de mim,  sob outra perspectiva ele nunca de mim saiu  desde que , com suas aulas, em minha vida entrou , passando a viver na companhia de  outros queridos  mestres que igualmente entraram  em mim e me tornaram o que sou : a  Professora Nadir ( minha primeira professora de filosofia e quem me libertou), o  inesquecível Cláudio Ulpiano, o admirável Luiz Alfredo Garcia-Roza , o grande Gerd Bornheim e o sábio   Junito Brandão .

Neste Dia dos Professores e Professoras, acordei me lembrando de um verso do mestre Manoel de Barros, que ensina a seguinte lição: “O melhor de mim sou Eles. ”

 

( A imagem mostra  Stheffany Rafaela, moradora de uma comunidade do Recife, que transformou em sala de aula as vielas de sua comunidade. Foto: Aldo Carneiro/Pernambuco Press)



 






“Mas os livros que em nossa vida entraram

são como a radiação de um corpo negro

apontando pra a expansão do Universo.

Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso

e, sem dúvida, sobretudo o verso,

é o que pode lançar mundos no mundo.”

( trecho da letra da música "Livros", de Caetano)


quinta-feira, 12 de outubro de 2023

o devir-criança do poeta

 

“Um pouco de possível, para não sufocarmos...”, dizia Foucault. Essa frase não expressa desespero, mas um desejo de criar meios para achar oxigênio  não apenas para nossos pulmões, mas sobretudo para nossa sensibilidade e mente.

Não por acaso, em grego esse “ar do possível” , oxigênio da vida, se chama “Pneuma”. Em latim, “Spiritus” ( enquanto sopro vital que une mente e corpo, como ensina Espinosa).

Creio que um sopro  assim pode ser encontrado também na poesia de Manoel de Barros. Nesse Dia das Crianças, lembrei de uma passagem de sua obra na qual se pode respirar um oxigênio alimentador de nossas ideias e práticas.

Quando fez 80 anos, Manoel de Barros recebeu pedido   de um editor para que escrevesse três memórias: da infância, da vida adulta e, sobretudo, da velhice. Com sua avançada idade, o editor supunha que o  poeta teria muito a dizer sobre si .

Passado algum tempo, o poeta enviou ao editor o primeiro livro: “Memórias da primeira infância”.  Em todos os sentidos, o livro foi um sucesso.

 Tempos depois, Manoel enviou novo livro ao editor: “Memórias da segunda infância”. Como diz Manoel, poesia é saber que      “não vem em tomos” . Assim, a segunda infância não era uma sequência da primeira , não era  uma infância posterior . A segunda infância era uma segunda ida do poeta à infância sempre primeira.

Manoel reservava ainda fôlego para uma nova ida à infância, e assim enviou ao editor um terceiro livro: “Memórias da terceira infância”. Um livro regenerador...

O tempo passou, o poeta nada mais enviou ao editor, que tomou coragem e indagou: “Poeta, suas três memórias da infância são extraordinárias, porém onde estão as memórias da vida adulta e, principalmente,  da velhice?”

Manoel respondeu : “Só tive infância”. E completou: “Nunca tive velhez. Só narro meus nascimentos”.

Essa infância, enquanto antídoto à “velhez”, não é uma determinada idade. Pois ela também é a infância da linguagem, o seu fazer-se novidade para dizer o que ainda não foi dito: “As crianças sabem dizer palavras que ainda não têm idioma”.

No poema “Invenção”, Manoel diz: “Criei um menino para me ser, ele nasceu da ponta do meu lápis”. Assim que nasceu, o menino disse ao poeta: “Você me criou para eu te inventar poeta”. Esse menino, diz Manoel, “é a criança que me escreve”. Não é, portanto, a criança que ele foi, mas um devir-criança necessário para enfrentarmos a “velhez”.

“Velhez”  nada tem a ver com “velhice”. Chico, Bethânia, Gil, Paulinho da Viola , Tom Zé , o próprio Manoel são exemplos de que velhice nada tem a ver com  velhez. A velhez é o antipossível que sufoca.

A velhez  também é a estupidez das guerras arquitetadas  por velhacos , cujas primeiras vítimas são sempre as crianças de ambos  os lados do front .  

 Arte, criatividade, educação....são potências críticas ,  criativas e cuidadoras que , apesar do clima seco e pesado, não nos deixa faltar o ar.




 

 

- Este curta narra a história de uma criança pobre de periferia que encontra um potentíssimo sopro de possível, apesar da velhez entorno:




domingo, 8 de outubro de 2023

krenak e os poetas da tribo

 

Quando entrou em contato pela  primeira vez com a cultura do homem branco, o pensador indígena  Krenak dizia que a ideia mais incompreensível para ele era de que o mundo estaria  condenado a um fim, a um “Juízo Final”. E que essa visão destruidora era a base de uma religião que se dizia do Amor.

Essa visão de que a terra, a Mãe-Terra, teria um dia fim parecia legitimar que o homem branco  já começasse a destruí-la   desde agora, derrubando suas florestas, poluindo seus mares e rios, enfim,  ameaçando de extinção os povos da floresta.

Mas os povos das florestas têm um antídoto que os protege.  Esse antídoto não está no cacique , o “chefe político”, ou no pajé, o “chefe religioso”; esse antídoto está naquele que é chamado de   “pessoa coletiva”.

Nos povos da floresta , a “pessoa coletiva” não é alguém com “muitos eus” ou “personalidades”. Diferentemente, a “pessoa coletiva” é aquela que diz narrativas que expressam o “nós” da comunidade.

Somente sendo uma “pessoa coletiva” se pode ser uma singularidade. A “pessoa coletiva” não profere ordens e nem cultos, ela tece narrativas. São as narrativas de uma “pessoa coletiva” que potencializam a comunidade para enfrentar as ameaças de fim de mundo.

A “pessoa coletiva” é o poeta da comunidade. Entre os povos da floresta, o poeta não tem nome próprio designando um ego, pois seu nome é “pessoa coletiva”.

O poeta da tribo expressa um poder  diferente daquele que exerce o cacique, o poeta   promove curas para enfermidades que o pajé não consegue  curar, e trava guerras cujas armas não são lanças ou flechas, pois sua guerra é a resistência por intermédio  da palavra que não deixa morrer um mundo : o mundo dos povos da floresta.

 A “pessoa coletiva” é um “agente coletivo de enunciação”, diriam Deleuze e Guattari; e nela fontaneja um “afloramento de falas”, tal  como aflora na  pessoa coletiva Manoel de Barros, um dos poetas da nossa tribo : "Tenho em mim um sentimento de aldeia e dos primórdios. Eu não caminho para o fim, eu caminho para as origens.” (Manoel de Barros)

Segue um trecho do livro de Krenak:

"Como os povos originários do Brasil lidaram com a colonização, que queria acabar  com o seu mundo? (...)Vi as diferentes manobras que os nossos antepassados fizeram  e me alimentei delas , da criatividade e da poesia que inspirou a resistência desses povos.(...)Muitas dessas pessoas não são indivíduos, mas 'pessoas coletivas', células que conseguem transmitir através do tempo suas visões sobre o mundo" (p. 28).

 

(Em homenagem ao pensador-poeta-indígena Krenak, eleito novo membro da Academia Brasileira de Letras)







sexta-feira, 6 de outubro de 2023

Espinosa : indignação não é ódio

 

Segundo Espinosa, não se deve confundir “ódio” com “indignação”. A indignação é um afeto ativo nascido da compreensão de que  uma injustiça sofrida por outro cidadão de nós diferente   é uma violência  que também nos atinge, ao passo que o ódio é um sentimento reativo transformado em vontade de destruir o outro   , física ou simbolicamente .

Indignação é desejo de construção da justiça, ódio é vontade de  vingança. A indignação nos une  na luta pela defesa do que nos torna dignos, já o ódio arrebanha os que fazem da ignorância bandeira e partido.

 O ódio geralmente se arma com preconceitos, intolerâncias , fake news...ou ainda  com o estúpido revólver mesmo, ao passo que a indignação se expressa não apenas em passeatas ou manifestos, mas também   na arte e pensamento críticos.

 Enfim, o que caracteriza um cidadão, diz Espinosa, não é exatamente votar  ou empreender negócios, mas ser capaz de se indignar com a injustiça sofrida por um outro. E a indignação deve ser  ainda maior , nos unir ainda mais,  quando o ódio autoritário ameaça   a própria democracia.

Pois não foi a democracia que criou a indignação , foi a indignação que criou a democracia , pois antes mesmo de existirem as leis democráticas e seus Tribunais com magistrados togados, foi a indignação corajosa de  libertários e libertárias que primeiro derrotou  a tirania medieval   que impunha  servidão e    vassalagem.

Indignação não é um ódio ao que é indigno, mas um amor ao que é digno, transformando esse afeto em  ação que nos diferencie e agencie coletivamente. A vacina não age diretamente na destruição do vírus, a vacina  fortalece nossa saúde para que esta, afirmando-se, destrua o vírus.

Certa vez, um fanático do ódio quis matar Espinosa com uma punhalada pelas costas. Rápido, Espinosa desviou do golpe. Ao invés de apenas alimentar ódio  a tal homem, Espinosa se indignou com a simbologia do covarde ato, cujo alvo não era apenas ele ,  mas  o próprio pensar livre e democrático de não importa qual tempo.

Compreender Espinosa não é  apenas decifrar  intelectualmente a lógica do seu  texto, mas fazer ressoar em nós a sua voz calma e doce, porém firme e indignada, para que ela se some à nossa e  potencialize o nosso coro plural de indignados contra a existência da fome, da desigualdade social, do feminicídio, da lgbtfobia, do fanatismo religioso, do fascismo, do etnocídio dos povos originários, enfim, indignação contra a ignorância e a  violência em todas as suas obscuras faces, incluindo a face hedionda da milícia.

Ler Espinosa é, antes de tudo, não deixar calar em nós , individual e coletivamente, essa voz da indignação pensante e atuante .

Educadora e emancipadora,  essa voz também pode ser ouvida na voz do poeta, na voz do artista e na voz de quem, aprendendo, igualmente  com ações  ensina, fazendo disso a sua perseverante prática.

 

Estes livros são apenas  sugestões de leitura:





quarta-feira, 4 de outubro de 2023

o monumentador de passarinhos

 

Ouvi certa vez a seguinte história de autoria popular ( que aqui parafraseio e interpreto): de um lado estava São Francisco, do outro o Diabo. Separando a ambos ,  um muro; e em cima do muro estava  alguém que se dizia “Neutro”.

 Francisco  disse ao “Neutro”: “- Venha para este lado, aqui há luz e  empatia  pela vida do outro.”

Do   lado oposto do muro , porém, o Diabo permanecia calado.

Vendo  o “Neutro” ainda indeciso e  parado, Francisco  prosseguia : “- Venha se juntar a nós , Buda também está aqui deste lado; também estão Lao-Tsé, Confúcio,  Orixás , Tupã, Mães-de-Santo,  pajés ... Bem como todos aqueles que, tendo ou não religião,  agiram para defender e libertar  os oprimidos e injustiçados.”

Estranhamente, o Diabo seguia mudo, ele que gosta tanto de se vangloriar...

Então, Francisco levantou a cabeça , olhou sobre o muro e indagou ao que reinava na treva  do outro lado : “- Por que você   permanece  calado?”

“- É que esse muro onde o ‘Neutro’ está  instalado  pertence a mim”, disse o Diabo.

Do certo lado do muro, o poeta Manoel de Barros assim poetizou: “São Francisco monumentou os passarinhos.”

 

(obs: A postagem se apoia mais no personagem social-popular Francisco, um personagem da literatura de  cordel . Não é tratado o tema do ponto de vista de uma religião. Inclusive , dei a entender que do lado do muro onde está o personagem Francisco também podem estar agnósticos e até ateus. De todo modo, hoje, dia 4 de outubro, é Dia de Francisco)

(A foto que acompanha a postagem  mostra a escultura “Cristo sem teto”, obra do escultor Timothy Schmalz; a outra imagem é a do padre Júlio Lancelloti , que é sempre alvo de repressão da polícia quando ele, franciscanamente, realiza  seu trabalho de auxílio  aos moradores de rua e sem teto)





 ( trecho do filme "Irmão Sol, Irmã Lua", de Franco Zeffirelli. Na cena, Francisco se despe do mundo do homem branco proprietário e renasce nu, como nossos indígenas) 

segunda-feira, 2 de outubro de 2023

domingo, 1 de outubro de 2023

Manoel : agenciamentos

 

Uma das ideias de que mais gosto é a de “agenciamento”, ela  vem dos filósofos Deleuze & Guattari. É uma daquelas ideias que não se ensina/aprende apenas falando/escutando, e sim   construindo, fazendo.

No coração de agenciamento está a palavra “agente”. Mas o que é um agente?

O agente pode ser qualquer coisa que favoreça um agenciamento. Uma música, um livro, uma paisagem... também  podem ser o agente de um agenciamento.

 Mesmo algo considerado inútil pelo poder dominante pode servir a agenciamentos cuja “utilidade” não se mede em dinheiro. Nem sempre um agente para um agenciamento se mostra evidente. Às vezes, é preciso saber achar um agente para nossos agenciamentos, ou até mesmo criá-lo .

Sobretudo, é necessário  aprendermos nós mesmos a sermos um agente para agenciamentos que potencializem os outros quando eles se encontram conosco. Quando nos agenciamos para mudarmos uma situação social, por exemplo, nos tornamos agentes uns dos outros.

No poema “Aventura”,  Manoel de Barros narra um transformador agenciamento cujo agente  é um simples pote que o poeta encontra jogado fora de "barriga vazia para cima" num lugar ermo.

Não faz muito tempo,  esse pote deve ter sido o centro das atenções: todos  o queriam perto por guardar algo que despertava cobiça e interesse. Talvez ele tenha sido um  pote cheio de   sorvete...

Tamanha deve ser a dor que o pote sente agora, abandonado . Rejeitado pelos homens após estes o sugarem, apenas a natureza quis o pote. A natureza nunca despreza: ela recebe e regenera, preenche vazios - disso também já sabia Espinosa.

“Inútil”, o pote já não servia para nada, a não ser para metamorfoses, pois é isso que a natureza produz em tudo aquilo que, ao receber os cuidados dela , sofre um contágio, uma comunhão: "depois desse desmanche em natureza, as latas podem até namorar com as borboletas", pressagiou o poeta antes de seguir seu caminho.

Tempos depois, o poeta teve que passar pelo mesmo lugar. Lembrou do pote e se preparou para rever aquela imagem triste do sofrimento.

Porém, nesse intervalo de tempo , sem que o poeta soubesse, um passarinho passou voando “atoamente” sobre o pote e cuspiu uma semente em seu ventre vazio. Ali já havia areia e cisco que a natureza depositou: “as chuvas e os ventos deram à gravidez do pote forças de parir". E onde antes crescia o vazio, um poema vivo o pote partejou: do ventre do pote um pé de rosas desabrochou...

"Se a gente não der o amor ele apodrece dentro de nós”, agradeceu o poeta ao pote por essa lição que  recebeu sob a forma de rosas.E repletos estavam agora o pote e o poeta com a beleza que se oferta sem nada pedir em troca . 

Esse agenciamento poético-filosófico também nos  lembra o que dizia Plotino:                                                                                                           

         “Quando uma ideia nos fecunda , também sofremos angústia de parto.”